MEMÓRIA DE MAGISTÉRIO NO INTERIOR DO RIO GRANDE DO
NORTE NAS DÉCADAS DE 50 A 70
Grinaura Medeiros de Morais
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
Memória de magistério no interior do Rio Grande do Norte é uma pesquisa que venho
desenvolvendo na região do Seridó. Trata-se de um trabalho sobre a memória de professoras
primárias que atuaram na profissão docente nas décadas de 50 a 70 nesta região. Situado no sertão
do RN, o seridó desde o século XVII, início do seu povoamento com a atividade pecuarista, vem
configurando espacialidades criadas pela reprodução da vida social e produção simbólica, gestadas
num contexto de dificuldades, promissão, superação, produção e elaboração de uma construção
regional. Segundo Macedo(1999), “seus atores sociais vem enredando-lhe um discurso,
construindo a noção de um lugar particular, a noção de pertencimento afetivo, criando um
substrato imagético de identidade”. Neste constructo o povo seridoense elabora imagens dispersas
na trama social dando forma a um espaço subjetivo de suas criações que se dão num contexto do
real e o ideal, entre as esperanças/expectativas, desesperanças da chegada das chuvas que até hoje
nutre a existência do seu povo1.
O trabalho objetiva a reconstituição de práticas docentes, histórias de vida e profissão
daquelas que foram professoras na época em que posso rememorar como sendo minha primeira
infância.
Em meio ao contexto social de um seridó que despontava com a produção do algodão nos
anos 60, com cidades de uma fisionomia urbana aparentemente simples, elas despontam com o
alvorecer da educação pelo impulso dado à criação de escolas na 2ª metade do século XX.
Normalistas em sua grande maioria, suas práticas docentes se enquadram no contexto da época. O
cotidiano das salas de aula, o modo habitual de ensinar e as relações pedagógicas que estabeleciam
com os outros são reveladoras de uma profissão impregnada do que poderia ser considerada de
“uma missão pedagógica ou sacerdócio”.
A pesquisa deverá dar conta dos trajetos percorridos entre a historiografia educacional e o
cotidiano vivenciado pelas professoras através de suas memórias e outros suportes aderentes às
atividades mnemônicas2.
A reconstituição da memória das professoras possibilita um olhar sobre as práticas que no
passado nortearam a formação desta geração. Que atributos aglutinavam a profissão? Qual teria sido
o norteamento de profissão adotado, do ser ou do vir a ser? Lutavam pela permanência das
realidades visíveis ou pela transformação das mesmas? Em que aspectos eram herdeiras da tradição
ou romperam com a sua lógica? Estas mestras estão em nós ou estamos nelas? Que transformações
percebemos nas práticas pedagógicas como continuidade ou descontinuidade das mesmas no
processo histórico?
Pretende-se redesenhar o quadro que emoldurava a relação sujeito-objeto, as cumplicidades
professor-aluno como faces indissociáveis de uma mesma moeda espelhando-se na
subjetividade/objetividade da sala de aula e nos interstícios da escola, passando por um cotidiano
escolar onde certamente, emergem as lembranças de um tempo subjetivo em que as professoras
viviam o ponto alto da profissão, bem como os pontos frágeis de suas carreiras. É esta história
1
É uma região caracterizada por altas temperaturas, predominância da caatinga, estiagem em longos períodos de seca.
MORAIS, Ione Rodrigues Diniz(1999).
2
Atividades mnemônicas. Termo utilizado por LE GOFF referindo-se aos atributos da memória. “O processo de
memória no homem faz intervir não só a ordenação de vestígios, mas também a releitura desses vestígios”, e os
“Processos de releitura podem fazer intervir centros nervosos muito complexos e uma grande parte do cortex”, mas
existe “um grande número de centros cerebrais especializados na fixação do percurso mnésico”( Changeux, 1972, p.
356 in: LE GOFF , 1994, p. 424).
circunscrita apenas nos domínios da oralidade e da memória dos alunos que passaram pelos bancos
escolares de escolas regidas por estas professoras, que se pretende escrever.
A pesquisa situa-se na confluência da História da Educação e da História onde são
explicitadas as construções históricas do tempo e do espaço. A relação espaço-temporal constitui o
paradigma de um problema: a possibilidade de decifrar as relações entre a prática docente e o
modelo educativo cultural, o ideário político-educacional que embasava o imaginário das
professoras.
Dada a relevância histórico-cultural do estudo, espera-se que a pesquisa venha contribuir em
seus aspectos teórico-metodológicos para o avanço da História da Educação como campo de estudo
em plena ascendência. A fecundidade da temática, trajetórias de vida de professores(as), vem
ocupando espaços na academia com amplas pesquisas realizadas.
O recorte temporal(1950-1970), indica a preocupação em explicitar a trajetória das
professoras desde a sua formação até os sinais de declínio advindos com a aposentadoria ou com
outros ideais de educação opostos aos princípios filosóficos que embasaram a formação inicial e
talvez a única destas professoras. Tem-se assim como objetivo desta pesquisa a recuperação da
memória de práticas docentes e trajetórias de vida de professores; a recomposição e interpretação de
fontes que expressam canais de comunicação das práticas docentes e a clarificação das relações
entre a prática docente e o ideário político-educacional da época.
Por estar situada na interface de ciências afins que hoje especialmente, estabelecem elos de
comunicação em seus domínios, esta pesquisa se caracteriza por combinar até certo ponto várias
formas de pesquisas. Assim, ela é histórica e ao mesmo tempo educacional; por outro lado além de
ser teórica, ela é também empírica, incluindo trabalhos de campo e de laboratório.
A reconstituição histórica do tempo da memória das professoras estará figurando neste
trabalho como o ponto de encontro com suas próprias identidades ligado a uma visão do tema
articulando-se em dois planos:
a) as especificidades da memória das práticas docentes através das narrativas das
professoras a respeito de suas experiências de vida como educadoras e de relatos
autobiográficos onde estarão discorrendo sobre sua história pessoal e profissional como
elementos de conhecimento do exercício docente.
b) os vestígios e configurações de trajetórias das professoras através do universo imagéticodiscursivo disponível3.
Optou-se por mergulhar nas histórias construídas em torno da prática docente privilegiando
03(três) focos produtores de história a partir de registros que se tem gravado na memória ou em
fontes documentais: a história construída a partir das políticas educacionais estabelecidas nas
constituições federais da época; as histórias construídas a partir das experiências de vida e das
práticas das professoras; a história construída por agentes internos e externos à escola(imprensa e
outras linguagens, enfim, memórias que permitem o desencadeamento do objeto de investigação
como forma de elucidar as vivências das professoras, competências dos saberes que dispunham para
o exercício da profissão.
Há que se recorrer a todo o universo imagético–discursivo para compreender suas histórias
de vida e profissão privilegiando objetos, saberes, lembranças que evocam à memória para elucidar
vestígios de práticas docentes e da cultura escolar da época, religando mentalidades e
procedimentos que comporiam as práticas pedagógicas das professoras na região do Seridó.
Elementos comunicantes servirão para resgatar as memórias e ressonâncias de um passado capazes
de dialogar com a realidade vivida através dos objetos e/ou artefatos da cultura material/espiritual
que embasam e alimentam o imaginário das professoras. Objetos como a palmatória, livros de
pontos, manuais, sinetas, fardamentos, livros de leituras, relógios, fotografias, globos, exercícios de
3
Universo imagético discursivo refere-se a todo o repertório de fontes tanto materiais como imateriais que permitirão
ao pesquisador a elucidação de fatos. Assim, as fotografias, objetos, insígneas, entre outros, além de todo o discurso que
compõe uma dizibilidade sobre o tema estão inseridos neste contexto conceitual.
leitura manuscrita, cartas que evocam as lembranças das primeiras professoras, constituem
elementos comunicantes que possibilitam a construção de múltiplas significações.
De acordo com os pressupostos da Nova História4 no que diz respeito ao alargamento de
fontes, não só as que são classificadas como primárias, mas uma variedade de fontes tem seu
estatuto de legitimidade para o estudo dos processos históricos, tais como: prédios escolares,
rotinas, práticas, livros didáticos, fotografias, cerimônias, formaturas e, todo um repertório de fontes
materiais ou não materiais úteis ao desencadeamento dos estudos sobre História da Educação.
Assim, tem- se como meta analisar as relações entre nuanças da prática docente articulada às
políticas educacionais, apontando o currículo5 como mediação entre as intenções de leis da
educação e suas manifestações nas práticas, distanciamentos ou aproximações entre o pensamento e
as práticas, gestos da profissão, rotinas do cotidiano escolar.
A trajetória de vida das professoras constitui assim, o fio condutor das reflexões deste
trabalho, o ponto de confluência e cruzamento de idéias, a historicidade do objeto de estudo
investigado do qual não se pode distanciar para que se possa compreender os segredos de seu tempo
de profissão.
Em se tratando de experiências com a história oral, o envolver-se diretamente com as
narrativas e memórias de como era o ensino no passado, como se comportavam, se vestiam, as
brincadeiras e as rotinas serão resgatadas através da técnica da entrevista e da gravação através das
quais há de se vivenciar a história em nível prático como processo de recriação do passado.
O trabalho com a história oral faz, pelo menos em tese, o sujeito sentir-se mais envolvido
uma vez que, com seus ritmos de falas pessoais, sentem valorizadas suas próprias linguagens.
Nesta pesquisa também se adotará o método biográfico. Torna-se necessário lembrar que
mesmo tratando-se da singularidade de um indivíduo, este representa o contexto social e histórico
no qual está inserido, assim, um indivíduo pode demonstrar em seus atos a universalidade de uma
determinada estrutura social.
Através do método biográfico pode-se acrescentar a visão do lado subjetivo das instituições
sociais, analisando-se como pessoas que delas participam, agem e reagem em resposta aos
processos institucionais estabelecidos. A partir daí pode-se levantar questões mais abrangentes em
relação ao condicionamento dos contextos estruturais.
Ainda na década de 50, a fisionomia das cidades do Seridó era simples. Quase todas elas
com pequena atividade comercial no entorno do mercado: lojas de tecidos, farmácias, estivas,
cereais, casas de compra e venda de algodão. Foi a produção do algodão, ‘’o Ouro Branco do
Seridó”, que deu expressividade a estas cidades no cenário econômico do Estado, principalmente
nos anos 60 em que ela se expande com maior vigor (MORAIS, 1997).
No final da década de 50 e início da década de 60 Caicó(maior cidade da região) expandia
sua atividade algodoeira, modernizavam-se as unidades de beneficiamento e o espaço urbano
também se ampliava em decorrência da oferta de empregos e da circulação de capital. Tal
crescimento coincidia com o período de desenvolvimento do país no setor industrial. O Brasil
entrara na era da industrizalização e a sociedade brasileira vivia profundas transformações tanto na
esfera política e econômica quanto na social.
Neste contexto, a educação representa fator de desenvolvimento e atração populacional
marcada pela presença de um futuro melhor, o ideal da escola.
4
Logo depois da primeira guerra mundial, Febvre idealizou uma revista internacional dedicada à história econômica,
que seria dirigida pelo grande historiador belga Henri Pirenne. O projeto encontrou grandes dificuldades, tendo sido
abandonado. Em 1928, foi Bloch quem tomou a iniciativa de ressucitar os planos de uma revista( uma revista francesa,
agora), obtendo sucesso em seu projeto... Originalmente chamada Annales d’histoire économique et sociale, tendo por
modelo os annales de Géographie de Vidal de la Blache, a revista foi planejada, desde o seu início, para ser algo mais
do que uma outra revista histórica. Pretendia ser uma liderança intelectual nos campos da história social e econômica.
Seria o porta-voz, melhor dizendo, o alto falante de difusão dos apelos dos editores em favor de uma abordagem nova e
interdisciplinar da história. BURKE, Peter(1991, p. 32)
5
Currículo no sentido de informar sua razão de ser, as intenções e o plano de ação que preside as atividades educativas
escolare. Que atividades são executadas de acordo com um plano de ação determinado, isto é, estão a serviço de um
projeto educacional.
Toda a geração de professoras destas décadas indubitavelmente tem muitas histórias para
contar. Não só elas, mas os seus contemporâneos reafirmam o trabalho destas, como um misto de
severidade, vocação, amor e dedicação à causa do ensino. As falas das professoras são referências
discursivas que se ligam ao processo do Magistério, a forma como a profissão foi se configurando
na época. As referências sobre a profissão nas décadas de 50/70 recaem predominantemente nas
referências às especificidades da memória feminina ingressando na profissão pela força da
necessidade de aquisição de um trabalho. São memórias que se encontram depositadas nas
lembranças, nos arquivos da escola, nas fotografias que tiraram em meio a turma de alunos, nas
bibliotecas, nos mais recônditos lugares. Uma memória engajada nas festividades que promoviam
nas escolas, nos desfiles cívicos, na forma como se vestiam, falavam e se comportavam.
As experiências e trajetórias de vida marcam um assentamento em bases sólidas na História
da Educação do Seridó. Qual era necessariamente o volume de conhecimentos exigidos pela escola
aos cidadãos ? O que faziam as professoras nas salas de aula ? Qual era a sua relação com o
conhecimento ?
Fabricando mentalmente a sua representação do passado histórico, as professoras vão
transportando para o presente as lembranças de suas práticas, a confirmação da validade destas e o
distanciamento a que se submeteram face às inovações pedagógicas transcorridas no tempo. Através
de documentos afetivos ou não, burocráticos, da intimidade mais próxima e familiar, elas vão
rememorando lembranças como o primeiro dia de aula, o cheiro do caderno novo, da borracha, do
lápis. Materiais didáticos que evidenciam canais de afetividade e lembrança muitas vezes perdidas.
O desejo de compreender as trajetórias de outros sujeitos é, de acordo com NUNES(1990)
“romper com o processo de estereotipagem presente na historiografia da Educação Brasileira”.
Em meio ao processo de globalização da economia e a mundialização do capital, apesar dos
arautos do neoliberalismo e da pós-modernidade, torna-se cada vez mais importante conhecer a
nossa identidade sócio-cultural revigorando e revalorizando, re- significando os elementos da nossa
cultura. Neste sentido, revisitar espaços da memória individual e coletiva e, neste caso, a trajetória
de vida das professoras, é imprescindível à compreensão e formação/preservação da historicidade,
patrimônio e memória. De acordo com HOBSBAWN(1995),
“A destruição do passado – ou melhor – dos mecanismos sociais que vinculam nossa
experiência social à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e
lúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de
presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em
que vivem. Por isso, os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem,
tornam-se mais importante do que nunca neste final de milênio”(p. 45).
Corroborando com o pensamento acima, este trabalho centra-se nas reflexões sobre
Memória, História, Práticas docentes e Pedagogia permitindo um diálogo entre o tempo presente e
passado onde as fontes investigadas elucidam a compreensão do processo e preservação da
memória, sendo esta, entendida como um processo de construção e reconstrução para recompor os
acontecimentos históricos. BOSI(1994. p. 81), ao se referir a memória como função social elucida
que,
“É o momento de desempenhar a alta função da lembrança(...) Cresce a nitidez e o
número das imagens de outrora, e esta faculdade de relembrar exige um espírito
desperto, a capacidade de não confundir a vida atual com a que passou, de reconhecer
as lembranças e opô-las às imagens de agora”.
O ofício da profissão certamente ocupará grande parte das entrevistas nesta pesquisa, onde
se estará explorando o tempo subjetivo das professoras e a realidade objetiva em que se davam tais
práticas. Neste sentido, a fonte oral como fonte histórica derivada da percepção humana permite
desafiar essa subjetividade que no dizer de THOMPSON(1992, p. 197), permite descolar as
camadas de memória, cavar fundo em suas sombras, na expectativa de atingir a verdade oculta.
A história oral estará dando uma contribuição inestimável à feitura deste trabalho como
metodologia utilizada para desvendar o enfoque histórico selecionado. Há uma farta discussão sobre
o método da entrevista, as fontes dos vieses que aí podem ocorrer e como estas podem ser estimadas
e valorizadas enquanto instrumento de pesquisa.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1994.
BURKE, P. A escola dos annales(1929-1989): a revolução francesa da
Historiografia. Trad. Nilo Odália – São Paulo: Editora Universidade Estadual Paulista, 1991.
COOL, C. Psicologia e currículo: uma aproximação psicopedagógica à elaboração do currículo
escolar. Trad. Cláudia Schilling. 3ª ed. São Paulo:Ática, 1998.
HOBSBAWN, E. Era dos extremos: o breve século XX(1914-1991) São Paulo: Companhia das
Letras, 1995.
LE GOFF, J. História e memória. Campinas, Edunicamp, 1994.
LOURO, G. L.. Mulheres em sala de aula. In: PPRIORE, Mary Del(org) História das mulheres no
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_______. Gênero, sexualidade e educação. Petrópolis: Vozes, 1998.
MACEDO, M. K. A penúltima versão do Seridó: espaço e história no regionalismo seridoense.
Natal, 1998(Dissertação de Mestrado)
MENDES, D. T.(1927-1987). Anotações sobre o pensamento educacional no Brasil. Revista
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MONTEIRO, D. M. Introdução à história do Rio Grande do Norte. Natal: EDUFRN, 2000.
MORAIS, I. R. D. Desvendando a cidade: Caicó em sua dinâmica espacial. Natal, 1999.
(Dissertação de Mestrado)
NUNES, C. História da educação: o espaço do desejo. Em aberto. Brasília. V 9, nº 47, jul/set,
1990.
THOMPSON, P. A voz do passado: história oral. 2ª ed. Tradução de Lólio Lourenço de Oliveira.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992.
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