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domingo, 15 de novembro de 2009, 03:00 | Versão Impressa
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Os 'carolas' do ABC
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Proletariado rebelde dos anos dourados de Vila Euclides não teve herdeiros capazes de lidar com um minivestido
na faculdade
José de Souza Martins - O Estado de S.Paulo
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- A filha de 20 anos de um metalúrgico operário de montadora do ABC, estudante do curso noturno de
turismo da Uniban, de São Bernardo do Campo, e durante o dia empregada de um mercadinho em frente
a sua casa, em Diadema, foi moralmente linchada por seus colegas, quase todos trabalhadores como ela.
O motivo foi o traje rosa e um pouco curto da moça, que a destacava de suas colegas quando saiu da
sala de aula para ir ao banheiro feminino. Vídeos e fotografias feitos pelos próprios estudantes que a
assediavam e apupavam mostram um cenário que era também de linchamento físico. A moça escapou
por pouco. O episódio expôs as muitas contradições não resolvidas na situação social da emblemática
classe operária do subúrbio paulistano, em particular a da histórica região industrial do ABC. Os filhos do
proletariado dos dourados tempos políticos das assembleias sindicais do Estádio da Vila Euclides não
herdaram da geração de seus pais uma sociedade tolerante e democrática. Seus pais se limitaram às
reivindicações salariais e de poder.
A intelectualidade acadêmica dos anos finais da ditadura militar rejubilara-se com o surgimento do que
foi chamado de "novo sindicalismo". Uma enxurrada de conceitos e de interpretações imputou à classe
operária regional, de carne e osso, as virtudes da classe operária filosófica, como a definiu Agnes Heller
em outro contexto, de análises feitas em outros países e outras circunstâncias. De modo geral, as
análises que enveredaram pelo equívoco de uma interpretação baseada no pressuposto da luta de classes
deixaram de lado as complexas mediações, culturais, sociais e históricas, das determinações que fizeram
da classe operária da região industrial uma classe operária historicamente singular e até relativamente
diversa da dos manuais de ciência política, conservadora e corporativa.
O proletariado regional, no passado relativamente recente, ganhara corpo e vida na cultura conservadora
e conformista do trabalhismo de Vargas. Excepcionalmente, o Partido Comunista, já na ilegalidade,
elegera prefeito e maioria dos vereadores da região, em 1947, cassados minutos antes da posse. Região
majoritariamente católica, com a criação da diocese e a nomeação do primeiro bispo, dom Jorge Marcos
de Oliveira, em 1954, propôs-se a Igreja a criar lideranças operárias e as condições de surgimento de um
partido laboral alternativo, fundado nas premissas da Ação Católica e do anticapitalismo de Pio XI. Teve
êxito, com a ascensão sindical de Lula e o surgimento do PT, ambos, a seu modo, consubstanciando os
valores da tradição conservadora, familística e religiosa do operariado regional.
O tumulto na Uniban teve como protagonistas justamente os herdeiros do problemático legado dessa
tradição e de insuficiências dela decorrentes. A ascensão social do operariado do ABC é óbvia em toda
aquela região. Mas um operariado que, se demonstrou competência na adesão ao capitalismo e na
ambição de poder, não demonstrou a menor competência para criar as bases sociais da ressocialização
de seus filhos para a sociedade moderna, aberta e democrática. O mercado de serviços educacionais
tratou de suprir essa carência, com a disseminação de escolas de terceiro ciclo, movidas pelo lucro, que
se propõem a qualificar para as eventuais oportunidades de trabalho, mas não têm condições nem o
propósito de ressocializar para os desafios e os embates da vida cotidiana. O novo sindicalismo e o novo
partido não criaram nem um novo modo de vida nem uma nova cultura centrada nos valores da
emancipação do homem de suas pobrezas, a maior das quais é a pobreza de esperança, mesmo na
prosperidade material que a região alcançou.
As origens culturais reacionárias dessa geração já se manifestaram antes no surgimento dos chamados
Carecas do ABC e sua prática racista. Carlos Reichenbach, inspirado nos fatos relativos à ação desse
grupo, produziu um excelente filme - Garotas do ABC -, de 2004, que é justamente um retrato da crise
de gerações que vem alcançando profundamente as famílias operárias e de certo modo antecipa
ocorrências como a de agora. Não podemos nos esquecer de acontecimento de motivação semelhante,
conservadora, em 2008, na Escola Amadeu Amaral, no bairro do Belenzinho, envolvendo uma
adolescente, que culminou em briga e na depredação da escola. Nesses vários casos, a concepção que os
http://www.estadao.com.br/noticias/suplementos,os-carolas-do-abc,466736,0.htm[22/11/2009 15:55:23]
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regeu foi a do linchamento.
A prática do linchamento tem sido em todas as partes forma violenta de ação conservadora, no sentido
de enquadrar e até cancelar a presença dos diferentes e dos inovadores, como a moça da Uniban, para
restaurar a ordem conformista, supostamente por eles ameaçada. A região que mais lincha e ameaça de
linchamento no Brasil é justamente a região metropolitana de São Paulo, a do subúrbio e dos bairros
operários. A motivação tem sido a punição para restabelecimento ou imposição da ordem onde surgem
indícios de ruptura e de violação dos valores do autoritário conservadorismo popular, como no caso
dessa saia curta. Um conservadorismo autodefensivo, é bom que se diga, em face dos efeitos
desagregadores da modernização e da transformação social.
Os estudantes entrevistados pela mídia expuseram sua censura conservadora e intolerante à moça e sua
censura à própria mídia pela visibilidade que deu à ocorrência, pelo que entendem ser a estigmatização
da escola, o que os estigmatizaria como personagens vicários da instituição. A culpa não seria de quem
agiu violentamente, mas de quem divulgou a violência, concepção que é outra expressão de intolerância.
E todos os grupos que foram para a porta da escola protestar em favor dos direitos da moça foram
rechaçados com gritos de "cala a boca" e "cai fora". Resta saber o que pensam os estudantes da Uniban
da nudez de solidariedade dos estudantes da UnB, completamente distantes desse mundo operário,
refugiados nas ilusões da classe média e de seus privilégios de estudantes de escola pública e gratuita.
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Professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo. Dentre outros livros, autor de A Aparição do Demônio na Fábrica (Editora 34)
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