Anais do I Seminário do Grupo de Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL/CNPq): os sertões da Bahia. Caetité, v. 1, nº 1, out. 2011. (ISSN 2237-2407) A ESCRITA AUTOBIOGRÁFICA E SUAS PERSPECTIVAS NO TRABALHO DO HISTORIADOR Maria Lúcia Porto Silva Nogueira Fazer o estudo de mulheres comuns, sertanejas, baianas, nas décadas de 1930 a 1960, tomando como ponto de partida os seus escritos autobiográficos, tem como objetivo primordial evidenciar os aspectos da cotidianidade dos espaços temporais dos sujeitos femininos que escrevem e que dão a conhecer especificidades nem sempre presentes em outros tipos de documentos. Dessa forma, busca-se incorporar agentes históricos que desafiam a imposição de uma cultura centrada na figura do homem, indo na contramão da ausência das mulheres na maioria da documentação escrita e reconhecendo-as como agentes que tecem redes de sociabilidade, que inscrevem suas ações em consonância ou não com os padrões vigentes e que, por sua essência, configuram-se numa forma de resistência. Os quadros de cotidianidade trazidos pelas memorialistas favorecem enormes possibilidades de percepção de estilos de vida que fogem ao controle da dominação e assim podem ser usados num trabalho historiográfico com vistas a “fazer funcionar um conjunto cultural, fazer com que apareçam suas leis, ouvir seus silêncios, estruturar uma paisagem que não poderia ser um simples reflexo, sob pena de nada ser” e “mostrar que os mecanismos sociais de seleção, de crítica, de repressão”, são sempre carregados de violência para se fundar um saber. (CERTEAU, 1995:79).1 As memórias escritas femininas podem se constituir em fontes históricas respeitáveis porque as personagens deixam transparecer as influências assimiladas na constituição do seu “eu” e também expressam outras que extrapolam a si próprios e que são comuns ao seu grupo social. Portanto, lembra-nos Marina Maluf (1995:83) “o ato pessoal de pensar o passado – de contar uma vida – está enganchado na trama coletiva da sua existência social”. Essas trazem as vivências das mulheres enriquecidas na inter-relação com outros sujeitos sociais e na assimilação ou embate dos valores dos grupos dos quais participam. São registros memoráveis que perpetuam singularidades e especificidades das suas culturas. São registros Professora Auxiliar da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) – Campus VI–Caetité/Bahia.Doutoranda em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em História Social- PUC-SP. 1 SegundoThompson (1981:181) as análises das ações dos sujeitos históricos, principalmente das mulheres, dão margem à apreensão de toda a “experiência humana” na inteireza de sua cotidianidade e nas manifestações de sua cultura, dando a perceber alteridades e favorecendo o reconhecimento de subjetividades e outras identidades. 1 Anais do I Seminário do Grupo de Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL/CNPq): os sertões da Bahia. Caetité, v. 1, nº 1, out. 2011. (ISSN 2237-2407) carregados de cores, sabores e odores, que desvendam detalhes do público e do privado, e permitem vislumbrar diferentes ritmos dos processos sociais. Para se considerar tais escritos como fontes históricas, cabe ao historiador, além de preservar as diferenças entre memória e história, adotar uma postura crítica e olhar o documento em sua “natureza indiciária”. A explicação a ser construída nessa tarefa deve se basear não tanto no que parece mais evidente, mas também pelo que parece desconexo e irregular, de forma que a inteligibilidade perseguida pelo historiador possa conter o compromisso sério na construção do conhecimento histórico. Longe de fazer história de “coisas miúdas”, importa tentar “ver e ouvir o que elas viam e ouviam; [...] dar um mergulho em suas vidas cotidianas, não para estudá-las horizontalmente”, mas para perseguir as pistas que podem vir destas histórias individuais. Assim, busca-se caminhar na direção contrária de outras histórias individuais feitas para glória de uns poucos privilegiados ou de histórias de mulheres/homens comuns ou pobres feitos sempre coletivamente e pensar numa outra história como sugere Corbin (1999:210), em que seja possível “conhecer os sistemas de apreciação do mundo, os afetos e as emoções de pessoas de outras épocas, os usos dos seus sentidos”. Como conhecer “mais completamente”- se é que isso seja possível - a vida de uma pessoa? Nessa empreitada ambiciosa de se perseguir a constituição de subjetividades ou de arriscar como que “um mergulho na alma”, a autobiografia ou a “produção de si” pode se somar a registros de tradição familiar, correspondências, entrevistas e objetos da cultura material. É uma pretensão que não pode excluir “as incertezas intuídas” as “ausências e vazios” tão caros ao ofício historiográfico (BORGES, 2006:221)2. As autobiografias se constituem em um gênero literário que, como nos diz Philippe Levillain (2003:166), muito “se aproximam das memórias” num estilo em que autor, narrador e personagem se misturam no momento da escrita, diferentemente da biografia. Este gênero vem crescendo como reflexo de uma renovação do individualismo e das múltiplas formas de constituição de individualidades. Entretanto, uma autobiografia não é e nem pode ser apresentada como narrativa única de informação sobre uma vida ou um contexto. Um exemplo desse terreno movediço que é a escrita de si recai sobre a empreitada pretendida por Rousseau quando se propôs escrever as suas confissões com exatidão, procurando mostrar o mais recôndito de sua interioridade. 2 Levi, Giovanni (1996: 180) aborda as contradições implícitas neste tipo de fontes, apontando as dificuldades que permeiam esta prática, as quais transitam desde as incoerências internas das normas de cada sistema social até os embates do indivíduo dentro de seu próprio grupo. A posição deste autor afasta o peso das singularidades nas determinações inconscientes, estruturadas e estruturantes como defendidas por Pierre Bourdieu. 2 Anais do I Seminário do Grupo de Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL/CNPq): os sertões da Bahia. Caetité, v. 1, nº 1, out. 2011. (ISSN 2237-2407) Constatou, já no início de sua tarefa, que uma primeira limitação advinha da imprecisão da “linguagem tradicional” por não dar conta de exprimir “a absoluta e imediata presença de si”. Como contar algo que não foi dito, nem feito, nem mesmo pensado, mas somente apreciado e sentido? O que receava não era falar demais ou falar mentiras, mas sim não atingir a pura verdade tão almejada. Ao desistir da sua intenção, o seu silêncio torna-se ainda assim, algo muito significativo e não pode ser desprezado por um bom observador. (DUQUE-ESTRADA, 2009: 18). Considerando que as autobiografias têm na memória o seu elemento mais expressivo, vale lembrar Ecléa Bosi (1979:17) quando salienta que escrever memórias não se situa no simples fato de rememorar; antes, os significados das lembranças precisam ser reconstruídos e isso é feito com os condicionamentos impostos pelas circunstâncias atuais de vida das narradoras em seus novos lugares sociais. Assim, a lembrança é induzida pela situação do momento da escrita: “por mais nítida que nos pareça a lembrança de um fato antigo, ela não é a mesma imagem que experimentamos na infância porque nós não somos os mesmos de então e porque nossa percepção alterou-se e com ela nossas idéias, nossos juízos de realidade e de valor”. Portanto, no ato de rememorar acontece uma mudança interna na pessoa que pode ver com outros olhos aquela experiência do passado 3. As autoras desse tipo de escrita, conscientes ou não, se submetem a escolhas filtradas pelas suas memórias, omitindo certos fatos que não querem ou não podem revelar e, rendendo-se à censura das suas consciências, enterram segredos que poderiam ser mais esclarecedores em suas narrativas. Ainda assim, o valor de tais trabalhos é incontestável, por trazerem elementos ausentes em outros tipos de documentos. Narrativas de mulheres merecem uma consideração especial, visto que se diferenciam daquelas feitas por homens. Segundo Paul Thompson, a linguagem masculina fica centrada no “eu”, considerando “a vida que viveram como sua e eles mesmos como sujeitos de suas ações”, mas as mulheres [...] falam sobre as próprias vidas tipicamente em termos de relações, incluindo em sua história de vida partes de histórias de vida de outras pessoas; e muito frequentemente falam como “nós” ou “a gente”, simbolizando as relações subjacentes àquela parte de sua vida: “nós” como 3 Para aprofundamento nos estudos sobre a memória existem trabalhos consagrados como Nora (1984), Le Goff (1992), dentre outros. Michael Pollak (1992:202) afirma que “A memória é seletiva. Nem tudo fica gravado. Nem tudo fica registrado. [...] A memória sofre flutuações que são função do momento em que ela é articulada, em que ela está sendo expressa”. E sobre memórias articuladas às relações de gênero: Maluf (1995), Viana(1995), Lacerda (2003). Michelle Perrot (1998:359), no seu Práticas da Memória Feminina, aponta que “a memória é sempre algo reconstruído. É reconstruído em função das experiências da pessoa que fala... é preciso interpretá-la num conjunto mais vasto de fontes”. 3 Anais do I Seminário do Grupo de Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL/CNPq): os sertões da Bahia. Caetité, v. 1, nº 1, out. 2011. (ISSN 2237-2407) “meus pais e nós”, ou como “meu marido e eu”, ou como “eu e meus filhos”(THOMPSON, 1992:204). Nesse sentido, vale dizer que mulheres ou homens ao se colocarem como sujeitos fazem-no apoiando-se na memória histórica do seu grupo e da sociedade a que pertencem. Como nos diz Halbwachs (2006:30-31), o relembrar é um ato que se prende às experiências coletivas mesmo que sejam escritas individualmente ou que estejam expressas numa memória autobiográfica. Assim, uma lembrança mesmo sendo individual, pode retratar acontecimentos ou aspectos significativos pra todo um grupo; um exemplo nos vem do registro do rompimento de uma barragem em 1960, no distrito de Ceraíma/Guanambi-Ba, momento crucial para a população de uma cidade inteira, assim descrito por Silva (2004:42), uma das memorialistas deste estudo: Às dezoito horas ouvimos um estrondo, era o açude rachando-se ao meio no sentido vertical. As gotículas d‟água formavam uma densa neblina que subia bem alto, fazendo uma espécie de neve em cuja base destacava-se o amarelo do rio afoito invadindo as terras. Essa forma de narrar apresenta uma linguagem que compõe um quadro estético, como que uma obra de arte sobre o acontecido. Isso nos remete a estudos sobre a atualidade da escrita autobiográfica que trazem à tona questões ligadas à linguagem enquanto representação. Admitindo-se os abalos sofridos nesse campo com a emergência dos novos paradigmas do conhecimento na contemporaneidade, vale recorrer aos estudos focaultianos, principalmente na obra As Palavras e as Coisas, que apontam as mudanças que vêm acontecendo nessa inter-relação linguagem/representação. Assim, perde sentido a leitura monolítica que se fazia (ou se faz ainda?) das autobiografias na concepção positivista. O conhecimento não mais se apóia em bases estáveis visto que é “lançado num jogo sem fim de significações sempre alcançadas e extraviadas”. Com esses abalos no campo literário, lembranos Duque-Estrada (2009:27), “não só a narrativa autobiográfica perde o seu suposto fio condutor da intenção do seu autor, como também este perde a sua posição privilegiada de autoridade primeira e última sobre a narrativa por ele criada”. Para se falar de sujeitos femininos é importante pensar nas questões teóricas que recaem sobre a idéia do sujeito na contemporaneidade. Aquele sujeito moderno, cartesiano, que esteve presente por longo período em vários campos do conhecimento, agora não mais detém hegemonia nos limites da complexidade que vai se instalando nas relações sociais. Esse sujeito vai se tornando inadequado frente às mudanças e exigências postas pelos avanços da 4 Anais do I Seminário do Grupo de Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL/CNPq): os sertões da Bahia. Caetité, v. 1, nº 1, out. 2011. (ISSN 2237-2407) modernidade, a partir da segunda metade do século XX. Assim, assistimos hoje à crise desse sujeito universal do conhecimento, paralelamente ao abandono de conceitos-chave do racionalismo, que vão sendo substituídos pela adoção de sujeitos plurais, diferentes, fragmentados, em processos de identificação continuamente renovados, conforme nos apontam os novos estudos culturais. (HALL, 2005:34). É importante observar os meandros pelos quais as subjetividades se ligam às experiências femininas que são escritas como memórias. Nesse sentido, Scott (1999:47) afirma que a experiência é uma palavra usada em grande escala quando se trata de “essencializar a identidade e reificar o sujeito” e está tão presente na linguagem comum, que já não podemos eliminá-la em nossas narrativas. Para ela: a experiência é, ao mesmo tempo, já uma interpretação e algo que precisa de interpretação. O que conta como experiência não é nem auto-evidente, nem definido; é sempre contestável, portanto, sempre político. Sendo assim o estudo da experiência deve questionar sua posição enquanto origem na narrativa histórica. (SCOTT, 1999:48). Nas narrativas do tipo memórias, as autoras vão narrando suas experiências pessoais, caminhando geralmente das mais distantes para as mais próximos e vão se posicionando na escrita, de forma mais afetiva e subjetiva. Há um caráter confessional nesses testemunhos de vida que incorporam outros elementos como lugares e pessoas e podem trazer visões de múltiplas singularidades até então ignoradas. Ao escrever sobre a “crítica do testemunho: sujeito e experiência” Beatriz Sarlo falando sobre testemunhas do Holocausto explicita condições para “o recurso ao otimismo teórico” da seguinte forma: O testemunho, por sua auto-representação como verdade de um sujeito que relata sua experiência, exige não ser submetido às regras que se aplicam a outros discursos de intenção referencial, alegando a verdade da experiência, quando não a do sofrimento, que é justamente a que deve ser examinada. (SARLO:2007:38). Pode-se dizer que as memorialistas são verdadeiros testemunhos quando, além de narrarem acontecimentos da sua vida, narram outros políticos, sociais, etc, que se tornam denúncias contra o esquecimento de arbitrariedades políticas e desmandos com sérios desdobramentos para a população envolvida. Assim é a escrita de Dulce da Silva Meira (2007:79), falando sobre os abusos do poder no alto sertão baiano na década de 30, quando o crime era praticado como retaliação nas rixas partidárias. Um caso dentre vários, registra o 5 Anais do I Seminário do Grupo de Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL/CNPq): os sertões da Bahia. Caetité, v. 1, nº 1, out. 2011. (ISSN 2237-2407) espancamento e morte de um advogado que não aceitou as imposições de um líder da política baiana. Para os limites desse trabalho, importa-nos considerar como as mulheres se constituem enquanto sujeitos históricos ou constituem subjetividades; importa-nos saber se essas subjetividades carregam a experiência do vivido, se traduzem informações sobre saberes locais ou linguagens locais, tão necessários hoje em contraposição a um mundo que se quer global. Um exemplo pode ser tomado em Lucília Domingues Donato (2001:154), uma das memorialistas em estudo, ao descrever as mudanças provocadas pela chegada da luz elétrica em Guanambi, sua cidade: “A cidade iluminada, as ruas ganharam vida nova. Os passeios dominicais, antes apenas nas noites enluaradas, passaram a ser quase que diários”. Vê-se que ela se apresenta como testemunho de uma realidade da qual fez parte e articula a sua experiência ao desenvolvimento da cidade e disso podemos inferir inicialmente o peso que teve tal acontecimento nas condições reais de vida da autora, do seu grupo de convívio e naquele meio urbano de modo geral. Para se estudar aspectos da constituição das subjetividades, vale observar contribuições das reflexões filosóficas que mostram o longo caminho percorrido por tais estudos sobre a temática em diferentes temporalidades. Charles Taylor em seu trabalho As fontes do self analisou o pensamento de Santo Agostinho sobre a interioridade humana e afirma que este filósofo inaugurou uma noção de “eu” pautado num “eu” profundo, com emoções e sentimentos. Sua grande contribuição parte da idéia de que “Deus é luz”, mas não uma luz que vem de fora iluminando o ser, como pensou Platão, mas uma luz interior que pode ser sentida pelo “humano”, desde que este adote uma atitude reflexiva. Isso implica em que cada um volte-se para a sua vida particular, caminho para o conhecer-se. Trilhar esse caminho que leva a Deus e ao conhecimento é o da fé que traz segurança. Mas é preciso estar em sintonia com essa fé e afastar tudo que a prejudique, portanto é preciso estar vigilante e “cuidar de si”, não se perder. Assim, ainda que seja um pensamento carregado de religiosidade, Santo Agostinho inaugurou uma forma de subjetividade. (TAYLOR, 1997: 173/174). Para Taylor, uma subjetividade manifesta-se nessa “atitude de reflexão radical” o que implica em prestar atenção na extensão das experiências adquiridas, em vez de deixá-las passar ao largo, como comumente se faz, para se envolver nas coisas experimentadas. Uma atitude reflexiva significa 6 Anais do I Seminário do Grupo de Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL/CNPq): os sertões da Bahia. Caetité, v. 1, nº 1, out. 2011. (ISSN 2237-2407) tomar consciência de nossa consciência, procurar experimentar nossa experiência e concentrar-nos na forma como o mundo é para nós. [...] A reflexão radical traz para o primeiro plano uma espécie de presença para a pessoa, que é inseparável do fato de essa pessoa ser o agente da experiência, algo cujo acesso é, por sua própria natureza, assimétrico: há uma diferença crucial entre a forma de eu experienciar minha atividade, pensamento e sentimento e a forma pela qual você ou qualquer outro o faz. É isso que me torna um ser que pode falar de si na primeira pessoa. (TAYLOR, op. cit: 174). Outra contribuição para os estudos da subjetividade moderna veio de Descartes, herdeiro da tradição agostiniana, que explorando temas como paz interior, determinação, controle e generosidade, justificou a racionalidade como uma decorrência do “pensamento subjetivo”. O seu “penso, logo existo” caminhou para demonstrar inversamente que a atitude reflexiva coloca o sujeito na certeza da sua auto-suficiência e isso trouxe desdobramentos nas vivências humanas da modernidade. (TAYLOR, 1997:207). Sujeitos plurais são o modelo que vem substituindo o sujeito universal, assim como a subjetividade clássica, tida como autônoma e homogênea vem sendo contestada. Nesse sentido, a crítica nietzschiana propõe que toda subjetividade seja destituída do peso que lhe confere a tradição filosófica, quando a sobrecarrega de traços de “grandeza e profundidade interioridade, presença de si, domínio e autonomia”, para deixá-la na fluidez de uma construção que se dá numa inter-relação de forças e significados, como uma “instância meramente contingencial”. A despeito dos muitos desdobramentos que esse pensamento acarretou, entre os quais a idéia de liquidação do sujeito ou do conceito de subjetividade, estudos apontam para a necessidade de se buscar mecanismos para reinterpretar o sujeito, colocando- o numa posição compatível com as exigências éticas e políticas surgidas nos séculos XIX e XX, sem deixar que se perca o que lhe é mais valioso: a sua dimensão crítica. Aqui, mais uma vez, Duque-Estrada (2009:39) ancorada nas idéias de Derrida e Deleuze, escreve: A desconstrução inclemente da noção clássica de sujeito tem como horizonte, independentemente das suas variadas formulações, a abertura para a compreensão de uma subjetividade sempre em devir, de processos de subjetivação que não atendam a nenhuma finalidade preconcebida, pois que elas só se processam no acontecer contínuo e aleatório da própria vida. Disso se depreende que, como qualquer outro conceito filosófico, o de subjetividade também não se estabelece fora das questões a que ele tem que responder, pois que a sua validade está em ser capaz de dar conta das indagações que lhe são colocadas. Deleuze situa a 7 Anais do I Seminário do Grupo de Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL/CNPq): os sertões da Bahia. Caetité, v. 1, nº 1, out. 2011. (ISSN 2237-2407) questão do sujeito na dimensão direta da experiência da sua ligação vital com aquilo que lhe diz respeito e, aproveitando-se da trilha aberta por Foucault, ele lança o homem a sua historicidade e à sua natureza essencialmente temporal, finita, conforme escreve: Os processos de subjetivação nada têm a ver com a „vida privada‟, mas designam a operação pela qual indivíduos ou comunidades se constituem como sujeitos, à margem dos saberes constituídos e dos poderes estabelecidos, podendo dar lugar a novos saberes e poderes.(DELEUZE, 1992:193) Ao se desconstruir o conceito filosófico de sujeito (entendido aqui de forma mais abrangente) estabelece-se uma crise que afeta também o sujeito autobiográfico em suas especificidades. Dada à sua natureza mais empírica e psicológica do que teórica, uma questão ainda se impõe sobre esse sujeito, visto que não pode reivindicar para si, inconteste, as bases conceituais e teóricas do conceito de subjetividade. Elizabeth Duque-Estrada (2009:45), recorre a Nietzsche quando este faz a sua “crítica da subjetividade não a partir do lugar de um sujeito autor fundador de sentido, mas, antes, de um sujeito performático, que submerge na sua contingencialidade histórica, cultural e pulsional e percebe-se como um ser corporificado, construído numa multiplicidade de máscaras e de papéis”. É preciso desfazer a armadilha de acreditar que o pensamento filosófico é “grandioso, porque é puro, objetivo e desinteressado”, a exemplo dele próprio, que diz ter descoberto paulatinamente em sua prática intelectual, que toda grande filosofia é a confissão pessoal do seu autor, uma espécie de memórias involuntárias e inadvertidas. Esse quadro de desconstrução coloca a autobiografia numa posição de quem busca outros parâmetros e critérios para ser compreendida segundo as novas exigências do mundo contemporâneo. Assim, deparamo-nos com várias proposições teóricas que longe estão de atingir um equilíbrio epistemológico 4. Uma delas, a de Philippe Lejeune (uma das mais aceitas), é criticada pelo seu caráter dissimulado e conservador e por fugir do enfrentamento crítico necessário às questões mais significativas da atualidade desta escrita. Define-a como 4 O texto de Elizabeth Duque-Estrada (2009: 49 e segs) discorre sobre estas várias propostas: 1) Elizabeth Bruss, Paul Jay e Porter Abbott defendem a concepção de que a autobiografia é um esforço de construção de história pessoal, não no sentido propriamente histórico, mas como um evento terapêutico; é uma ação pessoal que se alinha à compreensão do leitor, ou seja, este sabe que o autor está presente no texto, conduzindo-o da forma que lhe interessa. 2) Luis Costa Lima considera-a na relação discurso histórico x narrativa ficcional e esta distinção vai depender do papel que cada um concede ao seu eu. 3) Eliane Zagury, numa postura semelhante à anterior, acredita que a escrita autobiografia está sempre em desequilíbrio e o ser em crise, sendo o sujeito do seu próprio objeto, como que caminha numa perna só, oscilando entre subjetividade e objetividade. 8 Anais do I Seminário do Grupo de Pesquisa, Cultura, Sociedade e Linguagem (GPCSL/CNPq): os sertões da Bahia. Caetité, v. 1, nº 1, out. 2011. (ISSN 2237-2407) uma “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz da sua própria existência, quando focaliza especialmente sua vida individual, sobretudo a história de sua personalidade”. Diz ele que não é no interior do texto que se deve buscar os elementos para compreender a escrita, mas no modo de leitura, ou no pacto que se estabelece entre leitor e autor; ao ler, não perder de vista que autor, personagem e narrador são coincidentes. A proposta de Paul de Man alinha-se ao ponto de vista desconstrucionista e também é criticado pela radicalidade das suas idéias. Censura a elevação da escrita autobiográfica à condição de gênero literário ao lado da tragédia, do épico ou da poesia lírica, por faltar-lhe mais peso quanto às exigências estéticas. Acha igualmente desnecessário estabelecer contraposição entre o que é ficcional e o que é real, pois afinal, a autobiografia está presa a fatos verificáveis e reais, existindo ali um sujeito, um nome envolvidos. Entretanto, diante da dúvida se a “vida produz a autobiografia da mesma forma que o ato produz as suas conseqüências”, admite que a autobiografia pode ser tomada, não como um valor em si mesmo, mas apenas como um “acontecimento textual”. DUQUE-ESTRADA, 2009: 49 e 51). Todas essas discussões desembocaram em avanços e benefícios para a autobiografia e serviram para libertá-la da posição de subgênero da biografia e para lançá-la frente às mais complexas demandas levantadas pelas narrativas em primeira pessoa, demandas ligadas à “identidade, auto-definição ou auto-engano”, demandas que não excluem as imbricações de ordem filosófica, literária, social, psicológica ou política. Concluindo, podemos dizer que foram muitos os abalos resultantes da desconstrução da subjetividade clássica, que poderão ser pensados no sentido de perscrutar as especificidades e complexidades dos registros a serem analisados e não com uma visão monolítica tão prejudicial ao rumo da pesquisa. Esse trabalho, ainda não concluído, analisa portanto, as subjetividades numa perspectiva que considere sugestões inovadoras e que possam trazer à tona saberes e poderes que vão se constituindo incessantemente nas cenas do dia-a-dia e que estão presentes nas narrativas em foco. Referências BOSI, Eclea. Memória e sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: Companhia das Letras, 1979. BORGES, Vavy Pacheco. Grandezas e misérias da biografia. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org). Fontes históricas. São Paulo: Contexto, 2006. CERTEAU, Michel. A cultura no plural. Campinas-SP: Papirus, 1995. CORBIN, Alain. Entrevista feita por SANT‟ANNA, Denise Bernuzzi de. Uma história quase impossível. 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