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Relato de caso: deficiência de 17α-hidroxilase, hipocalemia,
rabdomiólise e insuficiência renal aguda
Case report: 17α-hydroxylase deficiency, hypokalemia, rhabdomyolysis
and acute kidney failure
Dênis Rogério Aranha da Silva, Vinícius Daher Alvares Delfino, Abel Esteves Soares, Areuza
Célia Andrade Viana, Anuar Michel Matni, Pedro Alejandro Gordan, Waldir Eduardo Garcia e
Altair Jacob Mocelin
Serviço de Nefrologia do Hospital Universitário Regional do Norte do Paraná, Universidade Estadual de Londrina.
Londrina, PR, Brasil
Esteróide 17 alfa-monooxigenase. Hipocalemia.
Rabdomiólise. Insuficiência renal aguda.
Steroid 17 alpha-monooxygenase. Hypokalemia.
Rhabdomyolysis. Acute
kidney failure.
Resumo
Alterações metabólicas são causas comuns de rabdomiólise. A hipocalemia raramente
tem sido descrita como causa isolada desta condição. Relatamos o caso de uma paciente
com hiperplasia adrenal congênita secundária à deficiência de 17α-hidroxilase que, por
aumento de perdas intestinais de potássio, apresentou-se com tetraparesia, rabdomiólise
e insuficiência renal aguda. São discutidos os mecanismos envolvidos na gênese da
rabdomiólise secundária à hipocalemia e na hipertensão e hipocalemia decorrentes da
deficiência de 17α-hidroxilase.
Abstract
Metabolic alterations are common causes of rhabdomyolysis. Among those, hypokalemia has
rarely been described as the sole cause. It is reported a case of a patient with congenital
adrenal hyperplasia secondary to 17α-hydroxylase deficiency that, due to increased losses of
potassium in stools, presented with tetraparesy, rhabdomyolysis and acute renal failure. The
mechanisms involved in the rhabdomyolysis secondary to hypokalemia and hypertension and
hypokalemia seen in 17α-hydroxylase deficiency patients are reviewed.
I n t r o d u ç ã o
Alterações metabólicas comumente descritas na literatura como causa de rabdomiólise incluem: estados
hiperosmolares, cetoacidose diabética, hipofosfatemia,
hiponatremia, hipocalcemia e hipocalemia.1 São incomuns, no entanto, as descrições de rabdomiólise causadas por hipocalemia isoladamente.2 Relatamos o caso
de uma paciente que apresentou tetraparesia, rabdo-
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miólise maciça e insuficiência renal aguda devido à
hipocalemia severa decorrente de perdas digestivas de
potássio e de hiperplasia adrenal congênita, secundária à deficiência da 17α-hidroxilase.
A intenção em relatar este caso é alertar para a
possibilidade de hiperplasia adrenal congênita na presença de hipertensão, alterações de caracteres sexuais
secundários e hipocalemia; e para a piora desta última
condição em situações de perdas agudas, levando a
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rabdomiólise maciça e insuficiência renal aguda.
Relato do caso
Uma paciente de 21 anos, parda, compareceu ao
pronto-socorro com história de fraqueza muscular em
membros inferiores há um mês. Há sete dias vinha
apresentando diarréia líquida, sem muco ou sangue,
acompanhada de urina escurecida, palpitações e dispnéia. Nos últimos três dias não conseguia andar e
mesmo a movimentação no leito era dificultosa por
falta de força muscular. Apresentava amenorréia primária, a exemplo de uma de suas irmãs mais velhas.
Exame físico: Regular estado geral, PA 165/110
mmHg, FR 18 ipm, Pulso 90 bpm, mucosas secas.
Notava-se ausência de caracteres sexuais secundários: mamas M0, pilificação P0, segundo classificação
de Tanner; vagina em fundo cego, toque retal com útero não palpável.
Exames laboratoriais iniciais: Hemoglobina: 17,6
g/dL, hematócrito: 57,8%, gasometria arterial com pH
7,44, PO2 74 mmHg, PCO2 41,5 mmHg, HCO3 27,8 mEq/
L, Saturação O2 95,4%, leucograma 10.100 mm3 (Segmentados 87%), uréia 155 mg/dL, creatinina 5,32 mg/
dL, sódio 134 mEq/L, potássio 0,98mEq/L, cloro 97mEq/
L, magnésio 1,5 mEq/L, cálcio 6,5 mg/dL, fósforo 4,95
mEq/L, CPK: 32.425 UI/L, CKMB 389 UI/L, lactato desidrogenase 1284 UI/L, aspartato aminotransferase 244
UI/L, glicemia 154 mg/dL, osmolaridade plasmática
calculada de 302 mOsm/L. Urina I: pH:7,0 Proteínas:2+
Hemoglobina: 4+, células epiteliais: 94000/mL, leucócitos 60000/mL, hemácias 46000/mL, sódio urinário 83
mEq/L, eletrocardiograma com inversão da onda T, sem
alargamento do intervalo PR ou do complexo QRS.
Nos primeiros cinco dias de evolução, foram repostos, por via oral e endovenosa, cerca de 1.000 mEq de
6
4,5
4
60*
5
60*
60*
4
3
2,5
* Reposição de Potássio
(mEq/dia)
2
3
560*
1,5
1
2
Creatina (mg/dL)
Potássio (mEq/L)
3,5
Potássio
Creatinina
260*
1
0,5
0
0
1
2
3
4
5
Dias de Internação
Figura 1 - Modificações da potassemia em função da reposição de potássio
e evolução da creatinina plasmática durante os cinco primeiros dias de
internação da paciente.
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Figura 2 - Tomografia abdominal computadorizada demonstrando acentuado
aumento difuso e homogêneo do volume das glândulas supra-renais
(hiperplasia das supra-renais).
potássio, somado ao uso de espironolactona, permitiu
que o potássio sérico subisse de 0,98 para ao redor de
3,5 mEq/L e se estabilizasse neste patamar. A Figura 1
apresenta estes dados correlacionados à evolução da
creatinina sérica verificada no mesmo período.
A combinação de hipocalemia e hipertensão em
uma paciente sem desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários levou à hipótese de deficiência da
enzima 17 alfa-monooxigenase, mais conhecida como
17α-hidroxilase. Após o início da administração de
dexametasona e estrógenos conjugados houve melhor
sustentação dos níveis de potássio e controle da hipertensão arterial, o que permitiu a descontinuação
da reposição de potássio e da espironolactona.
Investigação pertinente revelou cariótipo XY, cortisol sérico normal (1,7 µg/dL às 8:00 h), 17α-hidroxiprogesterona de 6,64 ng/dL (normal até 4), hormônio
luteinizante (LH), hormônio folículo-estimulante (FSH)
e testosterona normais, sulfato de dehidroepiandrosterona (DHEAS) <30 µg/dL (ref: 35 a 430 µg/dL).
Na tomografia abdominal computadorizada notava-se aumento difuso das supra-renais e presença de
estruturas tubulares retrovesicais, as quais foram removidas por videolaparoscopia (exame anatomopatológico: testículos sem sinais de malignidade). Este aumento tomográfico significativo das supra-renais é
apresentado na Figura 2.
O manejo da insuficiência renal aguda foi clínico e
a paciente recebeu alta hospitalar após 22 dias de internação, assintomática, normotensa sem uso de antihipertensivos, com eletrólitos séricos normais e creatinina plasmática de 1,74 mg/dL.
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D i s c u s s ã o
As causas de rabdomiólise podem ser divididas em
físicas e não físicas. Entre as causas não físicas podem
estar envolvidas, por exemplo, miopatias metabólicas,
infecções, drogas, toxinas, alterações endócrinas e eletrolíticas.1 Rabdomiólise de causa não física foi relatada
em 5% a 7% dos casos de insuficiência renal aguda.3
Singhal,2 em análise retrospectiva de 120 casos de
hipocalemia hospitalar, encontrou 36,1% de ocorrência
de rabdomiólise. Nenhum dos acometidos pela rabdomiólise muscular secundária à hipocalemia queixavase de dor ou de edema muscular e somente um terço
deles relatava fraqueza muscular. Os níveis de potássio
desses pacientes eram semelhantes aos dos sem lesão
muscular (3,0±0,1 mEq/L). No entanto, pacientes com
rabdomiólise apresentavam-se com valores de glicemia,
sódio e osmolaridade sérica estatisticamente mais elevados do que aqueles sem rabdomiólise.
Hipocalemia leve geralmente é assintomática. Níveis de potássio abaixo de 3,0 mEq/L podem promover obstipação intestinal e fraqueza. Valores abaixo
de 2,0 mEq/L podem acarretar paralisia ascendente e
insuficiência respiratória.4
No presente caso, embora o potássio sérico estivesse muito reduzido, a paciente não apresentava alterações eletrocardiográficas significativas e o óbito
provavelmente não ocorreu devido à inexistência de
outras condições de risco cardiovascular e a presença
prévia de hipocalemia crônica, a qual permitiu a adaptação do miocárdio aos níveis persistentemente rebaixados deste eletrólito.
Arritmias cardíacas não são formas de apresentação clínica de portadores de síndromes de hipocalemia crônica secundárias às síndromes de Bartter e Gitelman. Recentemente, Barakat et al descreveram o
caso de um paciente de 12 anos de idade com síndrome de Gitelman que, a semelhança do caso agora relatado, apesar de apresentar potássio sérico de 1,0 mEq/
L, também não apresentava alterações eletrocardiográficas preocupantes (taquicardia sinusal e discreto aumento do QT corrigido).5
Hipocalemia pode desencadear aparecimento de
rabdomiólise e insuficiência renal aguda (IRA). IRA no
contexto de hipocalemia crônica pode, ainda, ocorrer
na ausência de rabdomiólise em situações de depleção de volume extracelular.6
Entre os mecanismos propostos para o desenvolvi-
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201
mento de rabdomiólise secundária à hipocalemia, incluem-se: inibição da síntese muscular de glicogênio e
da glicólise intracelular7 e diminuição do fluxo sanguíneo para a musculatura durante a contração,8 ficando o
miócito com reserva energética limitada e adaptação
diminuída ao estresse, predisposto à necrose.
Na biossíntese dos glicocorticóides e dos androgênios a partir do colesterol, a esteróide 17 alfa-monooxigenase (17α-hidroxilase) é a enzima responsável pela hidroxilação da progesterona em 17-hidroxiprogesterona.
A deficiência de 17α-hidroxilase determina uma forma rara de hiperplasia adrenal congênita, por acarretar bloqueio total ou parcial da síntese de cortisol e
androgênios, desviando a síntese esteróide para hipersecreção de 17-desoesteróides, como pregnenolona, desoxicorticosterona (DOCA) e corticosterona. Estes dois últimos, ou seus metabólitos, previnem a
ocorrência de insuficiência adrenal e acarretam hipocalemia e hipertensão,9 devido às ações glico e mineralocorticóide. A deficiência de androgênios e estrogênios leva a distúrbio da diferenciação sexual. A
hiperplasia das supra-renais é secundária à secreção
persistentemente aumentada do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) pela diminuição ou ausência de sua
retroalimentação negativa pelo cortisol.
A apresentação clínica desta deficiência enzimática é semelhante em indivíduos com genótipo XX ou
XY. Nas formas severas, XX e XY têm genitália externa
feminina e ausência de caracteres sexuais secundários, sendo que no genótipo masculino há ausência de
estruturas Mullerianas.9 Há 18 mutações diferentes
descritas do gene CYP17 no cromossoma 10q24-25 levando à deficiência enzimática total ou parcial da 17αhidroxilase. O tratamento é feito pelo bloqueio do
ACTH com glicocorticóides, com subseqüente melhora da hipocalemia e hipertensão.9 No caso em questão, devido à orientação sexual feminina da paciente,
foi iniciado estrógeno conjugado para desenvolvimento sexual secundário.
Em revisão do Medline, encontramos descrição de
somente dois casos de deficiência de 17α-hidroxilase
apresentando-se com miopatia devido a hipocalemia, um
deles simulando abdômen agudo oclusivo10 e outro com
quadriplegia e arreflexia.11 Nenhum, no entanto, com insuficiência renal aguda devida a rabdomiólise. Não verificamos qualquer relato de hipocalemia, rabdomiólise e
insuficiência renal aguda secundárias à deficiência desta
enzima em periódicos indexados no LILACS.
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Aceito em 2/5/2002. Recebido em 19/12/2001.
Fonte de financiamento e conflito de interesses inexistentes
Endereço para correspondência:
Dênis Rogério Aranha da Silva
Instituto do Rim de Londrina
Av
Av.. Bandeirantes, 804
86010-010 Londrina, PR, Brasil
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el: (0xx43) 323-9191 FFax:
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