Pronunciamento
Ministro Ives Gandra da Silva Martins Filho
Boa noite a todos!
Senhor Presidente Fernando Toledo, Desembargador Severino, em nome de
quem saúdo todos os colegas. É um momento ímpar este de fazermos uma
reflexão a respeito da CLT neste plenário. Essas homenagens têm sido feitas
em todo o Brasil, e não poderíamos deixar de fazê-la também aqui no estado
de Alagoas.
Não vou dar uma palestra, não vou fazer um discurso, vou aproveitar este
momento para uma reflexão conjunta. Quando me entrevistavam há pouco
sobre o que eu achava que deveria ser feito de reforma da CLT, eu dizia:
Aproveitemos a oportunidade desta solenidade e os 70 anos da CLT para
fazermos uma reflexão.
O que anda bem e o que não anda bem no Direito do Trabalho, na Justiça do
Trabalho, para que possamos melhorar, quer o desempenho da justiça, quer a
harmonia entre trabalhadores e empregadores?
Vamos pensar um pouquinho, vai ser uma reflexão conjunta. Qual era o Brasil
de 1943, quando foi editada a CLT. Era um Brasil que estava passando de uma
economia agrária para uma economia industrial. Em 1945, tínhamos a bomba
atômica caindo em Hiroshima e Nagasaki, inaugurando uma nova era, a era
atômica, a era nuclear, e a CLT já existia.
Nós passamos agora não só à era nuclear, mas à era da informática. Quando
ouvia, há alguns anos, o Vice-Presidente da República, Marco Maciel, falando
de uma evolução do poder ao longo dos séculos no mundo, ele falava do poder
das armas, superado depois pelo poder econômico, e hoje o poder do
conhecimento, o poder da informática, o poder da informação.
Realmente, estamos passando hoje por uma crise na própria Justiça do
Trabalho, da implantação do processo eletrônico. Conseguir fazer com que
aquele processo físico, em papel, deixe de existir e comecemos a discutir as
questões de empregados e empregadores através do processo virtual. Tudo
isso é uma mudança, e são mudanças radicais.
Pois bem, a própria economia passou por isso. O que nós vemos hoje em
matéria de economia? Um mundo globalizado, em que as empresas disputam
os mercados no mundo inteiro. E buscam o quê? Buscam onde haja segurança
jurídica, onde haja recursos ambientais acessíveis e onde haja recursos
humanos que não sejam tão excessivos em termos de custo de mão de obra.
Quando estive, em 2002, na OIT, representando meu Tribunal, fui com muito
preconceito, porque imaginava a OIT como uma assembleia que tenta nivelar
direitos trabalhistas do mundo inteiro, obrigando todos os países a elevarem
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seus patamares de direitos trabalhistas, quando o custo da mão de obra é um
dos elementos da produção.
Agora você tem a tecnologia, e socializar a tecnologia, nenhum país socializa.
Portanto, eu via, às vezes, a OIT como uma entidade que conseguia elevar o
nível do ganho do trabalhador, mas não via, por exemplo, a OMC como uma
entidade que efetivamente conseguisse fazer com que também na disputa
tecnológica houvesse uma equiparação, houvesse pisos mínimos, uma espécie
de socialização do conhecimento.
Eu fiquei bem impressionado ao ver que as questões trabalhistas são muito
debatidas nesse Congresso Mundial que é Organização Internacional do
Trabalho. Patrões, empregados e representantes governamentais vão lá e
discutem o que são os parâmetros mínimos de dignidade do trabalhador, a
serem implementados por todos os países.
E nós temos votado, o Brasil, em todas essas convenções, ratificado essas
convenções e também implementado recomendações. Só que qual é o mundo
de hoje? O mundo globalizado no qual a competição internacional supõe
parâmetros que sejam razoáveis para que a indústria nacional e a indústria
estrangeira possam disputar mercados, respeitando esses patamares mínimos,
não considerando absolutamente o trabalhador como mero elemento a mais da
produção.
Tanto que a doutrina social cristã sempre colocou como básica a primazia do
trabalho sobre o capital, mas que haja realmente parâmetros que sejam
razoáveis. Por que eu digo isso? Porque no momento em que se discute uma
revisão da CLT, e hoje eu fui fazer um levantamento, quantos dispositivos da
CLT já sofreram alguma alteração?
Os senhores e senhoras já imaginaram? Já fizeram essa pergunta? De 904
artigos, 588 já foram alterados, ou seja, mais de 60% da CLT já não é aquela
do Ministro Arnaldo Sussekind, que foi um dos feitores, faleceu este ano. Já
não é mais aquela CLT. O mundo, o trabalhador e o empregador já não são o
empregador e o trabalhador dos anos 40.
A CLT é um diploma protetivo. Agora, o trabalhador de 2013 é o mesmo
trabalhador desprotegido, desarticulado de 1943? Não. É um trabalhador
consciente dos seus direitos. O sindicalismo brasileiro é um sindicalismo forte,
apesar de eu defender uma reforma sindical que acabe com o princípio da
unicidade sindical, que acabe com o imposto sindical obrigatório, que
estabeleça um regime concorrencial de sindicatos, de tal forma que o sindicato
que melhor defenda o trabalhador seja aquele que obtém a filiação da maior
parte dos trabalhadores.
Pois bem, neste mundo de um trabalhador consciente dos seus deveres, ou
melhor, consciente dos seus direitos, e um empregador consciente dos seus
deveres, este é um mundo diferente daquele de 1943, daquele de 70 anos
atrás, que permite uma mudança da CLT que tenda para a seguinte diretriz: os
direitos comuns e básicos a todos os trabalhadores merecem um estatuto de
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proteção do trabalhador que seja exatamente a Consolidação das Leis do
Trabalho. Mas e aqueles direitos que são específicos de cada categoria? O
instrumento mais apto para a sua instituição é a negociação coletiva. É algo do
qual eu estou convencido, e cada vez mais convencido ao ver que o legislador,
quando vai tratar de questões muito específicas, acaba generalizando de tal
forma que prejudica a própria categoria. Seria como se nós chegássemos em
um bar e o garçom perguntasse: - O que o senhor deseja? - Eu desejo um chá.
- E o que o senhor deseja? - Eu desejo um Cappucino. - O que a senhora
deseja? - Eu desejo um café com leite. - Ou seja, chá pra todos. Se o garçom
fizesse isso, estaria desatendendo a vontade de cada um. Isso é o que eu vejo
muitas vezes acontecer em algumas leis que pretendem ser setoriais e
acabam, até por interpretação da Justiça do Trabalho, desguarnecendo a
categoria que pretendem defender.
Vejam o caso recentíssimo da Emenda Constitucional que garante os mesmos
direitos de todo trabalhador à categoria dos empregados domésticos. Recebi
outro dia representantes de sindicatos de empregados domésticos reclamando
do que isso está provocando em termos de desemprego, aumentando o
desemprego na categoria.
E quando fui consultado várias vezes por pessoas que diziam: o que é que eu
faço? Digo: Não faça nada agora, não despeça sua empregada, como estava
querendo esta ou aquela pessoa, nem mude o regime de empregada para
diarista. Não faça nada porque a lei vai ter que ser regulamentada. A norma
constitucional vai ter que ser regulamentada.
Os parâmetros vão ter que ser parâmetros diferenciados dos demais
trabalhadores. Porque eu não posso tratar da mesma forma um trabalhador
que vem, tem um horário determinado para trabalhar num determinado lugar, e
um trabalhador que mora e reside no lugar de trabalho.
Como é que eu vou diferenciar o que é tempo efetivo de serviço e o que é
tempo de descanso? Veja que interessante, como a OIT foi sábia. Nós aqui
precisamos seguir na mesma linha. A convenção que tratou do trabalho
doméstico colocava como uma das cautelas que o legislador deve ter em cada
país é com a jornada de trabalho, para distinguir o que é efetivo engajamento.
Porque nós temos um princípio básico no Direito do Trabalho que é: enquanto
eu estiver disponível, à disposição do trabalhador, eu devo receber.
Agora, se o empregado doméstico está morando, está lá na casa o tempo todo,
ele não está à disposição do empregador? Então teria que receber 24 horas
por dia?
Vejam que interessante. A semana passada discutíamos um processo no meu
Tribunal. Há uma norma do artigo 244 da CLT aplicável a ferroviários, uma
categoria bem específica, que trata do instituto do sobreaviso. O que diz o
artigo de 1943? Para verem o que é mudança de situações, de querer aplicar
ou não a legislação de 43. O que diz esse artigo?
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O trabalhador ferroviário pode ficar de plantão em regime de sobreaviso
durante 24 horas, na sua casa, para atender telefonema. Caso seja necessário
seu trabalho, ele se desloca. Portanto, ele recebe 1/3 por hora do seu salário
porque tem que ficar na casa dele parado, esperando, aguardando eventual
engajamento.
Pois bem, o TST hoje está aplicando uma lei de 1943, um artigo de 43 para
situações absolutamente diferentes, que é trabalhador que porta celular, que
pode se deslocar e pode estar em qualquer parte do Brasil e, no caso concreto
que analisávamos, esse trabalhador podia responder à consulta por celular
mesmo, como é o caso do pessoal da informática. Determinando o pagamento
de 1/3 de salário pelo tempo que ele portava o celular. O que eu ponderei
naquele momento?
A semana tem 168 horas, a jornada de trabalho é de 44 horas. Eu vou
considerar 124 horas, fora as 44, como de sobreaviso para pagar 1/3 sobre 124
horas. Será que isso aí é o que o legislador na época pensava? É uma
situação totalmente diferente. Por isso que eu venho sustentando os direitos
básicos, aqueles que não estão na parte especial da CLT, esses são o estatuto
fundamental do trabalhador.
E o que disser respeito a categorias específicas, a negociação coletiva tem que
ser o instrumento básico, porque patrões e empregados vão encontrar aquilo
que é o melhor para as duas categorias.
Muitas vezes no meu Tribunal, nós magistrados, nós juízes, não podemos nos
sentir acima de qualquer categoria e entender que aquilo que negociam, aquilo
que é o comum entre eles, que eles não sabem o que é melhor pra eles. Nós
juízes, Estado, vemos o que é melhor para a sociedade do que a própria
sociedade.
E quantas vezes não tivemos que reformular nossos posicionamentos porque
vieram patrões e empregados nos colocando situações bastante esdrúxulas do
que era um trabalho de gabinete, ou aqui numa assembleia ou num Tribunal
que está decidindo sem o perfeito conhecimento de causa.
Caso concreto: trabalhadores rodoviários. Uma ministra lá do meu Tribunal que
é de uma cidade próxima de Brasília, ao se deslocar a essa cidade, parou no
acostamento e ouviu o seguinte diálogo entre dois caminhoneiros: praticamente
xingando o patrão, xingando a Justiça porque os obrigava a parar no meio da
estrada porque tinha dado o tempo de trabalho que geraria a necessidade de
intervalo intrajornada de uma hora, quando o que eles queriam era chegar o
mais rápido possível para poderem ir mais cedo pra casa.
Hoje, o próprio Tribunal, o próprio Congresso, está repensando a questão do
intervalo mínimo intrajornada. Por isso entendo, já fui Ministério Público do
Trabalho, por 12 anos, já estou há 14 anos no Tribunal Superior do Trabalho,
depois de ver tantas demandas, tanto coletivas como individuais, em que, na
hora de aplicar a lei ao caso concreto, nós corremos o risco de muitas vezes
errar por não conhecer as condições específicas de trabalho. Penso que neste
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momento em que se fala, em que se comemora os 70 anos da CLT, como esse
estatuto protetivo do trabalhador, temos que repensá-lo como patamar
civilizatório mínimo de todo trabalhador. E aquilo que diga respeito a cada
categoria concreta, que nós deixemos, que nós demos liberdade a patrões e
empregados para que discutam na mesa de negociação quais são as melhores
condições de trabalho.
Se nós prestigiarmos, como a OIT prestigia, com duas convenções tratando do
prestigio à negociação coletiva, vamos ver que estaremos contribuindo muito
mais para harmonizar as relações de trabalho, muito mais para dar dinamismo
a nossa economia, muito mais para conseguir um desenvolvimento do nosso
país, muito mais para assegurar os direitos mínimos do trabalhador do que um
intervencionismo, quer estatal-legislativo, quer estatal-magistratura, que, muitas
vezes, fica anulando cláusulas e cláusulas de convenção coletiva, fazendo com
que os sindicatos passem a ser sindicatos infantilizados e irresponsáveis
porque negociam sabendo que vão negociar, mas contam com a Justiça para
anular
a cláusula que aceitaram, para eventualmente transigir direito,
recebendo uma compensação, ficam com a compensação e recebem aquilo
que transigiram.
Portanto, que este momento, nesta assembleia, seja um momento de reflexão
para que nós não sejamos retóricos de simplesmente defender uma legislação
ainda mais intervencionista, retóricos no sentido de defender os direitos do
trabalhador com soluções de papel, de pensar que, com uma canetada, eu vou
resolver os problemas trabalhistas. Não é nem canetada de legislador nem
canetada de juiz que resolve os problemas trabalhistas.
Não se cria emprego. O Ministério do Trabalho e Emprego não cria emprego
por decreto. Ou a economia cresce, os patrões e empregados se entendem, se
harmonizam, ou nós não vamos conseguir esse desidério.
Por isso, eu concluo essas palavras lembrando que nós [estou diante de vários
colegas magistrados], que nós, juízes do trabalho, temos duas vocações. Uma:
a vocação de conciliadores.
A nossa vocação inicial é de conciliar, e aqui eu louvo a Justiça do Trabalho da
19ª região, de Alagoas, como a justiça que mais concilia em todo o Brasil. São
mais de 50% das ações trabalhistas que entram neste Estado, que pelo
trabalho denodado, pelo esforço dos magistrados de 1ª instancia, não uma
decisão que agrada 50% da clientela, um sai ganhando e o outro sai perdendo,
mas os dois saem satisfeitos, porque foi uma solução de consenso levada para
os magistrados trabalhistas.
Pois bem, a primeira vocação nossa é essa, de conciliadores. Mas a segunda
vocação nossa como magistrados do trabalho, que decorre dessa de
conciliadores, é que nós, nas nossas decisões, nas nossas sentenças, temos
que pensar que fazer justiça não é dar tudo para o trabalhador, e sempre
porque ele pediu, e porque, em princípio, ele tem razão.
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Ou então, tentar preservar a empresa a todo custo porque é a galinha dos ovos
de ouro e porque a empresa e o empregador são o grande fator de
desenvolvimento.
Não podemos ser ideológicos como magistrados. Por que digo isso? Porque o
juiz do trabalho deve aplicar imparcialmente uma legislação que é parcial, que
é protetiva. E isso exige realmente um senso de oportunidade, uma sabedoria,
porque, no fundo, é ver, quase como Salomão, a cada momento, qual seria a
decisão, a solução que comporia o conflito social, quer individual, quer coletivo,
e não soluções que acirram ainda mais o conflito.
Conseguir harmonizar as relações de trabalho, as relações sociais, essa é a
finalidade da justiça. Lá no TST nós temos a nossa bandeira com o dístico que
é uma frase do profeta Isaías: Opus Justice Pax. A obra da justiça é a paz, a
nossa vocação é de pacificadores sociais e nós só conseguiremos pacificar a
sociedade e patrões e empregados se percebermos que ambos têm as suas
expectativas, os seus anseios, têm os seus pontos fracos, os seus pontos
fortes.
Nós temos que aproximar patrões e empregados, conseguindo, ao interpretar a
legislação trabalhista e aplicá-la, a solução que em cada momento componha
aquele conflito. Só assim conseguiremos contribuir efetivamente, ao refletir
sobre os 70 anos da CLT, para um Brasil melhor, para um mundo do trabalho
melhor, para a felicidade de todos nós.
Digo sempre que o juiz do trabalho, se ele não tiver em paz consigo mesmo e
não souber criar um ambiente de trabalho bom no seu gabinete, no seu
tribunal, na sua vara, como ele vai consertar a casa do outro? Para isso nós
precisamos estar conscientes das bases da nossa CLT, que foi aquela
encíclica de 1891 que parte do princípio de que nenhum empregador é um
explorador e nenhum empregado é um indolente, que só quer o direito, e o
outro que só quer explorar.
Ambos se unem e é essa a ideia para o desenvolvimento do trabalho com uma
produção eficiente. Se nós aproveitarmos este momento, nesta Assembleia,
para fazer esta reflexão dos 70 anos da CLT, nós teremos contribuído para
uma felicidade maior da nossa pátria.
Muito obrigado a todos.
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Pronunciamento Ministro Ives Gandra Martins Filho