P E N T E C O S TTA
A L I S M O:
de onde vem, para onde vai?
Alexandre Carneiro de Souza
P E N T E C O S TTA
A L I S M O:
de onde vem, para onde vai?
Copyright © 2004, Alexandre Carneiro de Souza
Primeira Edição: Setembro de 2004
Revisão: Daniela Cabral
Projeto Gráfico: Editora Ultimato
Capa: BJ Carvalho
PUBLICADO NO BRASIL COM AUTORIZAÇÃO
E COM TODOS OS DIREITOS RESERVADOS PELA
EDITORA ULTIMATO LTDA
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Ficha catalográfica preparada pela Seção de Catalogação
e Classificação da Biblioteca Central da UFV
S729p
2004
Souza, Alexandre Carneiro de, 1957Pentecostalismo: de onde vem, para onde vai?; um desafio
às leituras contemporâneas da religiosidade brasileira /
Alexandre Carneiro de Souza. — Viçosa : Ultimato, 2004.
152p.
Inclui bibliografia
ISBN 85-86539-73-2
1. Pentecostalismo. 2. Igreja e problemas sociais - Igreja
protestante. I. Título.
CDD. 20.ed. 270.82
SUMÁRIO
Prefácio
07
Introdução
11
1. Pentecostalismo: desenvolvimento
histórico e ética
15
2. Pentecostalismo e cultura: vácuos
e incorporações
33
3. A gestão do poder no pentecostalismo
55
4. A magia pentecostal e a magia do mercado:
a valorização contemporânea do corpo
73
5. O empreendedorismo pentecostal e
o espírito do mercado
91
6. A inserção do pentecostalismo no
protestantismo brasileiro
113
Notas
137
Bibliografia
145
PREFÁCIO
CONHECI ALEXANDRE quando ele ainda era um garoto e
estudava numa escola pública perto do bairro onde vivemos a
nossa infância. Sua mãe, uma piedosa do protestantismo
pentecostal, freqüentava a igreja em que meu saudoso pai, João
Queiroz, fora pastor. Ainda bem jovem, Alexandre começou a
estudar teologia e sociologia. Hoje é o pastor titular dessa mesma
igreja há mais de 10 anos e transita nas mais diversas comunidades de expressão protestante. Assim, conhece o mundo religioso
protestante como participante ativo.
Ele tem sido reconhecido não somente como um homem íntegro, mas também como um estudioso e praticante dos ensinos
de Jesus Cristo e, nos últimos anos, pelo critério acadêmico de
seus trabalhos. É um dos poucos cientistas que conseguem
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P ENTECOSTALISMO : DE ONDE VEM , PAR A ONDE VAI ?
manter uma reflexão aguçada e inteligente aliada a uma
espiritualidade profunda e engajada socialmente. Suas atividades
religiosas e acadêmicas o têm tornado um participante das experiências consideradas sobrenaturais, bem como um pensador que
se esforça para se manter eqüidistante do seu próprio campo de
observação.
Ler em primeira mão o texto do Alexandre deu-me a chance
de perceber o pentecostalismo não apenas como um segmento
religioso, mas como um modo de ser do religioso pobre, que
encontra no pentecostalismo uma forma alternativa de expressar
a sua fé. Na relação com o sagrado, o pobre ou o desprovido de
poder (seja de que natureza for) encontra na divindade uma
capacidade singular de agir como se ele mesmo fosse, a partir de
sua experiência, uma continuação da manifestação de Deus no
cotidiano de quem sofre. Enquanto que na teologia o
pentecostalismo é um fenômeno sobrenatural, na sociologia é um
fenômeno “sobre o natural” (a respeito do cotidiano).
O autor aborda o pentecostalismo a partir de critérios científicos de pesquisa, levando em consideração mais aspectos sociológicos do que teológicos. O leitor encontrará um quadro analítico
construído com considerável rigor, em que as afirmações e os
questionamentos são acompanhados, em grande parte, de
constatações empíricas, submetidas a inquirições de cunho sociológico. Verá que cada problema remete a uma série de outros
problemas, num encadeamento sem fim, acerca dos quais, pela
natureza do pentecostalismo, não se pode enquadrar o fenômeno
de forma definitiva. Quem sabe, de maneira involuntária, devido
ao rigor acadêmico, o autor esteja afirmando o que um pentecostal
militante diria sobre o fenômeno: “É mistério!...”.
O texto ficou condicionado ao “modo de ser” do fenômeno
religioso pentecostal — uma expressão religiosa que, na interpretação do autor, “é um acontecimento religioso em processo”. O
livro transcende as tentativas de respostas estanques. Além de nos
P REFÁCIO /
9
ajudar a compreender o pentecostalismo, pode nos ajudar a
compreender também outros fenômenos sociais.
À semelhança do pentecostalismo, todos somos um fenômeno
inacabado. Que a leitura deste livro, além de trazer contribuições
analíticas, seja um instrumento em nossa contínua e ilimitada
construção do pensamento, que, sendo alimentado pelo
sopro do Espírito, não se sabe de onde vem, nem para onde
vai... (Jo 3.8).
CARLOS QUEIROZ
Fortaleza, setembro de 2004.
INTRODUÇÃO
O
PENTECOSTALISMO VEM-SE constituindo num
fenômeno religioso amplamente discutido. No Brasil, nestas três
últimas décadas, as igrejas pentecostais conquistaram visibilidade
nacional. Têm atraído para os seus redutos centenas de milhares
de pessoas e despertado a sociedade brasileira para a emergência
de uma possível força social capaz de influenciar
significativamente, não apenas o quadro religioso, mas também o
social e o político do país.
As igrejas pentecostais atuam e crescem fundamentadas
numa teologia evangelística agressiva e numa prática litúrgica
“barulhenta”. O pentecostalismo adiciona ao ato religioso o
sensacionalismo e o espetáculo, acompanhados de um produto
doutrinário que intervém prioritariamente nos universos da dor,
12 /
P ENTECOSTALISMO : DE ONDE VEM , PAR A ONDE VAI ?
da angústia e da ansiedade da existência humana, trabalhando os
conflitos do aqui e do agora.
Esse movimento deixa atrás de si uma trilha de impactos e
repercussões. O seu crescimento acelerado promove um desmonte na configuração religiosa do país, cujas principais seqüelas são
debitadas às religiões afro-brasileiras e ao catolicismo. Os grupos
que exercem influência sobre a opinião pública do país, a exemplo da Igreja Católica e da mídia, se mostram intrigados com a
amplitude desse crescimento.
Além disso, o meio protestante mostra-se abalado devido à sua
aparente incapacidade de lidar com a diversidade religiosa, comandada pelo volume cada vez maior de renovações do produto
da fé pentecostal. E o movimento recebe críticas das mais diferentes direções devido a alguns de seus métodos e estratégias, nem
sempre respaldados eticamente.
A atenção que o movimento pentecostal vem despertando na
sociedade em geral tem suscitado um número cada vez maior de
informações veiculado pela mídia e pelo meio científico. Este livro defende a adoção de métodos de pesquisa que analisem o
fenômeno sem perder de vista a sua formação histórica e os caminhos internos de sua estruturação enquanto construção simbólica de uma crença coletiva.
As idéias expostas aqui foram retiradas de construções bem
maiores — uma dissertação de mestrado (1993-1996) e uma tese
de doutorado (1999-2003), apresentadas ao departamento de sociologia da Universidade Federal do Ceará. Apesar disso, não falta um direcionamento analítico, cuja pretensão é entender o
pentecostalismo brasileiro a partir de sua ancestralidade, considerando o desenvolvimento de sua cultura religiosa sem perder de
vista a dimensão ética da crença, seus conflitos e suas transições.
O estudo é exposto com base em duas pressuposições simples
e ao mesmo tempo complexas. Primeiro, as práticas religiosas, a
despeito da pluralidade e das distinções, são elaborações culturais
INTRODUÇÃO /
13
que nascem concretamente das relações que os indivíduos
estabelecem entre si para formar e reformar o social. Segundo,
em conseqüência dessa pressuposição, a análise parte da idéia
de que as práticas religiosas, como as demais práticas sociais,
são construções contínuas.
Capítulo 1
PENTECOSTALISMO:
DESENVOLVIMENTO
HISTÓRICO E ÉTICA
A origem do pentecostalismo
A distinção da origem das igrejas cristãs é problemática.
Estabelecer esse tipo de marco não é uma tarefa simples em se
tratando dos diversos grupos que são incorporados à igreja cristã.
O cristianismo possui uma única origem: partiu do movimento
que surgiu no mundo antigo com a manifestação de Jesus Cristo
e, depois, difundido por seus apóstolos no mundo inteiro. Houve
16 /
P ENTECOSTALISMO : DE ONDE VEM , PAR A ONDE VAI ?
uma fase que se caracterizou pelo domínio oriental, com base na
igreja primitiva de Jerusalém; depois, como conseqüência da
multiplicação das comunidades evangelizadas e influenciadas
socialmente, aliada à conversão do imperador romano
Constantino, o governo da igreja mudou-se para o Ocidente e se
estabeleceu em Roma. Essa mudança de influência política
representa, depois da formação de igrejas gentílicas pela
intermediação do apóstolo Paulo, a segunda grande transição na
história do cristianismo.
A Reforma, mais que uma transição, representou uma ruptura
que veio a culminar na criação de uma igreja paralela e concorrente, fato nunca antes acontecido na história da igreja. O bloco
reformado se segmentou em diversas ordens protestantes; além
disso, outros grupos cristãos mais aproximados do protestantismo do que do catolicismo reivindicaram o status de protestantismo paralelo em relação ao movimento reformador. Afirma-se,
erroneamente, que o pentecostalismo surgiu tardiamente, trezentos
anos depois da Reforma, no início do século 20. Não é possível
desconsiderar as múltiplas ramificações da igreja cristã e as
especificidades de suas ênfases doutrinárias distintas. No entanto, também não é possível desconsiderar a relação incestuosa desta gama de expressões cristãs, todas originadas de uma mesma
fonte.
O marco fundante1 e a ancestralidade do pentecostalismo
O termo “pentecostal” origina-se de Pentecostes, nome dado a
uma festa anual do povo judeu, celebrada cinqüenta dias após a
Páscoa, também conhecida como a festa das semanas, realizada
no fim da sega do trigo, ou dia seis do terceiro mês, Sivân (junho), em comemoração ao recebimento do Decálogo.2
A relação do pentecostalismo com a citada festa é indireta e
acidental, por duas razões. Primeiro, porque a doutrina pentecostal
está diretamente relacionada à descida do Espírito Santo; segundo,
PENTECOSTALISMO : DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E ÉTICA /
17
por causa da afirmação doutrinária da manifestação dos dons da
glossolalia, falar em línguas estranhas, e da profecia como sinais
que acompanharam a inédita manifestação do Espírito Santo.
Como se pode perceber, o termo pentecostalismo não faz alusão à
festa judaica (o sentido legítimo do termo), mas evoca as primeiras manifestações dos carismas do Espírito enviado à igreja, coincidentemente ocorridas no dia de pentecostes.
Para alguns autores, o marco fundante das igrejas pentecostais
foi a descida do Espírito Santo. Sob esse enfoque, as chamadas
crenças pentecostais eram exercidas pelos apóstolos pioneiros; e,
nesse caso, o surgimento do pentecostalismo, enquanto prática
ritualística, seria bem mais antigo do que se supõe. No entanto a
idéia subjacente ao conceito de marco fundante sugere pensar,
não que o pentecostalismo tenha antecedido a Reforma, mas que
o seu surgimento a posteriori, institui uma nova expressão do cristianismo tendo como dogma central o resgate dos dons
carismáticos do Espírito Santo.
Grande parte da pesquisa científica afirma que o pentecostalismo
descende de um protestantismo do espírito, iniciado por três
movimentos sucessivos ancestrais do pentecostalismo — dos
anabatistas, dos quacres e dos metodistas — e pelos reavivamentos
norte-americanos a partir do século 18. Essa designação omite
um forte antecessor do pentecostalismo moderno, o montanismo.
Esse movimento cristão surgiu no segundo século, em meio ao
declínio das crenças na volta de Cristo e na inspiração constante
do Espírito Santo. O movimento reclamava a especial dispensação
do Espírito Santo no presente, praticava uma nova manifestação
do dom da profecia e apregoava a proximidade do fim dos
tempos.
Além da terminologia Protestantismo do Espírito, os movimentos anabatista, quacres e metodista recebem de Niebuhr uma
outra terminologia, a de “Igrejas dos Deserdados”,3 referindose ao protestantismo das classes incultas e economicamente
expropriadas. Essa segunda denominação, atribuída às fontes
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P ENTECOSTALISMO : DE ONDE VEM , PAR A ONDE VAI ?
antecessoras do pentecostalismo faz sentido tanto quanto a
primeira. A eclosão do movimento pentecostal nos Estados
Unidos, de onde se disseminou para o mundo, deu-se entre a
população negra; em praticamente todos os lugares, as igrejas
pentecostais iniciaram suas comunidades eclesiásticas entre as
populações de baixa renda.
A indicação da ancestralidade dos três movimentos é em parte
procedente, sobretudo no que diz respeito ao emocionalismo, à
força do conceito de revelação direta do Espírito Santo para os
anabatistas e à ênfase na iluminação do Espírito, acompanhada
de tremores físicos, difundida pelos quacres. Porém, a ausência
de elementos como a glossolalia (reconhecido como o segundo
batismo para a salvação e, simultaneamente, o distintivo tribal
dos pentecostais) dificulta uma maior identificação.
Dois grandes avivamentos nos Estados Unidos são marcos
importantes para a emergência do pentecostalismo moderno. O
primeiro grande despertamento aconteceu no início do século 18
e enfatizava a conversão como imperativo para a participação da
vida na igreja. Os pregadores avivalistas que se destacaram na
época foram: Theodore J. Frelinghuysen, Gilbert Tennent e, sobretudo, o pastor congregacional Jonathan Edwards, bem preparado intelectualmente e profundo conhecedor da filosofia do seu
tempo. Jonathan Edwards proclamava uma espiritualidade fruto
da comunhão direta entre Deus e a alma humana. Suas reuniões
aconteciam dentro de uma intensa atmosfera de emoção. Esse
perfil ministerial inspirou o surgimento posterior de vários
movimentos do tipo revival (reavivalista) e holiness (santificador),
que acreditavam num novo estágio do cristianismo mediante o
exercício da glossolalia, evidência da conversão. Walker assevera
que:
Das discussões provocadas pelo Grande Despertamento, surgiu na
Nova Inglaterra a mais considerável contribuição que a América do
décimo oitavo século fez à teologia — a obra de Jonathan Edwards e
sua escola.4
P ENTECOSTALISMO : DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E ÉTICA /
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O Segundo Grande Avivamento surgiu no fim do século 18 e
se prolongou até os anos 50 do século 19. Começando pela Igreja
Congregacional, alcançou os batistas, os presbiterianos e os
metodistas. O movimento foi menos marcado pelo emocionalismo
exagerado. O pregador que se destacou nesse segundo
despertamento foi um advogado do interior de Nova York, ordenado pastor presbiteriano, chamado Charles Grandison Finney.
As sociedades voluntárias, voltadas para as missões domésticas e
estrangeiras, tiveram participação importante nesse acontecimento.
Desde o dia histórico de Pentecostes, quando ocorreu a descida
do Espírito Santo, passando pelo reaquecimento do falar em línguas estranhas, do início a meados do século 20, a ênfase do culto
pentecostal repousou na experiência dos carismas do Espírito (línguas estranhas, profecias, visões, curas). Nesse longo período que
vai do primeiro século ao século 20, o mapa da presença pentecostal
é inconstante, em termos de registros históricos, embora algumas
pistas indiquem que a experiência nunca se extinguiu de todo em
tempo algum. No entanto, onde se registra a formação de uma
comunidade pentecostal se assinalará a presença dos elementos
místicos citados.
A despeito da localização da memória pentecostal nos seus
antecessores, pode-se afirmar que os eventos pentecostais nunca
deixaram de ocorrer antes da data tida como marco da manifestação moderna do pentecostalismo na cidade de Los Angeles, nos
Estados Unidos. Em livro de natureza biográfica, Demos
Shakarian, assevera que os armênios herdaram dos russos a crença no derramamento do Espírito Santo. Milhares de cristãos ortodoxos exerciam os mistérios de falar em línguas estranhas e das
profecias já no século 19. Eles se deslocavam em grandes caravanas para a Armênia a fim de compartilhar a experiência sobrenatural. Esse depoimento não consiste em mera afirmação não comprovada; parece ter procedência, considerando que a pesquisa científica registra a presença de movimentos religiosos protestantes
de natureza emocional e messiânica entre os ortodoxos eslavos,
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P ENTECOSTALISMO : DE ONDE VEM , PAR A ONDE VAI ?
especialmente os russos. Esse movimento espalhou-se no
Oriente.
Dados dessa natureza contradizem a afirmação de que o
pentecostalismo tenha ressurgido apenas no início do século 20.
Este fato possui um importante valor histórico e sociológico, considerando que os estudiosos da religião pentecostal insistem no
equívoco de afirmar que o movimento pentecostal surgiu no
início do século 20 nos Estados Unidos. Os fatos demonstram
que as práticas místicas pentecostais sobreviveram às épocas que
separaram o dia de Pentecostes do famoso acontecimento em Los
Angeles, numa comunidade de protestantes negros, no início do
século 20.
A marca tribal do pentecostalismo
Ao longo dos séculos, os cultos de tradição pentecostal incorporaram características distintas no que diz respeito aos aspectos
doutrinários e às ênfases carismáticas. Também são bem perceptíveis a diversificação de sua clientela e as mudanças que geraram
novos tipos de performance de sua liderança. Os valores morais da
crença tiveram, também, ao longo do tempo alterações visíveis,
que revelaram ao mundo social um pentecostalismo mais moderado e socialmente mais participativo.
Se atentarmos para as formas de representação religiosa na trajetória do pentecostalismo brasileiro, constataremos que a diversidade é uma de suas características marcantes. Assim, ao longo
de sua história recente é possível observar diferentes ênfases. No
princípio, o pentecostalismo desenvolveu a busca dos carismas
do Espírito Santo como sendo recursos indispensáveis para o crescimento interno da espiritualidade da igreja e para a tarefa da
evangelização. Depois, a ênfase foi direcionada para a cura e a
libertação como efeitos da operação do Espírito Santo. Nesse período, foram notáveis as grandes concentrações públicas de cura
divina acompanhadas de sessões de exorcismo. Já o pentecostalismo
PENTECOSTALISMO : DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E ÉTICA /
21
da década de 80 adicionou ao leque variado de “prestação de
serviços”, a prática advinda da crença de que a operação do
Espírito Santo liberta da pobreza, da miséria e da opressão
demoníaca que provocam distúrbios na vida das pessoas e nas
relações sociais.
A despeito dessas variações, o movimento mantém sua
unicidade em torno da crença na contemporaneidade dos dons
do Espírito Santo e no batismo do Espírito Santo, que deve suceder à conversão ao evangelho, cujo sinal é o recebimento de uma
graça especial de comunicar-se com o mundo espiritual através
da glossolalia. Ao longo de mais de século de existência, o
pentecostalismo sustenta essa marca que o distingue das demais
expressões do protestantismo universal.
O protestantismo pentecostal: similitudes
e distinções da Reforma
O movimento pentecostal tem sido considerado um ramo (desdobramento) tardio da Reforma. No princípio, foi notadamente
questionado; sobretudo pelas igrejas de tradição reformada. Para
elas, as comunidades pentecostais não passavam de seitas. Foi
necessário que transcorresse meio século para que essa identidade
sectária perdesse força gradualmente. Convém lembrar a natureza ideológica do conceito de seita. O seu uso parece ser sempre
prerrogativa da (s) religião (ões) dominante (s), de maneira que
tem sido freqüentemente atribuído às novas inserções concorrentes de religiosidade. O cristianismo já foi considerado seita, os
grupos cristãos fiéis à orientação da igreja de Jerusalém foram
considerados seitas pelo cristianismo romano, o protestantismo
foi considerado seita, o pentecostalismo, também, e agora os
neopentecostais são reconhecidos nessa condição.
Não há como negar que a matriz ético-doutrinária do
pentecostalismo é a Reforma. A sua doutrina e a centralidade
atribuída às Escrituras exprimem de modo inequívoco o perfil
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P ENTECOSTALISMO : DE ONDE VEM , PAR A ONDE VAI ?
das igrejas reformadas. A despeito de certas distinções (que não
são particularidades da relação entre pentecostais e históricos —
também afetam as igrejas históricas entre si, em áreas específicas),
não haveria a mais remota possibilidade de pensar a história do
pentecostalismo dissociada do protestantismo histórico. Dissociar
pentecostalismo e Reforma seria mutilar o fenômeno sob a alegação de uma taxinomia, uma necessidade de classificação, meramente teológica e sem o menor respaldo do método de análise
sociológica. Além disso, existe uma gama variada de argumentos
que comprovam essa relação. Entre esses argumentos, o fato de
que os registros históricos do movimento o associam em grande
parte às igrejas protestantes de onde os membros fundadores de
igrejas pentecostais saíram em função de uma renovada dimensão
de espiritualidade.5
Como entrou em cena o pentecostalismo ocidental moderno?
O movimento pentecostal que obteve notoriedade somente no
início do século 20, embora, como dissemos, nunca tenha se extinguido desde o seu acontecimento fundante no início da era
cristã, procedeu em grande parte do protestantismo histórico;
descende dos movimentos de renovação de parcelas de membros
e líderes das igrejas históricas na Europa e nos Estados Unidos.
No caso brasileiro, os primeiros pastores pentecostais que vieram
com a missão de implantar igrejas eram ex-membros de igrejas
históricas. E os primeiros adeptos do culto pentecostal no Brasil
foram ex-membros da Igreja Presbiteriana e ex-componentes da
Igreja Batista.
Cecília Loreto Mariz concebe um tipo de relação orgânica entre
protestantismo e pentecostalismo. Para a autora, a despeito de
ambos terem construído caminhos doutrinários com algumas diferenças, possuem o mesmo ponto de partida:
Neste aspecto, sociologicamente, o pentecostalismo dá continuidade
ao protestantismo — é de fato filho do protestantismo — embora sua
contestação não tenha a mesma base legitimadora que o protestantismo
teve. Assim, tanto igrejas pentecostais como protestantes históricas
P ENTECOSTALISMO : DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E ÉTICA /
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estão em processo dinâmico de reconstrução, de subdivisão, e esse
dinamismo cria a necessidade de fazer e refazer classificações.6
Dois aspectos poderiam ser apresentados como centrais no que
concerne àquilo que distingue as igrejas pentecostais das igrejas
históricas.
Em primeiro lugar, a extraordinária capacidade de mobilização
que as igrejas pentecostais exerciam entre os pobres. Esse dado é
importante, já que nenhum autor que tenha trabalhado com pesquisas sobre o pentecostalismo deixou de tratar da identificação
de sua fé com o imaginário popular, atribuindo expressivo relevo
à situação econômica. A pobreza constituiu uma categoria analítica
amplamente reconhecida na caracterização dessa prática religiosa.
O pentecostalismo assimilou doutrinariamente a exclusão social, legitimando-a mediante estatuto sagrado, construindo uma
visão de mundo pautada no extravasamento das dores e das carências pelo emocional, crendo na vigência de outra linguagem,
que não a deste mundo, uma língua estranha a todos os códigos
lingüísticos, o apego a curas e às libertações operadas milagrosamente. Essas manifestações tiveram repercussão social e acabaram sendo rotuladas pelas classes privilegiadas como características de uma religião bizarra. Na concepção dos setores “esclarecidos”, as práticas gestuais e ritualísticas representavam um retrocesso cultural; voltando no tempo para as épocas remotas em que
a sociedade estivera presa à natureza e o mundo era concebido
segundo interpretações mágicas. A partir deste foco, aliado às
condições econômicas dos adeptos, se estabeleceu um grande fosso
entre o pentecostalismo inicial e os segmentos favorecidos econômica e politicamente. Na verdade, por ser uma religião voltada
para a demanda popular, o pentecostalismo não poderia fugir
àquilo que Pierre Bourdieu reconhece como sendo uma situação
intermediária entre os apelos internos de uma espiritualidade separada e rara e “as exigências externas, em geral, descritas como comerciais, que levam a oferecer à clientela leiga, mas despossuída culturalmente, uma religião ritualista com fortes conotações mágicas”.7
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P ENTECOSTALISMO : DE ONDE VEM , PAR A ONDE VAI ?
Historicamente, havia um fosso enorme deixado tanto pelo
catolicismo quanto pelo protestantismo em relação aos interesses
das classes populares. Esse espaço, o pentecostalismo ocupou
motivado por um ardor proselitista no interesse pela salvação das
almas dos pobres. No entanto, é necessário ressaltar que o espaço
do pobre coincide com o espaço natural onde nasceu o
pentecostalismo; não se tratando, nesse particular, de um espaço
do outro, mas do lugar próprio dos pregadores pentecostais e da
multidão dos fiéis que aflora no meio da pobreza, na periferia
urbana.
O pentecostalismo não nasceu para conquistar legitimidade
entre os pobres; pelo contrário, já nasceu legítimo porque nasceu
pobre. A evangelização dos pobres não significou a conquista da
adesão religiosa do outro, mas de si; não requer transporte para o
mundo do outro, mas a criação de uma nova dinâmica religiosa
em seu próprio mundo. Por isto o pentecostalismo se inseriu bem
e tamanha foi e ainda é a sua identificação com as massas populares. Trata-se de uma prática religiosa que nasceu com a alma do
pobre. Até os missionários estrangeiros pentecostais eram pobres.
Depois da quase-extinção do culto autóctone praticado pelos indígenas após o desembarque da nova religião imposta pelos portugueses, foram os pentecostais e, antes desses os africanos, que
instituíram uma religião que exprimia a dor, os anseios, os sonhos e os desafios do pobre. A alma do pobre estava refletida no
rito, na linguagem, na teologia, na concepção de Deus, na formação e no desempenho da liderança e no estatuto do corpo de fiéis.
Em segundo lugar, o pentecostalismo desenvolveu um padrão
distinto de religiosidade evangélica, rompendo com o sistema eclesiástico evangelístico/litúrgico/teológico do protestantismo histórico. O elemento principal desta ruptura está no fato de que o
movimento resgata a experiência dos dons espirituais (glossolalia,
profecia, visões, exorcismo, milagres etc...) vivida pela igreja primitiva a partir do dia de Pentecostes, e esquecida pelo catolicismo
P ENTECOSTALISMO : DESENVOLVIMENTO HISTÓRICO E ÉTICA /
25
e pela Reforma. O êxtase passou a ser vivido como experiência
regular e cotidiana, alterando a racionalidade e a prática religiosa.
Racionalismo e emotividade
O pentecostalismo é um tipo de racionalidade religiosa, não
uma prática religiosa que rompe com postulados racionais. O
fato de uma religiosidade centrar-se nas práticas místicas e atribuir
uma ênfase extrema ao apelo emocional (êxtase), não significa
uma ruptura total da crença com um sistema de racionalização
por mais simples que ele possa ser. Segundo Max Weber, o
princípio e o desempenho das práticas carismáticas ou mágicas
de religiosidade relacionam-se a certas proposições racionais. Para
o sociólogo alemão, toda prática religiosa ou mágica é, em primeira instância, uma ação racional porque é orientada pelas regras da experiência. Até mesmo o êxtase orienta-se a partir de
certas exigências do cotidiano, e em função de tais experiências,
pode ser buscado ou provocado. Não é possível negar uma
relação entre o racional e o místico, na medida em que o místico
for exercido como forma de atender a interesses reais. Weber parte de um exemplo extremo (o êxtase), no qual o indivíduo religioso perde o controle de si mesmo, ao ser dominado por um poder
sobrenatural.
No entanto, a racionalidade não está presente apenas como
um processo que orienta as práticas extáticas em seu princípio. A
rotinização das práticas mágicas e carismáticas, como estágio inevitável do desenvolvimento destas atividades, demonstrará uma
gradual e necessária transição do culto na direção de práticas regulamentadas e predeterminantes das condutas religiosas. Isso trará
à tona procedimentos até mesmo de caráter místico prescritos
por normas. são dominadas por um estado emocional eletrizante,
no qual os indivíduos experimentam o êxtase num contato sobrenatural de tamanha grandeza, de onde parecem extrair energia e
revigorar a fé.
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