J Bras Nefrol 2002;24(4):199-202 199 Relato de caso: deficiência de 17α-hidroxilase, hipocalemia, rabdomiólise e insuficiência renal aguda Case report: 17α-hydroxylase deficiency, hypokalemia, rhabdomyolysis and acute kidney failure Dênis Rogério Aranha da Silva, Vinícius Daher Alvares Delfino, Abel Esteves Soares, Areuza Célia Andrade Viana, Anuar Michel Matni, Pedro Alejandro Gordan, Waldir Eduardo Garcia e Altair Jacob Mocelin Serviço de Nefrologia do Hospital Universitário Regional do Norte do Paraná, Universidade Estadual de Londrina. Londrina, PR, Brasil Esteróide 17 alfa-monooxigenase. Hipocalemia. Rabdomiólise. Insuficiência renal aguda. Steroid 17 alpha-monooxygenase. Hypokalemia. Rhabdomyolysis. Acute kidney failure. Resumo Alterações metabólicas são causas comuns de rabdomiólise. A hipocalemia raramente tem sido descrita como causa isolada desta condição. Relatamos o caso de uma paciente com hiperplasia adrenal congênita secundária à deficiência de 17α-hidroxilase que, por aumento de perdas intestinais de potássio, apresentou-se com tetraparesia, rabdomiólise e insuficiência renal aguda. São discutidos os mecanismos envolvidos na gênese da rabdomiólise secundária à hipocalemia e na hipertensão e hipocalemia decorrentes da deficiência de 17α-hidroxilase. Abstract Metabolic alterations are common causes of rhabdomyolysis. Among those, hypokalemia has rarely been described as the sole cause. It is reported a case of a patient with congenital adrenal hyperplasia secondary to 17α-hydroxylase deficiency that, due to increased losses of potassium in stools, presented with tetraparesy, rhabdomyolysis and acute renal failure. The mechanisms involved in the rhabdomyolysis secondary to hypokalemia and hypertension and hypokalemia seen in 17α-hydroxylase deficiency patients are reviewed. I n t r o d u ç ã o Alterações metabólicas comumente descritas na literatura como causa de rabdomiólise incluem: estados hiperosmolares, cetoacidose diabética, hipofosfatemia, hiponatremia, hipocalcemia e hipocalemia.1 São incomuns, no entanto, as descrições de rabdomiólise causadas por hipocalemia isoladamente.2 Relatamos o caso de uma paciente que apresentou tetraparesia, rabdo- 07-RC1417Deficiencia.p65 199 miólise maciça e insuficiência renal aguda devido à hipocalemia severa decorrente de perdas digestivas de potássio e de hiperplasia adrenal congênita, secundária à deficiência da 17α-hidroxilase. A intenção em relatar este caso é alertar para a possibilidade de hiperplasia adrenal congênita na presença de hipertensão, alterações de caracteres sexuais secundários e hipocalemia; e para a piora desta última condição em situações de perdas agudas, levando a 01/01/03, 01:48 Insuficiência renal aguda - Silva DRA et al. 200 J Bras Nefrol 2002;24(4):199-202 rabdomiólise maciça e insuficiência renal aguda. Relato do caso Uma paciente de 21 anos, parda, compareceu ao pronto-socorro com história de fraqueza muscular em membros inferiores há um mês. Há sete dias vinha apresentando diarréia líquida, sem muco ou sangue, acompanhada de urina escurecida, palpitações e dispnéia. Nos últimos três dias não conseguia andar e mesmo a movimentação no leito era dificultosa por falta de força muscular. Apresentava amenorréia primária, a exemplo de uma de suas irmãs mais velhas. Exame físico: Regular estado geral, PA 165/110 mmHg, FR 18 ipm, Pulso 90 bpm, mucosas secas. Notava-se ausência de caracteres sexuais secundários: mamas M0, pilificação P0, segundo classificação de Tanner; vagina em fundo cego, toque retal com útero não palpável. Exames laboratoriais iniciais: Hemoglobina: 17,6 g/dL, hematócrito: 57,8%, gasometria arterial com pH 7,44, PO2 74 mmHg, PCO2 41,5 mmHg, HCO3 27,8 mEq/ L, Saturação O2 95,4%, leucograma 10.100 mm3 (Segmentados 87%), uréia 155 mg/dL, creatinina 5,32 mg/ dL, sódio 134 mEq/L, potássio 0,98mEq/L, cloro 97mEq/ L, magnésio 1,5 mEq/L, cálcio 6,5 mg/dL, fósforo 4,95 mEq/L, CPK: 32.425 UI/L, CKMB 389 UI/L, lactato desidrogenase 1284 UI/L, aspartato aminotransferase 244 UI/L, glicemia 154 mg/dL, osmolaridade plasmática calculada de 302 mOsm/L. Urina I: pH:7,0 Proteínas:2+ Hemoglobina: 4+, células epiteliais: 94000/mL, leucócitos 60000/mL, hemácias 46000/mL, sódio urinário 83 mEq/L, eletrocardiograma com inversão da onda T, sem alargamento do intervalo PR ou do complexo QRS. Nos primeiros cinco dias de evolução, foram repostos, por via oral e endovenosa, cerca de 1.000 mEq de 6 4,5 4 60* 5 60* 60* 4 3 2,5 * Reposição de Potássio (mEq/dia) 2 3 560* 1,5 1 2 Creatina (mg/dL) Potássio (mEq/L) 3,5 Potássio Creatinina 260* 1 0,5 0 0 1 2 3 4 5 Dias de Internação Figura 1 - Modificações da potassemia em função da reposição de potássio e evolução da creatinina plasmática durante os cinco primeiros dias de internação da paciente. 07-RC1417Deficiencia.p65 200 Figura 2 - Tomografia abdominal computadorizada demonstrando acentuado aumento difuso e homogêneo do volume das glândulas supra-renais (hiperplasia das supra-renais). potássio, somado ao uso de espironolactona, permitiu que o potássio sérico subisse de 0,98 para ao redor de 3,5 mEq/L e se estabilizasse neste patamar. A Figura 1 apresenta estes dados correlacionados à evolução da creatinina sérica verificada no mesmo período. A combinação de hipocalemia e hipertensão em uma paciente sem desenvolvimento dos caracteres sexuais secundários levou à hipótese de deficiência da enzima 17 alfa-monooxigenase, mais conhecida como 17α-hidroxilase. Após o início da administração de dexametasona e estrógenos conjugados houve melhor sustentação dos níveis de potássio e controle da hipertensão arterial, o que permitiu a descontinuação da reposição de potássio e da espironolactona. Investigação pertinente revelou cariótipo XY, cortisol sérico normal (1,7 µg/dL às 8:00 h), 17α-hidroxiprogesterona de 6,64 ng/dL (normal até 4), hormônio luteinizante (LH), hormônio folículo-estimulante (FSH) e testosterona normais, sulfato de dehidroepiandrosterona (DHEAS) <30 µg/dL (ref: 35 a 430 µg/dL). Na tomografia abdominal computadorizada notava-se aumento difuso das supra-renais e presença de estruturas tubulares retrovesicais, as quais foram removidas por videolaparoscopia (exame anatomopatológico: testículos sem sinais de malignidade). Este aumento tomográfico significativo das supra-renais é apresentado na Figura 2. O manejo da insuficiência renal aguda foi clínico e a paciente recebeu alta hospitalar após 22 dias de internação, assintomática, normotensa sem uso de antihipertensivos, com eletrólitos séricos normais e creatinina plasmática de 1,74 mg/dL. 01/01/03, 01:48 Insuficiência renal aguda - Silva DRA et al. D i s c u s s ã o As causas de rabdomiólise podem ser divididas em físicas e não físicas. Entre as causas não físicas podem estar envolvidas, por exemplo, miopatias metabólicas, infecções, drogas, toxinas, alterações endócrinas e eletrolíticas.1 Rabdomiólise de causa não física foi relatada em 5% a 7% dos casos de insuficiência renal aguda.3 Singhal,2 em análise retrospectiva de 120 casos de hipocalemia hospitalar, encontrou 36,1% de ocorrência de rabdomiólise. Nenhum dos acometidos pela rabdomiólise muscular secundária à hipocalemia queixavase de dor ou de edema muscular e somente um terço deles relatava fraqueza muscular. Os níveis de potássio desses pacientes eram semelhantes aos dos sem lesão muscular (3,0±0,1 mEq/L). No entanto, pacientes com rabdomiólise apresentavam-se com valores de glicemia, sódio e osmolaridade sérica estatisticamente mais elevados do que aqueles sem rabdomiólise. Hipocalemia leve geralmente é assintomática. Níveis de potássio abaixo de 3,0 mEq/L podem promover obstipação intestinal e fraqueza. Valores abaixo de 2,0 mEq/L podem acarretar paralisia ascendente e insuficiência respiratória.4 No presente caso, embora o potássio sérico estivesse muito reduzido, a paciente não apresentava alterações eletrocardiográficas significativas e o óbito provavelmente não ocorreu devido à inexistência de outras condições de risco cardiovascular e a presença prévia de hipocalemia crônica, a qual permitiu a adaptação do miocárdio aos níveis persistentemente rebaixados deste eletrólito. Arritmias cardíacas não são formas de apresentação clínica de portadores de síndromes de hipocalemia crônica secundárias às síndromes de Bartter e Gitelman. Recentemente, Barakat et al descreveram o caso de um paciente de 12 anos de idade com síndrome de Gitelman que, a semelhança do caso agora relatado, apesar de apresentar potássio sérico de 1,0 mEq/ L, também não apresentava alterações eletrocardiográficas preocupantes (taquicardia sinusal e discreto aumento do QT corrigido).5 Hipocalemia pode desencadear aparecimento de rabdomiólise e insuficiência renal aguda (IRA). IRA no contexto de hipocalemia crônica pode, ainda, ocorrer na ausência de rabdomiólise em situações de depleção de volume extracelular.6 Entre os mecanismos propostos para o desenvolvi- 07-RC1417Deficiencia.p65 201 J Bras Nefrol 2002;24(4):199-202 201 mento de rabdomiólise secundária à hipocalemia, incluem-se: inibição da síntese muscular de glicogênio e da glicólise intracelular7 e diminuição do fluxo sanguíneo para a musculatura durante a contração,8 ficando o miócito com reserva energética limitada e adaptação diminuída ao estresse, predisposto à necrose. Na biossíntese dos glicocorticóides e dos androgênios a partir do colesterol, a esteróide 17 alfa-monooxigenase (17α-hidroxilase) é a enzima responsável pela hidroxilação da progesterona em 17-hidroxiprogesterona. A deficiência de 17α-hidroxilase determina uma forma rara de hiperplasia adrenal congênita, por acarretar bloqueio total ou parcial da síntese de cortisol e androgênios, desviando a síntese esteróide para hipersecreção de 17-desoesteróides, como pregnenolona, desoxicorticosterona (DOCA) e corticosterona. Estes dois últimos, ou seus metabólitos, previnem a ocorrência de insuficiência adrenal e acarretam hipocalemia e hipertensão,9 devido às ações glico e mineralocorticóide. A deficiência de androgênios e estrogênios leva a distúrbio da diferenciação sexual. A hiperplasia das supra-renais é secundária à secreção persistentemente aumentada do hormônio adrenocorticotrófico (ACTH) pela diminuição ou ausência de sua retroalimentação negativa pelo cortisol. A apresentação clínica desta deficiência enzimática é semelhante em indivíduos com genótipo XX ou XY. Nas formas severas, XX e XY têm genitália externa feminina e ausência de caracteres sexuais secundários, sendo que no genótipo masculino há ausência de estruturas Mullerianas.9 Há 18 mutações diferentes descritas do gene CYP17 no cromossoma 10q24-25 levando à deficiência enzimática total ou parcial da 17αhidroxilase. O tratamento é feito pelo bloqueio do ACTH com glicocorticóides, com subseqüente melhora da hipocalemia e hipertensão.9 No caso em questão, devido à orientação sexual feminina da paciente, foi iniciado estrógeno conjugado para desenvolvimento sexual secundário. Em revisão do Medline, encontramos descrição de somente dois casos de deficiência de 17α-hidroxilase apresentando-se com miopatia devido a hipocalemia, um deles simulando abdômen agudo oclusivo10 e outro com quadriplegia e arreflexia.11 Nenhum, no entanto, com insuficiência renal aguda devida a rabdomiólise. Não verificamos qualquer relato de hipocalemia, rabdomiólise e insuficiência renal aguda secundárias à deficiência desta enzima em periódicos indexados no LILACS. 01/01/03, 01:48 Insuficiência renal aguda - Silva DRA et al. 202 J Bras Nefrol 2002;24(4):199-202 R e f e r ê n c i a s 1. Vanholder R, Sever MS, Erek E, Lameire N. Rhabdomyolysis. J Am Soc Nephrol 2000;11:1553-61. 9. 2. Singhal PC, Abramovici M, Venkatesan J, Mattana J. Hypokalemia and rhabdomyolysis. Miner Electrolyte Metab 1991;17:335-9. 3. Pereira BJ, Cuvello AMN, Abdulkader RCRM. Alterações metabólicas como causa de rabdomiólise e insuficiência renal aguda. J Bras Nefrol 2000;22:78-84. 10. Preeyasombat C, Pitchayayothin N, Viravekin A. Hypokalemic crisis simulating intestinal obstruction in a 4year-old girl: a consequence of 17alpha-hydroxylase deficiency. Am J Dis Child 1976;130:1143-5. 4. Gennari FJ. Hypokalemia. N Engl J Med 1998;339:451-7. 5. Barakat AJ, Renner OM. 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