UNIVERSIDADE DE MARÍLIA GLAUCO LUBACHESKI DE AGUIAR TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL E ITERVEÇÃO ECOÔMICA: UMA AÁLISE COCORRECIAL DOS COVÊIOS ITERESTADUAIS DE ICMS E DO SIMPLES ACIOAL MARÍLIA – SP 2008 GLAUCO LUBACHESKI DE AGUIAR TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL E ITERVEÇÃO ECOÔMICA: UMA AÁLISE COCORRECIAL DOS COVÊIOS ITERESTADUAIS DE ICMS E DO SIMPLES ACIOAL Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília, como exigência parcial para a obtenção do grau de Mestre em Direito, sob orientação da Profª. Drª. Maria de Fátima Ribeiro. MARÍLIA – SP 2008 GLAUCO LUBACHESKI DE AGUIAR TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL E ITERVEÇÃO ECOÔMICA: UMA AÁLISE COCORRECIAL DOS COVÊIOS ITERESTADUAIS DE ICMS E DO SIMPLES ACIOAL Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília, área de concentração Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social, sob orientação da Profª. Drª. Maria de Fátima Ribeiro. Aprovado pela Banca Examinadora em 31/10/2008 __________________________________________ Profª. Drª. Maria de Fátima Ribeiro Orientadora __________________________________________ Profª. Drª. Marlene Kempfer Bassoli __________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Henrique Lopes Figueiredo Este trabalho é dedicado aos meus pais, Jaime e Elisabete, pelo incentivo e apoio dispensado desde sempre, incondicionalmente. Dedico, ainda, a Susu, meu amor, pela paciência, por entender que o tempo que lhe foi roubado e os finais de semana perdidos não foram em vão, pois tinham um objetivo maior. E também por acordar todas as madrugadas, sem exceção, para preparar as coisas de viagem, além de viajar comigo, em pensamento, ao longo dos dois anos do curso. Ao Pugo, na esperança de que, antes de tudo, sirva de inspiração para que alcance seus objetivos. Como os grandes objetivos não se alcançam sozinho, é imprescindível agradecer, de coração, àqueles que ajudaram diretamente na realização deste sonho: Em primeiro lugar, meus sinceros agradecimentos a Universidade Católica Dom Bosco e a UNIDERP, através da Fundação Manoel de Barros, pelo apoio financeiro dispensado mediante a bolsa de estudos. Sem isso, não teria sido possível esta realização. Especial agradecimento à Juliana Medida, companheira de viagem nestes dois anos e grande amiga. Sem ela, com absoluta certeza, não teria sido possível chegar ao final. Merece menção duplamente especial e diferenciada a Profa. Dra. Maria de Fátima Ribeiro, pela orientação precisa e inestimável, sempre provocando novas idéias e novos pontos de vista, de modo que, sem isto, este trabalho não teria se materializado. E também por ter oportunizado a realização de outro sonho: ter um livro publicado. Por isto a menção especialíssima. Ao Dr. Leonardo Furtado Loubet, advogado tributarista, professor e amigo, o grande responsável, em verdade, pelo direcionamento empreendido a este trabalho, bem como incentivador e debatedor de primeira hora. Aos colegas de escritório, Dr. Fábio Alves Monteiro e Dr. Evandro Silva Barros, que sempre supriram minha ausência nas lides da advocacia, permitindo, assim, que este Mestrado pudesse se realizar tranqüilamente, sem sobressaltos. A Suzane Ribeiro Vismara – a Susu – que mais do que me apoiar e ultrapassar junto comigo este obstáculo, ainda contribuiu efetivamente para a realização desta dissertação, formatando-a e organizando-a. Por fim, inolvidável a menção aos colegas de Mestrado pelos vários e prazerosos momentos, intelectual e festivo, pessoal e profissional, cuja convivência ao longo do curso resultou em grandes amizades. Os limites da minha linguagem significam os limites do meu mundo. (Ludwig Wittgenstein) TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL E ITERVEÇÃO ECOÔMICA: UMA AÁLISE COCORRECIAL DOS COVÊIOS ITERESTADUAIS DE ICMS E DO SIMPLES ACIOAL Resumo: As normas tributárias possuem finalidades diversas. Por vezes, elas objetivam arrecadar dinheiro aos cofres públicos, o que significa o fim fiscal da tributação; outras vezes elas visam servir como instrumento de intervenção econômica, revelando sua finalidade extrafiscal. Quando se concretizar este fim extrafiscal, e ele for preponderante na norma jurídica tributária, então isto influirá diretamente na determinação do regime jurídico aplicável, sujeitando-a não ao regime tributário ou ao regime econômico, mas a ambos. Em razão disto, sempre que uma norma tributária, qualquer que seja ela, se enquadrar no modelo extrafiscal com fim de intervenção econômica, sua edição haverá, necessariamente, de observar os princípios e regras de ambos os subsistemas normativos, isto é, sujeitar-se-á às disposições constitucionais contidas nos artigos 145 a 156 e nos artigos 170 a 174, que fixam, respectivamente, os capítulos tributário e econômico no texto da Constituição Federal de 1988. Em razão disto, o deslinde do tema depende de uma análise sistemática. Significa que, muito embora instrumentos eminentemente tributários, os convênios interestaduais em matéria de ICMS e o Simples Nacional caracterizam-se como normas tributárias extrafiscais com finalidade interventiva econômica e, portanto, sujeitam-se tanto ao regime jurídico tributário como econômico. Por conseqüência, abre-se a possibilidade de se realizar uma análise destes mecanismos tributários sob a ótica concorrencial, isto é, sob a perspectiva do direito econômico e do princípio da livre concorrência. Enfim, esta idéia caracteriza um novo instrumental prático a viabilizar discussões jurídicas que envolvam a problemática relativa ao Simples Nacional e aos convênios interestaduais em matéria de ICMS. Palavras-Chaves: tributação extrafiscal; intervenção econômica; concorrência. EXTRAFISCAL TAXATIO AD ECOOMIC ITERVETIO : A COMPETITIOAL AALYSIS OF THE ICMS ITERSTATE AGREEMETS AD ATIOAL SIMPLE TAX Abstract: Tax norms have various purposes. At times they aim to collect money for the government , which is the fiscal goal of taxation; at other times they aim to serve as an instrument of economic intervention revealing its extra fiscal goal. When this fiscal aim becomes concrete and preponderant in the juridical tax norm , it will directly influence the determination of the applicable juridical regime and it will be subject not only to either the tax or the economic regime, but to both. Thus, when a tax norm , whatever it is , fits the extra fiscal model with an economic intervention goal , its edition will necessarily have to observe principles and rules of both normative subsystems . That is , it will be subject to constitutional dispositions included in the articles 145 to 156 and in the articles 170 to 174 which respectively determine the tax and economic chapters in the text of the Federal Constitution of 1988. Therefore , the solution to matters related to the theme depends on systematic analysis . This means that even though they are eminently tax instruments, the interstate agreements concerning the ICMS and the National Simple tax are characterized as extra fiscal tax norms with an economic interventional goal and as such are subject to both the juridical tax regime and the economic regime. As a consequence, there is a possibility to perform an analysis of these taxation mechanisms from a competitional perspective , that is , through economic law and the principle of free competition. Furthermore , this idea reflects a new practical instrument to ensure the viability of juridical discussions involving issues related to the National Simple tax and the interstate agreements concerning the ICMS. Keywords: extra fiscal taxation ; economic intervention ; competition. SUMÁRIO ITRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11 1 O SISTEMA JURÍDICO-POSITIVO BRASILEIRO ..................................................... 16 1.1 O CONCEITO DE SISTEMA JURÍDICO E A PLURIVOCIDADE DA EXPRESSÃO . 17 1.2 O SISTEMA JURÍDICO COMO SISTEMA DO DIREITO POSITIVO .......................... 22 1.3 AS UNIDADES COMPOSITIVAS DO SISTEMA DO DIREITO POSITIVO: AS NORMAS JURÍDICAS............................................................................................................ 25 1.3.1 O conceito de norma e sua distinção em relação ao texto do direito positivo................. 26 1.3.2 As espécies normativas e o papel do intérprete do direito na sua construção ................. 29 1.4 SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO BRASILEIRO E A ORDEM JURÍDICO-ECONÔMICA ...................................................................................................... 34 1.4.1 Aproximação interdisciplinar entre Direito Tributário e Direito Econômico ................. 36 1.4.2 Sistema Tributário Nacional ou Sistema Constitucional Tributário: diferença? ............. 40 1.4.3 A Ordem Econômica ....................................................................................................... 42 1.5 OS PRINCÍPIOS INSTRUMENTAIS DE INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO . 45 1.5.1 O princípio da supremacia da Constituição ..................................................................... 47 1.5.2 O princípio da unidade da Constituição .......................................................................... 48 1.5.3 O princípio da interpretação conforme a Constituição .................................................... 50 2 O PRICÍPIO COSTITUCIOAL DA LIVRE COCORRÊCIA COMO GARATE DA ORDEM ECOÔMICA ............................................................................ 53 2.1 A CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 .......... 56 2.1.1 Constituição Econômica: noção, espécies e as normas programáticas ........................... 58 2.1.2 A finalidade da Constituição Econômica: desenvolvimento socioeconômico ................ 64 2.1.3 Os princípios gerais da atividade econômica e o papel do Estado na ordem constitucional econômica de 1988............................................................................................ 68 2.2 O PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA COMO VETOR DA ATUAÇÃO INTERVENTIVA ECONÔMICA DO ESTADO .................................................................... 74 2.2.1 O significado do princípio constitucional econômico da livre concorrência .................. 78 2.2.2 A fragilidade da liberdade de concorrência e a necessária intervenção estatal no intuito de garanti-la .............................................................................................................................. 82 2.3 A ATUAÇÃO ESTATAL ECONÔMICA E DESENVOLVIMENTO: INTERVENÇÃO DIRETA E INDIRETA ............................................................................................................ 83 2.3.1 O Estado como agente regulador das atividades econômicas: compreensão do Art. 174 da Constituição de 1988 ........................................................................................................... 86 2.3.2 Normas de direção e normas indutoras: formas de intervenção indireta do Estado sobre a economia................................................................................................................................... 92 2.3.3 As normas tributárias indutoras como mecanismo de intervenção do Estado sobre o domínio econômico .................................................................................................................. 94 10 3 O REGIME JURÍDICO-TRIBUTÁRIO DA TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL .......... 98 3.1 OS FINS DA TRIBUTAÇÃO: FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE ................. 102 3.2 COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA: AS NORMAS CONSTITUCIONAIS QUE DELINEIAM A COMPETÊNCIA IMPOSITIVA DAS ENTIDADES FEDERATIVAS .... 107 3.2.1 Normas constitucionais positivas: regras atributivas de competência........................... 111 3.2.2 Normas constitucionais negativas: os princípios jurídicos e as imunidades tributárias 113 3.2.3 Os princípios constitucionais tributários e a finalidade extrafiscal da tributação ......... 115 3.2.3.1 O princípio da estrita legalidade tributária e a tributação extrafiscal ...................... 116 3.2.3.2 Irretroatividade e normas tributárias extrafiscais ..................................................... 121 3.2.3.3 Anterioridade tributária e extrafiscalidade................................................................ 124 3.2.3.4 Extrafiscalidade e o princípio da igualdade tributária .............................................. 127 3.2.3.5 Extrafiscalidade e o dever de proporcionalidade ...................................................... 132 3.2.3.6 Tributação extrafiscal e o princípio da capacidade contributiva .............................. 134 3.3 A COMPETÊNCIA REGULADORA E A TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL ............... 136 3.4 INCENTIVOS FISCAIS: MECANISMOS JURÍDICOS DE MANIFESTAÇÃO DA TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL .......................................................................................... 140 4 TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL: UMA AÁLISE COCORRECIAL DOS COVÊIOS ITERESTADUAIS DE ICMS E DO SIMPLES ACIOAL ............. 145 4.1 A PERSPECTIVA DA CONCORRÊNCIA NOS CONVÊNIOS DE ICMS FIRMADOS ENTRE OS ESTADOS FEDERADOS .................................................................................. 147 4.1.1 As disposições normativas relativas à concessão de incentivos fiscais em matéria de ICMS: o Art. 155, §2º, XII, “g” da Constituição Federal de 1988, a Lei Complementar n. 24/75 e a necessidade dos convênios interestaduais............................................................... 149 4.1.1.1 A primeira fase no processo legislativo de concessão de incentivos fiscais – a celebração dos convênios interestaduais: sua definição, natureza jurídica e finalidade ...... 151 4.1.1.2 A segunda fase no processo legislativo de concessão de incentivos fiscais de ICMS – a ratificação dos convênios celebrados: órgão competente e meio legítimo ............................ 153 4.1.1.3 Considerações finais sobre a concessão dos incentivos fiscais de ICMS – alguns pontos da Lei Complementar n. 24/75 ................................................................................... 160 4.1.2 Os convênios interestaduais em matéria de ICMS e o princípio federativo.................. 164 4.1.3 Os convênios interestaduais em matéria de ICMS e a competência tributária .............. 173 4.1.4 Os convênios interestaduais em matéria de ICMS e o princípio da livre concorrência 174 4.2 O SIMPLES NACIONAL NA PERSPECTIVA DA ORDEM ECONÔMICA E A GARANTIA DA LIVRE CONCORRÊNCIA ....................................................................... 181 4.2.1 O Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte e o Simples Nacional: há diferença? .......................................................................................................... 183 4.2.2 Os fundamentos constitucionais da Lei Complementar n. 123/2006 ............................ 186 4.2.2.1 As previsões do Texto Constitucional Original: o Art. 170, IX e o Art. 179 .............. 186 4.2.2.2 A Emenda Constitucional n. 42 de 2003 e a inserção do Art. 37, XXII e do Art. 146, III, “d”, à Constituição de 1988............................................................................................. 189 4.2.3 As inovações jurídicas promovidas pela Lei Complementar n. 123 de 2006: alguns pontos relevantes .................................................................................................................... 192 4.2.3.1 O alcance do Art. 1º da Lei Complementar n. 123 de 2006 ....................................... 193 4.2.3.2 Breve exame acerca da definição de microempresa e empresa de pequeno porte .... 198 11 4.2.4 O Simples Nacional visto a partir da Ordem Econômica: intervenção indireta do Estado sobre o domínio econômico, extrafiscalidade e equilíbrio da concorrência........................... 201 SÍTESE COCLUSIVA ................................................................................................... 208 REFERÊCIAS ................................................................................................................... 214 11 ITRODUÇÃO A Constituição Federal de 1988 positivou, em títulos diferentes – respectivamente, Título VI e Título VII –, toda a disciplina relativa à Tributação e à Ordem Econômica. O estudo a respeito das normas jurídicas tributárias e econômicas é efetuado de forma isolada pela doutrina, especialmente em virtude de suas características e finalidades. Na prática dos Tribunais não é diferente. Casos concretos que envolvam questões constitucionais tributárias são analisados apenas da perspectiva da tributação, prescindindo dos seus concretos efeitos sobre o campo do direito econômico; os temas jurídicoeconômicos, por sua vez, são submetidos tão-somente à observância dos princípios gerais da atividade econômica, sem se perquirir a respeito das conseqüências tributárias porventura existentes ou da natureza tributária das regras que tenham finalidade interventiva econômica. Não há, em verdade, uma análise interdisciplinar destas matérias. A proposta deste estudo, assim, é de articulação entre a Tributação e a Ordem Econômica. Precisamente, pretende-se demonstrar como o emprego de normas jurídicas tributárias reflete diretamente sobre a concorrência, razão pela qual devem ser levados em conta os princípios e regras constitucionais econômicos quando da análise jurídica da tributação. Óbvio, porém, que nem todas as normas tributárias sujeitam-se ao regime jurídico econômico, mas essencialmente aquelas que detém finalidade extrafiscal. A fim de delimitar o alcance do trabalho e de poder analisar concretos mecanismos tributários com reflexos econômicos, optou-se, para este estudo e por motivos de relevância prática, pela escolha dos convênios interestaduais de ICMS e do Simples Nacional. No primeiro caso, os convênios interestaduais, além de meio para impedir a “Guerra Fiscal” entre os Estados-membros e assim garantir o pacto federativo, são normas tributárias de natureza extrafiscal com reflexos econômicos sobre a concorrência, o que justifica sua escolha. Do mesmo modo o Simples Nacional, instituído pela Lei Complementar n. 123, de 14 de dezembro de 2006. O regime especial unificado de arrecadação de tributos e contribuições devidos pelas microempresas e empresas de pequeno porte é, além de instrumento tributário simplificador, norma jurídica com clara finalidade intervencionista econômica, produzindo reflexos diretos sobre a concorrência. 12 A fundamentação deste trabalho sustenta-se, em primeiro lugar, na característica sistêmica que a ordem jurídico-positiva possui. Igualmente imprescindível tomar em conta a unidade e a supremacia constitucional, e a necessidade de interpretação que leve em consideração o todo sistêmico, de modo que as normas constitucionais sejam privilegiadas e concretizadas ao máximo, implicando na sua efetividade social. Por conseguinte, esta opção de se tomar como base o ordenamento jurídico-positivo importa em afirmar sua unidade e ordenação, ou seja, todas as normas que o compõe formam o todo, que é coeso, ordenado e unitário. Uma vez que a ordem jurídico-normativa é constituída por normas jurídicas, então é relevante fixar sua compreensão e também a distinção entre as normas jurídicas e os textos do direito positivo. Em verdade, constrói-se a norma a partir do texto, que nada mais é do que o ponto de partida para a construção normativa. Deste modo, a afirmação de ser uma norma regra ou princípio, não depende exclusivamente do enunciado normativo-positivo, mas, entre outras coisas, de sua estrutura, de sua finalidade e de diversos outros fatores, inclusive as circunstâncias fáticas e os valores que lhes axiologicmaente sobrejacentes. Distinguindo-se a norma do texto, a circunstância de este ou aquele comando estar posicionado dentro do Texto Constitucional neste ou naquele Título é irrelevante. Em verdade, em razão da característica sistêmica do ordenamento jurídico, as normas jurídicas que o compõe, das mais diversas naturezas, irremediavelmente interligam-se em algum ponto, já que construídas com base nos mais diversos textos. No que tange ao direito tributário e ao direito econômico, este liame estabelece-se no plano da intervenção estatal sobre o domínio econômico, porquanto a norma tributária tem sido o instrumento de que mais tem se valido o Estado para exercer sua função de agente normativo e regulador das atividades econômicas, ou seja, tem sido utilizada como meio a realização daquela finalidade econômica constitucionalmente definida. Em virtude da existência de inúmeras disposições constitucionais com conteúdo econômico, afirma-se haver, na Constituição de 1988, uma “Constituição Econômica”, a qual, composta por normas programáticas, tem uma finalidade precípua: o desenvolvimento nacional. Para realizá-lo, o Estado intervirá como agente normativo e regulador das atividades econômicas, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, conforme Art. 174 da Constituição Federal de 1988. 13 Toda a Ordem Econômica, ainda, deve observar os princípios econômicos previstos no Art. 170 da Constituição Federal. Ressaltando que inclusive a atuação interventiva estatal deve observância a eles. Por isto, os princípios constitucionais econômicos assumem função destacada no processo de intervenção do Estado sobre o domínio econômico, já que informam tanto a atuação do Estado como do particular nesta senda. Dentre os princípios constitucionais informadores da Ordem Econômica, o princípio da livre concorrência é o mais relevante ao desenvolvimento desta investigação científica, pois limita não apenas a atuação interventiva do Estado sobre o domínio econômico, como também serve de vetor ao exercício das atividades econômicas pelos particulares. O princípio da livre concorrência exerce, assim, atuação que se pode denominar de “bivetorial”. Ele ainda consiste em bem jurídico a ser protegido; caracteriza-se como instrumento de garantia dos valores sociais da livre iniciativa e do trabalho; e, em ultima ratio, serve de meio de proteção e promoção do desenvolvimento nacional, enquanto objetivo fundamental. Por outro lado, inolvidável que a intervenção econômica estatal se instrumentaliza mediante a expedição de normas jurídicas das mais diversas naturezas. Ou seja, para que os objetivos traçados constitucionalmente sejam concretamente garantidos e efetivados, é imprescindível que o Estado fixe as políticas públicas necessárias ao desenvolvimento e que isto se implemente pela via da disciplina jurídica. As normas jurídicas tributárias, neste contexto, detêm grande importância. Entretanto, o foco recai sobre aquelas que tenham por finalidade a efetivação da intervenção econômica estatal, trabalhando com vistas a influenciar o comportamento econômico dos agentes do mercado com direção à realização dos fins constitucionais econômicos, isto é, aquela detentora de finalidade extrafiscal. Por esta razão, afirma-se que as normas tributárias extrafiscais, conquanto formalmente tributárias, detêm conteúdo jurídico-econômico, o que revela sua submissão a este regime jurídico. Significa trazer para a discussão jurídica um dado que tem sido desprezado pela doutrina tributária em geral: a questão da finalidade da norma. A partir do momento que a norma jurídica tributária passa a servir de meio de intervenção econômica, empregada com o intuito de realização dos fins constitucionalmente enumerados, este detalhe passa a ser pertinente para o debate jurídico, em especial para a definição do regime jurídico aplicável. 14 Em termos semióticos: para uma adequada análise das normas tributárias extrafiscais, importa a perspectiva pragmática, ou seja, a relação das normas com seus destinatários. Por conseguinte, possuindo conteúdo econômico, as normas tributárias extrafiscais, também nomeadas de normas indutoras, se sujeitam ao regime jurídico econômico, devendo observância às suas regras e princípios, seja na perspectiva de sua edição como aplicação. Por outro lado, as normas indutoras, antes de ser indutora, é norma jurídica de natureza tributária, o que é suficiente para determinar sua inclusão, também, no regime jurídico tributário. Esta qualidade dualista de que se revestem as normas tributárias indutoras permite, assim, uma análise tanto sob a ótica do regime tributário como do econômico, na medida em que é o ponto de intersecção entre ambos. Assim, elas posicionam-se tanto na sistemática da intervenção econômica estatal como dentro da disciplina jurídica tributária. Em especial, este tipo de exame prestigia a integralidade da estrutura do sistema jurídico, notadamente as regras constitucionais que conferem direitos individuais aos cidadãos, bem assim os princípios informadores da ordem econômica. Deste modo, submetendo-se a regimes jurídicos distintos, o problema que precisa ser resolvido reside na influência que a materialidade econômica ínsita à norma tributária extrafiscal produz sobre os princípios e regras definidores do regime tributário. Ou seja, devese demonstrar como o conteúdo econômico da norma indutora influência diretamente nas normas tributárias que definem, em termos gerais, a competência tributária, tanto no que se refere às normas atributivas de competência como aquelas limitativas desta atribuição. Enfim, a extrafiscalidade como finalidade da norma tributária pode importar em modificação de aplicação dos princípios constitucionais tributários. Em outros termos, a finalidade indutora da norma tributária projeta influxos jurídicos sobre a aplicação das normas gerais definidoras do regime tributário. Conquanto a finalidade normativa possa, por vezes, significar fatores externos ao ambiente jurídico e, assim, ser irrelevante para o estudo do direito, há situações em que o fim é um dado juridicamente relevante, e, por isto, deve ser considerado na análise científica. Este é o caso. Com estas idéias, o grande problema a se responder: é possível promover uma análise dos instrumentos tributários escolhidos – os convênios interestaduais em matéria de incentivos fiscais de ICMS e o Simples Nacional – sob a ótica econômica, fundamentalmente da perspectiva concorrencial? 15 Ora, a adequada manipulação do instrumental tributário, como se sabe, tem forte conseqüências sociais, da perspectiva pragmática. Vale dizer, a implementação de intervenção econômica pela via da manipulação tributária detém eficácia social acentuada. Entretanto, mesmo que se observem as formalidades fixadas pelo regime jurídico tributário, ainda assim tentar-se-á demonstrar que estes mecanismos atingem diretamente a concorrência. Para se chegar ao objetivo proposto e demonstrar a solidez da idéia, o ponto de partida será as previsões positivadas tanto pelo Texto Constitucional como pela legislação infraconstitucional, quando relacionada ao tema e interessante a desvendá-lo. A sustentação ainda fundar-se-á em análise doutrinária, sempre tomando em conta a lição de que o intérprete do direito não apenas constrói, mas reconstrói as normas jurídicas, já que é ele quem atribui sentido aos textos positivados. Além disto, apontar-se-á, sempre que necessário, a jurisprudência constitucional brasileira sobre o tema e circunstâncias sob análise. Assim, as hipóteses que se apresentam neste estudo são simples: É possível que normas tributárias sujeitem-se ao regime jurídico econômico, além do regime tributário? São todas as normas tributárias que se sujeitarão ao regime jurídico econômico? A finalidade da norma tributária é fator jurídico relevante para a definição do regime jurídico aplicável? Respondidos estes problemas, que de resto fixam as idéias gerais sobre o tema, deve-se saber: os convênios interestaduais de ICMS e o Simples Nacional são normas extrafiscais? Estes instrumentos tributários devem se sujeitar aos princípios constitucionais econômicos? Sua aplicação tem reflexos sobre a concorrência? 16 1 O SISTEMA JURÍDICO-POSITIVO BRASILEIRO Enquanto objeto cultural integrante do sistema social, o Direito pode ser analisado a partir de diferentes aspectos e perspectivas; sua relação com outros sistemas sociais permite que se constitua em objeto de exame das mais diversas ciências: social, econômica, política, além, é claro, da própria Ciência Jurídica. Estando este estudo centralizado na área jurídica, e tendo em vista a pretensão de cientificidade que a ele se pretende imprimir, a escolha do método dogmático jurídico e a prédefinição do sistema jurídico positivo como ponto de partida revela a intenção de estudar o tema – Tributação e Concorrência – a partir da dimensão normativa destes institutos. Desta forma, elegido o ponto de partida no intuito de reduzir a complexidade do estudo, então como primeira providência a ser tomada, deve-se esclarecer o que se considera “sistema jurídico”, para o que aqui se pretende. Esta escolha, como primeiro passo neste trabalho, é imprescindível, pois, segundo Geraldo Ataliba, [...] o estudo de qualquer realidade – seja natural, seja cultural – quer em nível científico, quer didático, será mais proveitoso e seguro, se o agente é capaz de perceber e definir o sistema formado pelo objeto e aquele maior no qual este se insere. Se se trata de produto cultural, ainda que o esforço humano que o produziu não tenha sido consciente de elaborar um sistema, previamente deliberado neste sentido, deve procurá-lo e apreendê-lo o observador ou intérprete.1 (grifos do autor) Por isto que o autor, ao esclarecer a compreensão do termo “sistema”, afirma que: [...] o caráter orgânico das realidades componentes do mundo que nos cerca e o caráter lógico do pensamento humano conduzem o homem a abordar as realidades que pretende estudar, sob critérios unitários, de alta utilidade científica e conveniência pedagógica, em tentativa de reconhecimento coerente e harmônico da composição de diversos elementos em um todo unitário, integrado em uma realidade maior. A esta composição de elementos, sob perspectiva unitária, se denomina sistema.2 1 2 ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 4. Idem, ibidem, p. 4. 17 Deste modo, revela-se essencial conceituar “sistema jurídico” para fins de estabelecer adequadamente o ponto de partida deste estudo. 1.1 O CONCEITO DE SISTEMA JURÍDICO E A PLURIVOCIDADE DA EXPRESSÃO Conceituar sistema jurídico é algo que demanda algumas considerações iniciais, haja vista a plurivocidade da expressão. Afirmar que o termo possui mais de um sentido, em verdade, não chega a ser particularidade própria desta expressão, mas, ao contrário, é algo ínsito a maioria das palavras, como adverte Alf Ross: “La mayor parte de las palabras no tienen um campo de referencia único, sino dos o más, cada uno de ellos construido en la forma de una zona central a la que se añade un círculo de incertidumbre. Talas palabras son llamadas ambiguas”.3 O jusfilósofo dinamarquês esclarece que a ambigüidade das palavras decorre da indefinição do seu campo de referência, ou seja, o seu conteúdo semântico depende da escolha de um parâmetro certo e definido. Assim, enquanto indefinido o referencial a partir do qual elas (as palavras) serão compreendidas, subsistirá a ambigüidade. Contudo, pré-definido o ponto de referência, a utilização de qualquer expressão perde sua vaguidade, assumindo um sentido inequívoco. Luis Alberto Warat reforça a questão da vaguidade das palavras, mormente dos termos jurídicos. Ao tratar da linguagem do direito, o autor pontifica a lição de que mesmo que plurívoca a expressão, ela sempre possuirá uma significação de base, além de outras dependentes do contexto em que inseridas.4 Ou seja, valendo-se de outros termos, estabeleceu idêntico pensamento ao de Alf Ross, no sentido de que a superação da ambigüidade de uma expressão demanda a definição de um ponto de referência. A ambigüidade da expressão sistema jurídico, portanto, deve ser superada, a fim de se estabelecer o seu teor semântico. Para tanto, imperativo que se anote de modo indistinto, de início, em qual sentido ela será utilizada, a fim de estabelecer uma compreensão unívoca para a investigação científica ora desenvolvida. De toda sorte, a plurivocidade desta expressão tem que ver com duas circunstâncias: (i) a palavra “sistema” detém grande quantidade de 3 ROSS, Alf. Sobre el derecho y la justicia. 2. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1997, p. 150. Sobre significado de base e significado contextual, v. WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995, p. 65. 4 18 significações5; (ii) o problema da ambigüidade da expressão “sistema jurídico” decorre de sua utilização para significar dois objetos distintos, o que comprova a afirmação de Norberto Bobbio de que “[...] o termo ‘sistema’ é um daqueles termos de muitos significados, que cada um usa conforme suas próprias conveniências”.6 Se assim o é, para superar a plurivocidade do termo, valer-se-á desta expressão com um único significado. Para tanto, o primeiro expediente a ser usado deve indicar o sentido em que o vocábulo “sistema” é compreendido, eliminando todos os demais significados existentes. Ao depois, quando predicado pelo termo “jurídico”, essencial que seja apontado o significado que a expressão “sistema jurídico” receberá ao longo do texto, indicando a qual dos objetos normalmente significados por esta expressão se está referindo, a fim de superar, em definitivo, a equivocidade da expressão. A idéia de que a palavra “sistema” possui várias significações resta bem exemplificada por Cristiano Carvalho, que ao estudar o sistema jurídico e a inter-relação entre direito, economia e tributação, apresenta quatro significações para este vocábulo: (i) o conjunto de partes coordenadas entre si; (ii) a reunião de proposições, de princípios coordenados de molde a formarem um todo científico ou um corpo de doutrina; (iii) a reunião, combinação de partes reunidas para concorrerem para um certo resultado; (iv) o método ou a combinação de meios de processo destinados a produzirem um certo resultado.7 Em outra versão sobre a compreensão de “sistema”, Tércio Sampaio Ferraz Jr. chama a atenção para a idéia de limite que dele resulta, isto é, todo sistema supõe a demarcação de um quadro, uma moldura que permite identificar o que está dentro, o que entra, o que sai e o que permanece fora. Em conseqüência, o autor conclui afirmando que o sistema caracteriza-se como um complexo composto por um repertório e por uma estrutura, consistindo aquele no conjunto de elementos, e esta no plexo de regras que determinam as relações entre aqueles elementos.8 5 Apenas o Dicionário Aurélio traz nada menos do que 22 (vinte e duas) acepções distintas para significar o vocábulo “sistema”. 6 BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. Brasília: UnB, 1999, p. 76. 7 CARVALHO, Cristiano. Teoria do Sistema Jurídico: direito, economia e tributação. São Paulo: Quartier Latin, 2005, p. 38. 8 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 176. 19 Sendo um complexo dual formado por repertório e estrutura, é possível estudar o sistema isolando-se cada uma das partes que o compõe. Assim, significa que o estudo do sistema pode abordar tanto os elementos que o compõe, isto é, o seu repertório, como também o conjunto das regras que disciplinam a dinâmica daqueles elementos, a sua estrutura. O vocábulo “sistema”, ainda que detentor de sem número de significados, possui um teor semântico com o qual há concordância doutrinária, qual seja, de que ele se constitui na reunião ordenada e harmônica das diversas partes de um todo formando um complexo unitário, onde a relação entre os elementos e destes com o todo é coesa. Neste sentido, a lição de Paulo de Barros Carvalho, que entende sistema como [...] o objeto formado de porções que se vinculam debaixo de um princípio unitário ou como a composição de partes orientadas por um vetor comum. Onde houver um conjunto de elementos relacionados entre si e aglutinados perante uma referência determinada, teremos a noção fundamental de sistema.9 Claus Wilhelm-Canaris também salienta a ordenação e a unidade como características que acompanham o conceito geral de sistema, seja este sistema o normativo (denominado como sistema objetivo) como o sistema das proposições doutrinárias (denominado de sistema científico). Esta conclusão é alcançada mediante minucioso estudo empreendido acerca do tema, e após a exposição das distintas conceituações que o termo “sistema” recebeu na evolução da ciência do direito.10 Enfim, pode-se sintetizar a compreensão de “sistema”, fixando-se aquela acepção de base outrora referida, na enfática afirmação de Juan Manuel Teran: “sistema é um conjunto ordenado de elementos segundo um ponto de vista unitário”.11 Neste aspecto, o sistema jurídico é, em primeiro lugar, um complexo ordenado de normas jurídicas orientado por princípio unificador. Entretanto, dizer categoricamente quais normas jurídicas que se caracterizam como elementos integrantes do sistema jurídico e, além disso, indicar o que faz a vez de princípio unificador depende de mais algumas considerações. 9 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 40. 10 CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3. ed. Tradução de Antônio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 09-13. 11 Apud CHIESA, Clélio. CHIESA, Clélio. ICMS – Sistema Constitucional Tributário: algumas inconstitucionalidades da LC 87/96. São Paulo: LTr, 1997, p. 19. 20 Um sistema jurídico não é formado pela mera junção de normas de forma desordenada, mas, sim, por decorrência da reunião coesa e harmônica entre elas, ou melhor, das características de ordenação e unidade que permeia todo e qualquer sistema. Ademais, já pontificara Geraldo Ataliba, com suas sempre precisas lições: “os sistemas não são formados pela soma de seus elementos, mas pela conjugação harmônica deles. Os sistemas normativos são formados pela composição hierárquica e sistemática das normas que o compõe”.12 Norberto Bobbio, ao tratar do tema, toma o ordenamento jurídico como um sistema. Para aclarar sua percepção, ele afirma que a compreensão sistemática da ordem jurídica pode ser alcançada por três diferentes sentidos: (i) em primeiro lugar, porque todos os elementos que compõe um dado ordenamento derivam, por corolário lógico, de alguns princípios gerais; (ii) secundariamente, por conta da possível ordenação de conteúdo de cada qual das normas que a compõe (a ordem jurídica), resultando em divisões e classificações gerais a partir das matérias contidas naquelas normas; e (iii) por fim, em razão da impossibilidade de coexistência de normas incompatíveis no seu bojo.13 Nesta terceira acepção tomada por Bobbio para significar o ordenamento jurídico como um sistema, nota-se a clara influência kelseniana subjacente à idéia desenvolvida, na medida em que afirma não poder existir simultaneamente normas incompatíveis entre si, o que equivale a asseverar a formação do ordenamento pelo conjunto das normas jurídicas válidas. Por conseqüência, a incompatibilidade implica na impertinência da norma jurídica em relação ao sistema, sendo, portanto, inválida. Mais do que isto, ao afirmar a impossibilidade de coexistência de normas jurídicas incompatíveis no bojo da ordem jurídica, há a indicação clara de que o relacionamento entre elas é de subordinação (há uma relação de hierarquia) e de coordenação, e, por isto mesmo, sua configuração ordenada e unitária, ou seja, um conjunto organizado de elementos (normas jurídicas) e não um amontoado caótico e desarmônico. Após breve análise acerca das acepções conferidas ao termo sistema, também André Elali destaca que o direito pode ser estudado como um sistema, haja vista possuir as duas características que acompanham este conceito, quais sejam: ordenação e unidade. Por isto que, segundo considerações do autor: 12 ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 20. BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos. 10 ed. Brasília: UnB, 1999, p. 77-81. 13 21 A partir de qualquer das significações postas, constata-se que o direito, na acepção de um conjunto de várias partes, estruturadas de forma harmônica e com um mesmo objetivo, pode ser estudado enquanto sistema. Materializase, nesse diapasão, através de normas jurídicas. Assim, ter-se-á sistema onde houver norma jurídica, sendo esta uma unidade daquele.14 Inolvidável, no entanto, que a expressão “sistema jurídico” tem sido tomada para significar tanto o sistema do direito positivo como o sistema da ciência do direito. Isto tem causado problemas de compreensão no que se refere ao emprego da expressão, cujos resultados são a pouca clareza na mensagem transmitida, como também na dificuldade de compreensão pelo seu destinatário, pois esta terminologia tem sido empregada para significar dois planos de linguagem distintos, duas realidades diversas. O sistema do direito positivo situa-se no plano do dever-ser; sua linguagem é prescritiva; a valência de suas proposições é figurada pelo binômio validade/invalidade; a finalidade dos elementos que o compõe objetiva regular materialmente as condutas intersubjetivas de seus utentes. Por outro lado, o sistema da ciência do direito localiza-se no plano ontológico; a linguagem que o permeia é descritiva; a valoração de suas proposições verte-se em verdadeiras ou falsas, em razão das premissas e fundamentos adotados; e suas proposições objetivam apenas descrever o direito, como seu objeto, sem nele intervir. Isto significa, portanto, que “sistema jurídico” não é expressão apropriada a significar dois distintos objetos. Por isto, apesar das considerações anteriores, não se objetiva aprofundar a análise sobre o termo “sistema jurídico”, mas, sim, pretende-se evitar falácias que a contenda semântica relativa a esta expressão envolve, a fim de significar, de antemão, o sentido a ser emprestado, neste texto, a esta expressão. Enfim, como significação de base, esta terminologia é tomada como expressão designativa de sistema do direito positivo, isto é, como o conjunto composto por elementos normativos regidos por um critério unitário. Os elementos que o integra: as normas jurídicas válidas; o critério unificador: a norma hipotética fundamental.15 14 ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica: um exame da tributação como instrumento e regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora, 2007, p. 39. 15 Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, passim; e KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 161-163. 22 1.2 O SISTEMA JURÍDICO COMO SISTEMA DO DIREITO POSITIVO Tomado o sistema jurídico como sistema do direito positivo, então, pode-se afirmar, segundo Paulo de Barros Carvalho, que ele (o sistema do direito positivo) se constitui “[...] no conjunto de todas as normas jurídicas válidas, num determinado intervalo de tempo e sob específico espaço territorial, inter-relacionadas sintática e semanticamente, segundo um princípio unificador [...]”.16 Carlos Maximiliano, em sua conhecida obra acerca da hermenêutica e aplicação do direito, expressou sua percepção sistemática do direito positivo ao referir-se a sua totalidade orgânica e à ilicitude que resultaria da análise isolada apenas de parte das normas sem a consideração e concordância com as demais, corroborando, assim, a idéia de sistema que subjaz à ordem jurídica.17 Segundo ele, [...] o direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente, embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos operando em campos diversos. Cada preceito, portanto, é membro de um grande todo; por isso do exame em conjunto resulta bastante luz para o caso em apreço.18 Destas conceituações extraem-se que todas as normas jurídicas válidas constituem o sistema do direito posto, independentemente da hierarquia em que se encontre, vale dizer, desde aquelas situadas no plano constitucional até as de menor hierarquia, localizadas na base da pirâmide jurídica. Outra circunstância que se verifica nesta conceituação está na localização espaço-temporal deste “conjunto de normas jurídicas válidas”, ou seja, considerase apenas o direito objetivo presente no seio de certa sociedade, a ordem jurídica posta, isto é, “[...] o direito positivo considerado hic et nunc”.19 Ainda, se deduz deste conceito a existência dos vínculos que interligam as normas jurídicas que compõe o direito positivo, o que lhe confere unidade. Estas relações são verticais (subordinação, hierarquia) e horizontais (coordenação). 16 CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva, 1998, p. 45. 17 MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 159. 18 Idem, ibidem, p. 105. 19 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 13. 23 Estas ponderações revelam a configuração do sistema normativo exatamente como descrito por Tércio Sampaio Ferraz Jr., ou seja, um objeto formado por um repertório e por uma estrutura: as normas jurídicas válidas, o repertório; suas interligações mediante vínculos de subordinação e coordenação, a estrutura. Neste aspecto, deve-se consignar a afirmação peremptória do autor de que o sistema jurídico-positivo é formado não apenas por elementos normativos, mas também por unidades não-normativas que integram o repertório do sistema.20 Considerado desta forma, e tomando-se apenas o repertório como tema de esquadrinhamento neste momento, o sistema do direito positivo é um plexo composto por elementos vertidos em linguagem prescritiva, ou seja, suas proposições têm por escopo reger as condutas intersubjetivas, disciplinando-as. Vale dizer, portanto, que os elementos que compõem o repertório da ordem jurídica são sempre de caráter imperativo. Por conseguinte, constituindo-se em proposições prescritivas, as normas jurídicas somente podem ser cogitadas, em sua perspectiva jurídico-axiológica, se são válidas ou não. Assim, o sistema jurídico-normativo se afigura como uma pirâmide, escalonado hierarquicamente, onde as normas situadas nos degraus mais elevados da ordem jurídica conferem fundamento de validade às demais, surgindo, no seu ápice, a norma hipotética fundamental, como chamada por Hans Kelsen, a qual se presta a legitimar as normas constitucionais, e estas, conseqüentemente, a validar sintaticamente as restantes normas jurídicas, conferindo-lhes a unidade sistêmica.21 Esta concepção dogmática permite a visualização estática do sistema do direito positivo, ou seja, como se fosse possível congelar os elementos normativos – o repertório sistemático – em um dado instante. Tomada a premissa do sistema jurídico como o sistema do direito positivo, a afirmação quanto à possibilidade de vislumbrá-lo como um sistema estático não contradiz a idéia de dinamicidade que caracteriza a ordem jurídica vista sob a tese kelseniana, adotada neste trabalho. Ao contrário, quer significar tão-somente uma análise a partir de um plano lingüístico da sintaxe, como exposto na teoria jurídica de Tércio Sampaio Ferraz Júnior.22 20 Sobre este assunto, cf. FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 177-178. 21 Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6.ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, passim. 22 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. ob. cit., p. 177-178. 24 A teoria proposta por Kelsen concebe a ordem jurídico-positiva como um sistema dinâmico de normas, porque é o próprio sistema, a partir da norma fundamental, quem dita o processo de criação e anulação das normas.23 Tércio Sampaio Ferraz Júnior esclarece de modo preciso o motivo da qualidade dinâmica da ordem jurídica: isto ocorre porque ela “[...] capta as normas dentro de um processo de contínua transformação [...]”.24 Esta perspectiva de análise do fenômeno normativo permite dizer se uma norma é válida ou não, ou seja, é preciso vislumbrá-la dentro do conjunto normativo. Imprescindível, portanto, saber se ela é pertinente ao sistema jurídico no qual ela foi colocada. Para tanto, uma vez que as normas são criadas, extintas, alteradas ou mesmo substituídas, então a visão dinâmica do sistema é necessária para explicar os fenômenos. Entretanto, deve-se recordar que o ordenamento jurídico consiste em um sistema dinâmico, idéia que é sobremaneira importante, à medida que permite o estudo das normas jurídicas em suas inter-relações com o próprio sistema jurídico no qual está posta, com seus destinatários e também quanto aos efeitos dela sobre estes. Em termos outros, estas idéias comportam o estudo do sistema jurídico, e principalmente das normas que o formam, tanto em uma dimensão estática como dinâmica. Por esta percepção explica-se o motivo de se construir normas que sejam válidas quando abstratamente consideradas, mas que, em certas e determinadas situações concretas, elas assumem feição incompatível com o sistema jurídico, vale dizer, os efeitos dela são ilegítimos. É a dinâmica do ordenamento jurídico se manifestando de modo efetivo. Em situações como tais, é possível afirmar que sintaticamente a norma jurídica é perfeita; porém, em face dos contornos da situação concreta, isto é, da ótica semântica ou da pragmática, ela produz conseqüências jurídicas inconstitucionais, levando, por vezes, ao conflito concreto. Este é um problema decorrente das próprias circunstâncias em que se encontra, atualmente, a dogmática jurídica. A evolução dos estudos constitucionais, mormente acerca dos princípios jurídicos, influenciou largamente o debate jurídico. Além disto, ao longo do tempo um dado foi acrescentado ao debate como conseqüência dos avanços dos estudos dogmáticos e da própria necessidade social surgida: a questão de conteúdo das normas. 23 Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000, passim; e KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 165-167. 24 FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 178. 25 Ora, se a idéia que dominou o positivismo kelseniano era no sentido de rechaçar a questão substancial, prevalecendo, sempre, a ótica formal da validade jurídica, atualmente a tendência tem se guiado no sentido de conferir efetividade às normas e a ordem jurídicopositiva, em especial ao comando constitucional. Em outros termos, passou-se a levar em consideração os destinatários da norma, a matéria, a força de incidência, a finalidade, o funtor, enfim, problemas semânticos e pragmáticos decorrentes da dinamicidade do sistema jurídico. Inclusive, incorporou-se ao seu corpus constitucional valores e princípios políticos e morais que antes não recebiam o timbre da juridicidade. Com isto, enfim, estes princípios assumiram a condição de norma jurídica. Deve-se, então, afirmar indistintamente o que vem a ser “norma jurídica” e quais suas espécies. Antes, porém, que fique claro: sistema jurídico é tomado como sinônimo de ordenamento jurídico-positivo, isto é, a ordem jurídica iniciada com a Constituição de 1988. Um breve parêntese antes de encerrar: em razão da tendência de busca pela justiça do caso concreto; de luta pela efetividade constitucional; do conflito normativo entre princípios jurídicos, que só é possível de ser analisado concretamente; e da natureza programática dos diversos enunciados normativos constitucionais; enfim e em geral, das questões semânticas e pragmáticas da ordem jurídica, alguns autores na doutrina brasileira têm afirmado a evolução (ou superação, dependendo da linha de pensamento adotada) do positivismo para o surgimento de um pós-positivismo.25 1.3 AS UNIDADES COMPOSITIVAS DO SISTEMA DO DIREITO POSITIVO: AS NORMAS JURÍDICAS O sistema jurídico é um organismo composto pelo plexo de normas jurídicas válidas, as quais são extraídas a partir dos diversos textos do direito positivo. Elas, as normas jurídicas, são as unidades compositivas do conjunto. Contudo, para a completa compreensão sobre este tema, imprescindível a noção de norma jurídica adotada neste trabalho. Neste contexto, deve-se expor, também, a distinção entre norma jurídica e o texto normativo. 25 Sobre o neoconstitucionalismo, cf. BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. No que se refere às críticas a esta doutrina, cf., por todos, DIMOULIS, Dimitri; DUARTE, Écio Oto Ramos [coord]. Teoria do Direito Heoconstitucional: Superação ou Reconstrução do Positivismo Jurídico? São Paulo: Método, 2008. 26 Logo, o conceito de norma jurídica é necessário ao adequado prosseguimento desta investigação científica. Embora não seja o seu objeto, esta é premissa necessária ao desenvolver do tema, isto é, tributação e concorrência na Constituição Federal de 1988. Inolvidável que norma jurídica é noção que descortina o gênero da unidade que compõe o sistema jurídico-positivo. Como tal, ela se subdivide, segundo a doutrina dominante, em duas espécies: regras e princípios, distinção cunhada já há algum tempo pela doutrina da Teoria do Direito e que ultimamente adquiriu relevo no debate doutrinário e jurisprudencial brasileiro, notadamente a partir da Constituição de 1988. Por outro lado, recentemente Humberto Ávila conferiu novo fôlego à discussão sobre as espécies normativas ao estabelecer um modelo tripartite: princípios, regras e postulados normativos aplicativos, onde as duas primeiras espécies situam-se no âmbito das normas de primeiro grau, e a última localiza-se no patamar das metanormas, isto é, das normas de segundo grau.26 De toda sorte, neste momento importa conceituar norma jurídica e fixar sua distinção em relação ao texto do direito positivo, bem assim apontar algumas observações sobre a construção de sentido das normas jurídicas. Ao depois, oportunamente, serão traçadas as considerações relativas à distinção entre as espécies normativas. 1.3.1 O conceito de norma e sua distinção em relação ao texto do direito positivo Fixar o conceito de norma é trabalho que há muito atormenta os estudiosos do direito. Dar-lhe a conceituação é algo tão controvertido que já houve quem reunisse 82 definições de norma, consoante assinala Tércio Sampaio Ferraz Júnior.27 Não obstante, o tema deste trabalho tem por cerne a questão da tributação e da concorrência no contexto da interpretação constitucional, o que não permite, neste setor, expor as generalidades e discussões dogmático-jurídicas sobre a norma jurídica e seu conceito. Ao contrário, simplificar-se-á, tomando por empréstimo o conceito que se compreende mais adequado e que serve aos fins desta investigação. 26 Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 29 e ss. 27 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da Horma Jurídica. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 36. 27 Afora a discussão sobre seu conceito, há relativo aceite na doutrina quanto à distinção que existe entre a norma e o texto. Ainda hoje, encontra-se em diversos estudos jurídicos uma confusão entre norma jurídica e o enunciado textual do direito positivo. Além da impropriedade semântica, a confusão entre estas categorias causa graves erros na análise jurídica empreendida sobre certos casos, resultando em problemas dos mais diversos matizes. Exemplo disto são as decisões judiciais que recorrentemente substanciam-se em uma análise apressada e literal de um único dispositivo legal sem, no entanto, considerar o contexto jurídico no qual ele está colocado, ou mesmo sem analisá-lo sob as luzes dos magnos princípios constitucionais a lhe direcionar a aplicação; também as afirmações desencontradas da Jurisprudência ao empreender análises sobre determinados preceptivos normativos são conseqüências da inadequada compreensão a respeito da distinção entre norma e dispositivo. Em virtude disto, os cientistas do direito tem se esforçado em firmar esta distinção. Paulo de Barros Carvalho, por exemplo, é claro ao dizer: “A norma jurídica é a significação que obtemos a partir dos textos do direito positivo”.28 Na mesma linha assevera Humberto Ávila: “Hormas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da interpretação sistemática de textos normativos”.29 Deste modo, normas jurídicas, segundo noção ora aceita, são construções de sentido dadas as mais diversas disposições prescritivas contidas no ordenamento jurídico. Os textos do direito positivo são os suportes físicos que se constituem de enunciados prescritivos. A norma é o resultado da interpretação sistemática dos dispositivos legais. Estes são os objetos de análise; aquela é o produto do processo interpretativo destes, por isto que, com efeito, a norma diferencia-se do texto normativo. Esta desvinculação entre a norma e a disposição legal permite a percepção de que, para o Direito, o texto não é decisivo para a criação da norma, conquanto seja o ponto de partida. Para Lenio Luiz Streck observa que “[...] O texto não existe em si mesmo. O texto como texto é inacessível, e isto é incontornável. O texto não segura, por si mesmo, a interpretação que lhe será dada. Do texto sairá, sempre, uma norma. A norma será sempre o produto da interpretação do texto”.30 28 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 08. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 30. 30 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do direito. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 314. 29 28 Uma breve consideração sobre a assertiva precitada: deve-se ficar claro que o autor, ao afirmar que a partir do texto extrair-se-á, sempre, uma norma, não quer significar, em absoluto, que cada dispositivo produzirá uma única (numericamente falando) norma. Até porque, em virtude da dissociação entre o dispositivo e a norma, sua construção não depende da pré-existência do dispositivo, porquanto dependente de circunstâncias externas a ele, como, por exemplo, a perspectiva do intérprete que está a lhe descortinar o significado, a situação concreta, ou mesmo a condição espaço-temporal na qual é analisada. A norma, porque é o resultado da exegese feita a partir do texto, nele não está contida. Ou seja, o sentido das palavras não é algo que está incorporado ao seu conteúdo. O fraseado jurídico, ao ser investigado – seja para construir o sentido das normas a serem eventualmente aplicadas, seja para descrevê-las enquanto objeto da ciência jurídica – pode ser visto sob três “planos lingüísticos”: sintático, semântico e pragmático. Somem-se a isto as circunstâncias individuais do intérprete – o qual realizará o processo de construção de significados –, bem como o sentido recebido pelo texto em um dado momento histórico (condição espaço-temporal), além dos fatos subjacentes ao comando legal analisado e ter-se-á os fatores determinantes do sentido da norma, extraída a partir do texto do direito positivo. Óbvio, por outro lado, que o texto do direito positivo não é algo totalmente desprovido de significado. De uma perspectiva sintática de análise do fraseado sempre se encontrará uma significação mínima, resultado do uso corrente da linguagem. A isto, Wittgenstein denomina de “jogos de linguagem”; Heiddeger, de “enquanto hermenêutico”; já Miguel Reale refere-se à “condição a priori intersubjetiva”.31 Enfim, ainda que o texto não seja decisivo para o Direito, e as normas prescindam dele para sua construção, não se pode olvidar que o texto é o ponto de partida que traça os limites à determinação de significado das normas, pois esta será sempre o resultado de uma interpretação, que não desconsidera a pré-existência de sentidos já incorporados aos símbolos lingüísticos que formam o dispositivo, mas a ele incorporam novas significações. A diferença existente entre norma e texto do direito positivo resulta em algumas conclusões inelutáveis: (i) primeiramente, como resultado lógico do conceito adotado, se pode afirmar que as normas jurídicas sempre são implícitas32; expresso, sempre, é o enunciado 31 Para uma melhor compreensão sobre isto, e de forma sintética, cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 32-33. 32 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 10. 29 prescritivo do dispositivo normativo; (ii) em segundo lugar, uma vez que não se confunde norma e texto, fica evidente que a construção de normas jurídicas independe da existência concreta de textos positivados. Nesta medida, por vezes construir-se-ão normas sem que existam dispositivos normativos; outras vezes, de um único texto positivo formar-se-á mais de uma norma jurídica; em outros casos, será necessária mais de uma disposição normativa para se construir uma única norma jurídica. Enfim, as normas jurídicas independem dos enunciados prescritivos positivados, porquanto são juízos, significações extraídas a partir deles. Porém, não se deve perder de vista que são os dispositivos os pontos de partida para a construção da norma, qualquer que seja sua espécie. Ou seja, havendo um dispositivo expresso, as normas jurídicas devem ser construídas pelo intérprete a partir deles. 1.3.2 As espécies normativas e o papel do intérprete do direito na sua construção Em geral, a doutrina define as espécies normativas em regras ou princípios. Esta distinção é antiga, pelo que já se produziu farta literatura a respeito. Vez por outra esta discussão ressurge nos meios doutrinários. No entanto, o fenômeno atual, notadamente no direito brasileiro, assume sobremaneira importância, não pela distinção em si, mas pela extensão e conseqüências práticas que daí advém. Ainda que com atraso em relação à doutrina comparada, este debate ganhou relevo no cenário jurídico brasileiro por conta de fatores políticos e também jurídicos, a saber: (i) a promulgação, em 05 de outubro de 1988, da Constituição Federal; (ii) a idéia de efetividade das normas constitucionais, que tomou de assalto tanto a doutrina como os Tribunais pátrios a partir de então; (iii) a ascensão dos princípios jurídicos no seio do sistema jurídico-normativo, bem como de seus estudos. As primeiras abordagens da dogmática jurídica compreendiam os princípios como meras formulações de ordem política ou moral, destituído de timbre normativo, pelo que lhe faltaria condições para gerar efeitos jurídicos ou aplicação direta e imediata sobre as situações por eles alcançadas. Esta visão se deve, em grande medida, à compreensão que se tinha de que a Constituição seria mero repositório de intenções, caracterizando-se como uma Carta Política cuja finalidade seria apenas fixar os programas, as ações a serem alcançadas pelo Estado. Justamente por esta razão, seria ela, a Constituição, o espaço por natureza dos princípios. 30 Neste quadro, norma jurídica seria apenas aquela categoria que hoje é mais conhecida como “regra”, ou seja, a proposição jurídica com caráter hipotético-condicional, isto é, que contém relato (antecedente normativo; hipótese de incidência) objetivo descritivo de certas e determinadas condutas e aplicáveis a um plexo específico de situações. No entanto, à medida que as normas constitucionais conquistaram o status de normas jurídicas dotadas de imperatividade, prenhes de comandos de dever-ser, também os princípios galgaram esta posição. Ao adquirir timbre normativo pleno, os princípios passaram a ser estudados, junto com as regras, como normas jurídicas. Contudo, a conjunção de fatores como a falta de tradição jurídica no estudo dos princípios e o positivismo legalista que vigorava nos estudos jurídicos nacionais não permitiam um avanço mais acelerado sobre o tema. Como resultado desta evolução no estudo da Teoria Geral do Direito, elaborou-se teorias mais ou menos sofisticadas para distinguir princípios e regras.33 O evoluir histórico-doutrinário sobre o tema descortina a existência de duas correntes doutrinárias a respeito da distinção entre as espécies normativas. A primeira corrente, mais antiga e já descartada por muitos em razão de sua inconsistência teórica, diferencia os princípios das regras com base no elemento “generalidade”. Para esta linha de pensamento, os princípios são normas detentoras de elevado teor de abstração e generalidade, ou seja, o universo de situações e pessoas às quais este espécie normativa se direciona é indeterminado, o que permite sua aplicação com boa carga de subjetivismo do aplicador. Já as regras, diversamente, são normas com pouca (ou nenhuma) abstração e generalidade, na medida em que são destinadas a um conjunto determinado de situações e pessoas. Seus relatos são objetivos e descritivos de certas condutas, razão pela qual sua aplicação não demanda qualquer influência subjetiva do intérprete. A distinção entre as espécies normativas, segundo esta doutrina, funda-se no grau de indeterminação deste ou daquele tipo de norma, como esclarece Humberto Ávila: O fundamento dessa distinção, dependendo da radicalidade com que seja defendido, está no grau de indeterminação das espécies normativas: os princípios, porque fluidos, permitem maior grau de mobilidade valorativa, ao 33 A estas distinções mais ou menos sofisticadas acerca dos princípios e regras, Humberto Ávila nomeou de “distinção fraca” e “distinção forte”. Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios e o Direito Tributário, in Revista Dialética de Direito Tributário, n. 125. São Paulo: Dialética, 2006, p. 34-40. 31 passo que as regras, porque pretensamente determinadas, eliminam ou diminuem sensivelmente a liberdade apreciativa do aplicador [...].34 Com a evolução doutrinária em sede de Teoria Geral do Direito, superou-se o positivismo legalista e literal e passou-se a diferenciar os princípios das regras com base em sua estrutura normativa, o que tornou esta tese um dos principais alicerces da moderna dogmática jurídica. Este novo paradigma no estudo das espécies normativas firmou-se sobre as premissas teóricas concebidas por Ronald Dworkin e desenvolvida pelos estudos de Robert Alexy35, para quem os princípios são normas aplicáveis mediante a ponderação com outras normas, podendo-se realizar em vários graus. Por sua vez, as regras são normas que fixam, em seu antecedente normativo, o dever-ser (proibido, permitido ou obrigatório) de forma definitiva, o que resulta na sua aplicação pelo processo subsuntivo. Advém daí a asserção de que a diferença entre princípios e regras está no modo de aplicação e nos mecanismos de solução das antinomias surgidas entre elas. Quanto ao modo de aplicação das regras, porque fixam deveres definitivos, sua aplicação deve se efetivar por subsunção, ou seja, amoldando-se perfeitamente o fato concretamente realizado à hipótese de incidência descrita na lei, aplica-se a conseqüência jurídica prevista. Nestes termos, as antinomias entre regras solvem-se no plano abstrato, vale dizer, produz como conseqüência a invalidação de uma delas, ou, como expressado por Dworkin, resolve-se em “tudo ou nada” (all-or-nothing). Enfim, a questão é de validade. Já os princípios, porque implicam em deveres provisórios, devem ser aplicados mediante ponderação. O aplicador deve atribuir-lhes dimensão de peso segundo a situação concreta, e os conflitos entre eles somente são verificáveis e solvíveis no plano concreto, o que não importa na invalidação de um deles, haja vista a atribuição de preponderância entre eles diante das circunstâncias concretas verificadas. Nestes casos, a questão é eficacial. Sobre o tema, Humberto Ávila esclarece: O fundamento desta distinção está na estrutura normativa: os princípios, porque instituem mandamentos superáveis no confronto com outros princípios, permitem o sopesamento, ao passo que as regras, porque 34 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios e o Direito Tributário, in Revista Dialética de Direito Tributário, n. 125. São Paulo: Dialética, 2006, p. 34. 35 Cf. BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro, in Revista de Direito da Procuradoria Geral da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, 2003, p. 91-134. 32 estabelecem deveres pretensamente definitivos, eliminam ou diminuem sensivelmente a liberdade apreciativa do aplicador [...].36 Afora estes esclarecimentos, não se pode deixar de consignar, aqui, importante contribuição dada por Humberto Ávila37 acerca das espécies normativas. Ganhou destaque na doutrina e também nos Tribunais pátrios sua proposta tripartite quanto à tipologia normativa, dividindo-a em normas de primeiro grau –princípios e regras – e normas de segundo grau – postulados normativos aplicativos –, atribuindo-lhes o timbre de metanormas. A partir desta classificação o autor constrói sua teoria com base em novos critérios – natureza do comportamento prescrito, natureza da justificação exigida e a medida de contribuição para a decisão – distintos dos acima referidos. Ainda, no processo de elaboração desta tese e depois de expor minimamente os critérios distintivos e os fundamentos das correntes doutrinárias que abordam as espécies normativas e sua diferenciação, o autor aponta críticas para demonstrar suas inconsistências. Neste contexto surge o seu conceito de princípios e de regras, a partir dos critérios de dissociação que propõe, in verbis: As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição normativa e a construção conceitual dos fatos. Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária a sua promoção.38 Por tudo isto, se vê que o ganho qualitativo nos estudos a respeito das espécies normativas deve-se, em larga medida, à difusão da idéia de desvinculação entre norma e dispositivo, tratado anteriormente. Esta diferenciação como premissa base permitiu ver que a construção de normas-princípios e de normas-regras39 é algo que depende de fatores externos ao próprio texto do direito positivo, na medida em que uma norma, regra ou princípio, é 36 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios e o Direito Tributário, in Revista Dialética de Direito Tributário, n. 125. São Paulo: Dialética, 2006, p. 36-37. 37 Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo: Malheiros, 2006. 38 Idem, ibidem, p. 78-79. 39 Consoante nomenclatura de Jorge Miranda, in Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 432. 33 sempre o resultado de um processo interpretativo, que leva em consideração o texto, mas apenas como ponto de partida, e que a ele conecta as circunstâncias do intérprete, desde os seus pré-juízos até às condições espaço-temporais nas quais está inserida a questão. Além disso, os fatos subjacentes, as conseqüências práticas e os novos métodos hermenêuticos ganharam relevância no processo interpretativo. Em síntese, não se pode afirmar que uma norma é (ou contém) uma regra ou um princípio, dado que é o resultado de um processo de interpretação realizado por “alguém” a partir de “algo”, e que depende, ainda, de inúmeras outras conexões axiológicas externas ao próprio texto positivo. Assim, construir (ou reconstruir, como defende Humberto Ávila) uma norma – seja princípio ou regra – é um processo que depende da interação com os fatos e da colaboração do intérprete, justamente porque é o resultado, sempre, de um processo interpretativo que leva em consideração o texto do direito positivo e outras circunstâncias. Entretanto, Lenio Streck faz uma advertência que além de relevante é imperiosa: [...] a afirmação de que o “intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung) ao texto” nem de longe pode significar a possibilidade deste estar autorizado a “dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”, atribuindo sentidos de forma arbitrária aos textos, como se texto e norma estivessem separados (e, portanto, tivessem “existência” autônoma).40 (grifos do autor) Este alerta, deve-se sempre tê-lo em mente, visa a esclarecer eventuais falácias que possam resultar desta afirmação. O fato de ser o intérprete quem atribui sentido ao texto positivo não significa que ele tenha discricionariedade interpretativa, no sentido de ser livre para conferir ao texto, arbitrariamente, o sentido que melhor lhe sirva, de forma casuística. Apesar de o intérprete ter ganho importância no cenário hermenêutico atual por conta das escolhas que lhe cabem no processo exegético, e na medida em que há certo subjetivismo ao trabalhar com princípios, normas constitucionais – que, via de regram, são abertas – e conceitos indeterminados, há, por outro lado, limites interpretativos, pontos de partida que se materializam nos textos positivados (detentores de significação mínima), valores, interesses e bens jurídicos protegidos pela ordem normativa, como fins a serem realizados, além da necessária consideração dos fatos subjacentes. Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos lembram que 40 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 114. (grifos do autor). 34 [...] Boa parte da produção científica da atualidade tem sido dedicada, precisamente, à contenção da discricionariedade judicial, pela demarcação de parâmetros para a ponderação de valores e interesses e pelo dever de demonstração fundamentada da racionalidade e do acerto de suas opções.41 Por fim, que fique claro um último dado: inexiste hierarquia normativa entre regras e princípios, notadamente em âmbito constitucional, em vista do postulado (ou princípio, de acordo com a doutrina que se adote)42 da unidade da Constituição, que será visto oportunamente – item 1.5.2, infra. 1.4 SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO BRASILEIRO E A ORDEM JURÍDICO-ECONÔMICA A adoção do conceito de sistema jurídico como um conjunto de normas jurídicas válidas é importante na medida em que delimita o objeto de estudo, possibilitando, assim, a feitura de novo corte, a fim de reduzir a complexidade do tema, conferindo maior proveito e segurança no desenvolver do estudo. Logo, serve como premissa básica inicial. Também fornece subsídio imprescindível para esta investigação científica a fixação anteriormente anotada concernente à exata noção de norma jurídica, além da consideração quanto às espécies normativas – regras e princípios. Oportunamente, estes conceitos serão úteis para ajudar na resolução dos problemas propostos. O Direito é uno, conforme as características de ordenação e unidade que acompanham a conceituação de sistema jurídico. Porém, isto não impede a afirmação de que ele compõe-se de vários “subsistemas”, formados por normas jurídicas de semelhantes características, tanto pela natureza lógica de suas unidades como pelo conteúdo que versam, as quais regulam a conduta social, nos mais diversos setores de atividades. Significa que o ordenamento jurídico vigente é formado por outros subconjuntos normativos, todos buscando seu fundamento de validade na Constituição Federal. E é justamente a Constituição que importa neste momento. Aliás, é a Constituição Federal de 1988 a que importa a este trabalho. Especialmente como base para a definição do conteúdo, sentido e alcance de normas tributárias e econômicas. 41 BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 334. 42 Cf. item 1.5, infra. 35 Falar em Constituição demanda alguns cuidados. Primeiro, porque esta palavra tem sentidos vários. A depender do seu contexto de uso, a expressão pode traduzir, em sentido amplo e descritivo, o modus estrutural do poder político de uma sociedade. Ainda, pode expressar o significado de um documento normativo detentor de certas características formais e portador de um conteúdo específico. Ou também pode conotar um sentido normativo; um conceito de dever-ser, externando a idéia de Constituição em sentido normativo. A Constituição não é mero documento, simples tinta sobre o papel, mas uma lei detentora de particularidades especiais, resultantes da forma, do procedimento de criação e da posição hierárquica de suas normas. Mais do que isto, ela é significativa de um conteúdo específico, consagradora de princípios considerados fundamentais em uma ordem jurídica e política materialmente legitimada.43 É com este sentido normativo que se a utiliza a partir deste ponto. Porque assim, entendida como um conjunto de normas jurídicas superiores – regras e princípios – e assentadas em um texto normativo (um documento) que ela, a Constituição, também se caracteriza como subsistema normativo a conformar a ordem jurídica. A Constituição configura-se como o mais importante subsistema a integrar o ordenamento jurídico-positivo. Esta relevância decorre, principalmente, de sua posição hierárquica superior, de onde todas as demais normas do sistema jurídico-positivo extraem seu fundamento de validade. No atual estágio de conhecimentos acerca das normas constitucionais chega a ser um truísmo afirmar que neste altiplano normativo que se encontram as normas jurídicas de superior hierarquia integrantes do sistema jurídico-positivo. Ainda assim, esta lembrança é sempre necessária, pois são elas que iniciam o ordenamento jurídico, organizando e estruturando o Estado Brasileiro; ditando as competências legislativas das entidades federativas e, em especial, traçando as garantias e os direitos dos indivíduos, os quais, de forma geral, limitam a atuação estatal. Neste plexo normativo superior que se situam os textos de direito positivo que interessam a esta investigação. E será a partir destes enunciados prescritivos que se construirão as normas jurídicas tributárias e econômicas relevantes ao tema. Assim, importam os Títulos VI e VII da Constituição Federal Brasileira de 1988, os quais prevêem, respectivamente, as disposições acerca “Da Tributação e do Orçamento” e “Da Ordem 43 Sobre os usos da Constituição, v. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1115-1117. 36 Econômica e Financeira”. Mas que fique claro: não serão todos os enunciados que importarão. Ao contrário, apenas aqueles que, direta ou indiretamente, se refiram à tributação e à concorrência, como fenômenos jurídico-constitucionais, e assim sirvam ao deslinde do tema. Óbvio, de outro lado, que os dispositivos que formam o “Sistema Tributário Nacional” e a “Ordem Econômica” dentro da Lei Maior caracterizam-se como meros pontos de partida para elaboração das normas constitucionais. Isto é resultado da definição de norma jurídica adotada anteriormente, na medida em que há uma abertura no “corpus constitucional”44, que aceita a inclusão das interpretações do texto positivo. Em outros termos, “uma Constituição não é apenas o seu texto, mas é, principalmente, uma prática”, como lembra Geraldo Ataliba em referência à lição de Tércio Sampaio Ferraz Jr45, significando que mais do que o texto, importa sua efetividade e a obediência aos seus comandos normativos. Por isto se diz que a Constituição é um sistema jurídico-normativo aberto46 formado por regras e princípios, “permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central”.47 Deste modo, compreender a aproximação entre tributação e concorrência, a influência das normas tributárias sobre a questão concorrencial, e esta sobre a discussão tributária, enquanto eixo temático deste trabalho, demanda, de antemão, a fixação de mais algumas premissas basilares que não devem ser olvidadas. 1.4.1 Aproximação interdisciplinar entre Direito Tributário e Direito Econômico A ciência do direito em geral há muito debate a questão relativa à autonomia dos ramos do direito. Independentemente do setor do direito sob estudo, é comum a afirmação de suposta autonomia inerente a este ou aquele subconjunto normativo. Esta discussão vinculase, em geral, a pretensas especificidades e particularidades de um dado conjunto de normas jurídicas, o que lhes distinguiria dos demais ramos do direito. 44 Denominação de J.J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1117 e ss. 45 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 16. 46 Entende-se que a Constituição, como de resto o sistema do direito positivo, tem abertura apenas semântica e pragmática, na medida em que é um sistema autopoiético, sendo, portanto, fechado da perspectiva sintática, como claramente expõe CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 147-152. 47 Cf. BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 338. 37 Porquanto possa parecer estéril e monótona a controvérsia, como afirmou Aliomar 48 Baleeiro , ainda hoje o debate mantém-se em voga, notadamente no âmbito do direito tributário, por conta do problema de aplicação das regras tributárias sobre os fatos que, porventura, sejam disciplinados por outros setores do direito (ou que assim o pareçam). De toda sorte, a razão está com Alfredo Augusto Becker49 e Paulo de Barros Carvalho50, os quais afirmam categoricamente que não se pode cogitar de autonomia deste ou daquele ramo do direito sem que isto soçobre um de seus alicerces basilares que é o princípio da unidade do Direito. Ora, a ordem jurídica é una e indecomponível, formada, dentre outros elementos, por unidades normativas que visam regular os mais diversos setores da vida social, e se ligam, no plano jurídico, por vínculos de coordenação e hierarquia, extraindo seus fundamentos de validade da Constituição. Isto, enfim, que lhe confere unidade, sendo irrelevantes as peculiaridades que esta ou aquela norma porventura possua. Portanto, o direito é incindível. E sendo ele o objeto de estudo da ciência do direito, esta por não se expressar na mesma linguagem sua; por não possuir a mesma valência e por estar em plano de linguagem distinto dele, de modo algum tem condições de alterá-lo, a fim de compartimentalizá-lo. Em outros termos, se o estudo do direito se realiza mediante a separação dos inúmeros conjuntos normativos que compõe o todo jurídico, cuja divisão se baseia nas especialidades e propriedades das unidades normativas que os formam, isto é conseqüência das finalidades didáticas ínsitas ao processo de ensino-aprendizagem do direito. Fixada a noção de que o direito é uno e indissociável, a conclusão só poderia ser no sentido da proximidade jurídico-normativa entre os seus diversos “ramos”. Por termos outros, ainda que cada ramo do direito possua um universo próprio de atuação, eles sempre terão um espaço de correlação e aproximação, ou seja, de interdisciplinaridade, o que, ademais, permeia a própria linha de pesquisa deste programa de pós-graduação. É justamente neste ponto que se situa esta investigação científica, no espaço de intersecção entre as normas tributárias e as econômicas – em especial, as relativas à 48 BALEEIRO, Aliomar. Prefácio. In: FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução ao Direito Tributário. Rio de Janeiro: Ed. Rio, 1976, p. 12. 49 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007, p. 31-37. 50 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, p. 13-17. 38 concorrência. Em virtude disto, algumas palavras são necessárias para situar o direito tributário e o direito econômico no universo jurídico-normativo brasileiro. Direito Tributário e Direito Econômico são termos usados para significar, em regra, dois planos de linguagem distintos. Usam-se estas expressões para se referir ao universo normativo e ao espaço metalingüístico da ciência do direito. Na perspectiva deôntica, o direito tributário é o plexo formado pelas normas jurídicas que, direta ou indiretamente, relacionam-se com a instituição, arrecadação e fiscalização de tributos,51 independentemente do plano hierárquico-normativo no qual se encontrem. Como ciência, é aquela que estuda o direito tributário positivo, descrevendo-o. A despeito desta amplitude, faz-se necessário um corte metódico e epistemológico para assentar que este trabalho preocupa-se com as normas tributárias localizadas no plano constitucional, a fim de estabelecer uma interpretação a partir da Constituição sobre a tributação e a concorrência. O direito econômico52, por outro lado, é ramo relativamente recente no universo jurídico-normativo. Sua vocação é de interdisciplinaridade. Por estas razões, ainda se discute qual a conceituação mais adequada para expressar os seus lindes, ou seja, ainda debate-se qual o objeto do direito econômico. Porém, é certo o aspecto marcante e fundamental que a intervenção estatal na vida econômica assume para o direito econômico.53 Por isto, direito econômico será tomado nesta dissertação como o ramo jurídico que estuda as relações entre os entes públicos e os sujeitos privados, na perspectiva da intervenção do estado na vida econômica (na ótica da ciência jurídica). Sendo assim, as normas jurídicas que disciplinam a intervenção do estado na economia caracteriza-se como seu objeto.54 Sendo vocacionado à interdisciplinaridade, e tendo a intervenção do estado na economia como idéia fundamental, então se evidencia a aproximação entre o direito econômico e o direito tributário, na medida em que as normas tributárias, longe de servirem apenas aos fins fiscais, têm sido utilizadas com claro objetivo extrafiscal, vale dizer, intervencionista sobre o domínio econômico e social. 51 Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 13-17. Para conhecer a amplitude das concepções adotada para o Direito Econômico, v. MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 8-10. 53 Sobre a compreensão e distinção entre intervenção econômica direta ou indireta, v. item 2.3 infra. 54 MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 11. 52 39 Em outros termos, conquanto sirva para fins de abastecimento dos cofres públicos, o que, em si, pode-se compreender como instrumento de intervenção socioeconômica (mas apenas de forma mediata), a manipulação da tributação com objetivos extrafiscais influem diretamente sobre a Ordem Econômica e seus objetivos, pelo que tem sido usada como um dos meios mais eficazes de intervenção do estado na economia. Estas considerações iluminam o caminho interpretativo da questão em tela, aproximando as normas jurídicas tributárias e econômicas, na medida em que a tributação em geral funciona como meio de alcance e realização das diretrizes econômicas e sociais, e não propriamente como um fim em si. E é exatamente neste ponto que elas se interseccionam. Com efeito, Geraldo Ataliba lembra que é inerente à tributação incidir sobre os fenômenos econômicos.55 Por conta desta circunstância, manipulando-se as normas tributárias, que são sempre de sobreposição, tem-se então um mecanismo de intervenção estatal na economia. Deste modo, se pretende incentivar ou desestimular esta ou aquela atividade econômica, as quais operam-se no substrato das relações econômicas estritamente privadas, então as normas tributárias passam a ter a característica de normas jurídicas de direito público com fins econômicos, isto é, intervencionistas. Significa que elas têm fins extrafiscais como instrumento de intervenção econômica, indicando o ponto de encontro entre estes diferentes ramos jurídicos. Entre as normas tributárias e as econômicas, então, a interação é plural, íntima e profunda, como lembra Ricardo Lobo Torres, ressaltando apenas que: [...] Não há subordinação entre elas, pois a Constituição Tributária não se dilui na Econômica nem ocorre o contrário. Estão em equilíbrio permanente, influenciando-se mutuamente e relacionando-se em toda a extensão dos fenômenos econômico e tributário.56 Ainda segundo o autor, esta dialeticidade entre a Constituição Econômica e a Tributária ocorre, de início, sob a perspectiva dos valores, daí porque importante neste estudo o influxo dos fundamentos (Art. 1º, III e IV, especialmente) e objetivos fundamentais da República (Art. 3º, II e III, principalmente). Mas, mais do que isto, esta relação estende-se a 55 ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 150. TORRES, Ricardo Lobo. Sistemas Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 630, apud SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 38. 56 40 temas que vão além da ordem econômica global, atingindo a política fiscal e econômica e ao campo da policy, isto é, da intervenção estatal indireta sobre a economia.57 Portanto, a inter-relação entre o direito tributário e o direito econômico é irremediável. O estudo das normas jurídicas que estão localizadas exatamente neste ponto de intersecção entre os dois subsistemas normativos que é o objeto desta investigação, em especial porque as regras tributárias condicionam, induzem e direcionam as atividades econômicas, porquanto mecanismo de que dispõe o Estado para intervir sobre a economia. Deste modo, tanto os preceitos constitucionais contidos no “Sistema Tributário Nacional” como na “Ordem Econômica” são fundamentos relevantes para o presente trabalho, como também influem nesta conformação os fundamentos e os objetivos fundamentais da República, e os direitos individuais, notadamente os de liberdade, igualdade e propriedade. Tudo isto, enfim, conseqüência da unidade do sistema jurídico. 1.4.2 Sistema Tributário Nacional ou Sistema Constitucional Tributário: diferença? Outro ponto que precisa ser desvelado neste início, refere-se ao âmbito do conjunto de normas jurídicas tributárias que interessa ao tema. Se se analisar o Texto Constitucional, encontrar-se-á ali, no Capítulo I do Título VI, aquilo que o Constituinte denominou “Do Sistema Tributário Nacional”. Segundo se extrai da perspectiva literal das disposições ali contidas, o Sistema Tributário Nacional é composto da seguinte maneira: (i) Dos Princípios Gerais (Seção I); (ii) Das Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar (Seção II); (iii) Dos Impostos das Entidades Federativas (Seções III, IV e V); e (iv) Da Repartição das Receitas Tributárias (Seção VI). Em vista destas disposições, a questão que se põe é se estes preceitos normativos revelam a integralidade do “Sistema Constitucional Tributário Brasileiro”, isto é, se se confunde este com o capítulo que a Constituição nominou de “Sistema Tributário Nacional”. Evidentemente que a resposta é negativa. Mas responder a este questionamento demanda recordar de duas premissas, expostas anteriormente: (i) as normas jurídicas são interpretações de sentido extraídas a partir dos 57 TORRES, Ricardo Lobo. Sistemas Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 630, apud SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 38. 41 textos do direito positivo, mas que com estes não se confundem. Os textos são, sempre, os pontos de partida para a construção das unidades normativas. (ii) A unidade e a ordenação são qualidades inerentes ao sistema jurídico. Mesmo que didaticamente exista uma separação entre os “ramos” do direito, cientificamente, no entanto, o estudo deve tomar em conta a integralidade da ordem jurídica, tomando-se uma unidade normativa com relação ao todo sistêmico. Isto é suficiente para asseverar, inequivocamente, que o “Sistema Tributário Nacional” não forma, per se, a completude do conjunto das normas constitucionais que regulam a matéria tributária, senão, como previsões normativas, trazem apenas um referencial inicial, um ponto de partida de enunciados prescritivos positivos a partir do qual se construirá as normas tributárias. Porém, eles não trabalham isoladamente, mas devem ser conjugados com as demais disposições do sistema jurídico. Aliás, adverte Geraldo Ataliba que não há identidade entre sistema constitucional tributário e “sistema tributário” simplesmente.58 Neste aspecto, ele foi pioneiro em afirmar que a compreensão do sistema constitucional tributário depende, em primeiro lugar, das demais normas da Constituição, na medida em que a subestrutura tributária da Constituição de modo algum pode estar em confronto ou desacordo com o todo; há de haver, sempre, coerência e harmonia entre as parcelas do sistema constitucional com o seu todo, a própria Constituição, na sua integralidade. Imprescindível, segundo ele, a vinculação das normas tributárias com os direitos fundamentais e os princípios gerais e estruturantes da Constituição para compreender o que é o sistema constitucional tributário brasileiro.59 Ocorre que, em geral, a doutrina tributária ao fazer referência ao sistema constitucional tributário alude apenas “[...] a subclasse, o subconjunto [...] formado pelo quadro orgânico das normas que versem matéria tributária, em nível constitucional”,60 e que se caracteriza pelas seguintes particularidades fundamentais: “[...] 1º - minúcia e exaustividade no delineamento do âmbito de outorga das competências; 2º - privatividade e 3º - rigidez das competências tributárias outorgadas a cada ente político”.61 58 ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, nota de rodapé n. 7, p. 8. 59 Idem, ibidem, p. 4-11. 60 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 157. 61 CHIESA, Clélio. A Inconstitucionalidade da Exigência de Tributo sobre “Fato Gerador Futuro” – Emenda Constitucional nº 3, de 17 de Março de 1993, in Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, ano 4, n. 15, abril-junho de 1996. São Paulo: RT, 1996, p. 160. 42 Ou seja, faz-se um corte analítico mantendo-se preso apenas ao espaço constitucional que trate da matéria tributária específica e diretamente, como meros limites formais, conforme a linha de estudo desenvolvida por Sacha Calmon Navarro Coelho, que divide o que ele chama de “Constituição Tributária” em três grupos temáticos, a saber: A) o da separação das competências tributárias entre a União, os estados e os municípios; B) o dos princípios tributários e das limitações ao poder de tributar; C) o da partilha direta e indireta do produto da arrecadação dos impostos entre as pessoas políticas da Federação (participação de uns na arrecadação de outros).62 No entanto, o sistema constitucional tributário é muito mais do que a junção de regras de competência aos princípios tributários formais com características negativas, vistos apenas como restrições ao poder de tributar. Em verdade, o sistema constitucional tributário forma-se pela disciplina das limitações constitucionais ao poder de tributar, que tracejam os contornos formais da matéria tributária, em soma com outros princípios e direitos fundamentais, tais como o direito de propriedade, a liberdade e a igualdade, o que confere as limitações de conteúdo que ele reclama. De igual modo, os princípios meramente tributários podem ser combinados com outros bens jurídicos protegidos pela Lei Maior, com os fundamentos e os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, prescritos nos arts. 1º e 3º da Constituição Federal de 1988.63 1.4.3 A Ordem Econômica Ordem Econômica é expressão ambígua, como de resto ocorre com a maioria dos termos utilizados para significar planos de linguagem distintos; campos de estudos científicos diferentes, enfim, mundos diversos. Em suma, usa-se a expressão para significar tanto o mundo da realidade fática (plano do ser) como o universo jurídico (plano do dever-ser). Dificulta ainda mais a compreensão da expressão o fato da Constituição de 1988 ter trazido em seu bojo os arts. 170 a 192, que compõem o Título VII, nomeado “Da Ordem Econômica e Financeira”, cujos diversos preceitos normativo-positivos visam à disciplina jurídica, em altiplano constitucional, da vida econômica, seja da ótica do Estado, seja da perspectiva dos particulares em geral. 62 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 48. 63 Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 18-27. 43 Entretanto, esclarecedora, neste contexto, a lição de Vital Moreira, que vê na expressão “Ordem Econômica” três sentidos distintos, ambos correlacionados com a idéia inicial de separação entre o mundo do ser e do dever-ser. Leciona o autor português que: Em um primeiro sentido, "ordem econômica" é o modo de ser empírico de uma determinada economia concreta; a expressão, aqui, é termo de um conceito de fato (é conceito do mundo do ser, portanto); o que o caracteriza é a circunstância de referir-se não a um conjunto de regras ou a normas reguladoras de relações sociais, mas sim a uma relação entre fenômenos econômicos e matérias, ou seja, relação entre fatores econômicos concretos; conceito do mundo do ser, exprime a realidade de uma inerente articulação do econômico como fato; - em um segundo sentido, "ordem econômica" é expressão que designa o conjunto de todas as normas (ou regras de conduta), qualquer que seja a sua natureza (jurídica, religiosa, moral etc.), que respeitam à regulação do comportamento dos sujeitos econômicos; é o sistema normativo (no sentido sociológico) da ação econômica; - em um terceiro sentido, "ordem econômica" significa ordem jurídica da economia.64 A existência destas três significações, retiradas a partir de dois universos lingüísticos distintos, demonstra a ambigüidade do termo. Porém, importa a esta investigação a Ordem Econômica como ordem jurídica (plano do dever-ser), ou seja, aquela situada no plano lingüístico do Direito, cuja finalidade é mesmo conformar a ordem econômica (plano do ser). A ordem jurídica econômica caracteriza-se, portanto, como o conjunto de normas jurídicas de todas as hierarquias e espécies, que tem por escopo regular as atividades econômicas, fixando, através de regramentos autorizadores ou limitativos, como deve ser o comportamento do Estado e dos particulares no campo da economia (mundo do ser). É, pois, aquela “[...] constituída por todas as normas e actos jurídicos que disciplinam a actividade económica, sejam eles leis, decretos-leis, regulamentos, portarias, despachos ou outras”.65 Se a finalidade da ordem econômica é, em suma, disciplinar as atividades econômicas, intervindo direta ou indiretamente pela via da normatização jurídica, então se percebe claramente a interação existente entre o jurídico e o econômico, cujo escopo é a intervenção direta ou indireta daquele sobre este, a fim de viabilizar que a economia se desenvolva da melhor maneira possível para atender aos valores primazes da sociedade brasileira, positivados constitucionalmente. 64 Apud GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 55-56. 65 MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 91. 44 Compreendendo-se a ordem econômica como o todo normativo relativo à disciplina jurídica da economia, então é perceptível que esta integralidade possui diversas e diferentes partes que a conforma. Cada parte compositiva da ordem econômica tem sua essencialidade, âmbito de regulação normativa, prestando-se a um fim específico. Destaca-se como parte fundamental da ordem econômica o subsistema normativo-econômico constitucional, ou seja, a Constituição Econômica. Vânya Senegalia Morete Spagolla registra esta aproximação, afirmando: A interpretação acima descrita aproxima os conceitos de ordem econômica, sendo essa caracterizada como um conjunto de normas que institucionaliza o setor, e de Constituição Econômica, a qual engloba os princípios e regras essenciais ordenadores da economia, as normas básicas reguladoras do fato econômico e das relações principais dele decorrentes. Em outras palavras, Constituição Econômica configura o conjunto de preceitos e instituições jurídicas que instituem uma determinada forma de organização e funcionamento da economia, garantindo, instaurando e realizando uma ordem econômica concreta.66 Logo, esta aproximação entre a Constituição Econômica e a Ordem Econômica (entendida como a ordem jurídica da economia) decorre da relação entre todo e parte que as vincula. Ou seja, como a ordem econômica é formada pelas mais diversas normas jurídicas, posicionadas em diferentes degraus hierárquico-normativos, que laboram no intuito de intervir na atividade econômica, então a Constituição Econômica consiste no mais relevante subsistema jurídico que a compõe. Estas as lições de Luís S. Cabral de Moncada: [...] fala-se por vezes em Constituição Económica (CE) para designar precisamente os princípios fundamentais que dão unidade à actividade económica geral e dos quais decorrem todas as regras relativas à organização e funcionamento da actividade económica de uma certa sociedade. Não é exigível que tais princípios constem de alguma parte essencial da constituição, a eles dedicada, bastando que as disposições económicas estejam dispersas pelo texto constitucional ou por legislação avulsa. A CE constitui assim a parte fundamental de toda a ordem jurídica da economia.67 Como a Constituição Econômica – e, assim também, a Ordem Econômica – não existe isoladamente, ou seja, não está destacada do Texto Constitucional, nem a ele se sobrepõe, menos ainda tem condição de existência fora dele, então sua compreensão demanda 66 SPAGOLLA, Vânya Senegalia Morete. Tributação Ambiental: Proposta para Instituição de um Imposto Ambiental no Direito Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pós-graduação em Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social da Universidade de Marília. Marília: 2008, p. 24. 67 MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 92. 45 interpretação sistemática qualificada pela unidade, ordenação e coerência internas que permeiam o ordenamento jurídico, isto é, a apreensão do seu sentido fundamental deve levar em consideração a Constituição na sua integralidade, como salienta Celso Ribeiro Bastos: A existência destas normas específicas sobre a economia não deve, contudo, conduzir a afirmações ousadas no sentido da configuração de uma Constituição autônoma dentro do Texto Constitucional. Em outras palavras, Constituição econômica existe sim, mas como um sistema ou conjunto de normas jurídicas, tendo como critério unificador o dado econômico ou a regulação da economia. Ela não é todavia autônoma. Pelo contrário, só ganha sentido dentro da perspectiva ampla da Constituição, em função da qual se torna inteligível e compreensível. [...].68 Portanto, entende-se a Ordem Econômica, na sua parte mais fundamental que é a Constituição Econômica, como sendo “[...] o conjunto dos princípios fundamentais informadores da actividade e da organização económica [...]”69 de um Estado. Essencialmente, importa aquelas normas jurídicas que disciplinam a intervenção econômica. 1.5 OS PRINCÍPIOS INSTRUMENTAIS DE INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO Interpretar significa atribuir sentido aos signos. Denomina-se Hermenêutica a técnica científica que objetiva estudar os métodos interpretativos. No âmbito do direito, a interpretação das normas jurídicas presta-se a construir o seu conteúdo, sentido e alcance, ou seja, sua finalidade é elaborar o sentido dos textos normativos, e não apenas desvendá-lo.70 Com a promulgação da Constituição de 1988 e a evolução dos estudos jurídicos erigidos sobre sua base, toda a dogmática jurídica brasileira recebeu novos ares, influenciada por uma nova perspectiva interpretativa. Os reflexos das normas constitucionais alcançaram outros ramos do direito, conferindo-lhes nova possibilidade, novo sentido, conteúdo e alcance. Neste aspecto, os trabalhos de investigações jurídico-científicas obrigatoriamente perpassam, hoje em dia, pela adequada interpretação das normas constitucionais. Neste contexto, parte da doutrina constitucional brasileira tem afirmado a existência de novos métodos de interpretação. Para eles, os métodos interpretativos tradicionais – literal, teleológico, lógico, histórico e sistemático –, conquanto ainda sejam fundamentais para a 68 BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 269-270. MONCADA, Luís S. Cabral. ob. cit., p. 92. 70 Sobre este assunto, cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19 ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 96 e ss. 69 46 dinâmica jurídica, tornaram-se insatisfatórios em virtude da ascensão e expansão das normas constitucionais, de conteúdo aberto e principiológico. Também caracteriza esta doutrina a afirmação do desenvolvimento de novas fórmulas de realização da vontade da Constituição. A esta linha de pensamento, enfim, tem se denominado neoconstitucionalismo; e póspositivismo é a expressão que pretende significar o ideal filosófico a orientar esta corrente. Luis Roberto Barroso tem capitaneado estes estudos jurídicos no Brasil. Segundo ele, três fatores são suficientes a demonstrar o surgimento do neoconstitucionalismo: (i) a força normativa da Constituição; (ii) a ampliação da jurisdição constitucional; e (iii) a nova interpretação constitucional.71 Contudo, há quem discorde destas idéias. A crítica que se faz é no sentido de que este neoconstitucionalismo e o pós-positivismo não existem, porquanto as idéias que fundamentam esta corrente não passam das idéias do próprio positivismo. Em outros termos, não haveria, propriamente, a superação do positivismo jurídico como se tem dito, senão apenas uma reconstrução.72 Discussão doutrinária à parte, inegável que a interpretação das normas constitucionais é condicionada a alguns princípios de interpretação especificamente dirigidos a este plano normativo. Em verdade, estes princípios de interpretação decorrem logicamente da própria posição hierárquica do Texto Constitucional e das idéias que envolvem sua supremacia. Em outros termos, é conseqüência daquela própria estrutura piramidal da ordem jurídica, como concebido por Hans Kelsen.73 Assim, os princípios de interpretação constitucional relevantes são: (i) princípio da supremacia da Constituição; (ii) princípio da unidade da Constituição; (iii) princípio da interpretação conforme a Constituição. Um detalhe final: há concordância doutrinária no que se refere aos instrumentos de interpretação das normas constitucionais. Entretanto, há uma questão semântica, pois alguns 71 Sobre este assunto v. BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto [coord]. A Hova Interpretação Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003. 72 Para conhecer melhor estas idéias, cf. DIMOULIS, Dimitri; DUARTE, Écio Oto Ramos [coord]. Teoria do Direito Heoconstitucional: Superação ou Reconstrução do Positivismo Jurídico? São Paulo: Método, 2008. 73 Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 47 autores aludem a “princípios”74 de interpretação constitucional, ao passo que outros referemse a “postulados”75 interpretativos relativos às previsões constitucionais. 1.5.1 O princípio da supremacia da Constituição Como lei fundamental de um Estado, a Constituição é a lei suprema. Esta supremacia sobre as demais normas da ordem jurídica decorre de sua posição hierárquico-normativa superior. Todas as outras normas integrantes do sistema jurídico – desde as leis até os mais simples atos normativos emanados pelas autoridades administrativas, e os atos jurídicos em geral – somente existem validamente se com ela se compatibilizarem formal e materialmente. Ou seja, todas elas derivam da Lei Constitucional. Em virtude desta característica especial de superioridade jurídica sobre todos os demais atos normativos no seio da ordem jurídica, a interpretação da Constituição assenta-se neste primeiro pressuposto. Afirmar que as normas constitucionais detêm supremacia sobre as demais normas jurídicas, implica em dizer que estas, para subsistirem validamente, obrigatoriamente devem observar os ditames da lei superior. Por termos outros, as leis, os atos normativos infralegais, os atos jurídicos e as manifestações de vontade de forma geral, inclusive dos particulares, somente terão juridicidade plena se compatível com a Constituição. Esta posição hierárquica superior da Constituição condiciona toda a atividade do Estado, seja legislativa, executiva ou judicial, até porque, antes de existir, por exemplo, o Órgão Legislativo, com atribuições legislativas, há a Constituição estabelecendo sua existência, suas funções, competências e limitações. Estas idéias são conseqüência direta da teoria da validade das normas conforme a estrutura piramidal proposta por Kelsen, ou seja, uma vez que se pressupõe a norma fundamental, dentro da ordem jurídica positiva, a Constituição caracteriza-se como o degrau 74 Cf. BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 334. 75 Cf. ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: Conteúdo e Alcance. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I, n. 3, junho de 2001. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. 48 mais elevado, porquanto é documento solene (Constituição formal) que enuncia as regras que regulam a criação das normas jurídicas gerais (Constituição material).76 Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos lembram que o princípio não tem conteúdo próprio – daí porque instrumental de interpretação –, de modo que a supremacia das normas da Constituição é garantida pela via dos distintos mecanismos de controle de constitucionalidade: controle difuso ou controle concentrado.77 Ainda a respeito do princípio da supremacia da Constituição, destaca-se a lição sempre precisa de J. J. Gomes Canotilho, onde afirma inequivocamente que: A constituição é uma lei dotada de características especiais. Tem um brilho autónomo expresso através de uma forma, do procedimento de criação e da posição hierárquica das suas normas. [...]. Em primeiro lugar, caracteriza-se pela sua posição hierárquico-normativa superior relativamente às outras normas do ordenamento jurídico. Ressalvando algumas particularidades do direito comunitário, a superioridade hierárquico-normativa apresenta três expressões: (1) as normas constitucionais constituem um lex superior que recolhe o fundamento de validade em si própria (autoprimazia normativa); (2) as normas da constituição são normas de normas (normae normarum) afirmando-se como uma fonte de produção jurídica de outras normas (leis, regulamentos, estatutos); (3) superioridade normativa das normas constitucionais implica o princípio da conformidade de todos os actos dos poderes públicos com a Constituição.78 Enfim, o traço distintivo primeiro da Constituição é sua supremacia, isto é, sua posição de preeminência dentro do sistema jurídico. Deve-se, no entanto, tê-lo sempre em mente ao iniciar a interpretação e a aplicação das normas jurídicas, em especial quando tratem de matéria tributária e econômica, disciplinadas rigidamente no plano constitucional. 1.5.2 O princípio da unidade da Constituição O princípio da unidade da Constituição79 decorre diretamente da própria noção de unidade que permeia a ordem jurídica. Ficou assentado anteriormente que o sistema jurídico 76 Sobre o assunto, cf. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. Tradução de Luis Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 182. 77 BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 360. 78 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1131. (grifos do autor) 79 Para Humberto Ávila, este e os demais princípios interpretativos constitucionais aqui expostos são tidos por postulados. Cf. ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: Conteúdo e Alcance. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I, n. 3, junho de 2001. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. 49 pressupõe uma unidade e uma ordenação. A manutenção da unidade tem que ver com a harmonização entre as normas jurídicas e o sistema jurídico, via processo de fundamentação, onde a norma de hierarquia inferior retira sua condição de validade da norma superior. Entretanto, quando se toma o universo constitucional como plano de análise, precisa ser fixada claramente a idéia da unidade da Constituição, no sentido de que entre suas normas inexiste hierarquia. Se as normas constitucionais detêm supremacia sobre as demais normas da ordem jurídica, entre elas isto não ocorre. Por ser o degrau hierárquico último da ordem jurídico-positiva, significa que não há relação de proeminência entre elas. Acima delas apenas a norma hipotética fundamental, pressuposta e não posta, conforme teoria kelseniana.80 O princípio da unidade da Constituição serve de instrumental interpretativo dos mais importantes, na medida em que fixa um parâmetro exegético para solucionar eventuais conflitos entre as normas jurídicas constitucionais. Quando o conflito se dá no nível infraconstitucional, então os métodos tradicionais da hierarquia, da norma posterior e da especialização se revelam aptos. No entanto, em nível constitucional, esta técnica não é suficiente. Surge então a necessidade de aplicação das técnicas de ponderação para resolver a colisão de normas constitucionais. E esta é orientada pela unidade da Constituição, no sentido de se buscar a harmonia possível entre os comandos normativos envolvidos para a solução do caso concreto, tendo em vista a inexistência de hierarquia entre as normas constitucionais. Esta é precisamente a lição de Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos: [...] Por força do princípio da unidade, inexiste hierarquia entre normas da Constituição, cabendo ao intérprete a busca da harmonização possível, in concreto, entre comandos que tutelam valores ou interesses que se contraponham. Conceitos como os de ponderação e concordância prática são instrumentos de preservação do princípio da unidade, também conhecido como princípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição.81 A Constituição é tomada por um sistema aberto de regras e princípios. Esta característica impõe ao princípio da unidade grande utilidade, pois é nesta perspectiva que assume o sentido de unidade hierárquico-normativa, ou seja, apesar da abertura das normas constitucionais, é o princípio instrumental interpretativo em questão que confere o 80 Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 81 BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 362. 50 fundamento de que todas elas detêm a mesma dignidade constitucional. J. J. Gomes Canotilho, ao abordar este princípio, expõe de modo claro: O princípio da unidade hierárquico-normativa significa que todas as normas contidas numa constituição formal têm igual dignidade (não há normas só formais, nem hierarquia de supra-infra-ordenação dentro da lei constitucional). Como se irá ver em sede de interpretação, o princípio da unidade normativa conduz à rejeição de duas teses, ainda hoje muito correntes na doutrina do direito constitucional: (1) a tese das antinomias normativas; (2) a tese das normas constitucionais inconstitucionais. O princípio da unidade constituição é, assim, expressão da própria positividade normativo-constitucional e um importante elemento de interpretação.82 Com fulcro nesta premissa – de unidade da Constituição – J. J. Gomes Canotilho conclui que sempre haverá uma exigência de “coerência narrativa” do sistema jurídico, além de o comando principiológico se identificar como princípio de decisão, dirigidos aos aplicadores do direito –juízes e as demais autoridades –, de modo que se devem compreender as regras e princípios jurídicos constitucionais como um todo unitário, obra de um autor só, exprimindo, assim, uma correta concepção de direito e de justiça.83 Por tudo isto, afirma: [...] Neste sentido, embora a Constituição possa ser uma “unidade dividida” (P. Badura) dada a diferente configuração e significado material das suas normas, isso em nada altera a igualdade hierárquica de todas as suas regras e princípios quanto à sua validade, prevalência normativa e rigidez.84 (grifos do autor). Logo, relevantíssimas estas idéias para este trabalho, mormente em razão do enfoque dado, que reside justamente sobre o ponto de intersecção entre dois subsistemas normativos constitucionais que se influenciam reciprocamente: o tributário e o econômico. Deste modo, a interpretação de normas jurídicas que se situem nesta posição não pode prestigiar um em detrimento do outro, afastando-o completamente, mas, ao contrário, deve-se preservar a unidade da Constituição, pela promoção da igualdade hierárquica das normas constitucionais. 1.5.3 O princípio da interpretação conforme a Constituição Falar no princípio da interpretação conforme a Constituição pode parecer, de começo, um truísmo, considerando que já está mais do que difundida a idéia de superioridade 82 CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1167. (grifos do autor). 83 Idem, ibidem, p. 1168. 84 Idem, ibidem, p. 1168. 51 hierárquica da Lei Maior e de que suas normas conferem fundamento de validade a todas as demais normas do sistema jurídico. No entanto, a evolução do direito constitucional e a percepção de que as normas constitucionais – princípios e regras – são de conteúdo aberto, finalístico e principiológico demandam uma nova análise, por força da novel perspectiva. A interpretação e a aplicação do direito, neste contexto, deixa de ser unicamente subsuntiva, pois depende da realidade que lhe é subjacente e, principalmente, os fatos e o intérprete ganham relevo no processo. Significa que se alterou o processo interpretativo; ganhou novos mecanismos, mas também encontrou novas dificuldades. Por isto, os princípios instrumentais de interpretação constitucional são relevantes. A interpretação conforme a Constituição é mecanismo para enfrentar os conflitos e casos que envolvam normas constitucionais que, in concreto, conflitam-se. Daí a necessidade de se lembrar, com Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, que a interpretação conforme a Constituição, como princípio interpretativo, decorre da confluência entre os princípios da supremacia da Constituição e da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do poder público.85 Significa que o aplicador da norma infraconstitucional deve buscar a interpretação que mais se coadune com a Constituição, isto é, “À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido”.86 Além disto, a interpretação conforme a Constituição também se presta como técnica de controle de constitucionalidade, na medida em que impõe ao aplicador do direito, notadamente o judicial, que expressamente exclua uma interpretação da norma que seja contrária ao espírito constitucional, corrigindo eventuais desvios que porventura possam exsurgir a partir das possibilidades semânticas do texto. Esta ação corretiva se dá via declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto.87 85 BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 361. 86 Idem, ibidem, p. 332. 87 BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 361. 52 Portanto, a interpretação conforme a Constituição converte-se em instrumental de extrema importância para a compreensão e discussão em matéria tributário-econômica, notadamente quando conjugada com os demais princípios interpretativos. 53 2 O PRICÍPIO COSTITUCIOAL DA LIVRE COCORRÊCIA COMO GARATE DA ORDEM ECOÔMICA Direito e economia sempre foram temas coligados, de relação muito próxima. Em verdade, não é demais assentar a influência recíproca entre ambos, pois a adoção de inúmeras medidas jurídicas sempre tiveram reflexos econômicos e as questões econômicas sempre demandaram um mínimo de disciplina jurídica. À medida que o Estado passou a ter importante papel no domínio econômico, o relacionamento entre direito e economia acentuou-se. Deveras, esta maior aproximação, em larga medida, deve-se à função intervencionista assumida pelo Estado. Não significa que a relação entre os domínios jurídico e econômico não existia antes do surgimento da função interventiva, apenas que se restringia ao papel negativo frente aos indivíduos, porquanto detentor de funções mínimas, de mero garantidor dos direitos e das liberdades individuais. António Carlos Santos, Maria Eduarda Gonçalves e Maria Manuel Leitão Marques, ao tocarem o tema da relação entre a economia e o direito, lembram que as questões jurídicas e econômicas são facetas conexas e interdependentes de um todo, pois, apesar da diferença, ambos integram o fenômeno das relações sociais. Neste aspecto, pontuam que: [...] mesmo questões que, aos olhos do senso comum, são mais marcadamente econômicas como, por exemplo, as ligadas ao circuito económico (produção, circulação, distribuição, consumo) são providas de importantes dimensões jurídicas (disciplina jurídica da força de trabalho, estatuto e perfis da empresa, regulação jurídica do mercado e das trocas, regime jurídico de tributação, direitos dos consumidores, etc.). Por outro lado, a produção de normas de direito, a sua aplicação, bem como a resolução de litígios por meio de processos e decisões judiciais, aspectos predominantemente tidos por jurídicos, contêm, eles também, inequívocas dimensões económicas. Não raro, as diversas teorias económicas (clássicas e neo-clássicas, marxistas e neo-marxistas, institucionalistas e Keynesianas e pós-keynesianas) têm procurado, a partir das suas diferentes premissas, contribuir para o aprofundamento do problema. 88 A lição citada corrobora a percepção de que este vínculo não é novo. Em nível constitucional, sabe-se que esta relação existe ao menos desde o advento das Constituições 88 SANTOS, António Carlos; GONÇALVES, Maria Eduarda; MARQUES, Maria Manuel Leitão. Direito Económico. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1997, p. 09-10. 54 escritas, ou seja, não é algo inerente às Constituições democráticas, senão também às liberais.89 A diferença entre as Constituições liberais e as democráticas, no que tange à questão econômica, está justamente no modus como esta inter-relação direito-economia se materializa. No modelo liberal, as normas constitucionais não dispunham explicitamente sobre o modo como a economia deveria-ser, pois a racionalidade e a espontaneidade do mercado econômico por si eram suficientes e não demandavam alterações. “Assim, bastava o que definido, constitucionalmente, em relação à propriedade privada e à liberdade contratual, ao quanto, não obstante, acrescentava-se umas poucas outras disposições veiculadas no nível infraconstitucional, confirmadoras do capitalismo concorrencial [...]”90. Estas Constituições simplesmente não regulavam o domínio econômico, deixavamno ao talante das livres forças do mercado e de seus agentes. Ou seja, as Constituições e suas normas não objetivavam transformar o domínio econômico, mas recebiam-no tal como praticado no mundo real,91 pois tipicamente liberal, cingindo-se a tutelar as liberdades e direitos individuais, “[...] formulando uma política de abstenção, mediante rígida separação das funções de governo e técnicas de limitação jurídica do poder. A ele – Estado – seria defeso imiscuir-se em temas relegados à atuação dos particulares, cabendo à Constituição, nesse contexto, coibir os excessos do Poder Público92”. Por outro lado, com o surgimento das Constituições sociais, especialmente a Mexicana de 1917 e a de Weimar de 1919 – e praticamente todas as demais do mundo ocidental depois destas – as Constituições passaram a se preocupar explicitamente com o econômico, porém distintamente do modus liberal, na medida em que positivaram de maneira evidente uma Constituição Econômica com escopo de preservar e aprimorar o domínio econômico através de normas jurídicas que importem em políticas públicas neste setor, vale dizer, com notas de prestações positivas por parte do Estado. Não significa, contudo, que se tenha abandonado o regime capitalista de produção; indica apenas que a ordem econômica capitalista foi qualificada pela feição social, transformando sua essência. Portanto, em razão desta modificação na relação entre Direito e Economia, estes institutos aproximaram-se ainda mais. Em verdade, a preocupação com a 89 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 60-63. 90 Idem, ibidem, p. 62. 91 Idem, ibidem, p. 62. 92 PUCCINELLI, André, Jr. A Omissão Legislativa Inconstitucional e a Responsabilidade do Estado Legislador. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 21-22. 55 proteção e o aprimoramento das relações econômicas, cujos efeitos sociais são evidentes, levaram à constitucionalização da economia. Persegue-se, com isto, não apenas a preservação do capitalismo e da economia em geral, mas sim a própria sociedade e seus anseios. Neste contexto, a intervenção estatal é indispensável. Seu cometimento ao Estado transmutou-o, assim, em importante ator econômico em comparação ao que era no período liberal. Ou seja, deixou de ser mero garante do processo econômico – Estado-vigia (État Gendarme)93 – para se posicionar no centro dele, como agente interveniente. Surge, destarte, o conceito de desenvolvimento (processo político e social), vinculando mais fortemente as questões jurídicas e econômicas. Explica-se: com vistas ao desenvolvimento como objetivo primaz a se realizar, porque capaz de possibilitar o bem-estar geral, o Direito passa a dirigir a Economia, no sentido de direcioná-la para aquele fim específico, fixando como deve-ser a conduta dos agentes econômicos. Ainda que seja um fenômeno sociológico inter-relacionado por inúmeros fatores – econômico, educacional, tecnológico, científico, etc. –, situado, é verdade, dentro do universo social, fato é que o problema do desenvolvimento recai enfaticamente sobre o econômico, como demonstra a preclara lição de Lourival Vilanova: Ainda que o processo de mudança sociológica que se denomina desenvolvimento seja um processo inter-relacionado de fatores, que seja processo dentro do universo social, em que impera o princípio da causalidade circular, em que as variáveis ora tomam o posto de dependentes, ora de independentes [...], e de que haja uma conexão totalizante de sentido, na acepção diltheyana, interligando todas as faces componentes do mundo histórico, o fato é que, na situação atual, a ênfase recai no econômico. A matéria que enche as formas jurídicas não é exclusivamente econômica, mas direta ou indiretamente sobre ela repercute. [...]94 Para ele, esta circunstância evidencia-se na intervenção do Estado na propriedade privada e na ordem econômica, pois [...] Ali, expropriando por necessidade pública ou interesse social, requisitando pro tempore seu uso, ou impondo servidões administrativas. Aqui, na ordem econômica, reprimindo o abuso do poder econômico, 93 VILANOVA, Lourival. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa sociedade em desenvolvimento, in Escritos Jurídicos e Filosóficos, v. 2. São Paulo: Axis Mundi, 2003, p. 476. 94 Idem, ibidem, p. 487. 56 tabelando os preços, impedindo o controle do mercado e a imposição unilateral de preço, por intermédio de trustes e cartéis [...]95 Portanto, em busca do desenvolvimento, o Estado passa a atuar com afinco sobre a economia, por intermédio das normas jurídicas. O desenvolvimento socioeconômico, como uma aspiração da sociedade e do Estado, efetivado pela via das políticas públicas, torna-se a preocupação da ordem jurídica econômica, parcela da ordem jurídica total. É dentro deste quadro que surge a Constituição Econômica, aspecto fundamental e mais importante da ordem jurídica econômica. O termo designa aquela parte das Constituições que cuida de disciplinar as atividades econômicas desempenhadas pelo particular e pelo Estado. Para tanto, a Constituição Econômica veicula normas jurídicas com fins estatutários, cujo objetivo é proteger as características básicas do sistema econômico, ou normas programáticas, onde se apontam as suas principais linhas de evolução.96 Assim, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de outubro de 1988 amolda-se perfeitamente a esta compreensão. Portanto, imprescindível discorrer sobre o tema, o que se passa a fazer. 2.1 A CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 Com a promulgação da Constituição de 1988 fixou-se no Brasil um novo modelo estatal. Segundo previsão do Art. 1º, caput, a República Federativa do Brasil constitui-se em “Estado Democrático de Direito”. Mas ao contrário dos modelos anteriores, esta concepção estatal, segundo Miguel Reale, é o resultado de uma convergência de ideologias, decorrente de recíprocas influências entre as diretrizes liberais e as sociais.97 Ou seja, conjuga-se a liberdade e os direitos individuais com a igualdade e a justiça social. Isto leva à conclusão de que todo desenvolvimento só é legítimo se promover ganho econômico com justiça social, cabendo o mister de proteção aos ideais liberais e de realização dos interesses sociais ao Estado Brasileiro. 95 VILANOVA, Lourival. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa sociedade em desenvolvimento, in Escritos Jurídicos e Filosóficos, v. 2. São Paulo: Axis Mundi, 2003, p. 487. 96 Cf. MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 5. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 33-34. 97 REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, prólogo. p. XII. 57 Na pretensão de mudança no processo social, o desenvolvimento vai além do mero progresso. Ou seja, o econômico e o social não mais se contrapõem como nos modelos estatais anteriores, mas caminham juntos, complementam-se. Entretanto, reitere-se: a ênfase atual recai sobre o econômico que é o instrumento capaz de promover o desenvolvimento. Daí porque a nítida preocupação constitucional com a economia; também o motivo do cometimento ao Estado do papel primordial no desenvolvimento socioeconômico nacional. Essencialmente, estes os motivos da intervenção econômica. A partir destas considerações iniciais, o destaque recai sobre a Constituição Federal de 1988, que assumiu o papel de garante do desenvolvimento nacional, e do Estado Brasileiro, que recebeu da Lei Maior a função de timoneiro neste processo de desenvolvimento, sempre tendo como base suas disposições. Ou seja, definido o paradigma democrático de direito, o telos da criação desta concepção de Estado visa a conferir efetividade aos direitos e às liberdades fundamentais, concretizando a pretendida transformação da realidade socioeconômica. Tudo isto, enfim, para realizar a “[...] árdua tarefa de redefinir o papel do Estado de forma a ajustá-lo às exigências dos novos tempos”, 98 com vistas à modificação do status quo e a efetiva realização do desenvolvimento econômico com justiça social. O desenvolvimento, como preocupação constitucional, fica evidente a partir do seu Preâmbulo, sendo ressaltado já no Art. 3º, quando enumera a garantia do desenvolvimento nacional (inciso II do Art. 3º) e a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III do Art. 3º) como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Some-se a isto, ainda, as disposições contidas nos arts. 170 a 192 da Constituição de 1988, os quais compõem o Título VII – “Da Ordem Econômica e Financeira” –, e tem-se toda a concernência constitucional acerca do desenvolvimento econômico. Como objetivo fundamental da República, a idéia do desenvolvimento passa inexoravelmente pela economia, o que, em razão do modelo estatal adotado, importa necessariamente em intervenção estatal. Por conta disto, revela-se uma Constituição Econômica no bojo da ordem jurídica, isto é, há uma parcela do sistema jurídico cujo objeto é a disciplina constitucional da vida econômica. 98 FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 266. (grifos do autor). 58 Entretanto, saliente-se que não se deve confundir, na Lei Constitucional Brasileira, a Constituição Econômica com o Título VII – “Da Ordem Econômica”. Apesar desta traçar regras e princípios vetores da atividade econômica, eles são apenas parte dos princípios fundamentais que dão unidade e ordenação ao funcionamento das atividades econômicas em geral. Em outros termos, a vida econômica brasileira não é disciplinada, em altiplano constitucional, apenas pelas normas jurídicas contidas naquela parte, até porque, como lembra Luís S. Cabral de Moncada, “[...] Não é exigível que tais constem de alguma parte especial da constituição, a eles dedicada, bastando que as disposições econômicas estejam dispersas pelo texto constitucional ou por legislação avulsa [...].”99 Logo, a Constituição Econômica Brasileira não se cinge apenas às disposições contidas no espaço prescritivo positivo que vai do Art. 170 ao Art. 192 da Constituição Federal de 1988. Ao contrário, ela está espalhada por todo o texto constitucional – por exemplo, no Art. 1º, III e IV; e no Art. 3º, II e III – ou esparsa em legislação avulsa100 – a Lei n. 8.884/94, que trata da defesa da concorrência, exemplifica a asserção. Para melhor esclarecer esta última afirmação, é pertinente expor algumas breves considerações acerca da noção de Constituição Econômica e suas espécies, além das normas constitucionais que delineiam esta figura jurídica: as normas programáticas. 2.1.1 Constituição Econômica: noção, espécies e as normas programáticas Ao falar em Constituição Econômica imagina-se que exista algum espaço próprio no bojo da Lei Maior que veicule normas jurídicas vertidos à disciplina da vida econômica. Esta percepção não é de todo equivocada, mas também não é integralmente verdadeira. Consiste, tão-só, em uma visão parcial do universo normativo-constitucional econômico. Eros Roberto Grau, em referência à lição de José Simões Patrício, destaca que a concepção inicial ampla dispensada à noção de Constituição Econômica, tomada como o conjunto de normas voltadas à organização econômica, pode-se considerar ultrapassada.101 99 MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Econômico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 92. A afirmação de que a Constituição Econômica Brasileira não se restringe apenas às previsões do “Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira”, mas está espalhada ao longo da Constituição como um todo e da legislação esparsa, se está utilizando, como premissa, a diferença adotada pela doutrina entre Constituição Econômica Formal e Material. Sobre isto, v. MONCADA, Luís S. Cabral. ob. cit., p. 92. 101 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 68. 100 59 Para ele, isto se deve ao fato de haver, ao longo do Texto Constitucional, sem número de previsões normativas de cunho socioeconômico. Deste modo, há a necessidade de se compreendê-la de modo mais restrito. Daí porque a conceitua como [...] “o conjunto de preceitos e instituições jurídicas que, garantindo os elementos definidores de um determinado sistema econômico, instituem uma determinada forma de organização e funcionamento da economia e constituem, por isso mesmo, uma determinada ordem econômica” (Vital Moreira); ou, definida a partir de sua função, como “formada pelo ordenamento essencial da actividade económica – contendo os princípios e as normas essenciais ordenadoras da economia, dos quais decorrem sistematicamente as restantes normas da ordem jurídica da economia” (Antonio L. Sousa Franco).102 Mais do que isto, afirma que a Constituição Econômica: [...] “restringe-se ao essencial do Direito da Economia, aos seus princípios gerais” (Antônio Menezes Cordeiro); e que dela “fazem parte os princípios mediante os quais se garante e define a estrutura duma certa economia (constituição estatutária)... e, bem assim, o seu modo de funcionamento, organização e orientação (constituição directiva)” (Simões Patrício).103 A existência de princípios fundamentais regentes das atividades econômicas, tomados como objetos de uma Constituição Econômica, tem levado a doutrina a afirmar que há uma constituição econômica material e uma constituição econômica formal. Assim, compreende-se como constituição econômica material aquela cujas normas jurídicas caracterizam-se como pilares, normas fundamentais da organização das atividades econômicas, integrando o núcleo essencial do sistema econômico, a despeito de não terem assento na Lei Maior. Isto está a indicar que o conteúdo da constituição econômica não se esgota na Lei Constitucional, senão também no plano a ela inferior. Ressalte-se que não estando formalmente positivadas no plano constitucional, posto que fundamentais à estruturação da ordem econômica, as normas jurídicas integrantes da constituição econômica material podem ser alteradas total ou parcialmente pelo legislador infraconstitucional, refletindo a diferença de hierarquia normativa entre elas e as normas formalmente constitucionais. Em verdade, dentro do entendimento de constituição econômica material cabe a colocação de normas constitucionais e infraconstitucionais que se prestam a disciplinar a organização nuclear do sistema econômico. 102 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 68-69. (grifos do autor). 103 Idem, ibidem, p. 69. (grifos do autor). 60 Nesta linha de entendimento, Luís S. Cabral de Moncada aduz que “[...] A apreciação e identificação das normas que integram a CE material, faz-se predominantemente a partir da realidade constitucional e não a partir do sistema económico, puro ou misto, que o texto constitucional consagrou. [...]”104. Traduzindo a idéia: as normas jurídicas que caracterizam a constituição econômica material são aquelas que, conquanto não estejam formalmente postas no bojo da Lei Maior, conformam-se com suas prescrições, ou seja, coadunam-se com as normas constitucionais, delas extraindo seu fundamento de validade. De outro lado, entende-se por constituição econômica formal aquela cujas normas jurídicas estão prescritas no próprio Texto Constitucional. Tomando-se como exemplo a Constituição Federal Brasileira de 1988, encontrar-se-á um espaço reservado à Ordem Econômica e Financeira, como enuncia o Título VII. Mas além delas, as normas jurídicas constitucionais da economia não estão previstas única e exclusivamente naquela extensão que vai do Art. 170 ao Art. 192 do Texto Supremo. Em verdade, como consignado anteriormente, a “Constituição Econômica” espalha-se por todo o texto da Lei Maior. Deve-se recorrer, aqui, a Eros Roberto Grau, que aludindo à lição de Antonio L. Sousa Franco, assentou que mais do que aquelas normas econômicas fixadas ao texto constitucional e dotadas de seus requisitos e características formais, ainda podem-se considerar parte integrante da Constituição Econômica formal outras normas com “[...] incidência econômica, ainda que desprovidas, de per si, daquela particular relevância material”.105 Em outras palavras, compõe a Constituição Econômica formal todas as normas que, de algum modo, reflitam uma conseqüência econômica, mesmo que não sejam diretamente direcionadas ao âmbito econômico ou que não tenham conteúdo econômico objetivo. As prescrições constitucionais contidas no Art. 1º e no Art. 3º precitados assumem a qualidade de normas constitucionais que possuem incidência econômica, mas que não detêm esta particular relevância material. De igual modo, as normas tributárias extrafiscais, como é o caso do Art. 146, III, “d”, da Constituição de 1988, que confere fundamento de validade ao Simples Nacional, abordado no último capítulo, e o Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição Federal, que fixa a necessidade de deliberação entre os Estados-membros e o Distrito Federal 104 MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra: 2000, p. 92-93. GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 69. 105 61 – via convênios interestaduais – para concessão de incentivos fiscais em matéria de ICMS, também objeto de investigação adiante. Em conclusão parcial, consigne-se que a utilização da expressão “Constituição Econômica”, ao contrário de ser pacífica, tem causado dissensos. Não há um sentido unívoco no seu emprego. Eros Roberto Grau, após comentá-la, critica severamente o emprego da expressão Constituição Econômica como também da locução “Ordem Econômica”. Ele entende que o conceito tem pouca utilidade. Ainda, lembra a crítica de Carlos Ferreira de Almeida, que afirma ser o conceito de Constituição Econômica uma ficção, pois as normas jurídicas que o integram não são verdadeiramente constitucionais.106 José Afonso da Silva, a seu turno, faz uma ressalva sobre a idéia que se tem de Constituição Econômica. Segundo ele, na perspectiva brasileira, é possível tomá-la apenas como Constituição Econômica formal, que se consubstancia “[...] na parte da Constituição Federal que contém os direitos que legitimam a atuação dos sujeitos econômicos, o conteúdo e limites desses direitos e a responsabilidade que comporta o exercício da atividade econômica”.107 Do conceito exposto percebê-se que o autor concebe a Constituição Econômica formal com uma noção mais ampla do que a doutrina que a entende como a disciplina jurídica fundamental da intervenção do Estado na economia. É o caso de Jorge Miranda, que vê a Constituição Econômica como algo significativo exclusivamente do conjunto de preceitos que regulam a intervenção estatal na economia, ou seja, sua compreensão a respeito dela é mais restrita, não alcançando a organização e a estruturação da vida econômica em geral.108 Desenvolvendo um pouco mais a idéia acerca da Constituição Econômica, porém alterando-se o enfoque, nota-se que afora a discussão sobre a constituição econômica formal e material, há ainda uma dualidade na sua compreensão quanto ao modus como as normas constitucionais econômicas regem as relações econômicas. João Bosco Leopoldino da Fonseca salienta que a constituição econômica tem o condão de converter o regime econômico em ordem jurídico-econômica, pois fixa os 106 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 75. 107 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 791. (grifos do autor). 108 Apud MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, nota de rodapé n. 2, p. 93. 62 princípios e as regras jurídicas que informam as relações econômicas. Assim, dependendo de como a ordem jurídico-econômica trata o regime econômico – (i) se aceita e acolhe o já existente, adotando-o como base de toda a organização que a norma implanta; ou (ii) se procura criar um novo regime econômico, tem-se a distinção entre constituição econômica estatutária e constituição econômica programática, diretiva ou dirigente.109 Deste modo, a constituição econômica estatutária é aquela composta por normas jurídicas definidoras de uma certa e determinada forma econômica, um verdadeiro “estatuto” que caracteriza uma dada ordem jurídica da economia.110 Afirma-se, com José Joaquim Gomes Canotilho, que este modelo de constituição econômica concebe-se como simples instrumento governamental, estabelece competências e regulam os processos econômicos. Em síntese, a constituição econômica estatutária apenas recebe a ordem econômica real, aquela desempenhada no plano factual.111 É por meio das normas jurídicas estatutárias que se definem, portanto, as reais características da ordem jurídica da economia, expondo sua ideologia. Por exemplo, como a liberdade de iniciativa e a propriedade privada são tratadas por uma certa e determinada ordem jurídica é reflexo do estatuto da economia em vigor em um dado Estado. De outro lado, encontra-se a figura da constituição econômica programática, diretiva ou dirigente. Esta, mais do que mero instrumento de governo, revela-se um meio de reação sobre a ordem econômica (mundo do ser), conformando-a, modificando-a, enfim, direcionando-a em um sentido que se o entende mais correto, preestabelecido. Ou seja, ela estabelece diretrizes, fins a serem atingidos pelo Estado e pela sociedade. Em outros termos, por intermédio das normas jurídicas programáticas busca-se a realização de valores constitucionais materiais como o desenvolvimento socioeconômico e a justiça social. A constituição econômica programática funciona como um vetor da ordem econômica (plano da realidade), com o escopo de condicioná-la a realizar as metas e programas juridicamente definidos no altiplano constitucional.112 109 FONSECA, João Bosco Leopoldino. Direito Econômico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 93. MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 96. 111 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 66. 112 A respeito da constituição econômica programática, cf. MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 95-97. 110 63 Conquanto exista esta distinção conceitual entre a constituição econômica estatutária e a programática, é possível afirmar que esta é mais ampla, de modo que contém aquela. Ou seja, se a constituição estatutária é aquela que, em última análise, define a realidade econômica do Estado de modo a expor sua ideologia, então não é demais asseverar que a constituição programática também detém esta qualidade, com a diferença que a isto ela acresce um plus que é a fixação de diretrizes e metas econômicas a serem atingidas pelo Estado, e não como mera aceitação e acolhimento da realidade econômica. Como a constituição programática tem um “plano” para a economia e sobre ela intervém para realizá-lo, afirma-se, com tranqüilidade, que a constituição programática é uma criação do Estado Social, contrapondo-se à “Constituição Econômica” do Estado Liberal, meramente estatutária. Seu aperfeiçoamento, sua evolução, contudo, se dá, como é perceptível, sob a égide do Estado Democrático de Direito, pois, ao invés de se desenvolver a função de “grande provedor” e de explorador das atividades econômicas, há uma mudança de foco, na medida em que ela cometeu ao Estado a função primaz de regulador da economia, fiscalizando-a, incentivando-a, planejando-a. Tendo em vista esta classificação das constituições econômicas, é fácil perceber que a Constituição Federal de 1988 enquadra-se perfeitamente no segundo conceito, isto é, de constituição programática, diretiva ou dirigente, o que significa ser ela prenhe de normas jurídicas programáticas, ou seja, normas jurídicas de natureza teleológica. Estas, por sua vez, são aquelas que José Afonso da Silva define como [...] normas constitucionais, através das quais o constituinte, em vez de regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçarlhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos, executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado.113 Se a constituição econômica programática é aquela que fixa as diretrizes econômicas a ser perseguida pelo Estado, e isto se faz pela previsão das normas constitucionais programáticas, então não precisa se demorar no texto da Lei Constitucional Brasileira para se verificar a existência de diversas normas programáticas com fins socioeconômicos. Já no Art. 3º constam os objetivos fundamentais da República, os quais são as metas, os fins a serem alcançados pelo Estado Brasileiro. 113 SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 138. 64 Ali constam claros exemplos de normas programáticas, que indicam justamente a característica dirigente que acomete a Constituição Brasileira em vigor. Em verdade, estes objetivos são os vetores condicionantes de toda a atividade dos órgãos Legislativo, Executivo e Judiciário, enquanto componentes da estrutura estatal. Ainda sob esta mesma ótica, vê-se, atualmente, valorização do trabalho e a liberdade de iniciativa. Estas categorias jurídicas, positivadas como fundamentos da República, no dizer do Art. 1º, inciso IV, da Constituição de 1988, são valores sociais. Eles revelam sua natureza programática na medida em que se os encontra como alicerces da Ordem Econômica, conforme caput do Art. 170 da Constituição. Ou seja, além de fundamentos da República, eles se caracterizam, ainda, como bases sobre as quais toda a ordem da economia – entendida como aquela localizada no plano do real-social – deve se estruturar e desenvolver. Vale dizer, a valorização do trabalho e a livre iniciativa fundamentam a ordem jurídica econômica. Estas mesmas idéias se aplicam sobre os demais princípios gerais da atividade econômica, constantes nos incisos I a IX do Art. 170 da Constituição. Eles não são os fins em si, mas, diversamente, consistem em princípios jurídico-econômicos que condicionam a economia brasileira como um modelo democrático, ou seja, que prestigia, ao mesmo tempo, a liberdade de iniciativa e os valores liberais sem deixar de lado as preocupações e anseios sociais e coletivos. Em outros termos, o sistema de produção é capitalista, isto é, a economia é de mercado, mas só é legítima se fundada na valorização do trabalho e na liberdade de iniciativa e se promover desenvolvimento econômico com justiça social. Portanto, a Constituição Brasileira de 1988, como constituição econômica programática, tem como escopo promover o desenvolvimento como justiça social, esta sua finalidade, que serve, em conseqüência, à realização do fim último de todo Estado: a promoção do bem estar geral da sociedade. 2.1.2 A finalidade da Constituição Econômica: desenvolvimento socioeconômico O desenvolvimento, como lembrado outrora por Lourival Vilanova, é um processo de mudança social integrado por uma série de fatores, mas cuja ênfase recai, em dias de hoje, sobre o econômico.114 Apesar disto, deve-se lembrar que o desenvolvimento econômico não é 114 VILANOVA, Lourival. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa sociedade em desenvolvimento, in Escritos Jurídicos e Filosóficos, v. 2. São Paulo: Axis Mundi, 2003, p. 487. 65 apenas crescimento ou progresso econômico, ou seja, mera acumulação de riquezas. Tampouco consiste em distribuição de riqueza. Ao contrário, desenvolvimento pressupõe distribuição eqüitativa de riqueza, crescimento econômico equilibrado; pressupõe, também, a idéia força de um programa do Poder determinante de uma política desenvolvimentista. Enfim, trabalha em favor do bem-estar social.115 É adequado dizer, neste sentido, que desenvolvimento, apesar do enfoque econômico salientado por Lourival Vilanova, é sempre desenvolvimento socioeconômico – até em face das próprias previsões constitucionais que disciplinam juridicamente a questão econômica, jungindo-a ao pretexto social. Talvez por isto que Gilberto Bercovici pontue que não há bemestar social sem desenvolvimento, pois condição necessária para tanto.116 De todo modo, ciente disto o constituinte de 1988 preocupou-se largamente com o tema. Tal foi sua fixação sobre a idéia do desenvolvimento socioeconômico nacional, que, curiosamente, o termo aparece 46 (quarenta e seis) vezes ao longo da Constituição de 1988. Ora ele surge como objetivo fundamental, ora é colocado no bojo dos direitos individuais; ora é fim da ordem econômica, em outras vezes aparece ao longo das regras definidoras das competências legislativas das entidades federativas; vislumbra-se-lo, também, na organização dos poderes do Estado e mesmo no Sistema Tributário Nacional. Ele é traçado, ainda, no bojo da Política Urbana, no Sistema Financeiro Nacional, na questão educacional, na cultura e no capítulo da Ciência e Tecnologia. É, destarte, o escopo maior de toda a ordem jurídica brasileira, notadamente aquela traçada no plano constitucional. De toda sorte, interessa a esta investigação as previsões constitucionais dispostas no Art. 3º, incisos I, II e III. É da combinação destes dispositivos constitucionais que se assenta o desenvolvimento nacional como objetivo fundamental da República. A interpretação sistemática daqueles dispositivos confere ao desenvolvimento importante status, pois a partir deles que se direcionam os caminhos que devem ser seguidos pelos governantes ao traçar suas 115 RIBEIRO, Maria de Fátima. Os 40 Anos da Zona Franca de Manaus e a Importância dos Incentivos Fiscais para o Desenvolvimento Econômico e Social da Região. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes, PEIXOTO, Marcelo Magalhães [coord.]. Tributação na Zona Franca de Manaus: (Comemoração aos 40 anos da ZFM). São Paulo: MP Editora, 2008, p. 336. 116 BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento- uma leitura a partir da Constituição de 1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 51. 66 políticas sociais e econômicas, estabelecendo, desta forma, um programa socioeconômico em nível constitucional, indicador e regulador das políticas governamentais. Em outras palavras, vê-se que tais disposições – que, em última instância, significam conjugadamente a mesma circunstância, isto é, objetivam o desenvolvimento socioeconômico nacional – indicam quais são as finalidades sociais e econômicas que o Estado deve realizar. Exatamente por isto é que: Os poderes públicos devem buscar os meios e instrumentos para promover condições de igualdade real e efetiva e não somente contentar-se com a igualdade formal, em respeito a um dos objetivos fundamentais da República: construção de uma sociedade justa. Para adoção desse preceito, deve existir uma política legislativa e administrativa que não pode contentar-se com a pura igualdade legal, adotando normas especiais tendentes a corrigir os efeitos díspares ocasionados pelo tratamento igual dos desiguais, buscando a concretização da igualdade social.117 Destaque-se, ainda, que de forma inovadora a Constituição Federal traz em seu bojo os objetivos fundamentais a serem perseguidos pela República Federativa do Brasil, o que reforça mais uma vez a preocupação do legislador constituinte e de toda a sociedade brasileira com o desenvolvimento socioeconômico nacional. Por outro lado, tratando do desenvolvimento no texto da Constituição Portuguesa, Luís S. Cabral de Moncada situa-o como um princípio, mas, como tal, sua compreensão é próxima àquela que se tem exposto no Brasil. Diz ele: Este princípio não aponta, sem mais, para uma política de crescimento económico medido pela mera acumulação do produto nacional bruto. De facto, a ideia de desenvolvimento veicula desde logo considerandos de equidade social dependentes de uma intervenção dos poderes públicos na esfera da produção e da repartição. O crescimento deve pois obedecer a certas condições que própria constituição precisa; deve ser um crescimento equilibrado [...], equitativo [...] e eficiente que se não pode medir pelo simples acumular de riqueza. É por isso que se quer agora desenvolvimento e “sustentável” [...].118 Não obstante, o próprio Luís S. Cabral de Moncada lembra que desenvolvimento é um crescimento condicionado e problemático, na medida em que os elementos que o compõe 117 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2003, p. 146. 118 MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 147. 67 conflitam uns com os outros. Em razão disto, cabe ao Estado decidir qual dele deva favorecer de acordo com cada caso e momento. É neste contexto que a lição de Moncada revela-se mais interessante, pois, conquanto concorde que desenvolvimento não significa crescimento econômico puro e simples ou mesmo distribuição de riqueza, ele entende que primeiro deve haver crescimento e só depois há que se falar em desenvolvimento. É sua letra: A tarefa de conciliação referida é difícil e delicada, já que o desenvolvimento só pode ter sentido a partir da acumulação prévia de um mínimo de riqueza. Só a partir daí é que é possível fazer intervir os aludidos considerandos de equidade social. Na verdade, antes do desenvolvimento, que é uma opção política, é necessário garantir o crescimento que é uma necessidade econômica e social. Isto significa que a política de desenvolvimento só pode ter um sentido útil a partir de um certo nível de crescimento econômico, pois que os considerandos igualitários só podem fazer-se sentir a partir de certa altura e não como preocupação inicial da política econômica, frustrando o crescimento.119 O desenvolvimento, portanto, é objetivo fundamental da República. Porém, não é o objetivo-fim em si, pois que visa promover o bem estar geral da sociedade. Entretanto, visto da ótica jurídico-constitucional, o desenvolvimento como objetivo fundamental depende de outras normas jurídicas que tendam a efetivá-lo concretamente, uma vez que norma de cunho programático. Precisamente por isto que sua ligação com as normas jurídicas econômicas é irremediável, notadamente aquelas contidas no Capítulo I do Título VII da Constituição Federal, quando trata dos Princípios Gerais da Atividade Econômica. Ficou assentado anteriormente que a Constituição Econômica Formal é perfeita pelas normas constitucionais que integram aquela parte que o constituinte denominou de “Da Ordem Econômica” e também por outras que disponham sobre a organização e a estruturação das atividades econômicas, ou seja, todas as normas constitucionais que disciplinam a vida econômica da nação. Neste sentido, as disposições do Art. 3º da Constituição de 1988, acima referidas, fazem parte da Constituição Econômica, revelando que a ordem jurídica da economia, com seus princípios e regras fundantes e estruturantes, é informada pelos objetivos fundamentais da República. Via de conseqüência, a relação entre estes e as disposições do Art. 170 e seguintes da Constituição – que constitui a Ordem Econômica – é indissociável. 119 MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 147-148. 68 Reforça esta idéia, verbi gratia, a circunstância de a redução das desigualdades sociais e regionais estar inserida constitucionalmente como objetivo fundamental (Art. 3º, inciso III) e ainda como princípio geral da atividade econômica (Art. 170, inciso VII). Assim, o desenvolvimento socioeconômico é o fim da Constituição Econômica; as atividades econômicas informadas pelos princípios gerais enumerados no Art. 170 da Constituição laboram no sentido de sua realização, pois vetor de interpretação e aplicação destas normas jurídico-constitucionais. Porém, inolvidável que este mister, de promoção do desenvolvimento socioeconômico nacional, compete ao Estado, que o realiza, entre outras formas, mediante intervenção na economia e no âmbito social, com vistas a implementá-lo.120 2.1.3 Os princípios gerais da atividade econômica e o papel do Estado na ordem constitucional econômica de 1988 O Título VII do Texto Constitucional trata “Da Ordem Econômica e Financeira”, cujas disposições iniciam-se, como já referido, no Art. 170 e prolonga-se até o Art. 192. Neste título, o Capítulo I cuida “Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”, conforme previsões do Art. 170 e seguintes. Mas mais do que os princípios gerais da atividade econômica, encontram-se ali positivadas, também, as normas constitucionais que disciplinam toda a atuação estatal no domínio econômico, entre outras coisas. Nada obstante, por hora é relevante para este trabalho o contido no Art. 170, que veicula os princípios gerais propriamente ditos. Referido dispositivo prescreve, in verbis: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I – soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII – busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. 120 AGUIAR, Glauco Lubacheski de. A tributação extrafiscal como mecanismo de desenvolvimento sócioeconômico da Zona Franca de Manaus. In: MARTIN, Ives Gandra da Silva; RAMOS FILHO; Carlos Alberto de Moraes; PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord.). Tributação na Zona Franca de Manaus: comemoração aos 40 anos da ZFM. São Paulo: MP Editora, 2008, passim. 69 Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei. Perceptível, ab initio, que a ordem econômica tem dois fundamentos e uma finalidade. Os fundamentos: a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa121; a finalidade: assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social. Significa que os fundamentos da ordem econômica não se esgotam em si mesmos, pois não são os objetivos-fins, mas, sim, propõem-se a garantir dignidade a todos e promover a justiça social. Para que isto se efetive, entrementes, há a necessidade de observância dos princípios gerais da ordem econômica, que, como apercebe José Afonso da Silva, “[...] se revelam mais tipicamente como objetivos da ordem econômica [...]”122 do que propriamente princípios. Todavia, a discussão semântica, neste momento, é secundária. Importa ter em mente apenas que a Constituição confere-lhes relevante papel no contexto econômico, notadamente porque condiciona a atuação do particular e também do próprio Estado. A soberania nacional (Art. 170, inciso I, da Constituição de 1988) posta como princípio da ordem econômica é mais do que simples repetição daquela previsão contida no Art. 1º, inciso I, da Lei Maior, pois consiste em sua complementação, na medida em que afirma a independência nacional do ponto de vista econômico. Neste aspecto, João Bosco Leopoldino da Fonseca ressalta que a soberania, ao lado da igualdade e da solidariedade constitui a tríade principiológica fundamental do direito internacional do desenvolvimento, sendo vedado a qualquer Estado interferir em outro com o fito de lhe impor direcionamentos econômicos, a teor da Resolução n. 2625 da Organização das Nações Unidas (ONU).123 Segundo Lafayete Josué Petter, em uma primeira aproximação – única cabível neste trabalho – a soberania nacional como princípio da ordem econômica pode ser entendido como autodeterminação de condução da política econômica.124 Por sua vez, a propriedade privada e a sua função social estão enunciadas como princípios constitucionais da ordem econômica, conforme os incisos II e III do Art. 170. A 121 Aqui vale a lembrança de que a valorização do trabalho e a livre iniciativa são, ao mesmo tempo, fundamentos da ordem econômica e também da República. E funcionam, igualmente, como princípio informador das atividades econômicas. 122 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 792. 123 FONSECA, João Bosco Leopoldino. Direito Econômico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 127. 124 PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 190. 70 abordagem conjunta destes princípios decorre da necessidade de uma compreensão ampla sobre o direito de propriedade, uma vez que é a função social que traça os limites do seu exercício, reduzindo-lhe aquela pecha de plenitude que as duas primeiras constituições brasileiras – a imperial de 1824 e a republicana de 1891 – lhe outorgavam. Muito embora o direito de propriedade se constitua em direito individual, sua consagração como princípio da ordem econômica lhe dá o tom adequado de sua existência no bojo da ordem constitucional em vigor, na medida em que “[...] os princípios da ordem econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social.”125 Assim, a propriedade privada vincula-se à consecução daqueles fins, para mais de atender a sua função social. Interessante relembrar algo que já fora exposto e que agora ressurge: diz respeito ao aspecto estatutário da constituição econômica, ou seja, conhece-se a natureza do regime econômico segundo o tratamento jurídico dispensado ao direito de propriedade privada. No caso brasileiro, é indubitável a adoção do sistema econômico fundado na iniciativa privada, nos termos do Art. 170 combinado com o Art. 1º, IV e com o Art. 5º, XXII e XXIII. Todavia, a observação de João Bosco Leopoldino da Fonseca é pertinente acerca do erro lógico levado a efeito pela Constituição de 1988 no que tange aos fundamentos da ordem econômica. Para ele, ao invés de dizer a livre iniciativa como fundamento da ordem econômica e o direito de propriedade privada como princípio, a inversão desta consideração seria mais adequada, pois o princípio da livre iniciativa encontra-se na aceitação do direito de propriedade privada, isto é, dela é corolário lógico.126 Um detalhe: Luís Eduardo Schoueri recorda, o que é de todos conhecido, que o princípio da propriedade privada tem estreita ligação com a tributação, uma vez que esta implica necessariamente em diminuição da esfera patrimonial privada pela sua transferência ao setor público. Entretanto, ele adverte que a tomada das normas tributárias com efeito indutor também encontra na propriedade privada seus limites, porém, com índole mais rígida do que aquela que delimita a atuação apenas arrecadatória.127 125 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 812. FONSECA, João Bosco Leopoldino. Direito Econômico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 128. 127 Sobre o assunto, cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 91-92. 126 71 A defesa do consumidor também é colocada como princípio da ordem econômica (Art. 170, V, da Constituição Federal) em razão da relevância que ele assume no contexto econômico. Tutelá-lo é reflexo da evidente vulnerabilidade frente ao fornecedor, além das conseqüências que a massificação das relações de consumo lhe inflige por conta da produção em grandes escalas. Em verdade, tornou-se indispensável sua proteção em virtude de sua importância no cenário econômico, principalmente onde impera a economia de mercado. Ora, é inegável sua importância, vez que inexiste economia de mercado sem consumidor. Como consiste em elemento imprescindível à própria existência do mercado – que depende do equilíbrio entre a oferta e a demanda para seu justo equilíbrio –, a defesa da concorrência sempre tem o consumidor e seus direitos como um de seus focos principais, como bem lembra Lafayete Josué Petter, referindo-se principalmente à experiência norteamericana e européia.128 Em outros termos, tutelando-se o consumidor, a Constituição garante a concorrência e, assim, traceja os limites de atuação do mercado, assegurando a manutenção de seu funcionamento, já que inerente ao modelo econômico por ela adotado. Ou seja, por intermédio deste princípio defende-se a concorrência e assim garante a racionalidade e o esclarecimento da decisão econômica, pois permite “[...] ao consumidor que exerça a sua escolha sem ser para tal pressionado pelo poder económico dos monopólios ou por comportamentos abusivos das empresas [...]”.129 Note-se, ainda, que ao abordar o tema, José Afonso da Silva toma a defesa do consumidor como princípio de integração, pois se dirige a solver problemas de marginalização regional ou social, colocando-o, assim, em conjunto com a defesa do meio ambiente, com a redução das desigualdades sociais e regionais e com a busca do pleno emprego.130 Tamanha é a significação da defesa do consumidor para o sistema jurídico-político instituído a partir de 1988, que a Constituição também o fixou como direito individual, atribuindo ao Estado a sua promoção, a teor do Art. 5º, inciso XXXII da Constituição Federal. Ou seja, reconhece-lhe direitos e atende-se às necessidades que lhes são inerentes, como o respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, etc. 128 PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 230. 129 MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 371. 130 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 796. 72 Outro princípio que recebeu menção expressa do constituinte no rol dos princípios jurídicos econômicos é a tutela do meio ambiente (Art. 170, VI, da Constituição Federal). A enunciação da defesa do meio ambiente no bojo da ordem jurídica econômica implica na necessidade de modificação do modelo de desenvolvimento, no sentido de que se realize de modo equilibrado e sustentado. Ou seja, traduz a premente necessidade de que todo o empenho e esforço dos agentes econômicos, públicos ou privados, para a máxima promoção do desenvolvimento efetivem-se em respeito ao meio ambiente. Daí porque chamado de desenvolvimento sustentável, em vista da estreita ligação entre o econômico e o ambiental. Vale consignar que a expressão “desenvolvimento sustentável” não alcança unanimidade doutrinária, pois o conceito de “desenvolvimento” pressupõe uma sustentabilidade, porque ínsita a ele. Assim, todo desenvolvimento só se caracteriza como tal porque é sustentável. Lafayete Josué Petter pondera neste sentido, pois considera haver uma contradictio in terminis na expressão, já que desenvolvimento significa aumento da qualidade de vida dos integrantes da sociedade, o que supõe a idéia de sustentabilidade.131 Ao falar em desenvolvimento sustentável e o liame existente entre o econômico e o ambiental, não se pode perder de vista algo que ficou assentado no capítulo inicial acerca da interpretação das normas constitucionais. Sendo o desenvolvimento socioeconômico objetivo fundamental, mas tendo em vista a proteção e preservação ambiental, como parcela vital da dignidade da pessoa humana, também encampada pela ordem jurídica, é determinante que a interpretação das normas que versem sobre este âmbito se realize de modo a assegurar a unidade da Constituição, promovendo-se ambos os bens jurídicos precitados. Enfim, enunciar a defesa do meio ambiente no rol dos princípios econômicos demonstra a estreita correlação entre estes domínios, mas revela, principalmente, a existência de um espaço onde se une dignidade humana, qualidade de vida e desenvolvimento. Além de princípio econômico, a tutela do meio ambiente consta, também, no rol dos direitos individuais, conforme Art. 5º, LXXIII, da Constituição de 1988, como um dos bens jurídicos que poderão ser protegidos via ação popular, além de consistir em tema de competência comum entre as unidades federativas (Art. 23, VI, da Constituição Federal). Mas, principalmente, vê-se sua importância porque ganhou capítulo próprio dentro do Texto 131 PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 243. 73 Constitucional, consistindo em “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”, consoante Art. 225 da Constituição de 1988. A redução das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego também foram inseridos na relação de princípios gerais das atividades econômicas, a teor do Art. 170, incisos VII e VIII, da Constituição Federal. Estes princípios decorrem de outras previsões constitucionais. A redução das desigualdades sociais e regionais, além de princípio econômico, é também objetivo fundamental da República, conforme Art. 3º, III, da Constituição de 1988; o pleno emprego é conseqüência direta da dignidade da pessoa humana por meio da valorização do trabalho, que consistem em fundamentos da República, consoante Art. 1º, incisos III e IV, da Lei Maior, além, obviamente, de se caracterizar como direito social inalienável, a teor do Art. 6º da Constituição. Como princípios da ordem econômica, fixam objetivos ao Estado e aos agentes econômicos.132 Além disso, são primados constitucionais impositivos e, simultaneamente, norma-objetivo, “[...] dotada de caráter constitucional conformador, a justificar a reivindicação pela realização de políticas públicas”.133 José Afonso da Silva trata-os, assim como a outros dantes comentados, como princípios de integração, porquanto vertidos à solução dos problemas de marginalização regional ou social, buscando, em última instância, igualização das condições sociais. Especialmente quanto à busca do pleno emprego, enfim, o autor pondera sua harmonização com a valorização do trabalho humano, fundamento da ordem econômica.134 Estas considerações sobre os princípios da ordem econômica prestam-se a contextualizá-los ao tema desenvolvido. E apenas isto, pois que os princípios que importam efetivamente ao tema são a livre iniciativa, a liberdade de concorrência e o tratamento favorecido dispensado as pequenas empresas, todos tratados oportunamente adiante. Sobre os princípios constitucionais econômicos enumerados no Art. 170, chama atenção o fato de todos eles, além de princípio econômico, estarem positivados em outros 132 ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica – um exame da tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora, 2007, p. 89. 133 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 205. 134 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 796-797. 74 pontos da Constituição, ora significando fundamentos da República, ora objetivos fundamentais; em outros casos direitos e garantias individuais ou mesmo direitos sociais. Enfim, por força destas circunstâncias que se denota a unidade constitucional e o inter-relacionamento existente entre as diversas partes do Texto Maior, isto é, a correlação e proximidade entre os mais diferentes conteúdos. Exatamente nesta linha de raciocínio a advertência de Lafayete Josué Petter: “[...] torna-se ilógica a compartimentalização de determinados preceitos constitucionais em face da evidência da interconexão de todos”.135 Brevemente anotadas algumas linhas acerca dos princípios gerais da atividade econômica, de plano percebe-se a abstenção de considerações sobre o princípio da livre concorrência, estipulado no Art. 170, inciso IV, da Constituição de 1988. Assim foi feito por dois motivos, conseqüência um do outro: (i) consiste em uma discricionariedade do cientista; (ii) no exercício de sua discricionariedade investigativa, entende-se que pela importância do princípio ao presente trabalho, a ele deve ser conferido espaço próprio e individualizado. Por outro lado, também não foram abordados os enunciados prescritivo-normativos contidos nos arts. 173, 174 e 175 da Constituição, que positivam as formas de atuação do Estado em relação ao processo econômico, posto que contidos no Capítulo I que supostamente trata dos “Princípios Gerais da Atividade Econômica”. Em verdade, também porque detém relevância especial para o desenvolvimento do tema que será feita uma análise específica sobre os pontos que importam. Porém, é factível sintetizar que destas disposições normativas revelam-se três diferentes papéis cometidos ao Estado no contexto econômico: (i) como explorador das atividades econômicas; (ii) como agente normativo e regulador das atividades econômicas; e (iii) como prestador de serviços públicos. 2.2 O PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA COMO VETOR DA ATUAÇÃO INTERVENTIVA ECONÔMICA DO ESTADO Abordar o princípio constitucional econômico da livre concorrência depende do conhecimento de algumas premissas iniciais basilares. Prima facie, deve-se ter em mente que inexiste livre concorrência sem liberdade de iniciativa – de empresa, principalmente. Muito embora sejam princípios distintos, eles são umbilicalmente ligados. 135 PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, nota de rodapé n. 3, p. 149. 75 Logo, falar de liberdade de concorrência implica em tratar, igualmente, da livre iniciativa. Aquela é elemento indissociável desta, na medida em que a livre concorrência pressupõe a liberdade de iniciativa. Porém, a recíproca não é verdadeira, ou seja, embora a livre concorrência seja corolário da liberdade de iniciativa e sem ela não exista, esta subsiste sem aquela.136 Pode-se dizer, assim, que a livre concorrência é parte da livre iniciativa. A teor do Art. 1º, inciso IV, da Constituição de 1988, a livre iniciativa constitui um valor social e, como tal, caracteriza-se como fundamento da República. Além disso, nos termos do Art. 170, caput, da Lei Maior, a livre iniciativa, ao lado da valorização do trabalho humano, são as bases sobre as quais estrutura-se a ordem econômica brasileira. A livre iniciativa é conceito que pode ser traduzido no direito individual de se lançar no mercado econômico por sua conta e risco. Segundo MIGUEL REALE, ela [...] não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção, circulação e distribuição de riquezas, assegurando não apenas a livre escolha das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio da livre iniciativa, conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada dos citados arts. 1º e 170.137 Corolário, no âmbito econômico, do valor liberdade e do direito de propriedade, a livre iniciativa manifesta-se de diversas formas. Seu influxo alcança a liberdade de iniciativa econômica, a liberdade de contratar, o direito de propriedade privada e, essencialmente, a liberdade de concorrência, objeto de análise desta investigação neste momento. No que tange à liberdade de iniciativa das atividades econômicas, atente-se que sua ligação com a livre concorrência tem a isonomia como pressuposto. Pode-se afirmar, em termos, que a livre concorrência limita a liberdade de iniciativa econômica de modo que se valorize a igualdade. Ou melhor, é pela garantia de atuação de todos agentes no mercado, bem como sua permanência, conferindo-lhes igualdade de oportunidades e tratamento que se protege o direito de liberdade econômica. Assim destaca André Elali, para quem: O sistema, pois, ao mesmo tempo em que admite a livre iniciativa, deve controlar o equilíbrio das relações econômicas, através da manutenção da livre concorrência. Livre-iniciativa e livre concorrência são princípios que se 136 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 94. 137 REALE, Miguel. Inconstitucionalidade de congelamentos. Folha de São Paulo. 19 de out. de 1988, p. A-3. 76 complementam, representando liberdades relativas, já que vinculadas ao fim da harmonia da estrutura social.138 Como princípio explícito da ordem econômica, catalogado no inciso IV do Art. 170, a livre concorrência, recorde-se, é um princípio instrumental, pois serve de meio à promoção da liberdade de iniciativa. Esta asserção revela que não é ele o fim em si, mas a ferramenta para o alcance de um objetivo maior. Neste particular, Isabel Vaz preleciona: [...] Defende-se a opinião segundo a qual a concorrência empresarial ‘não é um valor-fim, mas um valor meio’ classificada como instituto jurídico filiado às normas do Direito econômico. E nesta condição, adquire a natureza de instrumento de realização de uma política econômica, cujo escopo principal não é simplesmente reprimir práticas econômicas abusivas e sim estimular todos os agentes econômicos a participarem do esforço do desenvolvimento, tal como descrito por Perroux.139 A enumeração da livre concorrência como princípio constitucional econômico – somado à livre iniciativa – reflete o modo capitalista de produção adotado pelo sistema político para a vida econômica nacional. A livre concorrência só tem lugar onde houver um sistema de economia de mercado, pois seu escopo é garantir o livre jogo de suas forças no intuito da manutenção do justo equilíbrio entre a oferta e a procura, garantindo a liberdade de ação inerente ao mercado, sem prescrições ou prestações estatais. Como resultante do valor fundamental da liberdade, a livre concorrência denota, de início, a ausência de intervenções externas no mercado – leia-se “estatal” –, no intuito de corrigir-lhe eventuais falhas. Contudo, na ótica democrática de direito, a pretensão da desregulação do mercado não subsiste, haja vista dois motivos principais: (i) a Constituição fixou fins a serem atingidos pela ordem econômica, de modo que eventuais desvios, ações econômicas que não primem pela realização daqueles fins, deverão ser corrigidas pela intervenção estatal; (ii) mesmo sendo decorrência da liberdade, ela não é absoluta, como, ademais, nenhum valor o é, de modo que extremá-la acabaria por contrariar as próprias regras constitucionais. Duas questões, assim, são inescapáveis: adotada a economia de mercado e sua proteção pela livre concorrência, alçada ao patamar constitucional, seria cabível a intervenção estatal? Intervindo o Estado, haveria limites a tanto? 138 ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica – um exame da tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora, 2007, p. 83. 139 VAZ, Isabel. Direito Econômico da Concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p.9-10. 77 Com efeito, inegável a opção da Constituição pela economia de mercado e também pela intervenção estatal econômica. A adoção desta formatação jurídica para o sistema político-econômico não significa algo contraditório. Diversamente, é o resultado da percepção de que aquela racionalidade espontânea e natural do mercado por si só não é capaz de se garantir, de remover os obstáculos ao livre desenvolver das atividades econômicas. Não se nega o papel da livre concorrência como mecanismo de proteção do livre agir das forças de mercado, mas afirma-se que este instrumental é frágil e dificilmente subsistiria se entregue à auto-regulação do mercado. Implica, assim, na necessária intervenção estatal para salvaguardar outros interesses e fins também protegidos pela ordem constitucional. Como o modelo estatal em vigor pós-1988 somente aceita a liberdade de atuação econômica se esta se realizar no interesse da justiça social, e é da natureza do mercado a tendência concentracionista, então a regulação estatal deve corrigir esta falha – entre outras –, até porque, onde há concentração não há concorrência, e esta recebe a proteção constitucional. Em suma, a adoção da economia de mercado e a consagração da livre concorrência como princípio constitucional econômico não colide com a intervenção estatal na economia. Ao contrário, complementam-se, pois o Estado atua justamente para assegurar a concorrência. Quanto a isto, Washington Peluso Albino de Souza é preciso, como sempre: “O Estado, face a seus princípios ideológicos, permite que as empresas atuem livremente no mercado, apenas agindo quando necessário para salvaguarda de seus próprios princípios e dos interesses individuais e coletivos deles decorrentes”.140 O princípio da livre concorrência funciona como um vetor de atuação estatal no domínio econômico, além de condicionar as ações econômicas do particular. Ou seja, ao Estado reserva-se função interventiva, desde que não suprima a liberdade de concorrência, mas aja no intuito de corrigir eventuais desvios ao livre desenvolver das relações econômicas. Vale dizer, cabe-lhe o papel de proteger e fomentar da livre concorrência, mediante atos concretos que a assegure e a estimule. Conforme Lafayete Josué Petter: O papel reservado ao poder público, neste particular, é o de fomentar a livre concorrência. [...] Ao Estado, então, é deferida a relevante tarefa de velar pela regularidade do mercado. Ao disciplinar normativamente a defesa da 140 SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 6 ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 159. 78 concorrência, deve mesmo estabelecer um conjunto de regras que tenham por objetivo a intervenção do Estado na vida econômica, de modo a garantir que a competição das empresas no mercado não seja falseada por meio de práticas colusórias ou abusivas.141 O particular, a sua vez, vê-se garantido e limitado pela livre concorrência, na medida em que sua manutenção no mercado é assegurada pela liberdade de concorrência, mas não lhe é lícito agir de modo abusivo com intuito de dominar o mercado, suprimir outros concorrentes do setor econômico de atuação, aumentar arbitrariamente seus lucros As proposições de Fábio Ulhoa Coelho corroboram este entendimento, quando pondera que “[...] Em duas direções se projeta a defesa do direito à livre iniciativa [que se dá, via livre concorrência]: contra o próprio estado, que somente pode ingerir-se na economia nos limites constitucionalmente definidos, e contra os demais particulares”.142 Feitas estas considerações, é hora de anotar algumas palavras sobre o sentido e o alcance do princípio da livre concorrência. 2.2.1 O significado do princípio constitucional econômico da livre concorrência O princípio constitucional econômico da livre concorrência está positivado no Art. 170, inciso IV, da Constituição de 1988. Coligado diretamente a este dispositivo, traçando-lhe o perfil constitucional, o Art. 173, §4º, da Constituição Federal estabelece que “a lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.143 A análise jurídica do princípio da livre concorrência tem estes dispositivos constitucionais como ponto de partida. Como o objetivo final desta investigação é promover uma análise, sob a perspectiva da concorrência, dos dois instrumentos extrafiscais anotados no capítulo 4 adiante, é de grande valia, neste momento, traçar o sentido e o alcance deste princípio constitucional econômico. 141 PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 223. 142 COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 8. ed., v. 1. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 188. 143 A doutrina critica a colocação do §4º dentro do Art. 173 da Constituição, pois é o dispositivo que trata da atuação estatal como agente explorador de atividade econômica. Segundo entendem, esta determinação deveria estar prevista, para ser mais adequada, dentro do Art. 174, que trata justamente da atuação do Estado como agente normativo e regulador das atividades econômicas. 79 Para sua melhor compreensão, é relevante que se saiba, antes, o que é concorrência. De antemão, anote-se que concorrência é conceito econômico que, por força das aludidas disposições constitucionais, foi juridicizada, o que a converteu, assim, em figura jurídica constitucional relevantíssima. Paulo Sandroni define concorrência nos seguintes termos: Também chamada livre-concorrência. Situação do regime de iniciativa privada em que as empresas competem entre si, sem que nenhuma delas goze da supremacia em virtude privilégios jurídicos, força econômica ou posse exclusiva de certos recursos. Nessas condições, os preços de mercado formam-se perfeitamente segundo a correção entre a oferta e a procura, sem interferência predominante de compradores ou vendedores isolados. Os capitais podem, então, circular livremente entre os vários ramos e setores, transferindo-se dos menos rentáveis para os mais rentáveis em uma conjuntura econômica. De acordo com a doutrina liberal, propugnada por Adam Smith e pelos economistas neoclássicos, a livre concorrência entre capitalistas constitui a situação ideal para a distribuição mais eficaz dos bens entre as empresas e os consumidores. Com o surgimento de monopólios e oligopólios, a livre concorrência desaparece, substituída pela concorrência controlada e imperfeita.144 Isabel Vaz, por sua vez, é mais sucinta, mas não menos preclara, ao tratar acerca da compreensão de concorrência. Segundo ela: A noção tradicional de concorrência pressupõe uma ação desenvolvida por grande número de competidores, atuando livremente no mercado de um mesmo produto, de maneira que a oferta e a procura provenham de compradores ou de vendedores cuja igualdade de condições os impeça de influir, de modo permanente ou duradouro, no preço dos bens e serviços.145 Pela amplitude das definições citadas, extraem-se algumas conclusões. Primeiro, concorrência pressupõe livre jogo das forças econômicas na disputa pelo mercado. Presume, também, que a competição entre as empresas se dá dentro de uma perspectiva de igualdade de condições – igualdade jurídico-formal –, ou seja, completa ausência de artificialidades – privilégios jurídicos, força econômica ou posse exclusiva de certos recursos –, significando que a parcela do mercado obtida por cada um dos agentes econômicos é resultado de seus próprios méritos, de sua eficiência. Na situação de concorrência, os preços decorrem da racionalidade natural do mercado, ou seja, formam-se livremente pelo justo equilíbrio entre oferta e procura, sem sofrer qualquer tipo de influência de fornecedores ou consumidores. 144 145 SANDRONI, Paulo. Hovíssimo dicionário de economia. 9. ed. São Paulo: Best Seller, 2002, p. 118-119. VAZ, Isabel. Direito Econômico da Concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 27. 80 Ainda, e principalmente, haverá concorrência onde houver uma pluralidade de agentes econômicos – compradores e vendedores – disputando o mercado de um mesmo produto. As situações onde há muitos compradores e vendedores agindo no mercado, e estes não têm condições de influir, isoladamente, sobre o preço dos produtos, nem lhe é possível dominá-lo, convencionou-se chamar de “concorrência perfeita”. A definição de concorrência determina, portanto, a compreensão de sentido do princípio da livre concorrência. Ou seja, sua enumeração em altiplano constitucional, como primado conformador das atividades econômicas, demonstra claramente a pretensão do constituinte: impedir que a competição entre as empresas seja falseada, isto é, liga-se a necessidade de se corrigir as falhas do mercado. O alcance do princípio da livre concorrência é delimitado, por outro lado, pela previsão contida no Art. 173, §4º, da Constituição de 1988. O preceito ali contido submete o poder econômico aos ditames constitucionais. Em melhores palavras: Os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo. Visam tutelar o sistema de mercado e, especialmente, proteger a livre concorrência, contra a tendência açambarcadora da concentração capitalista. A Constituição reconhece a existência do poder econômico. Este não é, pois, condenado pelo regime constitucional. Não raro, esse poder econômico é exercido de maneira anti-social. Cabe, então, ao Estado intervir para coibir o abuso.146 A conjugação do Art. 173, §4º ao Art. 170, IV, ambos da Constituição Federal tem por finalidade conferir efetividade, conseqüência prática ao princípio da livre concorrência, traçando-lhe a mínima compreensão, haja vista seu elevado grau de abstração. Além disso, a verificação acurada destas previsões constitucionais – as quais são apenas o ponto de partida para a exata definição do seu sentido e alcance – permite determinar duas funções cometidas à livre concorrência, conforme lição de Calixto Salomão Filho: (i) garantir que o sucesso relativo das empresas no mercado dependa exclusivamente de sua eficiência, e não de sua “esperteza negocial”; ii) preservar o mercado como agente de transmissão de informações.147 Estas funções apontadas refletem a percepção de liberdade subjacente à compreensão de livre concorrência: liberdade de competição e liberdade de escolha. Luís Roberto Barroso averba, nesta linha: “O princípio da livre concorrência contém a crença de que a competição 146 147 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 795. SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito Concorrencial: as estruturas. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 55. 81 entre agentes econômicos de um lado e a liberdade de escolha do outro produzirão os melhores resultados sociais, quais sejam: qualidade de bens e serviços e preço justo”.148 Ainda, livre concorrência implica em discussão acerca do poder econômico. Questiona-se, nesta circunstância, como funciona a relação livre concorrência-poder econômico? Em que medida aquela limita o seu exercício? Para responder a esta pergunta, indispensável destacar a lição de Washington Peluso Albino de Souza, que entende ser ilegítimo o exercício do poder econômico se exceder os limites da licitude e ilicitude tracejados por norma jurídica. Segundo ele: Destacando-se nas “relações de poder” a modalidade do poder econômico, teremos aquelas relações jurídicas já permeadas de sentido de relações econômicas, cujas motivações deverão ajustar-se ao objetivo de justiça, sob pena de se contraporem aos direitos que devem assegurar. O exercício do poder econômico, portanto, far-se-á em obediência a um equilíbrio de interesses postos em jogo de acordo com uma linha traçada como delimitadora do justo e do injusto e que, traçada pela lei jurídica, coincidirá com o lícito e o ilícito (grifos do autor).149 Isto quer dizer, como se denota da própria ordem jurídica, que o poder econômico em si e por si não é algo ilegítimo. Ele é corolário do valor fundamental de liberdade. Juridicamente, o exercício do poder econômico com mero intuito de lucro e satisfação pessoal é válido.150 A Constituição reconhece sua existência e o assegura, na medida em que adota um regime de livre iniciativa, de economia de mercado como modo de produção econômica. Com tranqüilidade é possível afirmar que o poder econômico não é reprimido pela Ordem Econômica; a repressão constitucionalmente definida direciona-se ao seu uso abusivo. Vale dizer, a ilegitimidade não está no poder econômico em si, mas na caracterização do abuso, de modo que aquele é condição para que este ocorra, mas, isolado, não é suficiente. Portanto, como sói acontecer a todos os valores jurídicos, o exercício do poder sofre limitações jurídicas. Particularmente em relação à concorrência, o exercício do poder econômico será tido por ilícito se empregado abusivamente, isto é, quando visar à dominação do mercado, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros. 148 BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar. 2003. p. 58. SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 6 ed. São Paulo: LTr, 2005, p. 207. 150 Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 8. ed., v. 1. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 187-188. 149 82 Por derradeiro, rememore-se que a concorrência não é o fim em si. Destarte, o princípio da livre concorrência [...] deve observância ao caput do art. 170, buscando-se, através de sua inviolabilidade, a garantia da existência de concorrência como meio de alcance aos fundamentos da ordem econômica, quais sejam, a valorização do trabalho humano, a livre iniciativa e a existência digna a todos, conforme os ditames da justiça social.151 Enfim, o princípio da livre concorrência expressa a vedação de qualquer ação, estatal ou particular, que objetive influir no livre jogo das forças do mercado e crie um desequilíbrio na competição entre os agentes econômicos. Ocorrendo, no entanto, o desequilíbrio, aventando-se falhas no mecanismo de mercado, a intervenção econômica é necessária para assegurar a manutenção da concorrência, cabendo ao Estado este agir. 2.2.2 A fragilidade da liberdade de concorrência e a necessária intervenção estatal no intuito de garanti-la Por redundante que possa parecer, o princípio da livre concorrência tem por finalidade assegurar a liberdade de concorrência, de atuação no mercado. Presta-se, assim, a evitar a concentração econômica ilegítima. Paradoxalmente, é inerente ao próprio conceito de economia de mercado a noção de concentração econômica. Em situações normais, decorrentes da racionalidade e naturalidade da movimentação do mercado, a concentração econômica como conseqüência da eficiência dos agentes econômicos faz parte da álea da normalidade da atividade econômica.152 É, portanto, legítima. O fluir do tempo demonstrou, no entanto, que a ausência de uma entidade regulatória do mercado, não é salutar, na medida em que diversas são as situações onde os mecanismos livres do mercado não têm condições de corrigir as falhas surgidas. Destarte, incorrendo na circunstância onde a competição entre os agentes econômicos torna-se desequilibrada em razão de expedientes externos ao livre jogo das forças do mercado, então cabe ao Estado agir, regulando as atividades econômicas. Isto significa que a livre concorrência, per se, não se garante; o mecanismo da concorrência é frágil e como tal assegurá-lo é função estatal. 151 LOSS, Giovani R. A guerra fiscal e a concorrência: a análise dos incentivos financeiros, in Revista de Direito Tributário. v. 85. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 142. 152 Cf. PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 224-226. 83 Daí o motivo de dizer que o princípio da liberdade de concorrência direciona a atuação do Estado no domínio econômico, isto é, cabe-lhe regular a economia. Entretanto, é bom que se diga: “A regulação DEVE proteger a CONCORRÊNCIA e NÃO DEVE proteger o MERCADO, pois o mercado não necessariamente concretiza valores sociais”.153 Significa que a garantia da livre concorrência é um dos objetivos que fundamentam a intervenção estatal na economia. Em outros termos, imprescindível a intervenção do Estado, para adequar os comportamentos dos sujeitos econômicos de maneira a prestigiar a liberdade econômica e também realizar os fins constitucionalmente consagrados à ordem econômica. Necessária, portanto, a intervenção econômica. Indispensável, deste modo, uma análise um pouco mais detida deste fenômeno jurídico, como se realiza subseqüentemente. 2.3 A ATUAÇÃO ESTATAL ECONÔMICA E DESENVOLVIMENTO: INTERVENÇÃO DIRETA E INDIRETA Tamanha é sua relevância para o processo de desenvolvimento socioeconômico das nações, que a intervenção econômica tem sido objeto de análises e estudos já há longa data. Desde que John Maynard Keynes publicou seu The General Theory of Employment, Interest and Money, em 1936, muito se discutiu e muito se propôs acerca do modus como o Estado deveria se portar perante o fenômeno econômico. Essencialmente, esta discussão sempre dependeu, a bem da verdade, do modelo estatal e econômico adotado em cada país. No Brasil, isto sempre passou pela análise do texto das constituições surgidas ao longo da história. Atualmente, o Texto Constitucional de 1988 permite verificar 03 (três) distintas funções cometidas ao Estado Brasileiro em relação ao tema econômico. São elas: (i) ao Estado é permitido agir na exploração da atividade econômica, nos termos do Art. 173 da Constituição de 1988; (ii) o Estado tem o dever de atuar como agente normativo e regulador da atividade econômica, circunstância na qual exercerá funções de fiscalização, de incentivo ou de planejamento, conforme expressa previsão do Art. 174 da Constituição Federal; (iii) o Estado atuará, ainda, como prestador de serviços públicos de modo direto ou indiretamente, mediante concessão ou permissão, a teor do Art. 175 da Constituição Federal. 153 BASSOLI, Marlene Kempfer. Notas de aula. Programa de Mestrado em Direito da Unimar. Marília. 28 e 29 de abril de 2006. 84 Genericamente tem-se utilizado o termo “intervenção” para significar as diversas formas de atuação do Estado em relação ao processo econômico. Embora sejam formas de atuação econômica do Estado, há, entre elas, diferenças marcantes, o que implica dizer que assiste razão a Eros Roberto Grau, que utiliza os vocábulos “atuação estatal” e “intervenção” para significar mais adequadamente as três formas de atuação estatal em relação ao processo econômico. Segundo ele, a expressão “atuação estatal” tem sentido amplo e exprime a atuação do Estado no campo da atividade econômica em sentido amplo, ou seja, tanto na área de titularidade própria – quando, verbi gratia, presta serviço público ou regula sua prestação – quanto em área de titularidade do setor privado. “Intervenção”, de outro lado, tem sentido restrito, porquanto expressa a atuação do Estado em área de titularidade do setor privado, vale dizer, conota a atuação estatal no campo da atividade econômica em sentido estrito.154 Logo, detém relevância para este trabalho apenas a questão da intervenção. Assim, o corte metodológico que ora se faz, exclui a questão da atuação estatal em sentido amplo para tratar exclusivamente da “intervenção”, entendida naquele significado recém exposto. Elegida a base terminológica e o corte necessário para o melhor desenvolvimento e compreensão deste ponto do trabalho, é hora de apontar a classificação das modalidades de intervenção. Óbvio, por outro lado, que as classificações não são nem verdadeiras nem falsas; nem melhores nem piores do que as demais. As classificações, como universalmente conhecido, ou são úteis ou inúteis. E no caso, a classificação mais útil é aquela que trata da intervenção econômica do Estado como sendo (i) direta ou (ii) indireta. Entende-se por intervenção econômica direta, quando o Estado atua no domínio econômico como agente econômico, ou seja, quando explora qualquer dos setores da economia com o objetivo de lucro, em competição com os particulares. Nesta forma de intervenção, o Estado, por ser titular da exploração das atividades econômicas, recebe o mesmo tratamento jurídico dispensado aos particulares. É o Estado Empresário. São precisas as palavras de Luís S. Cabral de Moncada acerca da intervenção direta, quando afirma que nesta, o Estado se torna o agente económico principal, equiparado ao agente económico privado, e “[...] só é concebível numa forma de estado claramente intervencionista, que veja numa certa representação que das suas funções se faz o fundamento 154 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 82-83. 85 da ordem jurídico-econômica”.155 É, enfim, a intervenção estatal no domínio econômico, de que fala Eros Roberto Grau.156 Interessante consignar ainda, a título de informação, a intervenção no domínio econômico subdivide-se, segundo Eros Roberto Grau, em intervenção “por absorção” e intervenção “por participação”. Naquela, há a total assunção do controle dos meios de produção e/ou troca pelo Estado; nesta, apenas parte dos meios de produção de algum setor do domínio econômico é detida pelo Estado.157 Em resumo, sempre que o Estado imiscuir-se na função de agente econômico, explorando as atividades econômicas com vistas ao lucro, circunstância que não lhe é afeita precipuamente, porquanto de titularidade do setor privado, este estará intervindo diretamente no domínio econômico. Na sistemática brasileira da intervenção econômica, intervenção econômica direta só tem lugar “quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”, a teor do caput do Art. 173 da Constituição de 1988. Além disso, agindo diretamente no domínio econômico, o Estado não goza de quaisquer privilégios ou facilidades que os diferencie do setor privado, mas sujeita-se ao regime jurídico próprio da empresa privada, no que tange aos direitos e obrigações civis, comerciais, trabalhistas e tributários, conforme Art. 173, §1º, inciso II, da Constituição de 1988. Por sua vez, na intervenção indireta, “o estado não se comporta como sujeito económico, não tomando parte activa e directa no processo econômico. Trata-se de uma intervenção exterior, de enquadramento e de orientação que se manifesta em estímulos ou limitações, de vária ordem, à actividade das empresas”.158 A intervenção indireta significa que o Estado, ao invés de atuar como sujeito econômico, atua de modo periférico, assumindo o papel de agente normativo e regulador, ou seja, intervém sobre o domínio econômico.159 O destaque, nesta passagem, fica por conta da classificação que Eros Roberto Grau adota para a questão da intervenção estatal sobre o domínio econômico. Segundo ele, neste 155 MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Econômico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 221. GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 126. 157 Idem, ibidem, p. 127. 158 MONCADA, Luís S. Cabral de. Ibidem, p. 337. 159 Idem, ibidem. 156 86 caso o Estado intervirá “por direção” ou “por indução”, segundo o modo como manipular as normas interventivas se cogentes e imperativas de comportamentos ou se dispositivas.160 De toda sorte, Vânya Spagolla averba que esta intervenção tem por pressupostos básicos: “[...] preservar o mercado dos vícios do modelo econômico (concentração econômica, abuso do poder econômico, entre outros) e assegurar a realização dos fins da ordem econômica, quais sejam propiciar vida digna a todos e realizar a justiça social”.161 O Estado promove estes pressupostos quando atua como agente normativo e regulador da atividade econômica, que se efetiva em três planos: polícia econômica, fomento econômico e planejamento econômico. Essencialmente, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, previstas no Art. 174 da Constituição Federal. Por fim, uma última ponderação: como o enfoque da dissertação é a análise de dois mecanismos tributários extrafiscais – os convênios interestaduais em matéria de incentivos fiscais de ICMS e o Simples Nacional – à luz do direito econômico, mais precisamente sob a ótica da concorrência, então é imprescindível destacar dois pontos importantes, ainda neste capítulo: a atuação estatal como agente regulador das atividades econômicas e a compreensão sobre a intervenção por direção e por indução, sendo esta última a mais importante. 2.3.1 O Estado como agente regulador das atividades econômicas: compreensão do Art. 174 da Constituição de 1988 Prescreve o Art. 174, caput, da Constituição Federal, in verbis: “Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado”. Do fraseado contido no precitado dispositivo constitucional destacam-se algumas elucubrações. Em primeiro lugar, revela-se uma distinção entre o Estado “agente normativo” e o Estado “agente regulador” das atividades econômicas. Intuitivamente, pode-se correlacionar a atividade normativa do Estado com sua função de fiscalização, onde a atuação 160 GRAU, Eros Roberto. Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 127-130. 161 SPAGOLLA, Vânya Senegalia Morete. Tributação Ambiental: proposta para instituição de um imposto ambiental no direito brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – – Pós-graduação em Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social da Universidade de Marília. Marília: 2008, p. 34. 87 estatal opera-se de modo unilateral, com vistas à vigilância da atuação econômica privada vetorizada à promoção dos fins da ordem econômica: valorização do trabalho humano e livre iniciativa, conforme, obviamente, os ditames da justiça social. A atividade de regulação, por outro lado, junge-se às funções de incentivo e planejamento, na medida em que intervém de modo bilateral, contratual, enfatizando a política econômica, conferindo vantagens fiscais em atenção a um planejamento econômico pré-estabelecido. Neste sentido, verbera Eros Roberto Grau: “[...] A atuação normativa reclama fiscalização que assegure a efetividade e eficácia do quanto normativamente definido – daí porque, em rigor, nem seria necessária a ênfase que o preceito adota ao expressamente referir a função de fiscalização. A atuação reguladora há de, impõe a Constituição, compreender o exercício das funções de incentivo e planejamento. [...]”.162 Não obstante estas considerações, em verdade, não é possível separar, pura e simplesmente, a atuação normativa da atuação reguladora do Estado, pois é evidente que a regulação também se sujeita à fiscalização do mesmo modo que a ação normativa também toma como funções constitucionalmente atribuídas incentivar e planejar.163 Em verdade, isto está a depender da corrente doutrinária sobre a regulação econômica que se adote, como ficou bem destacado por Marlene Kempfer Bassoli, em nota de aula proferida no Programa de Mestrado em Direito da Unimar, na disciplina “Estado, Direito e Relações Empresariais”, realizada nos dias 28 e 29 de abril de 2006. Isto fica mais claro a partir da análise do material utilizado nas aulas, que separa as atribuições do Estado na intervenção indireta em “agente regulador” e “agente fiscalizador”. De toda sorte, é fato na intervenção econômica indireta, a atuação estatal como agente normativo ou como agente regulador sempre se dará por intermédio das normas jurídicas, sejam elas gerais e abstratas inaugurais ou secundárias, ou ainda as individuais e concretas secundárias. É dizer: neste contexto elas detêm grande destaque e consistem no instrumento por excelência da intervenção estatal indireta sobre a economia. Retornar-se-á, adiante, na questão das normas jurídicas. Agora, mais algumas ponderações sobre o texto positivo do Art. 174 da Constituição Federal. Denota-se deste 162 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 97. 163 Idem, ibidem, p. 97. 88 preceito que a atuação estatal normativa e reguladora opera-se em três frentes distintas: na fiscalização econômica, no incentivo à economia e no planejamento desta. A função de fiscalização significa o poder de polícia econômica, parcela do poder de polícia administrativa. O exercício da função fiscalizadora consiste em uma interferência unilateral do Estado sobre o fenômeno econômico, no intuito de prevenir ou reprimir ações contrárias à ordem econômica, seus princípios, fundamentos e fins. Em outros termos, é o poder de polícia em sentido estrito, que Celso Antonio Bandeira de Mello aponta como restrito às normas produzidas pelo Executivo, abstratas e gerais contidas em regulamento e concretas e individuais contidas, por exemplo, em licenças para a efetivação de atividades econômicas, restringindo-as ou prevenido-as quando contrastantes com os interesses sociais. Ou seja, é a noção de polícia administrativa.164 Como polícia administrativa que é, porém no âmbito econômico, a atividade de fiscalização econômica efetuada pelo Estado importa, sempre, em limitação ou disciplina de direito, interesse ou liberdade, consoante precisa previsão do Art. 78 do Código Tributário Nacional. Expondo nesta linha de raciocínio, Luís S. Cabral de Moncada consigna que: A polícia limita, pois, nos termos legais, acções individuais que poderiam, sem a actuação preventiva ou repressiva da administração, desrespeitar a lei e lesar interesses gerais. A actuação repressiva completa, por óbvio, as medidas preventivas. A polícia económica, tal como a polícia administrativa em geral, manifestase através da edição de normas legais e regulamentares, da fiscalização da sua observância (vigilância) e de actos administrativos de carácter preventivo (licenças, autorizações) ou repressivo (multas, etc.).165 O CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica exerce a função de órgão fiscalizador da concorrência no país, nos termos da Lei n. 8.884/94, exemplificando concretamente a função da polícia econômica no direito brasileiro. Em resumo, a defesa da concorrência é algo que ingressa no âmbito da função de fiscalização estatal econômica. O Estado exerce a função de incentivo, por sua vez, quando atua no sentido de proteger ou promover os sujeitos econômicos privados, concedendo, assim, apoio para as empresas, de modo que se fomente a economia. José Afonso da Silva denomina de “Estado 164 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros, 2008, p. 809. 165 MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 349. 89 Promotor da economia” a função estatal desempenhada nestes termos, pois “[...] consiste em proteger, estimular, promover, apoiar, favorecer e auxiliar, sem empregar meios coativos, as atividades particulares que satisfaçam necessidades ou conveniências de caráter geral”.166 No fomento econômico, a atuação estatal realiza-se com intuito de prestigiar a atividade econômica privada por motivo de interesse público. E lembre-se que nem sempre é o puro interesse econômico que serve de justificativa às medidas incentivadoras da economia. Por vezes, por trás do incentivo econômico, há mesmo um fim de ordem social ou cultural. Em regra, porém, o Estado exerce a função de incentivador econômico porque disto depende a satisfação de necessidades públicas e gerais. O tratamento jurídico diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte, determinado constitucionalmente, é revelador da função de incentivo econômico do Estado. Mais do que interesse econômico, há neste favorecimento evidente interesse social, com vistas, pro exemplo, a trazer para o mercado formal estas empresas e, assim, formalizar também os empregos por elas gerados. Neste ponto, denunciase exatamente em que ponto do direito econômico situa-se a Lei Complementar n. 123/2006, que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte. Na função de planejamento econômico, por fim, o Estado traça a organização da economia, direcionando as atividades econômicas para que se realizem no sentido de objetivos pré-estabelecidos. Considerando o Texto Constitucional de 1988, base sobre a qual se empreende este estudo, e tendo em vista que a ordem econômica é parcela da ordem jurídica global e, como tal, possui fins constitucionais a serem atingidos, é inegável que a função de planejamento deferida ao Estado deve se efetivar com foco na realização dos objetivos fundamentais fixados pela Constituição. A compreensão de José Afonso da Silva acerca do planejamento econômico direciona-se na linha do que se consignou acima. Tomando o planejamento como um processo técnico instrumentado com escopo transformador da realidade existente, averba que o planejamento econômico consiste num processo de intervenção estatal no domínio 166 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 808. (grifos do autor). 90 econômico com o fim de organizar as atividades econômicas para obter resultados previamente colimados.167 Entretanto, este mesmo autor, porém em outra obra, afirma que [...] enquanto simples processo, o planejamento não opera transformação da realidade existente, não surte efeitos inovadores da realidade urbana. Estes só se manifestam quando o processo de planejamento elabora o plano ou planos correspondentes, com o que, então, ingressa no ordenamento jurídico por seu caráter conformador ou inovativo [...].168 Com estes mesmos contornos, Eros Roberto Grau assevera que o planejamento econômico é “[...] forma de ação racional caracterizada pela previsão de comportamentos econômicos e sociais futuros, pela formulação explícita de objetivos e pela definição de meios de ação coordenadamente dispostos [...]”.169 A despeito da significação exposta, o autor critica o entendimento do planejamento como técnica de intervenção, pois para ele, planejamento é mero qualificativo da intervenção do Estado sobre e no domínio econômico, não se configurando como a intervenção em si, mas apenas sistematiza racionalmente a ação interventiva do Estado. Neste ponto, diz ele, tanto a intervenção no domínio econômico quanto a intervenção sobre o domínio econômico pode se realizar de modo planejado.170 Estas considerações permitem a visualização de que o planejamento é sempre algo abstrato, porquanto se caracteriza como um programa definidor de metas, diretrizes, objetivos a serem alcançados. Por meio do planejamento identificam-se os focos de atuação e assim definem-se quais ações deverão ser tomadas no intuito da realização dos objetivos préestabelecidos. No planejamento fixam-se, também, os meios a serem empregados na realização das metas definidas. Neste aspecto, diferencia-se do plano, que é o ato concreto que põe em prática a ação definida no planejamento. Em suma, o plano instrumentaliza o planejamento. No altiplano constitucional, encontram-se algumas previsões que acabam por demonstrar esta distinção entre planejamento e plano. É o caso do Art. 165, I, §§1º e 4º, da Constituição Federal. Estes preceptivos tratam do chamado “plano plurianual”, o que, em boa técnica semântica, deveria ser denominado por “planejamento plurianual”, em virtude de 167 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 809. 168 BARROS, Evandro Silva. A Contribuição do Planejamento Municipal na Efetivação dos Princípios Gerais da Atividade Econômica. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pós-graduação em Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social da Universidade de Marília. Marília: 2007, p. 71. 169 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 129. 170 Idem, ibidem, p. 130. 91 traçar, como se observa da redação constitucional do Art. 165, §1º, “[...] as diretrizes, objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada”. (grifo nosso). O plano plurianual consiste em instrumento de programação econômica governamental, cujo intuito é determinar as metas econômicas e sociais do governo instalado pelo período de seu mandato. Fixadas as previsões de ações racionais a serem implementadas, traçados as diretrizes e os objetivos, e determinados os instrumentos a serem empregados – ou seja, efetuado o planejamento – isto será colocado em prática por intermédio dos planos. Tanto é assim que o §4º do Art. 165 determina: “Os planos e programas nacionais, regionais e setoriais previstos nesta Constituição serão elaborados em consonância com o plano plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional” (grifo nosso). Ou seja, planos nacionais, regionais e setoriais serão realizados conforme o planejamento plurianual. Estas considerações, brevemente deslocadas do cerne da questão desenvolvida, servem para justificar a distinção entre planejamento e plano. Última lembrança sobre a questão do planejamento econômico: a parte final do Art. 174, caput, da Constituição Federal estabelece que a o planejamento é determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. Esta previsão desvela, em primeiro lugar, o modelo político-econômico adotado pela Constituição, pois ao fixar a vinculação do setor público ao planejamento estabelecido e a desvinculação do setor privado, expõe-se claramente a qualidade intervencionista econômica do Estado brasileiro. Secundariamente, por ser o planejamento indicativo ao setor privado, ou seja, por caracterizar mera sugestão àquele, não é impositivo de comportamentos, sendo os sujeitos econômicos privados livres para ajustar-se ou não ao planejamento público. Como modo de ajustar as condutas econômicas dos particulares ao sentido prefixado no planejamento econômico, o Estado dispensa-lhes estímulos ou desestímulos, de acordo com a pretensão a ser atingida. Nesta circunstância, portanto, intervém indiretamente pela 92 veiculação de normas jurídicas diretivas ou indutoras. Vislumbram-se, então, as figuras da “intervenção por direção” e da “intervenção por indução” de que fala Eros Roberto Grau.171 Esta classificação e distinção detêm extrema relevância para o tema, de modo que as normas de direção e as normas indutoras serão tratadas a seguir, em item próprio, a fim de direcionar o trabalho para o terceiro capítulo que tem a tributação como cerne. Contudo, o destaque será conferido à intervenção por indução, uma vez que normas tributárias extrafiscais revelam nítida natureza indutora, a qual se vislumbra nos instrumentos tributários analisados no último capítulo – os convênios interestaduais em matéria de incentivos fiscais de ICMS e o Simples Nacional. 2.3.2 Normas de direção e normas indutoras: formas de intervenção indireta do Estado sobre a economia Assentou-se anteriormente que a intervenção indireta do Estado sobre a economia pode-se operar, conforme classificação adotada por Eros Roberto Grau, “por direção” ou “por indução”. Como a intervenção indireta se materializa através das normas jurídicas, então estas normas ora terão cunho diretivo, ora terão natureza indutora. Daí se falar em “normas de direção” e “normas de indução”. Na intervenção por direção os comandos normativos são dotados de imperatividade e cogência, vale dizer, são impositivos de certos e obrigatórios comportamentos a serem observados pelos agentes econômicos. As normas de intervenção por direção, porque impõe uma conduta compulsória ao agente econômico, se não cumpridas pelo seu destinatário, sujeita-o a sanções. Por isto que Luís Eduardo Schoueri afirma que “[...] A norma de direção vincula a determinada hipótese um único conseqüente”.172 Já na intervenção por indução, as normas jurídicas assumem qualidade distinta das normas diretivas, pois neste caso o Estado intervém pela positivação de regras dispositivas, ou seja, ao invés de coagi-lo pela vinculação de sanção, o Estado privilegia aqueles mais desejáveis173, influenciando na formação de vontade do destinatário da norma – o agente 171 GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 127-128. 172 SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 43. 173 ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica – um exame da tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora, 2007, p. 104. 93 econômico – pela via do incentivo ou do desestímulo. Neste caso, “[...] O Estado abre mão do seu poder de dar ordens, substituindo-o por seu poder econômico, com efeito equivalente”.174 Como a norma indutora tem natureza dispositiva, pode ser que o sujeito econômico opte por não conduzir sua ação econômica no sentido pretendido pelo legislador, mas nem por isto recairá em comportamento ilícito. Em verdade, a norma indutora abre-lhe duas alternativas, de, realizando a hipótese por ela descrita, sofrer as conseqüências prescritas – sejam estimulantes ou desestimulantes daquele comportamento – ou então escolher comportar-se de modo distinto da previsão normativa, em outro sentido. Justamente por conta disto que Luís Eduardo Schoueri afirma ser ela, da ótica sintática, uma norma que à hipótese vinculam-se duas conseqüências distintas, ligadas pela conjunção alternativa.175 Detalhe interessante das normas indutoras: elas podem assumir tanto feição positiva como negativa, segundo os efeitos que produza. Esta colocação é deveras importante porque em um primeiro momento pode parecer que a intervenção por indução represente, sempre, estímulos, incentivos, benefícios, quando, em verdade, podem-se instituir normas indutoras com caráter desestimulante, como é exemplo a tributação do cigarro, de cunho elevadíssimo. Ou seja, a produção e comercialização deste produto não são vedadas; a livre iniciativa é assegurada, entretanto, por razões outras – saúde pública, etc. – este comportamento é desencorajado pela via da norma indutora negativa. Registre-se, ainda, a ponderação de Luís Eduardo Schoueri de que as normas indutoras tomam o mercado como pressuposto, daí serem conhecidas, na doutrina norteamericana, como market-based incentives, ou seja, incentivos baseados no mercado. Por meio delas, trabalha-se a questão das externalidades176, privilegiando-se o papel do mercado, no sentido de que, pelo mecanismo de internalização dos custos das externalidades, é ele (o mercado) quem vai decidir o fracasso ou o sucesso de um produto.177 Deste modo, a distinção jurídica entre a norma de direção e a norma indutora reside no seu objeto, qual seja, o grau de liberdade do administrado. Enquanto aquela tem por propósito impor o modus comportamental do agente econômico, obrigado-o a agir conforme 174 SCHOUERI, Luís Eduardo. ob. cit., p. 44. SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 44. 176 Sobre as externalidades, que podem ser positivas ou negativas, Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da Atividade Econômica. São Paulo: Malheiros, 2001. 177 SCHOUERI, Luís Eduardo. ob. cit., p. 44. 175 94 sua previsão, sob pena de ser sancionado; esta faculta ao agente econômico a liberalidade de observar ou não o comando normativo, sem que isto lhe acarrete sanções. Evidente que uma vez optado por agir consoante a previsão da norma indutora, concretizada hipótese normativa estará ele vinculado à conseqüência prescrita. Nota-se, enfim, que as normas de direção e as normas de indução são claramente interventivas. Por meio delas, efetiva-se a normatização e a regulação das atividades econômicas, seja quando fiscalizadas, incentivas (ou desestimuladas) ou ainda planejadas. Última consideração: uma vez que este trabalho desenvolve-se naquele espaço normativo de inter-relação entre o direito econômico e o direito tributário, como vem se denunciando desde o início, passa a interessar de ora em diante apenas as normas de indução com conteúdo tributário. Deixam-se de lado as normas de direção por dois motivos: (i) primeiro, em virtude do objetivo encampado neste trabalho; (ii) em segundo lugar, porque incogitável a existência de normas de direção com este aspecto material tributário, notadamente em vista do conceito e da distinção entre direção e indução. Como a norma de direção sempre impõe comando imperativo e cogente, determinando, assim, o exato comportamento do seu destinatário, de modo que este não pode cogitar em não realizá-lo, sob pena de ser sancionado; e a concretização do fato jurídico tributário é de liberalidade e conveniência da vontade do agente econômico em praticá-lo ou não, por isto incogitáveis. Seria absolutamente inconstitucional, por ofensa ao direito de propriedade e em razão de efeito confiscatório, se uma norma tributária qualquer obrigasse o agente econômico, neste caso contribuinte, incorrer no fato gerador in concreto, como precisamente apercebeu Luís Eduardo Schoueri.178 2.3.3 As normas tributárias indutoras como mecanismo de intervenção do Estado sobre o domínio econômico Afirmar a natureza indutora de uma norma jurídica nada tem que ver com dizer o seu conteúdo. Ao contrário, a natureza indutora ou diretiva aborda um outro aspecto da norma jurídica, sua finalidade da perspectiva econômica. Melhor dizendo, o aspecto indutor da 178 SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 46. 95 norma jurídica encerra, na perspectiva semiótica, uma análise pragmática, ou seja, a interação da norma com seu destinatário.179 A compreensão de norma indutora é resultante da noção de “intervenção por indução”, classificação adotada por Eros Roberto Grau para designar a circunstância de o Estado intervir sobre o domínio econômico com o objetivo de incentivar ou desestimular certos setores da economia, de modo que, por meio da indução, tenha-se uma reação por parte dos destinatários da norma. Então, é possível identificar-se inúmeras normas, com os mais diversos conteúdos, com finalidade indutora. Dentre estas, entretanto, sobressaem-se, no universo jurídiconormativo brasileiro, as normas tributárias. Sua preeminência no bojo da indução econômica é resultante, ao menos em nível nacional, da soma de alguns fatores metajurídicos, como, por exemplo, a elevada carga tributária brasileira e o emaranhado legislativo-tributário que assola o país. Assim, normas de indução com conteúdo tributário são sobremaneira eficazes do ponto de vista social, porque ao estimular ou desestimular os comportamentos econômicos, seu efeito é imediato, em razão da realidade brasileira subjacente às circunstâncias de sua criação. Não se pode deixar de afirmar, por outro lado, que é possível encontrar normas indutoras com outros conteúdos, como, por exemplo, normas administrativas, financeiras, cíveis, processuais, etc. Porém, apenas as normas tributárias indutoras, forma de intervenção estatal sobre o domínio econômico, importam a esta investigação. A escolha das normas tributárias indutoras como foco de fechamento deste capítulo, depois de todas as ponderações sobre a Constituição Econômica, seus princípios e o papel interventivo do Estado Brasileiro pós-1988, tem por finalidade fixar justamente o ponto de intersecção entre o espaço normativo econômico e o tributário, pois sua legitimidade depende, além da observância dos ditames jurídico-econômicos, já que inseridas no âmbito da intervenção sobre o domínio econômico, de obediência aos princípios e regras informadores do direito tributário. Ou seja, em razão de seu especial posicionamento dentro da ordem jurídica vigente, as normas tributárias indutoras submetem-se a dois regimes jurídicos – econômico e tributário –, sem prevalência de um ou de outro, pois ambos externados no plano constitucional, o que revela o emprego necessário os instrumentos de interpretação constitucional apontados no capítulo inicial deste trabalho. 179 Cf. FERRAZ Jr. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 123 e ss. 96 Em essência, antes de indutora, a norma jurídica é tributária. Ou, valendo-se das lições semióticas, a norma tributária indutora é do ponto de vista sintático e semântico uma norma tributária; mas na perspectiva pragmática, ela é norma indutora. Mais, opta-se nesta investigação pela terminologia “norma tributária indutora” e não “tributo indutor”, seguindo, assim, os passos da obra de Luís Eduardo Schoueri, em razão de que nem sempre será o tributo em si o mecanismo da indução. Os comportamentos econômicos podem ser induzidos por meio de deveres instrumentais (obrigação acessória, na linguagem do Código Tributário Nacional), também mediante a criação de regimes especiais de tributação (simplificadores ou agravantes) ou pela concessão de incentivos fiscais os mais diversos (imunidades, isenções, anistias, concessões de créditos presumidos, etc.). Em conseqüência, toda norma tributária indutora possui natureza extrafiscal, na medida em que sua finalidade sempre é de fomento ou desestímulo de condutas econômicas, com vistas à promoção de objetivos socioeconômicos. Deste modo, as normas tributárias indutoras, porque não visam arrecadação de dinheiro aos cofres públicos e possuem estrutura condicional-imperativa com características pragmáticas, podem positivar benefícios e desvantagens, segundo o comportamento que se pretenda ver realizado. Mais uma vez evidencia-se a vinculação entre direito tributário e o direito econômico, ambos, no fim das contas, completamente informados pelo direito constitucional. Assiste razão, assim, a Alfredo Becker, que percebeu, há muito, o timbre fundamental do direito tributário como instrumento do Estado para a intervenção econômica.180 A relevância do direito tributário como instrumento de efetivação dos desideratos constitucionais socioeconômicos conota, na ótica atual da intervenção econômica, a superação da tese da neutralidade da tributação, que expressa a idéia “[...] de que eventuais alterações na tributação não tragam distorções no sistema de preços relativos, o que implicaria menor eficiência nas decisões econômicas e, portanto, redução do nível de bem-estar [...]”.181 Contudo, a pretendida tributação neutra não tem guarida no Texto Constitucional Brasileiro de 1988. São inúmeras as previsões constitucionais que conferem evidente efeito intervencionista à tributação. Pensar o contrário, seria afirmar que o tributo presta-se a único e 180 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007, p. 623. REBOUÇAS, Helder. A defesa da concorrência e a tributação. Jornal Valor Econômico. São Paulo, 07 de abril de 2008. 181 97 exclusivo fim, qual seja, servir como meio de abastecimento dos cofres públicos. A neutralidade da tributação é insustentável mesmo se tivesse o tributo mera finalidade fiscal, haja vista que nestes casos, por mínima que seja, a tributação sempre trará distorções no sistema de preços, notadamente no sistema tributário brasileiro, uma vez que se adota aqui a sistemática de se tributar produção e circulação de bens e serviços, e não o consumo. De toda sorte, a partir do momento que ao Estado foi cometida atribuição de intervenção econômica e este passou a valer-se dos mais diversos meios jurídicos de que dispõe para pôr em prática este mister, a extrafiscalidade da tributação acabou por destacá-la no contexto econômico pela sua eficácia, o que a remeteu ao centro da discussão jurídica e econômica atual. Portanto, imprescindível expor os contornos da tributação extrafiscal – normas tributárias indutoras – como instrumento de intervenção econômica. É o que se passa a fazer a partir do capítulo seguinte. 98 3 O REGIME JURÍDICO-TRIBUTÁRIO DA TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL Evidenciou-se na última parte do capítulo anterior a natureza extrafiscal inerente às normas tributárias indutoras. Aliás, para a finalidade desta investigação, normas tributárias indutoras e tributação extrafiscal têm o mesmo sentido semântico. Cuidar deste tema, porém, demanda alguns cuidados e necessita de esclarecimentos, notadamente no que se refere ao emprego da expressão “extrafiscalidade” e ainda quanto ao adequado enquadramento das normas tributárias extrafiscais (ou indutoras) no regime jurídico tributário. No que concerne à questão terminológica, alguns autores resistem em empregar a expressão “extrafiscalidade” para significar as normas tributárias com fins interventivos, em razão da amplitude e generalidade desta terminologia, que pode alcançar, inclusive, normas que (i) não sejam tributárias, mas detêm fins extrafiscais; ou sendo normas tributárias, (ii) sua finalidade extrafiscal não tenha alcance estritamente econômico, mas diverso182. Além disto, esta preocupação também objetiva prevenir (iii) discussões em relação a sujeição destas normas ao regime jurídico tributário, em virtude da finalidade fiscal da norma tributária ser apenas atípica, secundária. Apesar disto, e ciente destas problemáticas, ao longo do trabalho as expressões “tributação extrafiscal” ou “normas tributárias extrafiscais” serão empregadas no sentido de normas tributárias indutoras, reveladoras de finalidade interventiva econômica. Ainda na problemática semântica, deve ficar claro que se emprega aqui a expressão “normas tributárias extrafiscais” ou “tributação extrafiscal” em detrimento de “tributos extrafiscais”, justamente para significar maior amplitude ao termo. É certo que os tributos podem ter objetivos fiscais ou extrafiscais, todavia, esta característica também acomete outras normas tributárias que não aquelas que tratem especificamente da instituição dos tributos. Assim, por exemplo, os instrumentos tributários tratados no capítulo a seguir: os convênios interestaduais em matéria de incentivos fiscais de ICMS e o Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – Simples Nacional. 182 É o caso de Luís Eduardo Schoueri, que prefere o termo “norma tributária indutora” em detrimento de “extrafiscalidade”, cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. ob. cit., p. 34. 99 Por outro lado, não sobeja reafirmar, neste começo, que as normas tributárias indutoras, porque de natureza extrafiscal, sujeitam-se a dois regimes jurídicos distintos: o econômico e o tributário. Submete-se àquele em razão da finalidade indutora, indicativa da intervenção econômica indireta; deve observância a este, porque, a despeito do fim interventivo econômico, é, antes de tudo, uma norma tributária, isto é, conforma uma hipótese de incidência tributária. Logo, a finalidade extrafiscal da norma tributária não descaracteriza sua estrutura normativa; em verdade, ela continua a regular as relações jurídicas tributárias, de modo que o regime tributário também deve ser observado. Como já se expôs toda a questão relativa ao regime jurídico-econômico no capítulo anterior, situando as normas tributárias extrafiscais no seu bojo, agora se faz mister dissertar sobre os contornos do regime jurídico tributário delineador da tributação extrafiscal. Noutros termos, o foco, agora, é a análise jurídico-tributária das normas tributárias que tenham finalidade extrafiscal. Mas é bom que se diga, de antemão, que, se para fins de exclusão das normas tributárias extrafiscais o aspecto teleológico é despiciendo, o mesmo não ocorre quanto à definição de sentido e a influência das regras e princípios aplicáveis. Ou seja, o dado finalístico da norma tributária altera a perspectiva de aplicação dos princípios constitucionais tributários. Vale dizer, ela tem o condão de definir seus limites jurídicos. A ponderação de Humberto Ávila a respeito é base deste pensamento. Segundo seu entendimento, a finalidade da tributação é um dado juridicamente relevante quando serve de fundamento para a instituição de tributos e a diferenciação entre os contribuintes. Nestas circunstâncias, diz ele: [...] será a finalidade mesma da tributação que irá definir os seus limites: quando a tributação tiver finalidade eminentemente fiscal e, por isso, visar a repartir os encargos tributários, o critério da repartição será a própria capacidade de contribuir para esse custeio; já quando tiver finalidade principalmente extrafiscal e, por isso, visar a atingir um fim concreto, econômico ou social, o critério da repartição não mais será a capacidade de contribuir, mas a adequação, a necessidade e a correspondência do meio relativamente àquela finalidade. O desconhecimento dessa distinção tem deixado sem controle os contornos da instituição de impostos ligados ao comércio exterior, a instituição legislativa de responsáveis tributários e mesmo a criação de mecanismos variados para facilitar a fiscalização de tributos.183 183 ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v. I, n. 3. Salvador: CAJ - Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 07. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br 100 Melhor desenvolvendo a idéia. Ao tratar da tributação extrafiscal, previamente consignou-se o entendimento de que estas normas submetem-se a dois regimes jurídicos: o econômico e o tributário. No entanto, e apesar da sua corrente utilização, ainda há discussão doutrinária no que se refere ao regime jurídico das normas tributárias extrafiscais. Em sede doutrinária, há três correntes relativas à discussão. A doutrina que tem maior aceitação no meio jurídico entende que a circunstância de a norma tributária possuir esta ou aquela finalidade não significa uma desvinculação do regime tributário, pois os fins eventualmente perseguidos (fiscal ou extrafiscal), como elementos externos à estrutura normativa, são despiciendos para a definição do regime jurídico aplicável, até porque estes são elementos que dizem respeito, em verdade, à Ciência das Finanças e não à Ciência Jurídica.184 Noutro dizer, a finalidade da tributação, porque elemento metajurídico, é irrelevante para a definição do regime jurídico aplicável. Nesta linha de entendimento pensam, na doutrina brasileira, Geraldo Ataliba185, Paulo de Barros Carvalho186 e José Souto Maior Borges187, entre outros; na doutrina estrangeira, vale referência às lições de José Juan Ferreiro Lapatza188 e A. D. Giannini189. Enfim, afirmam que a perspectiva teleológica da norma é irrelevante para a definição do regime jurídico aplicável. Sendo normas tributárias, se os fins são fiscais ou extrafiscais, o regime jurídico será sempre tributário, em especial no que tange aos princípios constitucionais informadores da tributação. Por sua vez, uma segunda corrente vislumbra as normas tributárias extrafiscais como regras de direito fora do âmbito do direito tributário. No Brasil, Ricardo Lobo Torres tende a seguir esta linha de pensamento, porquanto, para ele, “a extrafiscalidade também pode revestir a forma de ingressos não-tributários, de conteúdo exclusivamente econômico, sem o objetivo de contribuir para as despesas gerais do Estado”.190 As idéias expostas relevam o entendimento de que extrafiscalidade não tem relação apenas com as normas tributárias, senão também com normas jurídicas com outros conteúdos. 184 MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 61. ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 156-157. 186 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 254. 187 SOUTO MAIOR BORGES, José. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, passim. 188 FERREIRO LAPATZA, J. J. Direito Tributário: teoria geral do tributo. Barueri: Marcial Pons, 2007, p. 24. 189 GIANNINI, A. D. Istituzioni di Diritto Tributario. 5. ed. Milano: Giuffrè, 1951, p. 54. 190 TORRES, Ricardo Lobo. Sistemas Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 636-639. 185 101 Na doutrina comparada, Klaus Tipke, Paul Kirchhof e Karl Friauf, com vistas a ordem jurídica alemã, consideram que as normas tributárias extrafiscais, porque de natureza interventiva econômica, estão situadas, em verdade, na seara do direito econômico e não nas sendas do direito tributário.191 Há, ainda, uma terceira linha de pensamento, adotada por Luís Eduardo Schoueri, cuja posição pode-se dizer intermediária, pois entende que as normas tributárias extrafiscais (nomeadas pelo autor de “normas indutoras”), apesar de assumirem nota interventiva econômica, são normas que conformam hipóteses de incidência de tributos, de modo que estão dentro do espaço jurídico tributário. Porém, não se sujeita apenas a ele, justamente porque o campo material de influência é econômico, de maneira que também deverá submissão aos princípios constitucionais da ordem econômica. Basicamente, esta doutrina é aquela externada anteriormente como o pensamento adotado para esta investigação. Nesta base de pensamento, todavia antes da promulgação da Constituição de 1988, Antônio Roberto Sampaio Dória afirmara que [...] a decretação de tributos, conquanto válida em si mesma, poderá infringir indiretamente garantias ou direitos individuais, constitucionalmente tutelados. E, se determinados interesses individuais ou são protegidos pela ação direta do Estado, não se há de permitir que sejam obliquamente infringidos, sob pena de absoluta inocuidade e até inutilidade de todo o aparelho constitucional vigente.192 Mesmo que não tenha referido expressamente a sujeição das normas tributárias extrafiscais a dois regimes jurídicos simultâneos – tributário e econômico –, isto se infere, porquanto a idéia desenvolve-se com base em uma análise sistemática do sistema, valendo-se do princípio da unidade da Constituição, isto é, por mais que observe as regras inerentes a um dado subsistema normativo, pode ocorrer de a norma extrafiscal atingir outros de modo indireto, o que, se aceito, resultaria na fragilidade da própria estrutura da ordem jurídica, notadamente quando se toma em análise a questão tributária e econômica que são eminentemente constitucionais. Em dissertação de mestrado apresentada na Universidade de São Paulo, Leila Paiva, seguindo a mesma linha de raciocínio exposta por Antonio Roberto Sampaio Dória, averbou: 191 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 228. 192 Apud SCHOUERI, Luís Eduardo. ob. cit., p. 231. 102 O ingresso válido da lei extrafiscal no ordenamento jurídico pressupõe a observância dos princípios constitucionais fundamentais e, conseqüentemente, dos princípios constitucionais tributários, dos direitos e garantias dos cidadãos, dos princípios da ordem econômica, bem como de todas as diretrizes constitucionais imprescindíveis à efetividade da segurança jurídica e da justiça.193 Inegável o conteúdo tributário das normas extrafiscais. Indiscutível, de igual modo, que elas tem evidente finalidade de intervenção econômica. Estas duas características não se sobrepõem, mas justapõem-se, complementam-se. Por esta razão que se afirma a localização das normas tributárias extrafiscais no ponto de intersecção entre o direito tributário e o direito econômico, sujeitando-as a ambos os regimes. Em outros termos, a validade da norma tributária extrafiscal depende da sua compatibilidade com os princípios e regras que estruturam tanto o sistema tributário como também a ordem econômica. Em súmula, a finalidade da tributação detém relevância jurídica. Todavia, em razão do objetivo extrafiscal, alguns princípios tributários não resguardam os interesses envolvidos. Ou melhor, não são aplicáveis ao caso; ou o são de modo diferenciado em relação ao método de utilização quando se trata de fins fiscais. Significa que a maneira como as limitações ao poder de tributar se relaciona com as normas tributárias extrafiscais é brevemente distinta do modus como isso ocorre em relação à finalidade fiscal da tributação. Neste contexto, as regras de competência, o pacto federativo e outros princípios mais assumem funções diferentes e revelam conseqüências jurídicas distintas, mas não menos importantes, a depender da finalidade da norma jurídica tributária: se fiscal ou extrafiscal. Significa, enfim, que a finalidade precípua da norma tributária é pertinente para definição das normas aplicáveis, em especial no que tange aos princípios constitucionais tributários. Portanto, imprescindível que sejam expostas algumas palavras a respeito. Mas antes disto, alguns conceitos e considerações iniciais sobre as finalidades da tributação se fazem necessários para melhor situar o tema. 3.1 OS FINS DA TRIBUTAÇÃO: FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE Historicamente, a experiência do Estado Liberal e, depois, do Estado Social serviram para demonstrar com clareza a necessidade de uma política estatal intervencionista para a 193 Apud SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 231. 103 realização equânime de direitos individuais e sociais. Primeiro, porque o liberalismo político e econômico revelou-se desastroso para a promoção do desenvolvimento socioeconômico e para a garantia mínima de direitos individuais e coletivos; depois, a política de intervenção direta do Estado no domínio econômico, assumindo para si o papel de agente econômico e de provedor das necessidades sociais da população, mostrou-se ineficiente, não produziu os resultados esperados e acabou por resultar na própria falência do Estado.194 Superando aquelas duas concepções de Estado, surge o Estado Democrático de Direito, tido como uma terceira opção ideológica, pois que encampa valores liberais e sociais. Este novel modelo estatal objetiva implementar concretamente um ideal de desenvolvimento com justiça social, pela garantia aos direitos individuais mas sem deixar de lado os valores sociais. Em sua vertente econômica, a intervenção estatal assume novo papel, pois converte o “Estado-Empresário” no “Estado Regulador” – ainda que mantida, em alguns casos, a intervenção direta –, de modo que resgatada a liberdade de iniciativa econômica, o Estado assume outra função: ser agente normativo e regulador daquelas, direcionando-as rumo ao desenvolvimento e à justiça social, valores supremos da ordem constitucional. Neste contexto, valores éticos e morais são convertidos, agora, em princípios jurídicos. O desenvolvimento e a justiça social tornam-se objetivos fundamentais consagrados constitucionalmente. A intervenção econômica indireta, isto é, o papel regulador cometido ao Estado, depende de instrumentos os mais diversos. As normas jurídicas ganham destaque como mecanismos que servem à política estatal intervencionista, ou seja, desvelam clara natureza instrumental, dado que servem de meio à efetivação das políticas públicas estatais. Ponderações deste jaez conferem veracidade à antiga, posto que atual, lição de Alfredo Augusto Becker, de que todas as normas jurídicas não têm objetivos próprios. Os objetivos – econômicos e/ou sociais – são traçados pelas políticas, e bem por isto, a razão de existir das normas é servir de instrumento a uma política.195 Com razão a afirmação do mestre gaúcho. O Estado possui fins constitucionais a realizar. Para tanto, é de sua essência que institua os tributos no intuito de atingir os objetivos fundamentais. Neste sentido, Marlene Kempfer Bassoli também adverte: 194 195 Cf. BOTELHO, Werther. Da Tributação e sua Destinação. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 36-37. BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007, p. 632. 104 Entre as atribuições que compõem a essência do Estado, está a de produzir normas jurídicas que impõem aos cidadãos o dever de pagar tributos. A arrecadação desse dinheiro tem várias finalidades, em especial, manter a estrutura estatal, justificável somente para realizar interesses públicos. Por meio dela, é possível o próprio Estado viabilizar políticas públicas realizadoras de direitos fundamentais.196 Em virtude disto, as normas tributárias passam para o centro das atenções, já que instrumento eficaz de intervenção econômica. Ou seja, a tributação passa a ser meio de efetivação de políticas. A tese da neutralidade da tributação, surgida a partir das idéias do liberalismo econômico, fica superada, em razão da finalidade interventiva por ela adquirida, como destaca Luís S. Cabral de Moncada: A ordem jurídica do estado intervencionista atribui à norma um papel completamente diferente do que tinha anteriormente. A norma jurídica assume agora um conteúdo económico e social perdendo a neutralidade axiológica que a caracterizara na fase liberal. A permeabilidade aos valores da norma jurídica, quer constitucional quer legislativa, atribui-lhe um novo significado. Ao veicular valores, a norma jurídica intervém constitutivamente no terreno económico e social, conformando-o de acordo com a carga axiológica que assumiu. A norma como que se transformou num programa de realizações. A neutralidade da norma jurídica está pois definitivamente ultrapassada. O novo conteúdo da norma jurídica, pelo contrário, constitui-se como um dos pressupostos da actividade económica e social.197 Por sua vez, Werther Botelho registra que a moderna tributação caracteriza-se, hoje, como um dos principais instrumentos de repartição de riqueza e de desenvolvimento econômico, de maneira que tomá-la apenas como meio de obtenção de recursos para o Estado implica em diminuir-lhe as finalidades.198 Esta sua percepção tem como base as lições de Klaus Tipke, para quem: O moderno direito tributário está concebido com uma dupla finalidade, já que não se destina, exclusivamente, à obtenção de recursos. Ao mesmo tempo, procura dirigir a economia e a redistribuição de renda. 196 BASSOLI, Marlene Kempfer. A Tributação e Direito Fundamentais que Realizam os Valores da Liberdade, Igualdade e Solidariedade, in ARGUMEHTUM – Revista de Direito da Universidade de Marília. Vol. 5. Marília: Unimar, 2005, p. 104. 197 MONCADA, Luís. S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 27. 198 BOTELHO, Werther. Da Tributação e sua Destinação. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 37. 105 Ante o exposto, não se pode conceber o Estado Democrático de Direito dissociado de uma tributação com finalidades amplas, extrafiscais, que não se resumam na mera fiscalidade.199 Deste modo, as normas tributárias são instrumentos de realização de diferentes objetivos, de fins diversos. Ora elas servirão ao puro e simples abastecimento dos cofres públicos, ora sua finalidade será outra, sendo empregadas como meios de influir no comportamento econômico e social dos indivíduos. Em síntese: finalidade fiscal ou extrafiscal, segundo o escopo que a lei vise a atingir. Com efeito, evidencia-se que a tributação pode ser dirigida a realizar finalidades as mais diversas, de acordo com o propósito intentado pelo legislador ou com os valores constitucionais que se deseja proteger ou promover. Assim, quando a tributação tiver por escopo exclusivo o abastecimento dos cofres públicos, sem outros interesses que não o meramente arrecadatório, afirma-se sua finalidade fiscal. Este objetivo indica que os tributos são instituídos e cobrados sem fim específico a ele relacionado, prestando-se, apenas, ao suprimento dos recursos financeiros de que necessita o Estado para custear suas despesas.200 Em outra vertente, o tributo terá natureza extrafiscal quando ficar caracterizada uma finalidade política, econômica ou social alheia ao objetivo meramente arrecadatório de dinheiro para os cofres públicos. Na extrafiscalidade, o que orienta a tributação não é, primordialmente, o interesse em arrecadar os tributos, mas, sim, a necessidade de intervenção estatal no seio social ou na economia, com o intuito de se realizar um fim pré-determinado. Por exemplo, para José Marcos Domingues de Oliveira tributação extrafiscal [...] é aquela orientada para fins outros que não a captação de dinheiro para o Erário, tais como a redistribuição da renda e da terra, a defesa da indústria nacional, a orientação dos investimentos para setores produtivos ou mais adequados ao interesse público, a promoção do desenvolvimento regional ou setorial, etc.201 Marcos de Freitas Gouvêa tem entendimento bem elaborado acerca da extrafiscalidade, notadamente quanto a sua sujeição às sendas do direito tributário. Diz ele: 199 BOTELHO, Werther. Da Tributação e sua Destinação. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 37. Cf. AGUIAR, Glauco Lubacheski de. A tributação extrafiscal como mecanismo de desenvolvimento sócioeconômico da Zona Franca de Manaus. In: MARTIN, Ives Gandra da Silva; RAMOS FILHO; Carlos Alberto de Moraes; PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord.). Tributação na Zona Franca de Manaus: comemoração aos 40 anos da ZFM. São Paulo: MP Editora, 2008, passim. 201 OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito Tributário e Meio Ambiente: proporcionalidade, tipicidade aberta, afetação da receita. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 25. 200 106 A extrafiscalidade é o princípio ontológico da tributação e epistemológico do Direito Tributário, que justifica juridicamente a atividade tributante do Estado e a impele, com vistas na realização dos fins estatais e dos valores constitucionais, conforme as políticas públicas constitucionalmente estabelecidas, delimitada (a atividade estatal) pelos princípios que revelam as garantias fundamentais do contribuinte.202 Prosseguindo, Alfredo Augusto Becker lembra, ao tratar dos fins dos tributos, que: A principal finalidade de muitos tributos (que continuarão a surgir em volume e variedade e sempre maiores pela progressiva transfiguração dos tributos de finalismo clássico ou tradicional) não será a de um instrumento de arrecadação de recursos para o custeio de despesas públicas, mas a de um instrumento de intervenção estatal no meio social e na economia privada. Na construção de cada tributo, não mais será ignorado o finalismo extrafiscal, nem será esquecido o fiscal. Ambos coexistirão agora de um modo consciente e desejado; apenas haverá maior ou menor prevalência deste ou daquele finalismo.203 Pelo simples fato de onerar ou desonerar certos fatos, o tributo assume a condição interventiva estatal. Nestes casos, quando a tributação é usada como ferramenta de realização dos objetivos fundamentais da ordem constitucional, diz-se que ela tem finalidade extrafiscal. No momento em que isto ocorre, evidente que o escopo fiscal do tributo continua a existir, mas secundariamente, pois os recursos arrecadados continuam sendo empregados no custeio das despesas estatais, sem, no entanto, que esta se caracterize como sua função primordial.204 O finalismo extrafiscal impregnado nas normas tributárias é sempre o seu objetivo primaz, ou seja, nestas normas é o resultado que dela advém que se tem por importante; o comportamento consagrado na hipótese normativa e as conseqüências jurídicas surgidas dos eventuais fatos jurídicos realizados naqueles termos são secundários. Em síntese, a tributação adequadamente manejada serve como instrumento de intervenção econômica. Ela assume, nestas circunstâncias, finalidade extrafiscal, sem que deixe de assumir, também e atipicamente, uma nota fiscal, de abastecimento dos cofres públicos. É de se lembrar, neste passo, a lição de Alfredo Augusto Becker apontada anteriormente, quanto à coexistência dos finalismos da tributação – fiscal ou extrafiscal. 202 GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no Direito Tributário e suas classificações . Jus Havigandi, Teresina, ano 11, n. 1226, 9 nov. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9151>. Acesso em: 21 jul. 2008. 203 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 536. 204 VINHA, Thiago Degelo. A Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre Combustíveis e Derivados. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pós-graduação em Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social da Universidade de Marília. Marília: 2006, p. 125. 107 Aliás, a percepção de que as normas tributárias podem ser utilizadas como mecanismo de intervenção do Estado no seio social e econômico é antiga. Tem-se notícia de diversos expedientes tributários instituídos com o objetivo de intervenção e direcionamento socioeconômico há cerca de cinco séculos.205 Isto decorre, em larga medida, da efetividade que estas normas possuem em modificar o comportamento dos indivíduos. Por fim, ressalte-se que este capítulo, como elo de ligação entre os anteriores e o último a seguir desenvolvido, tem como foco de análise a tributação extrafiscal com fins interventivos econômicos sob a perspectiva do regime tributário. Ou seja, é imprescindível conhecer os contornos do regime jurídico-tributário que tem direta ligação com a tributação quando esta tem a extrafiscalidade por finalidade precípua. Destarte, pela posição que as normas tributárias extrafiscais detêm no ordenamento jurídico, de ao mesmo tempo estar situada no âmbito jurídico econômico e no tributário, surge a necessidade de análise tanto da competência para tributar e como da competência para regular, distintas uma da outra. Passa-se, de ora em diante, a discorrer sobre ambas, suas diferenças e a possibilidade de conflito entre elas, além de reservar um último tópico para as considerações sobre os instrumentos de manifestação da extrafiscalidade da tributação. 3.2 COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA: AS NORMAS CONSTITUCIONAIS QUE DELINEIAM A COMPETÊNCIA IMPOSITIVA DAS ENTIDADES FEDERATIVAS Não sobeja lembrar que, no Brasil, a atividade tributária do Estado é integralmente regrada pela Constituição Federal. O Constituinte de 1988 foi rígido e exaustivo na matéria tributária. Diferentemente dos demais países, o Texto Constitucional de 1988, e assim também outros que o precederam, delineia exaustivamente o ambiente tributário brasileiro, vale dizer, traça de modo claro e pormenorizado a competência tributária. Em relação a isto, Aliomar Baleeiro registra que “Nenhuma Constituição excede a brasileira, a partir da redação de 1946, pelo zelo com que reduziu a disposições jurídicas aqueles princípios tributários. Nenhuma contém tantas limitações expressas em matéria financeira [...]”.206 205 Para um apanhado geral sobre o uso das normas tributárias com características interventivas econômicas, cf. BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 104. 206 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 02. 108 A exaustividade com que a Constituição tratou da matéria tributária revela os contornos do Sistema Constitucional Tributário Brasileiro,207 o qual condiciona toda a atividade estatal neste tema, desde a atuação do legislador ordinário na instituição do tributo até da autoridade administrativa que tem o dever de aplicar a lei, ao mesmo tempo em que concede direitos subjetivos públicos aos contribuintes. Significa afirmar que o direito tributário positivo está plasmado integralmente na Lei Constitucional. Em razão disto, como lei fundamental de um Estado, a Constituição é a “Carta de Competências”, pois veicula um plexo de normas – regras e princípios – que delineiam o âmbito de atuação tributária das entidades federativas – União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Fixa, por assim dizer, a competência tributária, que “[...] é a aptidão para criar, in abstracto, tributos, descrevendo, legislativamente, suas hipóteses de incidência, seus sujeitos ativos, seus sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas”.208 Ou, segundo entendimento de Celso Bastos, “[...] é a faculdade atribuída pela Constituição às pessoas de direito público com capacidade política para criar tributos”.209 Mais do que isso, dissertar sobre este tema implica, sempre, na abordagem do princípio federativo, mesmo que minimamente, haja vista os reflexos desta forma de Estado sobre as normas de competência tributária, porquanto se diz que esta é fruto do princípio federativo e da autonomia dos municípios. Esta é a face fiscal do federalismo. Para assegurar e promover estas características fundamentais que a Constituição da República atribui às pessoas políticas a faculdade de criar tributos, bem como da distribuição da receitas obtidas com a tributação.210 Deve-se rememorar que Federação pressupõe autonomia – política, financeira, administrativa – das entidades que a integram. Entrementes, a discriminação das competências tributárias não é algo que lhe seja inerente, como bem apercebeu Antonio Roberto Sampaio Dória.211 A rígida discriminação da competência tributária é, em verdade, a ferramenta de realização da autonomia financeira. Esta, a sua vez, visa garantir o pacto 207 Cf. ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, passim. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 449. 209 BASTOS, Celso. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva: 2001, p. 125. 210 CHIESA, Clélio. A Competência Tributária do Estado Brasileiro: desonerações nacionais e imunidades condicionadas. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 90. 211 DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. Discriminação de Rendas Tributárias. São Paulo: José Bushatsky, 1972, p. 15. 208 109 federativo, caracterizando a igualdade entre os entes federados, em especial em virtude da intangibilidade da Federação, prevista no Art. 60, §4º, I, da Constituição de 1988. Entretanto, optou a Lei Maior em garantir a autonomia financeira para a manutenção da Federação pela distribuição detalhada de competências e assim das rendas tributárias. Ou seja, a Constituição de 1988 cometeu a cada uma das pessoas políticas a atribuição de legislar e arrecadar os tributos que lhe são próprios, de modo a custear-lhes as despesas. Por conseqüência desta detalhada repartição de competências tributárias que a discussão a seu respeito sempre tangencia a questão federativa. Como o constituinte valeu-se da técnica de outorga legislativa tributária para garantir a autonomia financeira das entidades federativas e, via de conseqüência, a própria Federação, e sendo esta imodificável, nos termos da cláusula pétrea precitada, o mecanismo de distribuição das competências tributárias serve de instrumento de efetivação e garantia daquela, o que implica em dizer que qualquer atuação legislativa, seja do “poder reformador”, seja do legislador infraconstitucional, seja das próprias autoridades administrativas, que de algum modo suprima ou mesmo reduza as bem definidas linhas de atuação tributária das pessoas constitucionais, importará, em verdade, em ofensa ao pacto federativo, sendo, desde logo, inconstitucional. Amílcar de Araújo Falcão registra que: [...] é evidente que a autonomia assegurada pelo sistema federativo aos entes que integram a federação é plena, no exercício do poder tributário (competência tributária) que lhes for conferido. Essa plenitude lhes assegura a qualidade não só para disciplinar legislativamente os tributos próprios, como para exercitar as atividades administrativas ligadas à arrecadação e fiscalização.212 Ou seja: [...] quem pode tributar (criar unilateralmente o tributo, com base em normas constitucionais), pode, igualmente, aumentar a carga tributária (agravando a alíquota ou a base e cálculo do tributo, ou ambas), diminuí-la (adotando o procedimento inverso) ou, até, suprimi-la, através da não-tributação pura e simples ou do emprego do mecanismo jurídico das isenções. Pode, ainda, 212 FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução ao Direito Tributário. 3. ed. atual. por Flávio Bauer Novelli. Rio de Janeiro: Forense, 1987. p. 91-92. 110 perdoar débitos tributários já nascidos ou parcelá-los, anistiando, se entender que é o caso, as eventuais infrações tributárias cometidas.213 O exercício das competências tributárias deve observância estrita às autorizações e limitações constitucionais fixadas pela Lei Fundamental, sob pena de afrontar a própria estrutura federativa. No que tange à tributação extrafiscal, esta afirmação também procede, uma vez que a veiculação de normas tributárias extrafiscais, ainda que se tenha manifesta e objetiva intenção interventiva econômica, depende, em primeiro lugar, do atendimento às regras positivas e negativas de fixação de competência tributária. Em outras palavras, a entidade competente para tributar possui livre arbítrio para atuar. Pode aumentar o tributo, diminuí-lo, parcelar seu pagamento, conceder isenções, anistiar as infrações tributárias, ou, até mesmo, não tributar. Tudo isso vai depender da decisão política da entidade tributante, pois a Constituição lhe faculta instituir ou não o tributo, devendo, obviamente, ser observadas as diretrizes constitucionais. Essa faculdade, na verdade, não é irrestrita, mas rigorosamente delimitada pelo Texto Constitucional. Exemplo desta afirmação reside na questão da concessão dos incentivos fiscais em matéria de ICMS por parte dos Estados-membros e do Distrito Federal, que será analisado detidamente adiante. Conquanto esteja dentro de sua competência tributária a possibilidade de, entre outras coisas, não-tributar, em razão de questões federativas e concorrenciais, não pode qualquer das entidades estaduais autorizar a concessão de incentivos fiscais em matéria de ICMS se não houver a anuência dos demais Estados e do Distrito Federal. Em sentido amplo, competência designa o resultado decorrente de autorizações menos limitações. Noutros termos, a competência forma-se pela prescrição de normas positivas de atribuição ou autorização diminuídas as normas constitucionais com timbre negativo, isto é, as que limitam o alcance das primeiras. José Souto Maior Borges é quem bem expõe estas idéias. Sua lição bem aponta a exata compreensão de sentido das competências, ademais de ser, como sempre, precisa. Para ele, a competência significa o resultado da ligação entre autorização e limitação, pois [...] Sem esse consórcio, nenhuma competência. Só a autorização não pode explicá-la, porque não há norma positiva com âmbito de validade ilimitado. 213 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 431. 111 Só a proibição deixa igualmente incompleta a norma, porque não saberá o seu destinatário como conduzir-se diante dela. Só estar proibido é ser a rigor incompetente.214 De tudo quanto se anotou, sobressai que o desenho da competência legislativa tributária forma-se por normas constitucionais com distintas características: (i) aquelas que prevêem de modo positivo o conteúdo, o âmbito de atuação do legislador das pessoas federativas; e (ii) aquelas que limitam o alcance de ação do legislador infraconstitucional, isto é, que restringem sua atuação. Aquelas são, de ora em diante, nomeadas de normas de competência em sentido estrito – ou, autorizações, como quer Souto Maior Borges; estas, os princípios jurídicos e as imunidades tributárias – as ditas limitações. Daí porque dizer que a competência tributária é um poder juridicamente delimitado e dividido. Infere-se destas considerações iniciais que toda a disciplina relativa à atividade tributária, da instituição dos tributos, passando pelo “poder” de não-tributar, isto é, de isentar e chegando na edição das regras diretivas da atuação administrativa fiscalizadora e arrecadatória, decorrem de expressa outorga constitucional, que estabelece o âmbito de atuação das pessoas políticas e de seus órgãos, além dos limites impostos à realização deste mister. A Constituição fixa, por estes meios, as competências tributárias. Neste particular, entende-se relevante discorrer, de modo individualizado, sobre cada uma das normas constitucionais que formam, no seu resultado, a competência tributária. 3.2.1 Normas constitucionais positivas: regras atributivas de competência Visto que toda competência significa a conjunção de autorizações e limitações, importa, então e por ora, apenas as normas jurídicas que ditam as autorizações constitucionais para as entidades federativas legislar a respeito de tributos. Por outra terminologia, discorrese, agora, sobre as normas positivas de fixação da competência tributária, isto é, a competência tributária em sentido estrito. Elas são, como registrado alhures, normas constitucionais que ditam o âmbito de atuação positiva do legislador tributário infraconstitucional. Estabelecem, por assim dizer, a matéria tributária acerca da qual o legislador das pessoas políticas tem autorização para tratar. 214 BORGES, José Souto Maior. Incentivos Fiscais e Financeiros, in Revista Trimestral de Direito Público, n. 08. São Paulo: Malheiros, 1986, p. 91. 112 Demonstram esta afirmação, por exemplo, as previsões contidas nos arts. 153, 154, 155 e 156, da Constituição de 1988, que estabelecem o âmbito de tributação por impostos das entidades federativas, pela designação de suas materialidades. O mesmo se pode assegurar quanto às taxas, cujas espécies e materialidades vêm tratadas pelo Art. 145, II, da Lei Maior. Estas, dentre outras disposições normativas existentes no Texto Constitucional, são “[...] normas que atribuem poder ao Estado para instituir tributos por meio da especificação dos fatos e situações que torna suscetíveis de tributação (normas atributivas de competência) [...]”; elas são os pontos de partida estabelecidos que definem as competências tributárias, pois delimitam as hipóteses de incidência dos tributos.215 Neste sentido, ainda, o entendimento do Supremo Tribunal Federal: [...] o conteúdo político de uma Constituição não pode levar ao desprezo do sentido vernacular das palavras utilizadas pelo legislador constituinte, quer ao técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito (...). Realmente a flexibilidade de conceitos, o câmbio do sentido destes conforme os interesses em jogo, implicam insegurança incompatível com o objetivo da própria Carta que, realmente, é um corpo político, mas o é ante os parâmetros que encerra e estes não são imunes ao real sentido dos vocábulos, especialmente os de contornos jurídicos. Logo, não merece agasalho o ato de dizer-se da colocação, em plano secundário, dos conceitos consagrados, buscando-se homenagear, sem limites técnicos, o sentido político das normas constitucionais.216 Por outro lado, mesmo que porventura pareça um paradoxo, as normas de atribuição de poder – as autorizações de competência – trazem em seu bojo interpretativo também regras negativas, limitativas da própria competência tributária em sentido estrito, porquanto ao fixar detalhadamente os fatos e situações suscetíveis a oneração tributária, implicitamente, mas de modo insofismável, ela veicula a própria limitação semântica de seu alcance, pois revela o que não pode ser tributado. Enfim, o importante é que fique claro que as normas de autorização, as quais fixam a atribuição de poder para tributar, caracteriza apenas uma das espécies que formam o gênero competência tributária. A outra espécie, excludente ou limitativa de competência, será a seguir desenvolvida. São os princípios e as imunidades tributárias. 215 ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v. I, n. 3. Salvador: CAJ - Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 10. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br 216 idem, ibidem. 113 3.2.2 Normas constitucionais negativas: os princípios jurídicos e as imunidades tributárias Além das regras atributivas de competência, que fixam os fatos materialmente sujeitos ao ônus tributário, a Constituição veicula, ainda, normas limitativas ou excludentes de competência tributária. São, nestes termos, normas constitucionais de conteúdo negativo, pois subtraem, diminuem a atribuição de competência das pessoas políticas. Estas normas, ao contrário de ditar o âmbito de atuação das pessoas políticas detentora de competência tributária, fixam o campo onde a tributação não alcança. Estabelecem, por assim dizer, a delimitação jurídica do poder impositivo das pessoas políticas, seja mediante a fixação de limites formais, seja pela enumeração de limites materiais, segundo classificação adotada por Humberto Ávila.217 Acerca das limitações ao poder tributário, Humberto Ávila assinala, de modo claro: As normas que compõem o ordenamento jurídico não são uniformes na sua função limitativa do poder de tributar. Com efeito, enquanto algumas normas estabelecem “como” e “quando” os tributos podem ser instituídos ou cobrados, outras delimitam “o quê” pode ser objeto de tributação. Os limites decorrentes de normas que prescrevem o procedimento e os limites de eficácia das normas que instituem tributos podem ser didaticamente agrupados sob a rubrica de limites formais (relativos à forma da tributação); os que prescrevem quais os fatos e situações que podem ser objeto de tributação, bem como os seus requisitos, podem ser reunidos na categoria de limites materiais (referentes ao conteúdo da tributação).218 Na nomenclatura constitucional: as limitações constitucionais ao poder de tributar, conforme terminologia cunhada por Aliomar Baleeiro e, ao depois, adotada pelo Legislador Constituinte de 1988.219 Em síntese, os princípios e as imunidades tributárias, os quais formam o conjunto de limitações constitucionais ao poder ativo de tributar. Sendo assim, normas-princípio e normas-imunidade caracterizam-se como limitações da competência tributária dos entes políticos. Contudo, inolvidável que, muito embora caracterizem, indubitavelmente, limitações ao “poder de tributar”, são normas jurídicas distintas, especialmente porque encerram estruturas diferentes, na medida em que os 217 ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v. I, n. 3. Salvador: CAJ - Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 8-11. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br 218 idem, ibidem, p. 5-6. 219 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999. 114 princípios são normas imediatamente finalísticas, ao passo em que as imunidades consistem em regras jurídicas que prescrevem uma vedação à tributação, isto é, fixa um exato e determinado comportamento, sendo regras apenas mediatamente finalísticas. Neste sentido a lição sempre precisa de Humberto Ávila: As normas que formam o ordenamento jurídico também não são uniformes em sua estrutura. De fato, há normas que determinam a realização de fins, sem uma hipótese de incidência capaz de prescrever qual o comportamento adequado a essa realização (e.g. segurança jurídica, democracia); há normas que, ainda que ligadas à realização de fins, prescrevem, permitem ou proíbem determinado comportamento ou prevêem o conteúdo que outras normas devem possuir, instituindo as conseqüências que advém do seu descumprimento (e.g. normas atributivas de competência). As normas imediatamente finalísticas podem ser qualificadas de princípios; as mediatamente finalísticas, de regras. O importante é que enquanto a relação entre os princípios caracteriza-se como um entrecruzamento, e soluciona-se mediante a atribuição de uma dimensão de peso a cada um dos princípios envolvidos, com a conseqüente criação de regras de prevalência diante do caso concreto, a relação entre as regras qualifica-se como uma antinomia, e resolve-se por meio da abertura de exceções à regra ou com a declaração de invalidade de uma delas.220 Clélio Chiesa, por sua vez, destaca a diferença entre os princípios e as imunidades, posto que entenda que ambos caracterizem-se como limitações a competência tributária: É verdade que tanto as imunidades quanto os princípios limitam o chamado “poder de tributar”, ou seja, o exercício das competências tributárias, entretanto, são realidades distintas. Os princípios são diretrizes basilares que visam a estruturar o sistema; não contemplam hipóteses de incompetência para tributar, como ocorre com as imunidades. Como observa Mizabel Derzi, “não dizemos que todos somos ‘imunes’ a tributos, instituídos por decretos do Executivo, nem tampouco que somos ‘imunes’ a leis retroativas. Isso por que tais princípios são diretrizes, requisitos ou critérios de validade formal ou material à criação de normas jurídicas, cuja observância leva ao exercício adequado de competência tributária”.221 Recorde-se que a forma como os princípios e as imunidades trabalham dentro da sistemática de limitação da competência tributária também diverge. Se, de um lado, os princípios são vetores de atuação estatal tributária, pois estabelecem diretrizes ao ato de tributar, guiando o Estado desde a instituição dos tributos até o exercício de sua arrecadação; 220 ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v. I, n. 3. Salvador: CAJ – Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 8-11. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. 221 CHIESA, Clélio. A Competência Tributária do Estado Brasileiro: desonerações nacionais e imunidades condicionadas. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 99-100. 115 de outro norte, as imunidades fixam, objetiva e materialmente, o que não se sujeita à tributação; giza o campo de incompetência tributária das pessoas políticas. Tendo esta diferenciação em vista, é bem possível afirmar que a limitação imposta pelos princípios é meramente restritiva, pois condiciona o exercício da competência tributária à observância de certos diretrizes; já as imunidades implicam em vedações à atividade tributária, estabelecendo o que efetivamente não pode, jamais, sofrer o ônus impositivo. Era o que se tinha a expor nesta parte, pois o objetivo destas considerações é no sentido de, tão-somente, traçar os contornos do regime tributário da tributação extrafiscal. Evidentemente, o emprego das normas tributárias com fins extrafiscais, já que sujeita ao regime tributário, embora não exclusivamente, somente pode se realizar pela entidade federativa que detenha competência tributária para legislar sobre o tema. Sobre isto, adverte Geraldo Ataliba, ao dizer que o emprego dos instrumentos tributários com fins não fiscais deve-se realizar por quem os tem à disposição.222 Assim, a veiculação de normas jurídicas tributárias, seja qual for sua finalidade, deve observância aos contornos da competência tributária definida constitucionalmente. A finalidade da norma tributária, por ser fator metajurídico, já que não integra a estrutura normativa, não é suficiente para sustar a necessidade de observância das regras de competência tributária. Apesar das normas tributárias extrafiscais dever observância às normas de competência tributária traçadas pela Constituição de 1988, a finalidade normativa, quando juridicamente relevante, gera como conseqüência modificações no exame de aplicação e cumprimento aos princípios tributários. 3.2.3 Os princípios constitucionais tributários e a finalidade extrafiscal da tributação Resolvida a discussão sobre a compreensão dos princípios jurídicos, o foco aqui tem relação com outra discussão: é momento de abordar os princípios constitucionais atinentes à tributação e cotejá-los com os fins que estas normas buscam atingir. 222 ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 150-151. 116 Os trabalhos jurídico-científicos produzidos no Brasil acerca dos princípios são vários, densos e, muitos deles, alcançaram a distinção de “clássicos”, como ocorre com a obra de Celso Antonio Bandeira de Mello “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”.223 Na seara tributária, muitos autores também se dedicaram ao tema. Entretanto, costumeiramente estes estudos tomam os princípios tributários como limitações à edição de normas tributárias cuja finalidade precípua é o abastecimento dos cofres públicos, ou seja, promovem os estudos apenas com vistas aos fins fiscais da tributação. Neste trabalho, o enfoque é diferente. As normas tributárias que ora importam, como já se apontou por diversas vezes, são aquelas que assumem finalidade extrafiscal, mas apenas quanto às suas conseqüências sobre o domínio econômico (intervenção econômica indireta). E os princípios sobre os quais se discorrerá adiante são estritamente tributários e eleitos discricionariamente para alcançar o pretendido. Assim, não se esgotará o tema porque incabível nos quadros desta investigação. Sendo assim, correto o destaque dado por Humberto Ávila às questões que envolvam os “fins externos” da tributação, vale dizer, o escopo extrafiscal propriamente dito. Para ele, em casos como tais há uma diferenciação quanto à aplicação dos princípios tributários.224 Luís Eduardo Schoueri também pensa desta forma, pois, segundo adverte, há a necessidade de se rever alguns posicionamentos a respeito dos princípios tributários quando se tiver por pano de fundo as normas tributárias indutoras, haja vista sua natureza interventiva econômica.225 Demais disto, alguns princípios que são formalmente tributários devem ser analisados, sempre à luz das idéias da submissão da extrafiscalidade ao regime tributário. 3.2.3.1 O princípio da estrita legalidade tributária e a tributação extrafiscal O princípio da estrita legalidade tributária encontra amparo, na Constituição de 1988, no Art. 150, I, que prevê ser vedado às entidades políticas exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça. Ele é decorrência, no âmbito da tributação, do princípio da legalidade, 223 Cf. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. 224 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 344. Cf. também: ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v. I, n. 3. Salvador: CAJ – Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 8-11. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. 225 SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 232 e ss. 117 previsto genericamente no Art. 5º, II, da Lei Maior, cuja enunciação é conhecida de todos: “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Em termos objetivos, a repetição do primado da legalidade no capítulo do “Sistema Tributário Nacional” não foi despropositada, mas quis o constituinte reforçá-lo, dando-lhe ares de estrita legalidade, visando resguardar os direitos dos contribuintes. Buscando a ancestralidade do princípio, Aliomar Baleeiro registra que ele remonta ao tempo do Rei João Sem-Terra, quando os súditos lhe impuseram a condição de somente ser tributado mediante sua autorização, ilustrada na expressão inglesa “no taxation without representation”.226 Já Victor Uckmar salienta que a atribuição da competência para a imposição de tributos, via Poder Legislativo, inspirou-se na doutrina de Locke, pois “[...] sem dúvida os impostos são necessários, mas não podem ser exigidos sem o consentimento da maior parte dos componentes da sociedade, ou daqueles que os representam ou que foram escolhidos por estes”.227 No sistema atual, o princípio da legalidade é mecanismo garantidor do princípio democrático, que lhe é sobrejacente. Ou seja, é o influxo do princípio democrático sobre a legalidade tributária que assegura a participação do cidadão, ainda que mediante representação, no processo de elaboração e instituição dos tributos.228 Mais do que isto, a legalidade da tributação consiste em norma jurídica que trabalha no sentido de realizar concretamente os princípios do Estado de Direito e da Segurança Jurídica. Deve-se rememorar, a este respeito, que a lei, emanada do Poder Legislativo, sempre significou a expressão maior do Estado de Direito. É por esta razão que o princípio da legalidade encerra, também, foros de segurança jurídica, pois garantidor da estabilidade e da previsibilidade das relações jurídicas. Sobre sua importância para o sistema tributário instalado no atual regime jurídicopolítico brasileiro, Aliomar Baleeiro registra que: A defesa do sistema tributário e do próprio regime político do país processase por um conjunto de limitações ao poder ativo de tributar. Delas, o mais importante, por suas implicações políticas e jurídicas, é o da legalidade dos tributos. Mas existe, também, a nosso ver, a limitação do poder de nãotributar ou isentar, inclusive a de a União isentar imposto estranho à sua 226 BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 74. UCKMAR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário. 2. ed. Tradução e notas ao Direito brasileiro Marco Aurélio Greco. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 32. 228 Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 121-142. 227 118 competência (Constituição Federal de 1969, art. 19, §2º) ou de isentar o Estado do ICM sem os convênios com outros Estados (Idem, art. 23, §6º).229 Em matéria tributária, o princípio da legalidade é preeminente, em especial pelas razões e interesses privados envolvidos. Como o direito de propriedade é um direito individual fundamental, a teor do Art. 5º, XXII, da Constituição Federal, e tributar, a rigor, importa em limitação deste direito. Daí se dizer, nesta senda, que este primado ganha foros de maior rigidez, ou seja, a legalidade tributária é estrita. Embora o ponto de partida jurídico-positivo deste princípio traga uma redação simples e até de fácil compreensão, a verdade é que o conteúdo e o alcance semântico contido no Art. 150, I, da Constituição de 1988 é amplíssimo. No Brasil, as produções jurídicas foram tantas a seu respeito que se chegou mesmo a extrair dele as mais diversas conseqüências. Neste sentido, Luís Eduardo Schoueri adverte que entre os vários textos jurídicos produzidos no Brasil acerca do princípio da legalidade da tributação, deve-se destacar a obra de Gerd Willi Rothmann, que ao esmiuçar os meandros desta limitação ao “poder tributário” estatal, encontrou nele desdobramentos em quatro feições distintas: (i) legalidade da administração; (ii) reserva da lei; (iii) estrita legalidade tributária; e (iv) conformidade da tributação com o fato gerador. No primeiro aspecto, alude-se à plena vinculação entre a atuação das autoridades administrativas e a previsão legal, impossibilitando-lhe qualquer discricionariedade. No segundo caso, a legalidade tributária desdobra-se na necessidade do emprego de lei formal, entendida no seu sentido estrito, para veicular matéria tributária. Neste passo, esclareça-se que é desta suposição que se infere a necessidade da veiculação da lei nos termos do processo legislativo constitucionalmente eleito. Já na ótica da estrita legalidade tributária, terceira decomposição referida, a legalidade da tributação encerra, em verdade, o comando constitucional proibitivo de instituição dos tributos – e, por conseguinte, sua modificação, diminuição ou aumento – sem que pré-exista a respectiva lei autorizadora. Enfim, o último desdobramento consiste na detalhada previsão dos elementos suficientes à configuração do tributo, não podendo deixar à administração qualquer tipo de discricionariedade. O chamado princípio da tipicidade tributária.230 229 BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1999, p. 02. 230 Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 241. 119 Minimamente, então, o princípio da legalidade tributária implica na obrigação de veiculação de tributos através de lei no sentido estrito e formal do termo; impõe que esta lei advenha do Órgão Legislativo do ente federativo competente para legislar sobre o tema; demanda que esta lei preveja todos os critérios da regra-matriz tributária, isto é, definidores do fato jurídico e da obrigação tributária, além de, obviamente, não deferir ao órgão executivo a faculdade de estabelecer qualquer dos critérios configuradores do tributo. Humberto Ávila, a seu turno, traz perspectiva inovadora sobre a legalidade tributária. Segundo ele, jamais se pode esquecer que sua interpretação e sua aplicação devem tomar em conta, sempre, o princípio democrático que lhe é sobrejacente. Além disto, na ótica de sua dimensão normativa, a legalidade é uma norma tridimensional231, ou seja, é, preponderantemente uma norma-regra (e não princípio, como costumeiramente afirma-se na doutrina e na jurisprudência brasileira, conforme teoria e premissas por ele adotadas), pois encerra a descrição do comportamento proibitivo de instituição ou majoração de tributos sem o procedimento parlamentar adequado, a ser adotado pelo Poder Legislativo diretamente e obliquamente pelo órgão Executivo. Assume também dimensão principiológica, na medida em que estabelece o dever de previsibilidade e determinabilidade da atuação do Estado e mesmo dos contribuintes. Por fim, consiste em postulado normativo aplicativo pois que impõe ao aplicador do direito a total fidelidade aos pontos de partida, as condições materiais mínimas, estabelecidas na própria legislação.232 Ao se relacionar o princípio da legalidade tributária com as normas tributárias extrafiscais (normas tributárias indutoras), Luís Eduardo Schoueri sustenta a necessidade de haver uma mitigação desta proteção constitucional, haja vista o escopo de intervenção econômica que estas normas assumem; e uma vez que a pretensão é regulatória dos comportamentos econômicos e estes, por sua natureza, são extremamente dinâmicos, deverse-ia aplacar a hirteza da estrita legalidade tributária.233 Na paráfrase a André Elali, que toma estas lições como base: 231 Vale lembrar que a terminologia empregada pelo autor ao tratar do assunto nada tem que ver com a Teoria Tridimensional do Direito, de Miguel Reale. Ao contrário, ele se vale da expressão para significar que a legalidade tributária pode ser vista sob três óticas dimensionais distintas: como regra, como princípio e como postulado normativo aplicativo. 232 Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 123. 233 SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 261-267. 120 Deve-se atentar para o fato de que as normas tributárias indutoras precisam regular os comportamentos econômicos que, por serem extremamente dinâmicos, não podem ser totalmente definidos na lei. A indução, para ser eficaz e eficiente, precisa se efetivar através da conjunção dos critérios da lei com os do seu aplicador. A lei não tem a possibilidade de definir os critérios, mas sim descrevê-los, o que deve orientar o aplicador. Assim, falar-se em tipicidade cerrada é contrariar o próprio conceito de tipo, que é aberto.234 Tomando-se por base os desdobramentos do princípio da legalidade da tributação expostos por Gerd Willi Rothmann, citado alhures, e cotejando-o com estas considerações de Luís Eduardo Schoueri e André Elali, conclui-se que eles vislumbram a possibilidade de se relativizar a perspectiva da legalidade da administração como a conformidade da tributação com o fato gerador (tipicidade). Ou seja, não propalam a dispensa pura e simples da observância à legalidade, apenas visualizam a possibilidade de, em certas circunstâncias e em determinadas condições, haver certa discricionariedade do aplicador da lei tributária. Entretanto, consigne-se que, a despeito da força dos argumentos expendidos e da reconhecida qualidade dos autores, isto deve ser ponderado e equilibrado, em especial com soluções caso a caso, pois, lembrando a antiga, mas precisa, lição de Geraldo de Ataliba, de que se bastasse ao Estado alardear um fim a ser realizado, já estaria legitimado o arbítrio.235 Duas últimas considerações: no capítulo seguinte, discorrer-se-á a respeito dos convênios interestaduais em matéria de incentivos fiscais de ICMS. Por conta disto, é importante antecipar a vinculação existente entre o tema ora desenvolvido – princípio da estrita legalidade tributária – e aquele a se efetivar adiante, na medida em que o processo legislativo de concessão ou revogação dos incentivos fiscais em matéria de ICMS, por parte dos Estados-membros e do Distrito Federal, é complexo, isto é, depende da integração de vontade dos órgãos executivo e legislativo da entidade federativa que respectivamente pretenda dispensar o incentivo fiscal e também deve observância à formalidade relativa aos convênios, nos termos da própria Constituição. Neste passo, avulta-se o princípio da estrita legalidade na perspectiva da “reserva da lei”, porquanto a válida concessão dos incentivos fiscais de ICMS, no que concerne à legalidade tributária, depende da estrita obediência aos ditames constitucionais e legais que traçam a formalidade necessária, o especial processo legislativo para tanto. 234 ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica – um exame da tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora. 2007, p. 156. 235 ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 28. 121 Afirma-se o mesmo em relação ao Simples Nacional, o outro instrumento tributário extrafiscal analisado no capítulo subseqüente, no que se refere ao liame entre este e o princípio ora em estudo. Ou seja, a legalidade tributária quanto à edição do Simples Nacional passa desde a veiculação pelo procedimento formal adequado – edição via lei complementar – até alcançar a problemática dos limites do poder regulamentar deferido ao Comitê Gestor. 3.2.3.2 Irretroatividade e normas tributárias extrafiscais O Art. 5º, XXXVI, da Constituição de 1988 prescreve que “a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Este enunciado normativoprescritivo fixa positivamente o conhecido princípio da irretroatividade. Sinteticamente, significa que todas as relações jurídicas já estabilizadas, consumadas e atingidas pela certeza do direito e pela segurança jurídica jamais poderão receber efeitos jurídicos fixados por legislação lhe seja superveniente. Em termos objetivos: a nenhuma norma é dado regular os fatos pretéritos, até porque as normas jurídicas são criadas para disciplinar as questões que ainda estão por surgir, isto é, sua eficácia projeta-se para o porvir, ressalvado, evidentemente, a exceção constitucionalmente prevista – Art. 5º, XL, da Constituição Federal de 1988. Em página inspirada, Vicente Ráo foi preciso: A inviolabilidade do passado é princípio que encontra fundamento na própria natureza do ser humano, pois, segundo as sábias palavras de Portalis, o homem, que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço, seria o mais infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto a sua vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso de seu destino ? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as incertezas. Na ordem do universo e da natureza, só o futuro é incerto e esta própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira da nossa fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade querer mudar, através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas esperanças.236 Contudo, adverte-se que a lei pode, em princípio, fixar as datas de início e fim de sua própria vigência. Ou seja, não há restrição a leis fixem seu período de vigência, quando destinada a vigorar temporariamente. O limite que elas encontram, entretanto, diz respeito à possibilidade de ditar sua vigência e, por conseguinte, sua aplicabilidade à data anterior a da sua criação, vale dizer, para momento situado, no tempo, antes ao seu surgimento no universo 236 RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 730. 122 jurídico. Se assim fosse possível, estaria instalado o caos e a insegurança jurídica entre os cidadãos; o Direito, ao contrário de promover os fins para os quais foi instituído, basicamente de levar a paz social e resolver definitivamente os conflitos, promoveria o inverso. Por isto, chega-se a afirmar que a previsão do Art. 150, III, “a”, da Constituição Federal, que prescreve, ser vedado às entidades políticas “cobrar tributos em relação a fatos geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”, é desnecessária. Ou seja, a irretroatividade como norma geral de direito, irradia seus efeitos sobre todos os campos do sistema jurídico-normativo. Entretanto, o Constituinte de 1988 entendeu por bem positivá-la expressamente no âmbito do direito tributário. Referida previsão constitucional prevê um importante limite à atividade estatal tributária, na medida em que proíbe que a norma tributária que tenha inovado a ordem jurídica, criando ou aumentando – e, segundo se entende, que também extinga ou diminua – tributo incida sobre fato pretérito, ou seja, sobre fato ocorrido antes de sua entrada em vigor. Segundo Luciano Amaro, este preceito dirige-se não só ao aplicador do direito, mas também ao próprio legislador infraconstitucional, “[...] a quem fica vedado ditar regra para tributar fato passado ou para majorar o tributo que, segundo a lei da época, gravou esse fato”.237 Infere-se desta asserção a nítida característica de norma excludente da competência tributária. Humberto Ávila, a seu turno, compreende a irretroatividade como uma norma jurídica bidimensional subjacente ao princípio do Estado de Direito. Segundo ele, irretroatividade detém dimensão normativa preponderante de regra, ou seja, nada tem de princípio uma vez que descreve objetivamente a conduta que deve ser adotada pelo Poder Legislativo. Apesar disso, de modo mediato, a irretroatividade constitui-se em princípio, já que indiretamente fixa o dever de buscar um ideal de previsibilidade, estabilidade, cognoscibilidade, confiabilidade e lealdade.238 Mais do que isto, este mesmo autor classifica a irretroatividade como limitação de eficácia das normas de competência. Neste aspecto, assiste-lhe razão, em primeiro lugar em virtude da determinação expressa da Constituição de 1988 que veda a “cobrança” do tributo em relação a fato gerador ocorrido antes da vigência da lei nova. Ou seja, cobrança é ato de aplicação do comando normativo já instituído, de modo que, é cediço, se está tratando do âmbito eficacial e não de validade da norma. 237 238 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 116. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 143. 123 Apesar da aparente singeleza da norma jurídica da irretroatividade, em verdade há problemas sérios, em especial na matéria tributária. Exemplo de discussão recorrente sobre ser ou não retroativa uma norma tributária está na questão da revogação de incentivo fiscal concedido por prazo certo e em função de determinadas condições. Sempre que se alude a este fenômeno, se está tocando o campo da extrafiscalidade tributária. De toda sorte, importa apenas saber que as normas tributárias com fins extrafiscais também devem observância à irretroatividade da lei tributária. Neste contexto, deixa-se aqui evidente a discordância em relação à doutrina que entende ser possível a lei tributária nova que fixe isenções tributárias, por exemplo, possa ter efeitos retroativos.239 A retroação normativa somente é permitida em uma única e exclusiva situação: no caso da norma penal mais benéfica. E não se confunda “norma penal” com “norma criminal”. A terminologia constitucional é ampla, ou seja, alude às normas que veiculem conteúdo normativo penal, vale dizer, que trate de infrações e sanções, e não apenas refere-se ao âmbito daquele ilícitos tipificados pela legislação como crimes. Em fechamento, averbe-se uma proposta teórica nova e interessante sobre a retroação e o princípio da irretroatividade, extraída da doutrina alemã. Com base nos ensinamentos de Klaus Vogel e Christian Waldhoff, Humberto Ávila assevera haver cinco hipóteses em que uma norma pode abranger fatos passados. São elas: (i) modificação retroativa das conseqüências jurídicas; (ii) ligação retroativa da hipótese de incidência I; (iii) ligação retroativa da hipótese de incidência II; (iv) fatos pré-causados I; e (v) fatos pré-causados II.240 Por esta razão, afirma ele, estudar a irretroatividade como imposição de que a lei seja anterior ao fato jurídico é extremamente limitada, pois toma como premissa a idéia de que os fatos ocorrem, por inteiro, antes ou depois da lei, desconsiderando que “Na verdade, os fatos podem ser iniciados antes da lei para se completarem após sua edição, bem como podem ocorrer somente após a edição da lei, mas em decorrência de uma causa surgida antes dela”.241 De toda sorte, se assente que a irretroatividade tem estreita ligação com os temas desenvolvidos no próximo capítulo – convênios interestaduais em matéria de concessão de incentivos fiscais de ICMS e o Simples Nacional –, na medida em que envolve problemas concretos relativos, principalmente, aos efeitos jurídico-tributários da revogação ou anulação 239 Neste sentido, Cf. CARRAZZA, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 329-330. 240 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 146-149. 241 Idem, ibidem, p. 149. 124 dos incentivos porventura concedidos ou com a exclusão de empresas do sistema nacional simplificado de arrecadação e pagamento de tributos. 3.2.3.3 Anterioridade tributária e extrafiscalidade Outra importante limitação ao exercício da competência tributária é conhecida como “princípio da anterioridade tributária”. Ele está previsto no Art. 150, III, “b”, da Constituição de 1988, e veda a exigência de tributo “no mesmo exercício financeiro da lei que os houver instituído ou aumentado”. Em termos simples, estabelece regra de previsibilidade na ação estatal. Ou, como quer alguns autores, veda a surpresa tributária, de modo que assegura ao contribuinte a garantia de ter tempo para se preparar para sofrer o encargo da tributação nova ou mais elevada, além, por óbvio, da ciência prévia a respeito da cobrança a se realizar. Misabel Derzi, por sua vez, diz que o princípio da anterioridade “limita-se a adiar a eficácia e a aplicação da lei, que institui tributo novo, ou majora um já existente, para o exercício financeiro subseqüente ao de sua publicação”.242 Para a autora, em conclusão, este princípio consiste em uma limitação de eficácia, como também o classifica Humberto Ávila. Significa que é norma voltada ao aplicador do direito e não, propriamente, ao legislador, que veicula as normas gerais, abstratas e isonômicas. Não obstante sua colocação no inciso III do Art. 150, da Constituição de 1988, o qual alude à vedação de “cobrança”, o entendimento dominante na doutrina é de que o sentido veiculado na anterioridade não veda apenas que a cobrança – expediente administrativo de aplicação da lei tributária – se realize no mesmo exercício financeiro da publicação da lei instituidora ou majoradora, mas impede, inclusive, que a novel lei tributária seja aplicada sobre os fatos ocorridos no mesmo exercício financeiro em que publicada, sob pena de se contornar, por via oblíqua, a proteção constitucional. Roque Carrazza registra detalhadamente este entendimento, quando assevera: [...] o princípio da anterioridade não é respeitado quando se considera imponível o fato ocorrido no mesmo exercício financeiro em que entrou em vigor a lei instituidora do tributo, ainda que sua cobrança administrativa se dê no exercício seguinte. O mesmo vale para a lei que aumenta – inclusive de modo indireto (v.g., antecipando o prazo de vencimento) – tributo já existente: ela só incidirá no exercício seguinte à sua entrada em vigor. Em 242 DERZI, Misabel Abreu Machado. Notas. In: BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 48. 125 síntese, pelo princípio da anterioridade não é suficiente que a lei que cria ou aumenta o tributo esteja em vigor no exercício anterior ao de sua cobrança administrativa. É preciso, ainda, que esteja em vigor no exercício anterior ao da ocorrência do fato imponível. Não basta, pois, que o ato administrativo de lançamento e arrecadação se dê no exercício seguinte ao da instituição ou majoração do tributo para que se considere obedecido o princípio da anterioridade. Para que isso aconteça, é mister, ainda, que o tributo só nasça (ou só nasça majorado) no exercício seguinte ao de sua instituição (ou de seu aumento).243 Em complementação, é bom que se diga que a anterioridade significa a vedação de onerar, de surpresa, o contribuinte. Ou seja, quando a nova tributação acarrete ao contribuinte ônus tributário dantes inexistente ou que maior do que o pré-existente, vale-se da garantia da anterioridade como limitação à exigência tributária. Porém, sempre que as novas regras tributárias importem em minoração ou extinção do ônus tributário a aplicação é imediata, não havendo que se falar na necessidade de respeitar o exercício financeiro. Recorde-se, sobre isto, que o “princípio da anterioridade” é regra de garantia dos direitos dos contribuintes direcionadas ao legislador das entidades federativas, de modo que se aplica o seu comando com vetor que resulte em maior favorecimento ao contribuinte. A colocação da expressão “princípio da anterioridade” entre aspas tem significado para este trabalho, pois conforme assentado na doutrina de Humberto Ávila – que parece estar com a razão – esta espécie normativa é bidimensional, na medida em que preponderantemente consiste em uma regra que descreve o comportamento a ser adotado pelo Poder Legislativo como também pelo Órgão Executivo, quando proíbe a instituição ou o aumento de tributo no mesmo exercício financeiro de publicação da lei que o institui ou majorou. Mediatamente, a anterioridade se expressa como princípio quando estabelece o dever de busca do ideal de previsibilidade, de controlabilidade, de inteligibilidade e de mensurabilidade.244 No que tange às normas tributárias extrafiscais, a anterioridade tributária, conquanto encerre norma garantidora de segurança jurídica, deve ser respeitada, principalmente nos casos de revogação dos incentivos fiscais. A revogação de um incentivo fiscal, como uma isenção, por exemplo, importa, da perspectiva eficacial, nos mesmos efeitos jurídicos da instituição do tributo, porquanto se ao criá-lo nada havia a pagar, passando a existir essa obrigação com a instituição, na revogação do benefício, a tributação, que antes inexistia, 243 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 179. 244 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 154. 126 torna-se evidente, impondo ônus tributário dantes inexistente. Isto permite, em resultado, a aplicação da regra protetiva da anterioridade, como, ademais, expressamente prevê o Art. 178 do Código Tributário Nacional em combinação com o Art. 104, III, do mesmo Codex.245 Em virtude disto, evidencia-se o perfeito enquadramento e aplicação destas idéias e dos aludidos comandos legais ao caso dos convênios interestaduais em matéria de revogação de incentivos fiscais de ICMS, abordados no capítulo a seguir, desde que, obviamente, a questão produza como resultado a oneração de situação que antes não era sujeita à imposição tributária concreta ou que era reduzida. Explica-se: se revogado um incentivo fiscal246 qualquer, e isto resulte em criação ou aumento da imposição tributária, incide a regra do referido dispositivo, cuja interpretação, a toda evidência, alcança qualquer espécie de incentivo fiscal, onde a “isenção” é apenas uma das diversas existentes. É neste sentido que a tributação extrafiscal vincula-se ao referido princípio. Por outro lado, a eventual majoração de tributo com vistas a regular o comportamento econômico indesejado, também se sujeitará à regra geral da anterioridade tributária, desde que, obviamente, não se esteja tratando daqueles tributos previstos nas exceções contidas no Art. 150, §1º, primeira parte; no Art. 177, §4º, I, “b”; e no Art. 195, §6º, todos da Constituição. Por fim, no que se refere ao Simples Nacional, há dúvida imensa na questão relativa a sua observância à proteção da anterioridade nos casos de exclusão da empresa do regime tributário unificado. Tudo está a depender, ao que parece, da natureza jurídica que se adjudique ao Simples Nacional, pois se ele se caracterizar como espécie contida dentro do gênero “incentivo fiscal”, todo e qualquer ato que exclua o contribuinte do sistema simplificado deverá observância a anterioridade tributária, porquanto o efeito jurídico concreto é exatamente o mesmo daquele protegido pela norma constitucional em questão. Esta discussão, isoladamente, já viabiliza um trabalho como este que ora se realiza. Entretanto, como o objetivo neste momento é apenas o de expor as considerações que envolvam o “princípio” em discussão em correlação com os instrumentos tributários extrafiscais adiante analisados, não se passará desta provocação. A resposta a este problema 245 Art. 178, CTN. A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do art. 104. Art. 104, III, CTN. Entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda: [...] III – que extinguem ou reduzem isenções, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte, e observado o disposto no artigo 178. 246 Incentivo Fiscal é gênero, cf. item 3.4, infra. 127 fica para uma outra hora, em outro estudo. De toda sorte, demonstra a importância do regime jurídico-constitucional tributário em relação às normas tributárias extrafiscais. 3.2.3.4 Extrafiscalidade e o princípio da igualdade tributária De antemão, diga-se que este tópico tem o objetivo de expor as linhas mais gerais sobre o princípio da igualdade tributária e fixar sua correlação com o problema das normas tributárias extrafiscais. Nada além disso. Esta afirmação é relevante em virtude da importância e amplitude que o tema acarreta no debate jurídico brasileiro e estrangeiro, e da quantidade de obras de mão e sobremão que já se produziu aqui e alhures a este respeito.247 No sistema jurídico-político brasileiro em vigor, a igualdade constitui traço fundamental, “[...] é o princípio nuclear de todo o nosso sistema constitucional. É o princípio básico do regime democrático. (...). Sem ele não há República, não há Federação, não há Democracia, não há Justiça. É a cláusula pétrea por excelência. [...]”.248 Quando se tenta explicá-lo, é comum a referência à frase de Aristóteles, celebrizada por Ruy Barbosa na sua “Oração aos Moços”, de que igualdade importa tratar igualmente os iguais, desigualmente os desiguais, na exata medida da sua desigualdade. Em essência, igualdade determina que seja dispensado tratamento isonômico entre todos os cidadãos, bem como importa na inexistência de privilégios. Dentre os autores brasileiros que discorreram sobre o tema, a lição de Francisco Campos é um das mais destacadas. Assinalou o autor, magistralmente, que: A cláusula relativa à igualdade diante da lei vem em primeiro lugar, na lista dos direitos e garantias que a Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país. Não foi por acaso ou arbitrariamente que o legislador constituinte iniciou com o direito à igualdade a enumeração dos direitos individuais. Dando-lhes o primeiro lugar na enumeração, quis significar expressivamente, embora de maneira tácita, que o princípio de igualdade rege todos os direitos em seguida enumerados. Quando, efetivamente, a Constituição assegura a liberdade, a propriedade e os demais direitos individuais, ela os assegura não só indiscriminadamente ou a todos, mas a todos na mesma medida e mediante as mesmas condições. Enunciando o direito à igualdade em primeiro lugar, o seu propósito foi, precisamente, o de significar a sua intenção de proscrever, evitar ou proibir 247 Sobre o princípio da igualdade, na doutrina brasileira, leia-se, por todos, BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997. 248 LACOMBE, Américo. Princípios Constitucionais Tributários. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 09. 128 que, em relação a cada indivíduo, pudesse variar o tratamento quanto aos demais direitos que ela assegura e garante. O direito à igualdade rege os demais direitos individuais, devendo ser subentendida, em cada um dos parágrafos seguintes ao em que ele vem enunciado, a cláusula relativa à igualdade diante da lei. Em relação à igualdade, porém, a Constituição não admite, em caso algum, qualquer derrogação legal ao princípio por ela estabelecido. Esse princípio ela o enuncia em termos absolutos ou plenários, com isto manifestando a intenção de que ele se torne efetivo em toda a latitude do seu sentido e em qualquer circunstância, seja qual for a situação ou a condição da pessoa, a natureza da coisa, a espécie da relação, o estado de fato que a lei pretenda reger. Não haverá condições à igualdade perante a lei. A lei será igual para todos e a todos se aplicará com igualdade. É um direito incondicional e absoluto. Não tolera limitações, não admite exceção, seja qual for o motivo invocado; lei alguma, nenhum poder, nenhuma autoridade poderá, direta ou indiretamente, de modo manifesto ou sub-reptício, mediante ação ou omissão, derrogar o princípio da igualdade”.249 Segundo José Souto Maior Borges, a igualdade implica, por necessário, em produção de norma geral e abstrata, de modo que, essencialmente, há unidade entre a igualdade e a legalidade, o que o levou a afirmar a legalidade isonômica.250 Normalmente, este princípio veio previsto em quase todas as todas as constituições brasileiras.251 Na Constituição de 1988, a igualdade vem assegurada expressamente no Art. 5º, caput e inciso I; na seara tributária, por sua vez, o Art. 145, §1º e o Art. 150, II, prescrevem: Art. 145, § 1º. Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte. Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] II – instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação profissional ou função por eles exercida, independentemente da denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos. Vale dizer, portanto, que o “princípio da igualdade tributária” é a conseqüência, no âmbito da tributação, da adoção do princípio geral de igualdade. Ele expressa, em matéria 249 CAMPOS, Francisco. Igualdade de todos perante a lei. In Revista de Direito Administrativo, v. 10, 1947, pp. 376-378. 250 BORGES, José Souto Maior. A isonomia tributária na Constituição Federal de 1988, in Revista de Direito Tributário, n. 64, p. 13. 251 Cf. OLIVEIRA, José Marcos Domingues. Direito Tributário: capacidade contributiva. 2. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 46. 129 tributária, que à lei que instituir determinado tributo é defeso selecionar esta ou aquela pessoa, para submetê-la a regras peculiares que não atinjam outras que estejam em situações idênticas. Isto é, a lei tributária deve conferir, a todos, igualdade de tratamento. Nestas sendas, a igualdade pode ser entendida em dois aspectos, quais sejam, no sentido econômico ou no sentido jurídico. No primeiro aspecto, a igualdade deve ser compreendida como igualdade de sacrifícios, isto é, o dever de contribuição tributária de acordo com a capacidade contributiva de cada indivíduo. Devem ser tratados com igualdade aqueles que tiverem igual capacidade contributiva, e com desigualdade os que revelem riquezas diferentes e, portanto, diferentes capacidades de contribuir. Daí porque a alusão, acima, ao Art. 145, §1º da Constituição de 1988, o qual consiste no fundamento positivo do princípio da capacidade contributiva. Assim também concluiu Giuliani Fonrouge, ao advertir que: O princípio da igualação não se refere à igualdade numérica – que daria lugar às maiores injustiças – mas à necessidade de assegurar o mesmo tratamento aos que se encontrem em análogas situações, de modo que não constitui regra férrea, porque permite a formação de distinções ou categorias sempre que estas sejam razoáveis, com exclusão de toda discriminação arbitrária, injusta ou hostil contra determinadas pessoas ou categorias de pessoas.252 No sentido jurídico, por sua vez, a igualdade deve ser tomada como paridade de posições sem quaisquer privilégios, seja de raça, classe social, religião ou sexo, de forma a submeter ao regime tributário todos os contribuintes que se encontrem em idêntica situação fática. Por isto que Victor Uckmar averba que “[...] a igualdade jurídica coincide com o princípio da ‘generalidade’ da imposição” [...],253 ou seja, a igualdade jurídica em matéria tributária quer dizer que é expressamente proibido a concessão de qualquer privilégio que sirva para desonerar esta ou aquela pessoa de pagar tributos, sem que exista justificação própria que possibilite o discrímen. Ora, por óbvio que as pessoas não são todas iguais. Muito pelo contrário, as pessoas são desiguais. E reside aí a finalidade deste princípio: estabelecer a diferenciação de 252 FONROUGE, C. M. Giuliani. Conceitos de Direito Tributário. Tradução de Geraldo Ataliba e Marco Aurélio Greco. São Paulo: Livraria dos Advogados, 1973, p. 56. 253 UCKMAR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário, 2. ed. Tradução de Marco Aurélio Greco. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 67. 130 tratamento a ser dispensado àqueles que não estejam em idênticas situações. Entretanto, a exata medida da discriminação que é o grande obstáculo a ser ultrapassado. Com efeito, há diversas teses que objetivam, senão desvendar, ao menos jogar luzes sobre o tema. Celso Antonio Bandeira de Mello, por exemplo, formula proposta extremamente útil a respeito, in verbis: As discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição. 254 (grifos do autor). Para ele, determinados traços não podem ser gratuita e isoladamente tomados como razão fundante do discrímen, tais como a raça, o sexo, as convicções políticas ou religiosas, pois, só por só, tais qualidades incorrem em discriminações odiosas. José Artur Lima Gonçalves utilizou-se desta formulação teórica, ajustando-a a matéria tributária, para servir de instrumento de aferição de consonância da norma tributária ao magno princípio da isonomia. Segundo sustenta o autor, a norma tributária, para estar em consonância com o princípio da igualdade, deve atentar para a seguinte sistemática: 1. Dissecar a norma jurídica tributária, a regra matriz de incidência, em seus cinco critérios, que, repita-se, são o material, o temporal, o pessoal, o espacial e o quantitativo; 2. Detectar a existência de discriminação implementada pela regra matriz de incidência analisada; 3. Identificar qual é o elemento de discriminação utilizado pela norma analisada; 4. Uma vez identificado o discrímen, analisar se a norma onera ou beneficia singularmente um indivíduo ou categoria ou atividade desde já determinadas e se o elemento de discriminação reside na própria pessoa ou situação discriminada; 5. Aferir a existência de correlação lógica entre o elemento de discriminação e o tratamento diferenciado; e 6. Perquirir a efetiva ocorrência da relação de subordinação e pertinência lógica entre a discriminação procedida e os valores positivados no texto constitucional.255 É importante esclarecer, ainda, que a igualdade é uma garantia do indivíduo e não do Estado, “[...] é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador. Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição dela se 254 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 17. 255 GONÇALVES, José Artur Lima. Isonomia da Horma Tributária. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 69. 131 sujeita ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas”.256 Destina-se ao legislador e ao aplicador da lei, não cabendo a estes diferenciar, mesmo que por meio de lei (lato sensu), quem deve e quem não deve recolher os tributos instituídos. Muito embora a quase totalidade da doutrina compreenda a igualdade como princípio, Humberto Ávila lembra, conforme as suas sempre precisas colocações, que, em verdade, no que se refere à espécie normativa, esta norma é tridimensional, consistindo em princípio, preponderantemente, mas também se exteriorizando como regra ou como postulado, dependendo da circunstância e da perspectiva de análise. Deste modo, referindo-se à matéria tributária, ele assinala que a igualdade dimensiona-se normativamente como princípio porque estabelece o dever de buscar um ideal de igualdade, equidade, generalidade, impessoalidade, objetividade, legitimidade, pluralidade e representatividade no exercício, pelos entes políticos, da competência tributária. A igualdade também pode ser dimensionada como regra porque fixa o comportamento – determinação de igualdade de tratamento – a ser adotado pelos órgãos legislativo e executivo; e como postulado, na medida em que exige do aplicador do direito a consideração e avaliação dos sujeitos envolvidos, dos critérios de diferenciação e das finalidades justificadoras da diferenciação.257 Infere-se destas idéias, em primeiro lugar, que a igualdade somente pode ser aferida concretamente, pois que a correta aplicação e mesmo compreensão do primado depende do critério-medida objetivo de diferenciação e de um fim a ser alcançado258, isto é, fins distintos resultam no emprego de diferentes critérios. Daí porque a necessidade desta verificação empírica relativa aos fins e ao critério de discrímen. A menção aos “fins” a serem alcançados pela tributação é relevante, pois as normas tributárias, como visto no item 3.1 supra, direcionam-se à realização de objetivos diversos – fiscais ou extrafiscais. Então, tomando-se a ótica deste estudo, concernente à tributação extrafiscal com fim interventivo econômico, a conseqüência é que a análise terá como medida de distinção o postulado da proporcionalidade, que significa exatamente o exame da relação meio-fim. Significa dizer que no âmbito deste estudo, a realização concreta da igualdade centra-se no exame de proporcionalidade entre o fim econômico extrafiscal que a norma 256 BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 09. 257 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 342. 258 ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v. I, n. 3. Salvador: CAJ – Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 13-14. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. 132 tributária busca atingir e o meio jurídico-normativo empregado para tanto. Sobre esta questão, melhor se a desenvolverá no item a seguir ao tratar da proporcionalidade e a extrafiscalidade. Enfim, ressalte-se que como mecanismos tributários extrafiscais, os convênios interestaduais em matéria de concessão de incentivos fiscais de ICMS e o Simples Nacional, a serem estudados no próximo capítulo, em relação à igualdade não devem levar em consideração a capacidade contributiva dos contribuintes, mas, sim, o dever de proporcionalidade entre o fim que se pretende realizar ou proteger e o meio (ou meios) empregado pelo legislador. 3.2.3.5 Extrafiscalidade e o dever de proporcionalidade A proporcionalidade tem sido estudada no Brasil como princípio jurídico. Mais do que isto, a maioria das análises que se efetua coliga-a com a razoabilidade, quando não as confundem uma com a outra, como se exercessem a mesma função dentro do sistema jurídico ou tivessem um mesmo sentido, finalidade ou conteúdo jurídico. Não têm, consoante proposta de Humberto Ávila ao tratar da teoria dos princípios.259 Segundo ele, também não é possível agrupá-la no rol dos princípios jurídicos, tendo em vista consistir em postulado normativo aplicativo, ou seja, norma jurídica de segundo grau que se presta a estruturar o modo de aplicação das demais normas – princípios e regras.260 O postulado da proporcionalidade significa, nestes termos, o exame jurídico que se realiza sobre uma relação meio-fim, vale dizer, aplica-se sempre que houver uma medida concreta que se destine a realizar uma determinada finalidade. Por esta razão, o postulado da proporcionalidade implica em exame de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito, isto é, respectivamente se a medida empregada tem possibilidade de levar ao fim que se pretende realizar; se dentre os meios possíveis de realizar aquele fim, a medida utilizada é a menos restritiva dos direitos envolvidos; e se a finalidade a ser alcançada é de tal forma valiosa que se justifique a restrição.261 Deste modo, a proporcionalidade, ao contrário de ser um princípio propriamente dito, estrutura o modo de aplicação das normas com vistas à promoção dos fins envolvidos. 259 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 146-148. 260 Idem, ibidem, p. 148 e ss. 261 Idem, ibidem, p. 150. 133 Lembre-se que princípios desvelam o dever que se tem de se promover certos fins; e estes significam um estado de coisas. Estas considerações são importantes porque, como ficou assentado anteriormente – item 3.1 – a tributação tem fins diversos a se realizar: ora fiscais – abastecimentos dos cofres públicos –, ora extrafiscais – proteção e fomento econômico, por exemplo. Assim, afirma-se que os fins são internos (fiscalidade) ou externos (extrafiscalidade).262 No caso das normas tributárias extrafiscais, que tem como escopo o alcance de fins econômicos ou sociais, percebe-se que estes são fins externos, pois o emprego da norma tributária ambiciona um resultado concreto no campo do comportamento das pessoas – eficácia social, por assim dizer – de modo que pode ser empiricamente dimensionado. Como este resultado tenciona a promoção de finalidades econômicas ou sociais atribuídas ao Estado e não propriedades ou características do sujeito atingido pela norma, então, evidente que o exame de proporcionalidade consiste no mecanismo jurídico adequado para se determinar o dever de igualdade nas normas tributárias desta natureza. Assim, no tema da tributação extrafiscal, além de tudo quanto foi dito nos itens anteriores, deve-se efetivar o exame de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito a fim de se definir a correta validade e aplicação da norma. Vale dizer, o controle da norma tributária extrafiscal deve se realizar segundo parâmetros de adequação, ou seja, saber se a medida empregada levará ao fim que se pretende alcançar; de necessidade, no sentido de se perquirir se há outros meios que também sejam capazes de promover o fim que se pretende realizar, mas cujos efeitos sejam menos restritivos dos direitos fundamentais envolvidos; de proporcionalidade em sentido estrito, a fim de comparar a importância jurídica que a realização daquele fim possui em relação à restrição aos direitos fundamentais envolvidos, isto é, se as vantagens resultantes da promoção daquele fim são proporcionais às desvantagens que se verifica pelo emprego do meio.263 Em resumo, na extrafiscalidade a determinação da igualdade e, em conseqüência, a definição de sua validade e, ao depois, da sua correta aplicação deve obediência aos parâmetros de proporcionalidade. Daí a importância destas considerações. Concretamente em relação aos instrumentos tributários analisados no capítulo adiante, é dizer: as normas que 262 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 151-152. 263 Idem, ibidem, p. 152-161. 134 disciplinam e estruturam toda a questão dos convênios interestaduais em matéria de concessão de ICMS e do Simples Nacional são proporcionais? Como mecanismos de manifestação da extrafiscalidade, portanto, eles devem se sujeitar a este exame. 3.2.3.6 Tributação extrafiscal e o princípio da capacidade contributiva Enumera o Art. 145, §1º, da Constituição de 1988 que “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”. Esta previsão constitucional positiva o que se conhece como o princípio da capacidade contributiva. Costuma-se afirmar que o primado da capacidade contributiva é corolário lógico do princípio da igualdade tributária, na medida em que consiste na sua redução concreta. Ele encerra a idéia de tributação justa, de modo a realizar o valor igualdade perante a tributação. Ao afirmar que a gradação dos “impostos” deverá tomar em consideração a capacidade econômica de cada contribuinte, afirmou o constituinte de 1988 que é imprescindível que se imponha igual sacrifício econômico aos contribuintes, tratando-os de modos distintos quando concretamente situados em situações desiguais. Aliás, a percepção de Alfredo Augusto Becker sobre a exata medida jurídica da capacidade contributiva permitiu que ele formulasse célebre pensamento, onde afirmou que são os “fatos-signo presuntivo de renda ou capital” que, a priori, fazem se presumir que o contribuinte é pessoa economicamente capaz de arcar com os encargos dos impostos, ou seja, possui riqueza suficiente para suportar o imposto específico.264 Importante consideração acerca do princípio da capacidade contributiva, inclusive com reflexos sobre a tributação extrafiscal, diz quanto à expressão “sempre que possível”, constante no dispositivo constitucional ora discutido. Há autores que sustentam a idéia de que este termo quer significar a possibilidade fática de se medir a capacidade econômica. Sem razão efetiva, pois, em verdade, tanto as normas tributárias definidoras dos impostos como qualquer outra norma jurídica sempre dependerão de condições ontológicas de aplicabilidade, 264 BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007, p. 497. 135 porquanto as normas jurídicas prescritivas de comportamentos pressupõem aplicação fática concreta265, vale dizer, são normas tecnicamente eficazes.266 A posição mais aceita na doutrina e que parece correta é aquela que toma a expressão “sempre que possível” em referência ao caráter pessoal dos impostos. Ou seja, a gradação dos impostos deve, obrigatoriamente, levar em considerações as condições econômicas pessoais externadas pelos contribuintes. Não significa, ao contrário, uma opção do legislador ordinário, porque resultaria em afronta direta à isonomia pela dispensa de mesmo tratamento jurídicotributário a pessoas que revelem concretamente condições econômicas distintas. Nestes termos, está com a razão Regina Helena Costa, ao afirmar que se deve tomar o termo “sempre que possível” como significante de “[...] sempre que a hipótese material de incidência permitir a consideração de elementos pessoais”.267 Vale lembrar, também, que Luciano Amaro percebeu, com perspicácia, a possibilidade concreta de instituição de tributos extrafiscais com base na abertura que a expressão “sempre possível” encerra268, na medida em que poderia o legislador optar em criar um mecanismo de extrafiscalidade, em detrimento da capacidade econômica do contribuinte, de acordo com critérios de facilidade ou praticabilidade administrativa. Outra discussão a respeito deste princípio refere-se ao alcance semântico do vocábulo “impostos”, pois há os que pretendem ler ali “tributos”, significando que o princípio orienta a concreta aplicação também das outras espécies tributárias. E, de outro lado, encontrar-se-á corrente doutrinária que alega ser o princípio em tela instrumento de aplicação concreta apenas da espécie tributária a que se refere, como se infere, por exemplo, das considerações de Geraldo Ataliba quando diz que os impostos são informados pela capacidade contributiva, ao passo que as taxas e as contribuições de melhorias tem como princípio informador a retributividade pela atividade estatal realizada.269 Em relação às finalidades da norma tributária, comumente se toma a capacidade contributiva como critério de aplicação e análise dos imposto quando estes tenham finalidade fiscal, ou seja, objetivem precipuamente o abastecimento dos cofres públicos, porquanto 265 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 366. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 189. 267 COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 88. 268 AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 134. 269 ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 14. 266 136 nestes casos, como o fim é arrecadar receitas tributárias, é a condição econômica do contribuinte que deve ser tomada em conta. Por outro lado, se porventura a norma jurídica tiver finalidade extrafiscal, ou seja, visar a realização de um fim concreto, econômico ou social, então, ao invés do exame de capacidade contributiva, deve-se realizar uma análise de proporcionalidade, determinando a adequação, necessidade e correspondência entre o meio empregado (extrafiscalidade) e a finalidade que se pretenda atingir.270 Enfim, embora pareça certa esta última tese elencada, não se pode olvidar da compreensão sistemática das normas constitucionais, resultado do postulado da unidade da Constituição. Ou seja, mesmo que seja possível desconsiderar a capacidade contributiva em favor de razões extrafiscais, ainda assim, concretamente, não se pode extinguir totalmente a eficácia mínima daquele princípio, já que fundamental.271 3.3 A COMPETÊNCIA REGULADORA E A TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL Ao tratar das normas tributárias extrafiscais, indispensável que se distinga a competência legislativa tributária da competência reguladora econômica, em razão da característica interventiva econômica que as normas tributárias extrafiscais assumem. Ou seja, faz-se mister analisar, em separado, a competência tributária da competência para regular, de modo a diferençá-las e para que fique claro o âmbito de atuação de cada uma. Os sistemas federativos conhecidos utilizam-se de diferentes técnicas de repartição de competências, a depender do modo como cada Federação se estrutura e também das determinações constitucionais respectivas. Em essência, é possível dizer a existência de repartição de competências legislativas mediante as técnicas do poderes enumerados, dos remanescentes e dos concorrentes. O método das competências enumeradas e remanescentes é típico do federalismo clássico ou dual, onde a área de atuação das entidades federativas é privativamente enumerada a cada uma delas, sendo bem delimitados seus espectros de atuação legislativa. A doutrina convencionou denominá-la de repartição horizontal de competências.272 270 Sobre isto cf. ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v. I, n. 3. Salvador: CAJ – Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 7. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br. 271 Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 368-369. 272 Sobre o assunto cf. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Competências na Constituição de 1988. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 32 e ss. 137 Outro sistema de repartição de competências existente é aquele que utiliza a técnica da competência concorrente, característica de um federalismo cooperativo, onde as competências são distribuídas de modo vertical, ou seja, a mesma matéria é dividida entre os diferentes níveis de poder político.273 É o caso da Federação Brasileira. Quando se trata de analisar a questão relativa às competências legislativas tributárias e econômicas, ingressa-se nas sendas da chamada competência concorrente prevista pelo Texto Constitucional de 1988. Especificamente, isto vem previsto no Art. 24, I, da Constituição Federal, que expressamente enuncia: “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico”. Justamente por esta razão a necessidade desta abordagem. A edição de normas tributárias extrafiscais com vistas à intervenção econômica, conquanto se realize dentro do âmbito de competência tributária das entidades federativas, também deve, por sua natureza, observância às normas definidoras da competência reguladora econômica. Em outros termos, uma vez que a tributação extrafiscal situa-se tanto no campo da tributação como da intervenção econômica, sua veiculação deve tomar em conta ambas as competências. Entretanto, viu-se anteriormente que o âmbito de atuação das entidades federativas em matéria tributária foi pormenorizadamente tratado pela Constituição de 1988 no seu Título VI, quando enumera as normas relativas ao Sistema Tributário Nacional. De outro lado, o legislador constituinte não teve esta mesma preocupação detalhista e minuciosa com o direito econômico. Apenas tratou de definir as competências com viés econômico pela indicação de atribuição concorrente entre as entidades federativas, nos termos dos incisos V, VI e VIII do Art. 24, além do citado inciso I, os quais prevêem, textualmente: Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: [...] V - produção e consumo; VI - florestas, caça, pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; [...] VIII responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; [...] Isto significa que cada uma das entidades políticas pode legislar livremente sobre os temas referidos, desde que observadas as regras fixadas nos §§1º a 4º do Art. 24. Estes 273 Sobre o assunto cf. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Competências na Constituição de 1988. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 32 e ss. 138 dispositivos constitucionais prevêem a disciplina geral de interpretação e solução dos problemas relativos ao exercício das competências concorrentes. Expressamente, os preceitos constitucionais referidos enumeram: Art. 24. [...] §1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais. §2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados. §3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades. § 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário. Infere-se destes dispositivos que a atribuição da União, em matéria de legislação concorrente, cinge-se apenas à edição das normas gerais. Entretanto, em razão das disposições contidas nos arts. 145, 148, 149, 153 e 154, da Constituição Federal, este comando não tem alcance sobre a matéria tributária, pois a própria Constituição enumerou de forma expressa a competência tributária da União para instituir tributos. Ressalvado o caso tributário, nas demais matérias no âmbito da competência concorrente a atribuição legislativa da União limita-se à fixação das normas gerais. Aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios, por sua vez, restou a competência suplementar, quando a União tiver exercido sua atribuição de estabelecer normas gerais. As entidades federativas referidas podem ainda, na circunstância de inexistir norma geral da União sobre o tema, exercer a competência legislativa plena, ou seja, estabelecer as regras conforme suas peculiaridades. Afirma-se, assim, que a atribuição da União para estabelecer as normas gerais a respeito das matérias de competência concorrente não implica na supressão da competência para regular cometida aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios. Ressalte-se sobre este ponto que os Municípios, a despeito de não terem sido arrolados expressamente no rol do Art. 24, da Constituição de 1988, receberam atribuição legislativa concorrente a teor do Art. 30, incisos I e II, da Constituição Federal, incluída aí a competência reguladora econômica, desde que o tema seja de interesse local ou para suplementar a legislação federal e estadual no que couber. 139 Assim, cada entidade federativa tem a atribuição de, no seu respectivo âmbito de interesse e competência, regular a matéria econômica, desde que não contrarie eventual normatização geral produzida pela União, nem reflita sobre o âmbito legislativo de outra. Há que se separar, portanto, a competência tributária da competência reguladora econômica. Sobre este tema, André Elali registra que: “Em sendo assim, o que se conclui é a existência de competência de todos os entes federativos para promoverem a harmonização das relações sociais e econômicas. Todavia, algumas matérias são afetas apenas à esfera de competência da União”.274 Fechando a idéia, o autor lembra, com sustentação na advertência de Roque Carrazza, que inexiste hierarquia entre as entidades federativas, porquanto estas se diferenciam de acordo com o âmbito de competência definido pela Constituição.275 Luís Eduardo Schoueri registra, em conclusão, as idéias que permeiam a questão relativa à competência concorrente, com especial atenção à intervenção sobre o domínio econômico. Diz ele: Conclui-se, daí, que a intervenção sobre o Domínio Econômico dar-se-á pela União, quando em caráter geral, sem atender a peculiaridades locais. Se a intervenção poderia, de igual modo, ser exercida pelos Estados, então entende-se [sic], pela aplicação dos [sic] princípio da subsidiariedade, que já se está no campo da competência suplementar, encerrando-se, assim, o caráter “geral” da norma. Do mesmo modo, se norma municipal seria suficiente, descabida a lei estadual sobre o tema. A intervenção sobre o Domínio Econômico pelos “entes menores” deverá, entretanto, sempre ser tomada com a devida cautela, tendo em vista a possibilidade de a legislação, conquanto local, produzir efeitos que se espraiam além das fronteiras do ente legislante.276 Em razão disto, e considerando a posição das normas tributárias extrafiscais dentro do ordenamento jurídico, sujeita à dualidade de regimes jurídicos – econômico e tributário –, deve-se tomar o cuidado quanto à edição de normas desta natureza, pois, a despeito de editar as normas de acordo com sua respectiva atribuição de competência legislativa tributária, pode ocorrer que concretamente isto reflita no campo de competência reguladora de outra entidade política, causando instabilidade no sistema federativo. Afirma-se, desta forma, a possibilidade de conflitos de competência entre os entes da Federação quando veiculam normas tributárias de natureza extrafiscal com vistas à intervenção econômica. 274 ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica – um exame da tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora, 2007, p. 113. 275 Idem, ibidem, p. 113. 276 SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 341. 140 Exemplo concreto está no caso dos convênios interestaduais em matéria de concessão de incentivos fiscais de ICMS. Conquanto seja parcela de seu poder tributário, em virtude da natureza nacional deste imposto, e dos reflexos daí decorrentes, o deferimento de incentivos fiscais de ICMS sem a anuência dos demais entes federados estaduais e distrital acabará por restringir o âmbito de competência daqueles, ainda que indiretamente. Daí a necessidade de observância da Lei Complementar, editada pelo Congresso Nacional fazendo a vez de órgão legislativo nacional, estabelecendo justamente as “normas gerais” a respeito do tema, as quais regulam o modus como deverá ocorrer a deliberação dos Estados-membros e do Distrito Federal para que se possa exercer livremente e em todos os seus termos a competência tributária que lhes fora outorgada constitucionalmente. 3.4 INCENTIVOS FISCAIS: MECANISMOS JURÍDICOS DE MANIFESTAÇÃO DA TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL Quando se fala em tributação extrafiscal, correlaciona-se tal expressão aos incentivos fiscais, que, na lição de Clélio Chiesa, “[...] são instrumentos manejados pelo legislador para, por meio da tributação, alcançar outros fins que não os meramente arrecadatórios, configuram o fenômeno conhecido como extrafiscalidade”.277 Contudo, deve-se lembrar que a extrafiscalidade não se materializa apenas por meio dos incentivos fiscais, pois também desempenha função extrafiscal o tributo utilizado como instrumento para desestimular certas práticas ou certos atos promovidos pelos particulares. Assim, estar-se-á diante de uma tributação com função extrafiscal quando a tributação servir de mecanismo de efetivação de políticas públicas governamentais, seja para estimular ou mesmo para desestimular condutas dos particulares. A extrafiscalidade da tributação, neste sentido, efetiva-se tanto pela concessão de incentivos fiscais (chamados de benefícios ou estímulos fiscais) ou ainda por meio dos desestímulos fiscais.278 No primeiro caso, o fim, como se denota, é a incitação à prática de certos atos; na segunda hipótese, por outro lado, ocorre o contrário, pois o que se objetiva é 277 CHIESA, Clélio. A Competência Tributária do Estado Brasileiro – desonerações nacionais e imunidades condicionadas. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 282. 278 Luís Eduardo Schoueri trata dos incentivos e dos desestímulos fiscais como agravamentos e vantagens, in SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 203-209. 141 justamente a abstenção da prática de determinadas condutas. Porém, em ambas as situações, a natureza da tributação é a mesma: extrafiscal, ou seja, um objetivo alheio ao arrecadatório. De toda sorte, a extrafiscalidade se manifesta pelos mais diferentes meios. São conhecidos instrumentos de manifestação da natureza extrafiscal da norma tributária: os incentivos fiscais, as imunidades, as isenções e mais recentemente os regimes simplificados de arrecadação de tributos. Em geral costuma-se confundir os incentivos fiscais com as isenções tributárias e mesmo com as imunidades. Contudo, com certeza, estes institutos e conceitos jurídicos não se confundem, pois o termo incentivo fiscal é gênero do qual a isenção e a imunidade tributária são espécies. Ultimamente, o surgimento do regime simplificado de pagamento de tributos trouxe uma nova forma de incentivo fiscal, resultante da concessão a certos e determinados contribuintes da possibilidade de optar por um regime de tratamento tributário privilegiado e favorecido, conforme previsão constitucional. Neste sentido, adverte Roque Carrazza: Não devemos confundir os incentivos fiscais (também chamados benefícios fiscais ou estímulos fiscais) com as isenções tributarias. Estas são, apenas, um dos meios de concedê-los. Os incentivos fiscais estão no campo da extrafiscalidade, que, como ensina Geraldo Ataliba, é o emprego dos instrumentos tributários para fins não- fiscais mas ordinários ( isto é, para condicionar comportamentos de virtuais contribuintes, e não, propriamente, para abastecer de dinheiro os cofres públicos).279 Por meio de incentivos fiscais, a pessoa política tributante estimula os contribuintes a fazer algo que a ordem jurídica considera conveniente, interessante ou oportuno (p.ex., instalar indústrias em regiões carentes do País). Rachel Benchaya registra, assim: Pode-se dizer, então, que a concessão de incentivos fiscais, no seu intuito maior, busca, através da intervenção econômica e social, regular o comportamento das entidades produtivas. Assim, entendendo o Estado que a concessão de favores fiscais beneficiaria regiões menos desenvolvidas, pode ele dispor sobre regalias para que empresas lá se estabeleçam [...].280 279 CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, nota de rodapé n. 6, p. 783. 280 BENCHAYA, Rachel. ZFM: Incentivos Fiscais e a Repercussão nos Estados Federados. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes, PEIXOTO, Marcelo Magalhães [coord.]. Tributação na Zona Franca de Manaus: (Comemoração aos 40 anos da ZFM). São Paulo: MP Editora, 2008, p. 231. 142 Este objetivo é alcançado por intermédio da diminuição ou, até, da supressão da carga tributária. Os incentivos fiscais manifestam-se sob a forma quer de imunidade (v.g., imunidade de ICMS ás exportações de produtos industrializados), quer de isenção tributária (p.ex., isenção de IPI sobre as vendas de óculos), quer, enfim, do regime simplificado de arrecadação tributária. Incentivos fiscais são, neste sentido, instrumentos de que dispõe as entidades tributantes para, através da manipulação, intervir na economia privada, de forma a estimular os particulares, virtuais contribuintes, a praticar condutas consideradas convenientes, interessantes ou oportunas pela ordem jurídica, realizando as finalidades socioeconômicas constitucionalmente previstas ou aquelas definidas pelas políticas governamentais. Já isenção tributaria é causa excludente do crédito tributário, a teor do Art. 175, I, do Código Tributário Nacional. A doutrina mais moderna conceitua este instituto jurídico como uma norma que “[...] investe contra um ou mais das normas dos critérios da norma-padrão de incidência, mutilando-os parcialmente [...]”.281 Por imunidade tributária entende-se a norma jurídica constitucional que fixa a incompetência das entidades federativas para instituírem tributos que alcancem certas situações, bens ou pessoas. Em outros termos, a imunidade tributária consiste em regra constitucional que delimita a competência tributária dos entes federativos. Mas mais do que isto, ela caracteriza-se como uma norma atributiva que confere ao seu destinatário um direito subjetivo público, oponível ao Estado. A este respeito, José Wilson Ferreira Sobrinho assinala com propriedade: A norma imunizante não tem apenas a função de delinear a competência tributária, senão que também outorga ao imune o direito público subjetivo de não sofrer a ação tributária do Estado. A norma imunizante, portanto, tem o duplo papel de fixar a competência tributária e de conferir ao seu destinatário um direito público subjetivo, razão que permite sua caracterização, no que diz com a outorga de um direito subjetivo, como norma jurídica atributiva, por conferir ao imune o direito referido.282 A seu turno, o regime simplificado de arrecadação de tributos caracteriza-se como um benefício fiscal, na medida em que importa em redução de obrigações acessórias, além de, em certos caso, significar também a redução dos tributos efetivamente pagos – obrigação 281 282 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 490. SOBRINHO, José Wilson Ferreira. Imunidade Tributária. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1996, p. 102. 143 tributária principal. Aliás, as conseqüências extrafiscais desta modalidade de estímulo fiscal se fazem sentir no âmbito econômico-financeiro das empresas que dele usufruem, preservando, assim, valores constitucionais como a livre iniciativa, a liberdade de concorrência, o pleno emprego e o desenvolvimento econômico, entre outros. Inclusive, a dimensão extrafiscal dos regimes simplificados de recolhimento de tributos foi percebida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI n. 1.643-1, onde se discutia a constitucionalidade do Art. 9º da Lei n. 9.317/96, que instituiu o Simples Federal. Na oportunidade, entendeu-se pela constitucionalidade do citado dispositivo legal, porque este não ofenderia o primado da isonomia – argumento levantado na ação – porque a distinção levava em conta motivos extrafiscais, quais sejam, o tratamento favorecido e diferenciado nos termos da lei, consoante a previsão do Art. 179 da Constituição Federal. Para melhor visualizar os fundamentos da Suprema Corte, oportuno registrar a ementa do acórdão citado: EMENTA: ACÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. SISTEMA INTEGRADO DE PAGAMENTO DE IMPOSTOS E CONTRIBUIÇÕES DAS MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE PEQUENO PORTE. CONFEDERAÇÃO NACIONAL DAS PROFISSÕES LIBERAIS. PERTINÊNCIA TEMÁTICA. LEGITIMIDADE ATIVA. PESSOAS JURÍDICAS IMPEDIDAS DE OPTAR PELO REGIME. CONSTITUCIONALIDADE. 1. Há pertinência temática entre os objetivos institucionais da requerente e o inciso XIII do artigo 9º da Lei 9317/96, uma vez que o pedido visa a defesa dos interesses de profissionais liberais, nada obstante a referência a pessoas jurídicas prestadoras de serviços. 2. Legitimidade ativa da Confederação. O Decreto de 27/05/54 reconhece-a como entidade sindical de grau superior, coordenadora dos interesses das profissões liberais em todo o território nacional. Precedente. 3. Por disposição constitucional (CF, artigo 179), as microempresas e as empresas de pequeno porte devem ser beneficiadas, nos termos da lei , pela "simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas" (CF, artigo 179). 4. Não há ofensa ao princípio da isonomia tributária se a lei, por motivos extrafiscais, imprime tratamento desigual a microempresas e empresas de pequeno porte de capacidade contributiva distinta, afastando do regime do SIMPLES aquelas cujos sócios têm condição de disputar o mercado de trabalho sem assistência do Estado. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.283 Há quem entenda diferente. Segundo James Marins e Marcelo Bertoldi, em alusão já ao Simples Nacional, há equívoco insuperável nas teses que tentam reduzir a natureza jurídica dos regimes simplificados, porquanto este é um instituto polifacetado que abarca variadas e 283 STF. ADI n. 1643/UF. Pleno. Rel. Min. Maurício Corrêa. DJ 14.03.2003., p. 27. 144 diversas características, as quais devem ser tomadas em conta para a definição de sua natureza jurídica e para a construção de seu conceito.284 Enfim, a despeito da discussão doutrinária, percebe que, seja através da concessão de isenções, seja por força das imunidades constitucionalmente previstas, ou ainda, mediante a fixação dos regimes simplificados de pagamento de tributos, em todos estes casos estar-se-á conferindo um incentivo fiscal. Em conseqüência, a norma tributária terá natureza extrafiscal, pois o que importa, basicamente, é que, por meio de manipulação de vários e possíveis instrumentos tributários, condiciona-se os virtuais contribuintes em prol de um objetivo estatal específico, e não, propriamente, para abastecimento dos cofres públicos. 284 MARINS, James; BERTOLDI, Marcelo Marco. Simples Hacional – Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte Comentado (LC 123, de 14 de dezembro de 2006 e LC 127, de 14.08.2007). São Paulo: RT, 2007, p. 66. 145 4 TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL: UMA AÁLISE COCORRECIAL DOS COVÊIOS ITERESTADUAIS DE ICMS E DO SIMPLES ACIOAL Fixadas as premissas iniciais ao longo dos três primeiros capítulos, surge o momento de enfrentar o cerne deste trabalho e responder aos problemas relativos à influência recíproca entre tributação e concorrência, especialmente quanto aos reflexos concorrenciais de alguns conhecidos instrumentos tributários extrafiscais. A partir da adoção do modelo democrático de direito e da previsão expressa e objetiva dos fins fundamentais a serem alcançados pelo Estado Brasileiro, bem assim da determinação da função estatal de intervenção econômica, tal como fixados pela Constituição de 1988, tem-se o pano de fundo a influenciar a discussão do tema em questão. É neste contexto que a intersecção jurídico-normativa entre a tributação e a concorrência se evidencia. Com vistas à modificação do status quo e a busca pela efetiva realização do desenvolvimento econômico com justiça social, o Texto Constitucional de 1988 redefine o papel do Estado, notadamente no âmbito econômico. Fixam-se objetivos fundamentais a serem alcançados, estabelece o papel a ser desempenhado pelo Estado e, concomitantemente, definem-se os instrumentos para se atingir aqueles escopos constitucionais. Dentre os meios possíveis de intervenção econômica, as normas tributárias assumem papel de destaque a partir de então, em especial por conta dos efeitos imediatos que sua adequada manipulação causam. Por isto, não é exagero afirmar que a influência que as normas tributárias causam sobre o domínio econômico, em geral, e sobre o âmbito da concorrência, em especial, é conseqüência da intervenção econômica adotada pela Constituição de 1988, que atribuiu ao Estado a função normativa e regulatória das atividades econômicas com vistas à promoção do desenvolvimento socioeconômico brasileiro. Esta percepção não escapou aos teóricos das ciências econômicas, aos estudiosos do direito econômico e à doutrina tributária. Contudo, a formulação das políticas tributárias e a conseqüente criação dos diversos mecanismos tributários não tem tido o cuidado de levar em conta esta perspectiva, de modo que positivadas as normas tributárias, pela observância apenas dos requisitos meramente formais de sua produção, o resultado, como se vê, 146 descompassa das prescrições das normas constitucionais econômicas, especialmente no que tange à livre concorrência e a livre iniciativa. Ao mesmo tempo, isto tem refletido sobre o direito de propriedade e sobre o direito do consumidor que, além de primados da ordem econômica, também se caracterizam como direitos fundamentais. Assim, no anseio de exercer as determinações constitucionais no âmbito tributário, como, verbi gratia, conferir tratamento tributário diferenciado às micro e pequenas empresas; ou prevenir a guerra fiscal entre os Estados-membros, em geral descuida-se da questão econômica, principalmente em relação à livre concorrência, que se constitui em princípio da ordem econômica – Art. 170, IV, da Constituição Federal de 1988 – e, como desdobramento da livre iniciativa, também em fundamento da República – Art. 1º, IV, da Constituição Federal de 1988. Contudo, uma vez que o sistema tributário deve ser relacionado com todo o ordenamento constitucional285, imprescindível que se conformem normas tributárias e limitações impostas pelos princípios constitucionais que informam a Ordem Econômica, a fim de se manter a coerência e a unidade do ordenamento constitucional. Ora, como restou afirmado alhures, por mais específicas que sejam as normas jurídicas estudadas, isto é, independentemente do setor social ao qual elas estão destinadas a disciplinar as condutas, elas somente assumem foro sistemático e, em conseqüência, estão de acordo com o ordenamento se consideradas e analisadas com uma percepção do todo e não apenas parcial e isoladamente. Em outros termos, a análise da tributação (e suas normas) deve, sim, tomar como ponto de partida as disposições constitucionais que fixam o Sistema Tributário Nacional. Porém, apenas como ponto de partida. A ordem jurídica é um sistema, e, como tal, detém unidade e coerência, de modo que as normas jurídicas tributárias estão inseridas em um contexto mais amplo, o que permite sua análise, também, sob outras perspectivas. No caso desta dissertação, isso se realiza no panorama jurídico-econômico, sobretudo quanto aos reflexos de algumas normas tributárias sobre a livre concorrência e a liberdade de iniciativa. Ou seja, na tentativa de promover alguns princípios ou valores constitucionais, por vezes, acaba-se restringindo excessivamente outros, notadamente no setor da Ordem Econômica, o que é perfeitamente normal em um sistema constitucional aberto e permeado por inúmeras normas de cunho programático. Porém, ainda que inexista direito e princípio 285 ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 06. 147 absoluto, porquanto mesmo aqueles fundamentais são restringíveis, o que não se aceita é que a restrição imposta alcance o seu núcleo essencial, assim entendido como “[...] aquela parte do conteúdo de um direito sem a qual ele perde a sua mínima eficácia e, por isso, deixa de ser reconhecível como um direito fundamental”.286 Daí a necessidade de uma visão ampla do sistema jurídico como um todo, idéia que, aliás, resulta da própria noção de sistema.287 Neste contexto, propriamente a análise recairá sobre dois dos mais conhecidos instrumentos utilizados hodiernamente na sistemática tributária brasileira. São eles: (i) os convênios de ICMS firmados entre os Estados Federados, os quais objetivam prevenir a chamada “guerra fiscal”; (ii) o Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, instituído pela Lei Complementar n. 123, de 14 de dezembro de 2006 – Simples Nacional. 4.1 A PERSPECTIVA DA CONCORRÊNCIA NOS CONVÊNIOS DE ICMS FIRMADOS ENTRE OS ESTADOS FEDERADOS O domínio econômico é um dos pontos com o qual mais se preocupou o Texto Constitucional de 1988. Esta constatação é de fácil percepção, porquanto já no Preâmbulo o Legislador Constituinte mencionou, expressamente, que dentre outras finalidades a serem asseguradas pelo Estado Democrático que se criava naquele momento, faziam parte do rol de proteção os direitos individuais, a liberdade e o desenvolvimento. Ao lado disso, por óbvio, também cuidou de apontar todos os valores relativos à questão social: os direitos sociais, o bem-estar, a igualdade, a justiça e a harmonia sociais. Esta dualidade foi tratada e repetida ao longo de todo o texto da Constituição, inclusive já no Art. 1º, inciso IV, quando afirmou que são fundamentos da República, “o valor social do trabalho e da livre iniciativa”. Também, ao depois, quando previu dentre os objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre e solidária (Art. 3º, inciso I), a garantia do desenvolvimento nacional (Art. 3º, inciso II) e a erradicação da pobreza e a redução das desigualdades sociais (Art. 3º, inciso III). E ainda nos arts. 5º e 6º, fixando, respectivamente, os direitos individuais e os sociais. Mas, principalmente, quando conferiu especial atenção à Ordem Econômica e à Ordem Social (respectivamente, Títulos VII e VIII). 286 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios e o Direito Tributário, in Revista Dialética de Direito Tributário, n. 125, fev.-2006. São Paulo: Dialética, 2006, p. 45. 287 Sobre a noção de sistema, remete-se ao item 1.1.1. 148 Enfim, esta dupla preocupação externada a partir do Preâmbulo da Constituição de 1988 é conseqüência da influência recebida de outras constituições editadas anteriormente, em especial as européias, muitas das quais adotaram o modelo Democrático de Direito, isto é, nem social, nem liberal, mas uma terceira via, como referido por Miguel Reale, como resultado de uma convergência de ideologias, decorrente de recíprocas influências entre as diretrizes liberais e as sociais288. Fica, assim, evidente o dualismo constitucional entre o econômico e o social. Porém, como influxo da concepção democrática de direito, diferente dos modelos anteriores que, em certa medida, se excluíam, a Lei Constitucional Brasileira conjugou-os como valores complementares, de modo que o social acabou por predicar o econômico, o qual, no entanto, não perdeu sua índole fundamental. Neste contexto, olhando-se para a preocupação da Constituição Federal com o domínio econômico, vislumbra-se que ela tratou de ressaltar, por mais de uma vez, sua preeminência; também cuidou de garanti-lo e protegê-lo, como a seus valores e princípios. Para tanto, distribuiu rigidamente as competências e traçou os limites ao seu exercício; criou os instrumentos jurídicos necessários a sua promoção e proteção. Em suma, positivou aquilo que se convencionou chamar de intervenção econômica. Dentre os diversos mecanismos de intervenção do Estado sobre o domínio econômico289, as normas tributárias está entre os mais relevantes. Nota-se isto quando se tem em conta alguns expressos dispositivos constitucionais, a saber: o Art. 146, III, “d”, e parágrafo único (acrescentado pela Emenda Constitucional n. 42/2003); o Art. 146-A (acrescentado pela Emenda Constitucional n. 42/2003); o Art. 149, caput, e §2º; o Art. 150, §6º; o Art. 151, I; o Art. 155, §2º, XII, “g”; Art. 165, §6º; e Art. 177, §4º. Dentre os precitados preceitos constitucionais, Luís Eduardo Schoueri, ao firmar a importância do tema sobre as normas tributárias e a intervenção econômica e justificá-lo, destaca as disposições contidas no Art. 150, §6º, no Art. 155, §2º, XII, “g”, no Art. 165, §6º e no Art. 146-A. Segundo ele, por conta desta expressa preocupação do constituinte com o uso das normas tributárias com finalidade interventiva sobre o domínio econômico incuti a análise dos princípios de Direito Econômico – tanto aqueles limitadores da intervenção estatal como 288 REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, prólogo. p. XII. 289 Sobre as modalidades de intervenção econômica, ver item 2.3, supra. 149 os que a promovem – em conjunto com os primados que informam a tributação, definindo-se assim o campo de intersecção entre o tributário e o econômico de modo que o regime jurídico aplicável resulte da somatória entre ambos.290 Contudo, é certo que as demais prescrições constitucionais supracitadas relacionamse imediatamente ao tema em análise, pois tratam sobre três temas tributários que possuem evidente finalidade interventiva sobre o domínio econômico: o Art. 149, caput, e §2º combinado com o Art. 177, §4º, traçam o perfil da contribuição de intervenção no domínio econômico, espécie tributária cuja finalidade o próprio nome já denota, isto é, serve de instrumento de intervenção econômica; o Art. 146, III, “d”, que fixa a atribuição de lei complementar para definir o tratamento tributário diferenciado e favorecido para as microempresas e empresas de pequeno porte, ou seja, finalidade extrafiscal com vistas a promover a igualdade econômica, de liberdade de iniciativa e de livre concorrência daquelas empresas; e o Art. 151, I, que permite à União conferir tratamento desigual entre as diferentes regiões do país a fim de promover-lhes o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico. De toda sorte, interessa neste momento apenas as prescrições contidas no Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição de 1988, em razão da disciplina que fixa acerca da concessão das isenções, incentivos e benefícios fiscais em matéria de ICMS. 4.1.1 As disposições normativas relativas à concessão de incentivos fiscais em matéria de ICMS: o Art. 155, §2º, XII, “g” da Constituição Federal de 1988, a Lei Complementar n. 24/75 e a necessidade dos convênios interestaduais Primeiramente, é relevante fixar uma questão semântica para centrar o tema e prevenir eventuais deslizes ao longo do texto. Apesar da Constituição Federal Brasileira referir-se, no Art. 155, §2º, XII, “g”, à “concessão ou revogação de isenções, incentivos e benefícios fiscais”, a partir deste ponto, como método científico adotado, utilizar-se-á apenas o termo “incentivos fiscais” para significar as três situações aludidas. E também se referirá somente à questão da concessão, ficando evidente, por conseqüência, que as considerações feitas aplicar-se-ão igualmente à questão da revogação, mas deixando-a implícita no texto, a fim de torná-lo mais objetivo. 290 Sobre esta relação, Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 37. 150 Evidente que, a depender do tema tratado e dos argumentos expostos, poderá haver conseqüências jurídicas distintas para os casos de concessão ou revogação, como também as conseqüências jurídicas relativas à compreensão de isenção, incentivo ou benefício fiscal. Quando isto ocorrer, expressamente consignar-se-á a distinção, utilizando-se expressamente o termo adequado. Por outro lado, afirma-se, desde logo, que não se desconhecem as discussões doutrinárias sobre a terminologia empregada, isto é, se há ou não diferença entre isenção, incentivo e benefício fiscal; e se esta ou aquela expressão pode ser usada para significar as demais. Para esclarecimentos a respeito, remete-se ao capítulo anterior, onde, no item 3.4, abordou-se a questão, expondo, ainda que brevemente, a contenda conceitual. Sendo assim, sobre o tema a respeito dos Convênios de ICMS na perspectiva da concorrência, valer-se-á da expressão “concessão de incentivos fiscais” para significar a amplitude e as situações traçadas pelo Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição de 1988. Prosseguindo na exposição, importa conhecer a previsão contida no precitado dispositivo constitucional, que prescreve, in verbis: Art. 155, §2º. O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: [...] XII – cabe à lei complementar: [...] g) regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados. Este dispositivo disciplina o tema acerca da concessão (e também a revogação), pelos Estados e pelo Distrito Federal, de incentivos fiscais em matéria de ICMS. Extrai-se da redação do texto constitucional que a disciplina do tema foi cometida à lei complementar, a quem coube estabelecer a forma da deliberação entre as entidades federativas estaduais e distrital para os fins referidos. Ressai daí a necessidade da legislação infraconstitucional para conferir a completude de sentido e aplicabilidade ao comando contido no Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição Federal. No caso, o tema é disciplinado pela Lei Complementar n. 24, de 07 de janeiro de 1975. Referida legislação foi editada antes da Constituição Federal de 1988, porém, na ausência de outra lei complementar que trate do tema, há concordância quanto a sua recepção pelo novo ordenamento constitucional, ressalvada a discussão acerca da evidente inconstitucionalidade de alguns de seus dispositivos – arts. 4º e 8º. 151 Fundamentalmente, a Lei Complementar n. 24/75 prevê a obrigatoriedade de celebração e ratificação de convênios entre os Estados e o Distrito Federal como formalidade necessária para a concessão de incentivos fiscais em matéria de ICMS. A necessidade deste expediente é conseqüência da característica nacional que o imposto detém, apesar de sua competência ter sido atribuída aos Estados e ao Distrito Federal – Art. 155, II, da Constituição Federal de 1988. De toda sorte, este é o ponto crucial da legislação complementar, na medida em que a concretiza a competência atribuída pela Constituição Federal, fixando positivamente a forma como os incentivos fiscais em matéria de ICMS devem ser concedidos. Ressalte-se que o Art. 1º da Lei Complementar n. 24/75 é claro em determinar que “As isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, segundo esta Lei” (destaque nosso). Portanto, além da celebração do convênio interestadual, eles devem ser ratificados pelos convenentes, a fim de se efetivar a concessão dos incentivos fiscais autorizados em seus respectivos territórios. Vê-se, assim, que a concessão dos incentivos fiscais de ICMS pelos Estados e o Distrito Federal é um ato complexo, porque resulta de operações de vontade de vários órgãos, que se completam para a sua criação, como lembra Aroldo Gomes de Mattos referindo-se à lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello.291 Pode-se dizer que a veiculação desta matéria demanda um processo legislativo bifásico: a celebração do convênio e sua ratificação. Para melhor compreender esta assertiva, subdividir-se-á o tema em dois tópicos distintos, a fim de abordá-los individualmente. 4.1.1.1 A primeira fase no processo legislativo de concessão de incentivos fiscais – a celebração dos convênios interestaduais: sua definição, natureza jurídica e finalidade Consoante previsão do Art. 1º da Lei Complementar n. 24/75, a concessão dos incentivos fiscais em matéria de ICMS, por parte dos Estados e do Distrito Federal depende, primeiramnete, da celebração de convênio. Mas o que são os convênios? Qual sua natureza jurídica? A que fim prestam-se na sistemática tributária? 291 MATTOS, Aroldo Gomes. A natureza e o alcance dos convênios em matéria de ICMS, in Revista Dialética de Direito Tributário, n. 79. São Paulo: Dialética, 2002, p. 10. 152 Em vernáculo, convênio significa “acordo, convenção, pacto”.292 Na seara tributária, a ordem jurídico-positiva nacional confere duas atribuições aos convênios: (i) uma genérica, prevista no Art. 199 do Código Tributário Nacional293, para fins de troca de informações tributárias entre as entidades federativas; (ii) a segunda, específica, para autorizar a concessão de incentivos fiscais de ICMS, consoante Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição de 1988 combinado com o Art. 1º e seguintes da Lei Complementa n. 24/75. Sobre ICMS, os convênios são, portanto, os instrumentos normativos aptos a veicular, de modo genérico e abstrato, a autorização para concessão de incentivos fiscais. São, nas palavras do Ministro Celso de Mello, “[...] instrumentos de exteriorização formal do prévio consenso institucional entre as unidades federadas investidas de competência tributária em matéria de ICMS”.294 É o primeiro passo no processo legislativo necessário para tanto. Originam-se da reunião, em assembléia – denominada de Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ) –, dos Estados-membros e do Distrito Federal. Estes se fazem representar no CONFAZ por servidor público indicado pelo Chefe do Poder Executivo; em regra, os Secretários de Fazenda, Finanças ou Tributação. Segundo Sacha Calmon Navarro Coelho, os convênios são [...] atos formalmente administrativos e materialmente legislativos. Sob o ponto de vista formal, são atos administrativos porque dimanam de órgão administrativo colegiado (assembléia de funcionários representantes do Poder Executivo dos estados). Sob o ponto de vista material, são atos legislativos porque têm conteúdo de preceituação genérica e normativa.[...].295 Enfim, os convênios não são leis no sentido próprio da palavra; são, pois, veículos normativos sem força vinculante que integram o processo legislativo de concessão de incentivos fiscais de ICMS, resultando em uma fase peculiar deste processo legislativo, limitativa da competência das Assembléias Legislativas.296 292 Aulete Digital – Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa. Art. 199, CTN. A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestarse-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio. 294 ADI-MC n. 1.247/PA. Pleno. Relator Min. Celso de Mello. DJ 08.09.1995. 295 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 224. 296 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 408. 293 153 Como instrumento de veiculação normativa sem força vinculante, seu conteúdo somente assume juridicidade após a edição de ato legislativo editado pelos Estados convenentes. Daí porque assentou Roque Carrazza que os convênios somente passam a ser válidos na ordem jurídica interna dos Estados-membros e do Distrito Federal após sua ratificação pelo Poder Legislativo Estadual.297 Destarte, "[...] o convênio não dá nem tira direito a nenhuma Fazenda e a nenhum contribuinte. Não cria direito de natureza tributária nem em benefício, nem em detrimento de ninguém. É mero pressuposto de exercício eficaz da competência isentadora dos legisladores ordinários estaduais"298, como lembra Roque Carrazza em alusão a lição de Geraldo Ataliba. Portanto, é pressuposto básico essencial para a concessão de incentivos fiscais de ICMS, por parte dos Estados e do Distrito Federal, que estes deliberem a respeito, reunidos em assembléia, e, pactuada a proposta concedente, celebrem o respectivo convênio interestadual. Contudo, não é este quem concede o incentivo fiscal; o convênio apenas autoriza a concessão, porquanto ausente força normativa para impor qualquer obrigação ou abstenção no âmbito territorial das entidades federativas convenentes, sendo necessário, como referido alhures, ato de ratificação por parte do Poder Legislativo. 4.1.1.2 A segunda fase no processo legislativo de concessão de incentivos fiscais de ICMS – a ratificação dos convênios celebrados: órgão competente e meio legítimo Celebrado o convênio e tendo sido publicado no Diário Oficial da União, encerra-se a nomeada “primeira fase” no processo legislativo de concessão de incentivos fiscais de ICMS e abre-se a necessidade integrativa de um segundo procedimento: a ratificação pelos Estados e o Distrito Federal convenentes. Surge, então, um segundo problema: qual o órgão competente para ratificar os convênios interestaduais firmados em matéria de concessão de ICMS? E o meio legítimo para introduzir nas ordens jurídicas parciais estaduais a matéria por eles (os convênios) pactuada? Neste ponto, há dissenso na jurisprudência e na doutrina em virtude da interpretação dos dispositivos constitucionais e legais envolvidos. Em súmula, existem três vertentes sobre 297 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 409. CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 208. 298 154 o tema: (i) a corrente que entende ser atribuição do Poder Executivo a ratificação dos convênios celebrados, o que se dá mediante a expedição do respectivo decreto, consoante expressa previsão do Art. 4º da Lei Complementar n. 24/75; (ii) a vertente que defende ser de atribuição do Poder Legislativo a expedição do ato ratificador, o que se dá mediante a edição do decreto legislativo, consoante Art. 49, I, da Constituição, aplicado por simetria; e (iii) a linha de entendimento que atribui ao Poder Legislativo a competência ratificante, porém via edição de lei estadual específica, nos termos do Art. 150, §6º, da Constituição de 1988, na redação dada pela Emenda Constitucional n. 03/93. A primeira linha de entendimento baseia-se na expressa disposição da Lei Complementar n. 24/75, que prevê no seu Art. 4º: Art. 4º - Dentro do prazo de 15 (quinze) dias contados da publicação dos convênios no Diário Oficial da União, e independentemente de qualquer outra comunicação, o Poder Executivo de cada Unidade da Federação publicará decreto ratificando ou não os convênios celebrados, considerando-se ratificação tácita dos convênios a falta de manifestação no prazo assinalado neste artigo. A partir da leitura isolada deste dispositivo se tem afirmado que a competência para ratificar os convênios interestaduais em matéria de incentivos fiscais de ICMS é do Poder Executivo da entidade federativa, mediante a edição do respectivo decreto. Entretanto, a doutrina é unânime sobre a inconstitucionalidade do citado Art. 4º da Lei Complementar n. 24/75, por afronta aos Princípios da Legalidade e da Separação de Poderes. Ora, consoante a Constituição Federal vigente, somente aqueles instrumentos previstos nos incisos I a VII do Art. 59 são aptos a inovar a ordem jurídica, isto é, a introduzir validamente nas respectivas ordens jurídicas – total e parciais – as matérias autorizadas pela Lei Maior. Em sede tributária, tanto a oneração como a desoneração de tributos são temas sob reserva de lei formal. Deste modo, não apenas a instituição e o aumento de tributos obrigatoriamente devem ser veiculados por lei, como também a desoneração tributária – seja pela diminuição ou extinção do tributo, seja mediante a concessão dos incentivos fiscais. Não poderia ser diferente, na medida em que o Art. 150, I, da Constituição Federal prevê ser vedado exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça, realizar o processo inverso – de desoneração – também demanda a mesma formalidade, por obra do que se convencionou denominar de “paralelismo das formas”. Até porque, prescrever condutas para obrigar ou desobrigar depende de estrita previsão legal. Tanto mais em matéria tributária. 155 Logo, como poderia uma reunião de representantes dos Poderes Executivos Estaduais, mediante instrumento sem normatividade (os convênios) exercer a competência impositiva ou a exonerativa – que são como o verso e o reverso da mesma medalha, na precisa lição de José Souto Maior Borges299 – e, ao depois, ver seus atos – que são meramente administrativos – ratificados pelo próprio órgão que integram? A resposta quem dá é Sacha Calmon Navarro Coelho: “Ora, é rematada sandice admitir possa um mesmo Poder praticar um ato e, depois, ele próprio, homologá-lo... Ratificar ato na entrosagem da Teoria da Tripartição dos Poderes significa técnica de harmonização. A homologação, na espécie, só faria senso se declinada ao Legislativo”.300 Neste sentido, André Mendes Moreira anda bem ao reafirmar lição por todos conhecida, mas que, vez por outra, parece ser esquecida: No Estado Democrático, compete ao Legislativo veicular normas prescritivas de conduta (editando leis), ao Executivo dar-lhes cumprimento (executando as leis) e ao Judiciário dirimir os conflitos (aplicando a lei no caso concreto). A partir do momento em que o Poder Executivo reveste-se do papel de criador de leis, usurpa a competência do Legislativo e fere a tripartição dos Poderes, cláusula pétrea da Constituição e pilar do Estado de Direito.301 Em remate, a observação de Geraldo Ataliba: À semelhança dos tratados internacionais que se convertem em direito interno pela ratificação do Congresso, os convênios – sinônimo absoluto de tratado, segundo o acatado internacionalista Marotta Rangel – só podem preencher as exigências do princípio da legalidade se ratificados pelo Poder Legislativo Estadual. Isto é, aliás, imediata decorrência do princípio da relação de administração – magistralmente exposto por Cirne Lima – que não consente que o Executivo possa deliberar não realizar receita tributária, imperativamente criada por lei.302 Contudo, afirma Aroldo Gomes de Mattos que a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal encamparia esta idéia, no sentindo de que os convênios devem ser ratificados por ato do Poder Executivo, supostamente em deferência ao princípio da independência e harmonia 299 BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 08. COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 224. 301 MOREIRA, André Mendes. O Convênio ICMS nº 64/06 e a Ilegitimidade da Exigência do Imposto Estadual na Alienação de Veículos Usados por Locadoras de Automóveis, in Revista Dialética de Direito Tributário, n. 147. São Paulo: Dialética, 2007, p. 24. 302 ATALIBA, Geraldo. Convênios Interestaduais e imposto sobre circulação de mercadorias, in Revista dos Tribunais, n. 422, agosto de 1972. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 310-311. 300 156 dos poderes.303 Para fundamentar sua exposição, o autor alude ao acórdão proferido na ADIn 672-2/RJ (sic), de relatoria do Ministro Carlos Velloso, publicada no Diário da Justiça, Seção I, em 29 de novembro de 1996, p. 47155-47156.304 Deve-se consignar, no entanto, que a despeito da decisão proferida, que julgou procedente a referida ação direta de inconstitucionalidade e, com isto, declarou inconstitucionais dispositivos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro os quais previam a competência privativa da Assembléia Legislativa Estadual em apreciar e aprovar convênios e outros atos celebrados pelo Poder Executivo que resultassem para o Estado quaisquer encargos não estabelecidos em lei orçamentária, o pano de fundo da discussão não envolvia a questão dos convênios de ICMS, mas abstrata e genericamente o controle do Poder Executivo pelo Órgão Legislativo Estadual. Após a edição da Emenda Constitucional n. 03, de 17 de Março de 1993, a doutrina tributária, que até então compreendia ser atribuição do Poder Legislativo Estadual ou Distrital editar o ato legislativo necessário a ratificar os convênios interestaduais firmados, rachou em duas vertentes: (i) aquela que entende ser o decreto legislativo o meio adequado para a ratificação dos convênios celebrados; e (ii) outra que alude à necessidade da edição de lei específica, a teor da disposição contida na novel redação do Art. 150, §6º, da Constituição de 1988, dada pela precitada emenda a Constituição. No sentido de que cabe ao Poder Legislativo Estadual ou Distrital, mediante edição de decreto legislativo, a ratificação dos convênios interestaduais em matéria de concessão de incentivos fiscais de ICMS, Paulo de Barros Carvalho, por exemplo, lembra que os convênios não têm força vinculante, e daí a imprescindibilidade do decreto legislativo, que se perfaz no instrumento primário de introdução de normas apto a introduzir nas respectivas ordens jurídicas estaduais e distrital o conteúdo dos convênios interestaduais celebrados, conferindo àquela matéria validade jurídica.305 303 MATTOS, Aroldo Gomes. A natureza e o alcance dos convênios em matéria de ICMS, in Revista Dialética de Direito Tributário, n. 79. São Paulo: Dialética, 2002, p. 14. 304 Apenas para corrigir a afirmação do autor e, assim, transmitir a informação correta, a ADI em questão é a de número 676-2/RJ e não “672-2/RJ”, como afirmado. De resto, as informações relativas ao acórdão estão corretas. 305 CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 74. 157 Roque Carrazza trilha esta mesma linha de raciocínio306, embasando-se nas sempre precisas lições de Geraldo Ataliba, para quem: Exige o texto constitucional que os convênios sejam 'celebrados' pelos Estados (e pelo Distrito Federal) e, depois, 'ratificados'. A celebração cabe ao Executivo. A ratificação, ao Poder Legislativo. 'Estado' (ou 'Distrito Federal') não é Executivo. O Estado (ou o Distrito Federal) se representa pelo Executivo, mas delibera mediante harmônica atuação deste com o Legislativo. (...) Por isso, só pode ser válido e eficaz o convênio 'ratificado' como quer o Texto Magno - pelos Legislativos estaduais (e distrital). Convênio é contrato. Executivo não pode 'contratar' sem pronunciamento parlamentar prévio ou ratificatório. O Executivo não é o Estado (ou o Distrito Federal). É órgão do Estado (ou do Distrito Federal). Só a conjugação das expressões volitivas do Legislativo ou do Executivo é 'vontade' do Estado (ou do Distrito Federal).307 Enfim, para esta doutrina é o Poder Legislativo o órgão competente para ratificar os convênios interestaduais que tratem da autorização para concessão de incentivos fiscais de ICMS, realizando este mister por meio do decreto legislativo, que é o meio legítimo para tanto, substanciado, por simetria, na disposição do Art. 49, I, da Constituição vigente. De outro lado, há uma segunda corrente que entende haver a necessidade de “lei específica” para a efetiva concessão dos incentivos fiscais de ICMS após a autorização emanada por convênio interestadual firmado. Para ela, é o Poder Legislativo Estadual o órgão competente para ratificar os convênios interestaduais sobre ICMS firmados pelos Estados e o Distrito Federal. Contudo, segundo sua compreensão, o meio legítimo para validar juridicamente a matéria veiculada via convênio é a lei estadual ou distrital específica, assim entendida no sentido estrito e formal da acepção. Esta doutrina apóia sua interpretação no Art. 150, §6º, da Constituição de 1988, na redação dada pela Emenda Constitucional n. 03/93, que prevê: Art. 150, § 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica, federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do disposto no art. 155, § 2º, XII, g. 306 CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 408-409. ATALIBA, Geraldo. Convênios Interestaduais e imposto sobre circulação de mercadorias, in Revista dos Tribunais, n. 422, agosto de 1972. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 311. 307 158 Sacha Calmon Navarro Coelho, conquanto não assevere expressamente sobre o meio legítimo para a ratificação dos convênios interestaduais, tende a considerar a necessidade de lei específica estadual para tanto. Isto se infere das seguintes passagens: Evidentemente, a lei complementar não poderá deferir a um colegiado interestadual de funcionários públicos poderes para dar e tirar tributação (isenção e reduções e suas revogações) sem lei, contra o princípio da legalidade.308 [...] Após a Emenda nº 3, de 17.03.1993, o §6º do art. 150 projetou, por sobre o conteúdo do art. 155, XII, “g” (sic), da Constituição, cuja interpretação é sistêmica, sérias restrições. É que isenções, anistias, remissões, reduções de base de cálculo, concessões de créditos presumidos etc., só podem ser permitidas por LEI ESPECÍFICA (federal, estadual ou municipal).309 Robson Maia Lins, por sua vez, vai direto ao tema e expõe sua posição sobre a imprescindibilidade da edição de lei estadual específica para a concessão ou a revogação dos incentivos fiscais de ICMS autorizados via convênio interestadual. Afirma o autor: O art. 150, §6º, CF, condiciona a concessão de qualquer subsídio, isenção, redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, à existência de lei específica da pessoa política competente (sem prejuízo do disposto no art. 155, §2º, XII, “g”, da Carta Magna, que trata exatamente do Convênio). No nosso entender, esse dispositivo soma forças aos argumentos já expostos nos tópicos precedentes no sentido de que lei específica estadual, sobre ser imprescindível para a criação da isenção prevista no Convênio/Confaz, pode revogar a isenção, entendida esta como benefício fiscal efetivado pela legislação estadual da pessoa política.310 Ressalte-se, por fim, que em outra oportunidade o Supremo Tribunal Federal manifestou-se de forma diversa daquela externada na ADI n. 676-2. A discussão tinha como questão de fundo, justamente, a problemática da concessão de incentivos fiscais de ICMS, a necessidade de convênios e a questão da ratificação. Na oportunidade, ao julgar a ADI-MC n. 1.247-9/PA, de relatoria do Ministro Celso de Mello, a Colenda Suprema Corte entendeu, com base no voto do relator e por unanimidade, que a concessão de incentivos fiscais em matéria de ICMS somente pode ser deferida mediante lei específica, em observância ao princípio da reserva constitucional de competência legislativa e da separação dos poderes, 308 COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 223. (grifos do autor) 309 Idem, ibidem, p. 227. (grifos do autor) 310 LINS, Robson Maia. A Revogação de Isenção de ICMS e a Desnecessidade de Convênio/Confaz, in Revista Dialética de Direito Tributário, n. 106. São Paulo: Dialética, 2004, p. 86-87. (grifos do autor). 159 razão pela qual seria vedado até mesmo ao Poder Legislativo Estadual conferir ao Chefe do Poder Executivo a prerrogativa de dispor normativamente sobre o tema. Registre-se, por oportuno, passagem do voto condutor no referido aresto, que consigna: Com efeito, a norma legal em questão, ao autorizar o Poder Executivo estadual a conceder, em caráter provisório, mediante decreto específico, e independentemente de deliberação do COFAZ, benefícios fiscais ou financeiros que importem em redução ou em exclusão do ICMS, nos casos em que se identifique, a juízo exclusivo do Governador, “notória necessidade de defender a Economia do Estado e a capacidade competitiva de empreendimentos locais”, parece transgredir as cláusulas inscritas no art. 150, §6º, e no art. 155, §2º, XII, g, da Constituição. A norma inscrita no caput do art. 12 da Lei n. 5.780/93 do Estado do Pará, ao permitir a livre concessão, pelo Poder Executivo, de benefícios fiscais ou financeiros de que decorram redução ou exclusão do ICMS, parece veicular uma inaceitável delegação legislativa externa, pois torna possível, naquela unidade da Federação, a inadmissível atuação normativa do Poder Executivo em tema de liberalidade estatal em matéria tributária. [...] O preceito legal em questão deslocou, para instância juridicamente inadequada, o poder de regulação estatal incidente sobre determinadas categorias temáticas – a outorga de benefício fiscal, com a conseqüente redução ou exclusão da exigibilidade do ICMS – que se acham submetidas, em razão de sua própria matéria, ao postulado constitucional da reserva absoluta de lei em sentido formal. [...] O Poder Público está rigidamente sujeito, no regramento de matérias que exijam disciplinação mediante atos normativos primários – como ocorre na veiculação de temas de direito tributário que concernem às relações entre o Estado e o contribuinte – ao princípio constitucional da reserva de lei. Este postulado, enquanto valor subordinante da atuação governamental, extrai a sua autoridade da matriz jurídica de que se origina, qualificando-se como fator condicionante da própria validade e eficácia das deliberações estatais que versem questões como aquelas pertinentes às matérias referidas nos preceitos legais impugnados nesta sede de controle normativo abstrato. É preciso enfatizar que a essência do direito tributário reside na integral submissão do poder estatal à rule of law, de tal modo que, respeitados os postulados fixados pela própria Constituição, a eficácia da atividade governamental em matéria tributária resulte sempre condicionada por tudo quanto haja sido fixado pelo legislador em sede jurídica adequada, vale dizer, por tudo quanto tenha sido ditado pelo Poder Público em lei. Não basta, portanto, que o Poder Público tenha promulgado um ato legislativo para que se legitime, desde logo, a atividade estatal. Impõe-se, antes de mais nada, que o legislador, abstendo-se de agir ultra vires, não haja excedido os limites que condicionam, no plano constitucional, o exercício de sua indisponível prerrogativa de fazer instaurar, em caráter 160 inaugural, a ordem jurídico-normativa. Isso significa dizer que o legislador não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros órgãos do Estado – como o Poder Executivo – produzam a norma que, por efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte parlamentar. [...] O preceito legal em questão – extravazando [sic] os limites, exorbitando das hipóteses e inobservando o procedimento e a forma previstos no art. 68 da Carta Política – deferiu ao Executivo estadual uma competência normativa primária que se revela absolutamente estranha às atribuições desse Poder, facultando-lhe a prática, mediante ato próprio, da excepcional prerrogativa de inovar, com a nota da inicialidade, a própria ordem jurídica, dispondo, sem maiores restrições de caráter normativo, sobre questões postas expressamente pelo legislador constituinte sob a égide do postulado fundamental da reserva absoluta de lei em sentido formal (CF, art. 150, §6º). (grifos do autor).311 Frente aos argumentos, com absoluta certeza pode-se concluir que não é o convênio interestadual em si o meio de introdução, nas respectivas ordens jurídicas parciais estaduais, dos incentivos fiscais pactuados. A toda evidência, também, indisputável a inconstitucionalidade do Art. 4º da Lei Complementar n. 24/75, na medida que confere ao Órgão Executivo poderes ratificatórios, os quais, bem de ver da Constituição Federal, cabe sempre e privativamente ao Poder Legislativo. Em termos distintos, somente seriam válidas as regras concessivas de incentivos fiscais em matéria de ICMS se estas vierem contidas nos convênios e, após isto, ratificadas pelas respectivas Assembléias Legislativas dos Estados convenentes. Via de conseqüência, a contrario sensu, sobressai-se que é vedado às citadas pessoas políticas concedê-los (os incentivos fiscais de ICMS) sem observância da limitação constitucional e das determinações da aludida lei complementar. 4.1.1.3 Considerações finais sobre a concessão dos incentivos fiscais de ICMS – alguns pontos da Lei Complementar n. 24/75 Antes ainda de encerrar a exposição sobre a necessidade dos convênios interestaduais em matéria de concessão de incentivos fiscais de ICMS, faz-se relevante mais algumas considerações, as quais estão aqui apartadas do tópico anterior em virtude de seu conteúdo diverso, apesar de dentro do mesmo tema. 311 Cf. STF. ADI-MC 1.247-9/PA. Pleno. Rel. Min. Celso de Mello. DJU 08.09.1995. 161 É preciso ser ressaltado que a disposição contida no parágrafo único do Art. 1º da Lei Complementar n. 24/75 traz mais alguns esclarecimentos sobre o alcance da forma deliberativa relativa aos incentivos fiscais de ICMS. Em outros termos, o citado dispositivo alude a algumas outras situações que seriam alcançadas pela limitação constitucional e, portanto, sujeitas à observância das regras complementares. Basicamente, prescreve que: Art. 1º [...] Parágrafo único. O disposto neste artigo também se aplica: I – à redução da base de cálculo; II – à devolução total ou parcial, direta ou indireta, condicionada ou não, do tributo, ao contribuinte, a responsável ou a terceiros; III – à concessão de créditos presumidos; IV – à quaisquer outros incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais, concedidos com base no Imposto de Circulação de Mercadorias, dos quais resulte redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus; V - às prorrogações e das extensões das isenções vigentes nesta data. Este dispositivo legal confere às situações elencadas nos incisos I a V referidos o mesmo tratamento justributário dispensado à concessão dos incentivos fiscais (relembrando apenas que o termo refere-se, genericamente e por opção metodológica, à concessão e revogação de isenção, incentivo e benefício fiscal). Ou seja, também nestas circunstâncias, os Estados e o Distrito Federal deverão observar as prescrições da Constituição e da Lei Complementar, porquanto, como cediço, são formas distintas de incentivos fiscais (que é gênero, do qual todas estas situações são espécies). Assim, a autorização via convênio interestadual e também a ratificação por parte do Poder Legislativo Estadual ou Distrital revela-se estritamente necessária. Saliente-se, ainda, que o âmbito material de regulação normativa por parte da Lei Complementar é claramente delimitado pelo respectivo dispositivo constitucional que lhe outorga esta atribuição – Art. 155, §2º, XII, “g”. Esta previsão constitucional expressamente determina que a atribuição da lei complementar é, pura e simplesmente, regular a forma como os Estados e o Distrito Federal deliberarão sobre a concessão dos incentivos fiscais de ICMS. Portanto, a legislação complementar somente está autorizada, pela competência legislativa concedida, a traçar as formalidades que deverão ser observadas, pelas entidades federativas estaduais e distrital, no processo de deliberação autorizadora dos incentivos fiscais de ICMS que se pretenda outorgar. Ficando evidente, por conseguinte, que não é a lei complementar quem autoriza ou desautoriza os Estados e o Distrito Federal a conceder ou não 162 os incentivos fiscais, mas, sua “limitação conteudística” é meramente definidora dos meios para estas entidades federativas desempenhar adequadamente sua competência exoneratória. Perceptível quão restrito é o âmbito de atuação da Lei Complementar que trate deste tema. Conseqüência: não está no seu âmbito de competência material, v.g., autorizar estorno de créditos fiscais; definir sujeitos passivos; modificar bases de cálculo ou alíquotas; impor penalidades, etc. De igual modo, tais matérias não foram deferidas, pela Constituição, aos convênios interestaduais. Contrariamente, cabe a estes instrumentos normativos intergovernamentais – e depois os respectivos atos de ratificação – traçar apenas os lindes dos incentivos fiscais a serem concedidos. E nada além disto. Em conclusão, disposições da supracitada lei complementar e de eventuais convênios interestaduais – e, via de conseqüência, dos atos ratificatórios – que desbordem da autorização constitucional, trazendo previsões estranhas à concessão dos incentivos fiscais, implicará na sua inconstitucionalidade, por alteração da competência constitucionalmente discriminada, isto é, pela ausência de atribuição constitucional para tratar daquele tema. Ao mesmo tempo, a concessão, por parte dos Estados e do Distrito Federal, dos incentivos fiscais relativos ao ICMS depende do cumprimento de certas regras constitucionais e infraconstitucionais. A prática de atos normativos deste jaez, em contrariedade às determinações do Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição de 1988, e também da Lei Complementar n. 24/75, importará, sempre, na sua invalidade, seja pelo vício da inconstitucionalidade ou pelo timbre da ilegalidade. Outro aspecto que precisa ser abordado: o quorum de aprovação para a concessão dos incentivos fiscais, assim também a aquele relativo à sua revogação. Sobre isto, importa a previsão do Art. 2º da Lei Complementar n. 24/75, o qual prescreve, in verbis: Art. 2º - Os convênios a que alude o art. 1º, serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do Governo federal. § 1º - As reuniões se realizarão com a presença de representantes da maioria das Unidades da Federação. § 2º - A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes. 163 Percebe-se que as reuniões para celebrar os convênios interestaduais somente serão válidas se antes tiverem sido convocados os representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sendo que o encontro será sempre presidido por um representante do Governo Federal. Além disso, é condição para a efetiva realização das assembléias interestaduais: a presença obrigatória de representantes da maioria das unidades federativas. Logo, não há a necessidade de todas as entidades federativas se fazerem presentes; apenas a maioria delas. A despeito disso, o dispositivo normativo faz distinção, quanto ao quorum de aprovação, entre a concessão e a revogação dos incentivos fiscais. Em síntese, a teor dos parágrafos 1º e 2º precitados, têm-se duas situações: (i) para autorizar a concessão dos incentivos fiscais deve haver unanimidade entre os representados presentes à sessão. Ou seja, se para se realizar validamente a reunião depende da presença de 50% (cinqüenta por cento) mais uma unidade federada; para que seja autorizada a concessão do incentivo fiscal, todos os representantes presentes devem anuir ao convênio. (ii) Para que sejam revogados os incentivos já concedidos, quatro quintos dos presentes à reunião devem anuir com o convênio revogatório; mas ainda assim a reunião somente se realizará validamente com a presença daquela mesma maioria. Portanto, o processo concessivo dos incentivos fiscais é mais rígido do que o processo revogatório, como se depreende dos dispositivos legais precitados. Concluindo esta parte, pode-se afirmar que a concessão dos incentivos fiscais de ICMS, por parte dos Estados e do Distrito Federal, é válida se observados os ditames da precitada Lei Complementar, desde que em consonância com o respectivo fundamento constitucional que lhe confere validade. Em outros termos, observados os limites materiais e formais tributários postos pela Constituição e pela Lei Complementar, ter-se-ia por legítima a concessão dos incentivos fiscais. Contudo, quer parecer e isso se pretende apontar adiante, ainda que válida a concessão destes incentivos fiscais nos termos da disciplina tributária, formal ou materialmente falando, a utilização dos convênios de ICMS, em verdade e obrigatoriamente, deve levar em conta o todo sistêmico, a fim de garantir sua unidade, ou seja, outros princípios, valores, limites e matérias constitucionais devem ser levados em conta. É caso das normas de direito econômico, notadamente a concorrência, a livre iniciativa e a proteção ao consumidor, cujos argumentos serão desenvolvidos adiante. 164 Esta observância decorre do pressuposto, assentado anteriormente no capítulo primeiro, de que o sistema jurídico-normativo é uno e, como tal, sua interpretação deve ter este pressuposto como parâmetro. Antes, porém, de ingressar na discussão jurídico-econômica sobre o caso, faz-se mister algumas correlações iniciais, notadamente quanto ao princípio federativo e a competência tributária, os quais devem ser considerados na elucidação do tema. 4.1.2 Os convênios interestaduais em matéria de ICMS e o princípio federativo Discorrer sobre os convênios interestaduais em matéria de concessão de incentivos fiscais de ICMS primordialmente demanda, afora a compreensão interpretativa mínima sobre o processo de sua elaboração, considerações sobre o princípio federativo, o qual, porque estrutural do sistema jurídico-político brasileiro, serve de vetor de interpretação para justificar a opção do Constituinte pelo sistema de deliberação interestadual. Objetivamente pode-se dizer que a escolha deste sistema pelo constituinte de 1988 teve por escopo sua proteção. Deste modo, longe de ser desvinculado ao tema, o Federalismo é inerente à contenda jurídico-tributária e econômica que ora se põe sob análise. Mas antes, algumas considerações históricas. A Federação surgiu, inicialmente, nos Estados Unidos da América, por obra da Constituição de 1787, que, segundo sua percepção, é a forma de Estado fruto da reunião das unidades políticas autônomas.312 Vê-se, com isto, que o Estado Federal é expressão e conseqüência do constitucionalismo. No Brasil, a forma federativa de Estados surgiu com a Proclamação da República, em 1889, e foi mantida pelas demais Constituições. A Federação é, assim, de irresistível tradição republicana, fundada, sempre, nas determinações constitucionais. Com sua adoção, pela Constituição de 1891, portanto, inovou-se mesmo a ordem jurídica nacional, na medida em que “[...] rompeu com a forma monárquica de Governo, a forma unitária de Estado e o sistema parlamentar de Governo, para instaurar a República, o Federalismo e o Presidencialismo, formas políticas sob as quais vivemos”.313 312 313 SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 99. HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 56-57. 165 Desde então, afirma-se que todas as constituições brasileiras do período republicano estabeleceram no Brasil um Estado Federal.314 Entretanto, em interessante consideração, Ana Cláudia Silva Scalquette, José Luiz Toro da Silva e Tatiana Penharrubia Fagundes pontuam que a Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas e resultante do Estado Novo, modificou a forma federativa de Estado, levando a um Estado Unitário. Segundo eles, denotase esta característica por duas circunstâncias: (i) o Art. 1° da Constituição de 1937 mencionou apenas que “O Brasil é uma República”, sem afirmar o federalismo; (ii) concretamente foi implantada uma estrutura altamente centralizadora, o que acabou por extinguir a relação de poderes, a representação e os partidos políticos, bem como o próprio federalismo.315 Logo, não há Federação sem Constituição. Sendo assim, por evidente que esta investigação científica situa-se, no espaço e no tempo, na perspectiva do Brasil pós-1988. Em conseqüência, é a Federação Brasileira instalada pela Constituição Federal de 1988, com todas as suas características e peculiaridades, que interessa ao deslinde do tema ora tratado. O federalismo, portanto, caracteriza-se como princípio jurídico, além de político, conforme previsão da Constituição Federal, que lhe confere o timbre de estrutura do Estado Brasileiro. Positivamente, o princípio federativo está previsto já no Art. 1º, caput, da Constituição de 1988. O dispositivo prescreve que a República Federativa do Brasil é formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal. Entretanto, a leitura isolada deste dispositivo constitucional não dá a completa caracterização do Estado Federal Brasileiro. Complementando-a, o Art. 18, caput, do Texto Constitucional, é preclaro em afirmar que “a República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”. Ainda, não se olvide de que a forma federativa de Estado, como se vê da disposição contida no Art. 60, §4º, I, da Constituição Federal, caracteriza-se pela sua intangibilidade, isto é, foi elevada à condição de cláusula pétrea, consistindo, assim, em limitação material ao exercício do Poder Instituído.316 314 Cf. CARRAZZA, Roque. ICMS. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, , nota de rodapé n. 1, p. 429. SCALQUETTE, Ana Cláudia Silva; SILVA, José Luiz Toro da; FAGUNDES, Tatiana Penharrubia. Representatividade dos Estados e Pacto Federativo, in Revista Direito Mackenzie, ano 3, n. 1. São Paulo: Editora Mackenzie, 2002, p. 284. 316 Sinônimo de Poder Constituinte Derivado. Adota-se porque, terminologicamente, não se pode falar em Poder Constituinte Derivado, pois o termo “constituinte” dá idéia de início, e, no caso, o Congresso Nacional, ao editar Emendas Constitucionais, apenas exerce a atribuição já prevista e delimitada pelo Poder Constituinte Originário. 315 166 Da soma destas disposições, inicialmente, tem-se o conteúdo mínimo de significação e de aplicação do princípio federativo. É, pois, a partir delas que se deve iniciar o processo exegético para definir o sentido e o alcance da Federação. Em razão disto, com tranqüilidade pode-se dizer que não há ente federado ou autonomia antes da Constituição; há, sim, autonomia das entidades federativas nos termos da Constituição.317 Entre outros dados da conformação constitucional conferida ao princípio federativo pela Constituição Federal de 1988, chama a atenção sua relatividade. Melhor dizendo, a conformação do Estado Federal é estritamente brasileira, na exata medida fixada pelo Legislador Constituinte. Humberto Ávila, sobre isto, escreveu recentemente: “O Brasil é uma República Federativa. Não, porém, uma república federativa qualquer, mas uma réplica federativa da forma como estabelecida pela CF/88”.318 Corroborando seu pensamento, ele ainda alude às considerações do Supremo Tribunal Federal sobre o caso, exposta no julgamento da Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 2.024, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence: A ‘forma federativa de Estado’ – elevado a princípio intangível por todas Constituições da República – não pode ser conceituada a partir de um modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o constituinte originário concretamente adotou e, como o adotou, erigiu em limite material imposto às futuras emendas à Constituição...319 (grifos do autor). Esta consideração da Suprema Corte, em tudo se coaduna com a informação transmitida por Roque Carrazza e à luz da lição de Osvaldo Aranha Bandeira de Mello, de que inexiste dois Estados Federais absolutamente idênticos, in verbis: Nenhum Estado se assemelha a outro, de tal forma que se possa dizer que os seus respectivos regimes sejam idênticos. Eles, quando muito, podem ser análogos. Para classificar um organismo estático nos quadros da noção Estado Federal, subsiste a mesma dificuldade. Os Estados que iniciaram o regime federativo, e que serviriam, portanto, de base para a elaboração das diversas teorias sobre a natureza jurídica do Estado Federal, são os únicos 317 ÁVILA, Humberto. ICMS. Tratamento diferenciado para produtos oriundos da Zona Franca de Manaus. Restrições ao crédito por ausência de convênio interestadual. Alíquotas e créditos diferenciados para mercadorias produzidas no Estado de São Paulo. Exame de Constitucionalidade das restrições, in Revista Dialética de Direito Tributário, n. 144. São Paulo: Dialética, 2007, p. 66 e ss. 318 ÁVILA, Humberto. ICMS. Tratamento Diferenciado para Produtos Oriundos da Zona Franca de Manaus. Restrições ao Crédito por Ausência de Convênio Interestadual. Alíquotas e Créditos Diferenciados para Mercadorias Produzidas no Estado de São Paulo. Exame de Constitucionalidade das Restrições, in Revista Dialética de Direito Tributário, n. 144. São Paulo: Dialética, 2007, p. 67. 319 Idem, ibidem. 167 que nunca têm contestada a sua estrutura federal. O mesmo não se dá com os outros países, pois os seus regimes, embora modelados sobre os dos primeiros, deles sempre se afastam e, muitas vezes, de maneira importante.320 Tanto isto é verdade que no Brasil convivem a ordem jurídica total (global) e as ordens jurídicas parciais central e periféricas (estadual, distrital e municipal), diferentemente de outros países organizados na forma federativa de Estado. Sobre isto, confira-se a lição de Geraldo Ataliba, sempre acertada: [...] Na federação compreendem-se três ordens jurídicas distintas: a coletividade central, as coletividades membros e a comunidade total. As duas primeiras, no ensinamento de Kelsen, estão, na mesma medida, subordinadas à ordem jurídica superior, a da comunidade total. São, pois, juridicamente iguais e parificadas. São ordens jurídicas especiais, pois suas competências circunscrevem às matérias que lhe são deferidas pela ordem jurídica total. A ordem jurídica total está na constituição do estado federal. Sua complementação, na legislação nacional.321 Logo, o princípio federativo caracteriza-se exatamente como delineado pela Constituição. Mas, enfim, o que é o princípio federativo? Entender seu sentido e alcance, especialmente neste caso, é deveras imprescindível. Federação significa a possibilidade de se autogovernar, através das leis e de autoridade própria.322 Em última análise, federação se confunde com autonomia, que, nos dizeres de Raul Machado Horta, “é a revelação de capacidade para expedir as normas que organizam, preenchem e desenvolvem o ordenamento jurídico dos entes públicos”.323 Segundo Geraldo Ataliba, “Federação implica igualdade jurídica entre a União e os Estados, traduzida num documento (constitucional) rígido, cuja principal função é discriminar competências de cada qual, de modo a não ensejar violação da autonomia recíproca por qualquer das partes”.324 320 CARRAZZA, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 116. 321 ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 96-97. 322 CARRAZZA, Roque. ICMS. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 429. 323 HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 426. 324 ATALIBA, Geraldo. Princípio Federal – Rigidez constitucional e Poder Judiciário, in Estudos e Pareceres de Direito Tributário, v. 3. São Paulo: RT, 1980, p. 9-10. 168 Para além da autonomia, Federação implica também em não-interferência de uma entidade política em outra, de modo que cada qual detém livre disposição para exercer suas competências, em todos os âmbitos designados pela Lei Maior. Em regra, pode-se perceber que as elucubrações acerca do princípio federativo sempre recaem sobre o mesmo aspecto, sobre a mesma afirmação: autonomia. Que esta é uma característica inerente ao conceito de federação, não se tem dúvida. Até porque, é a própria Constituição Federal quem expressamente fixa a autonomia, consoante previsão do Art. 18. No entanto, esta mesma previsão constitucional faz alusão a algo que tem sido pouco percebido: a autonomia que impregna a atuação das entidades federativas se dá “nos termos desta Constituição” (Art. 18, caput, última parte, da Constituição de 1988). Isto corrobora a asserção anteriormente exposta de que não existe federação e autonomia das entidades federativas antes ou fora da Constituição, mas, tão-somente, conforme sua disposição. A conseqüência desta percepção tem influência direta sobre o problema da definição do sentido e do alcance do princípio federativo, pois na medida em que se o confunde com uma das suas formas de exteriorização que é a autonomia, isto implica na idéia de que ela seria ampla e irrestrita, haja vista a primazia e relevância jurídica do primado federativo. Entretanto, o princípio federativo não se caracteriza apenas pela autonomia. Mas, mais do que isto, o princípio federativo busca o equilíbrio entre o todo (Estado Federal) e as partes (as unidades federativas); equilíbrio entre autonomia e uniformidade. O princípio federativo é o resultado do equilíbrio entre a uniformidade da federação e a diversidade dos entes federados.325 Traduz-se esta idéia no modelo objetivado pelo Constituinte de 1988, no sentido de conferir a cada uma das entidades federativas liberdade para se autogovernar, exercendo, cada uma delas, autonomamente, as competências atribuídas. Porém, de outro lado, esta autonomia será exercida, como lembrado alhures, nos exatos termos da Constituição, o que importa em dizer que ainda que sejam autônomas as pessoas federativas, o exercício desta faculdade jamais poderia resultar em cisão da federação, isto é, deve ser mantida sua unidade. 325 ÁVILA, Humberto. ICMS. Tratamento diferenciado para produtos oriundos da Zona Franca de Manaus. Restrições ao crédito por ausência de convênio interestadual. Alíquotas e créditos diferenciados para mercadorias produzidas no Estado de São Paulo. Exame de Constitucionalidade das restrições, in Revista Dialética de Direito Tributário, n. 144. São Paulo: Dialética, 2007, p. 66. 169 Ora, a unidade nacional decorre da soberania do Estado Federal. A soberania apresenta-se indivisível e, por isso, do ponto de vista global, somente o Estado federal é soberano, os entes da federação não são soberanos e sim autônomos. A respeito, ensina Michel Temer: Ela (soberania) faz com que, no plano jurídico, inexistam Estados maiores ou menores, fortes ou fracos, mais ou menos importantes. Iguala-os a todos, pois, em nível externo, não reconhece nenhum poder superior ao seu. Reconhece-os iguais. Admite, pois, os demais Estados. Ou seja, entrevê neles a soberania.326 Além da unidade, outra conseqüência que advém da Federação é a igualdade jurídica entre os entes federativos, do que decorre a vedação de conflito ou mesmo qualquer tipo de preferência entre eles. Portanto, reafirmando o que já se consignou, é a Constituição quem dita os lindes e a estrutura do princípio federativo. É ela quem traça os meios de garanti-lo; de preservar suas características e também as entidades que compõem a Federação. E isto ela o faz, dentre outras maneiras, através da outorga de competências, em especial na seara tributária e econômica, o pano de fundo desta investigação. Mas em que sentido o princípio federativo e seus reflexos na sistemática tributária relacionam-se ao tema da concessão de incentivos fiscais por parte do Estados-membros? Esta pergunta perde, em certa medida, seu mistério pela exposição pura e simples de uma expressão: Federalismo Fiscal. O princípio federativo assume tamanha relevância para a questão tributária no Brasil que se cunhou, inclusive, um termo próprio para designar o aspecto da contenda, isto é, ainda que se trate de análise federativa, esta tem como pano de fundo as normas tributárias, principalmente no que tange ao exercício da competência tributária e seu reverso, a competência exoneratória – cuja correlação com o tema será abordada no item subseqüente. Entretanto, deve-se ter em mente que [...] O significado do princípio federativo surge, primeiramente, quando as outras normas que com ele mantém conexão semântica já tiverem sido analisadas. (...) Não há, pois, princípio federativo, de um lado, e regras de competência, de outro, como se fossem entidades separadas e pudessem ser 326 TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 56. 170 interpretadas em momentos distintos. O que há é um princípio federativo resultante da conexão com as regras de competência, e regras de competência devidamente interpretadas de acordo com princípio federativo.327 Ou seja, não se pode afirmar que as entidades federativas são livres, absolutas e plenamente autônomas, sem antes se consignar os termos e limites desta significação. Além disso, não se olvide de que a autonomia das entidades federativas encontra delimitação fixada de forma expressa e clara pelo próprio Texto Constitucional – originário, obviamente, porque as disposições fixadas via poder reformador são, nos termos do citado Art. 60, §4º, I, da Constituição 1988, inconstitucionais –, em casos onde o constituinte, objetivando proteger o princípio federativo, porém nas suas vertentes de igualdade jurídica entre as entidades federativas e vedação de conflito entre ambas, valeu-se de expedientes a ela limitativos. Exemplo disto é o caso ora em análise: a previsão do Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição Federal, da necessidade da edição de Lei Complementar para regular a forma como os Estados-membros e o Distrito Federal deliberarão a respeito da concessão de incentivos fiscais de ICMS. Ora, se estas entidades federativas são autônomas e, nestes termos, recebeu da própria Constituição a competência tributária para legislar sobre o ICMS, incluso neste comando também a disciplina da exoneração do imposto, então, porque a necessidade de lei complementar nacional estabelecer a forma como estas pessoas políticas exercerão um das parcelas de sua competência constitucional? A resposta é muito simples: promover e assegurar o princípio federativo, pelo equilíbrio entre a autonomia das entidades federativas e a igualdade jurídica entre elas, mantendo-se a uniformidade federativa. Esta necessidade imprescindível de equilíbrio entre autonomia e uniformidade prestigiada e protegida pelo legislador constituinte tem na Lei Complementar um de seus mecanismos principais, notadamente em virtude da evidente existência de “guerra fiscal” entre os Estados da federação. O princípio federativo é, portanto, fundamental neste tema, pois é o valor que justifica a eleição, pelo Constituinte, do mecanismo de edição da lei complementar nacional como meio necessário ao legítimo exercício da competência tributária pelas entidades federativas regionais. 327 ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário... 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 137. 171 Não que as pessoas políticas tenham sua competência tributária perdida ou diminuída. Elas são autônomas e, por isto, pode exercer livremente esta autonomia, desde que observadas as regras constitucionais. Porém, inolvidável que não pode causar desarmonia federativa, ou seja, Federação supõe harmonia e unidade entre o todo e as partes; e entre estas. Logo, a autonomia que as entidades federativas possuem encontra limitação da uniformidade da federação e também na igualdade jurídica entre elas. Da autonomia jamais poderá resultar em desarmonia ou preferência entre as unidades federativas. A autonomia não pode ser interpretada como um preceito individual e isolado dentro do sistema jurídico. Neste ponto, a velha máxima, truística hoje em dia, da interpretação sistemática é de extrema relevância. Ou seja, na perfeita metáfora de Geraldo Ataliba, “[...] A contemplação da árvore, não pode toldar a visão da floresta [...]”, isto é, não se pode interpretar este ou aquele dispositivo constitucional isoladamente, como se não estivesse inserido em um sistema, o qual exige uma interpretação harmônica de todas as suas normas, em consonância com seus princípios.328 O mesmo ocorre com a compreensão do sentido do princípio federativo e seus reflexos sobre a competência tributária. Como em uma Federação todas as unidades federativas são iguais, isto é, recebem o mesmo tratamento jurídico; e todas elas detêm competência legislativa para disciplinar os temas cometidos pela Constituição, então, do exercício desta faculdade constitucional não pode influir sobre a liberdade legislativa de outra, instaurando o conflito entre as entidades, sob pena de quebra da uniformidade federativa e ofensa à igualdade entre elas, soçobrando um dos alicerces do sistema: o princípio federativo. É bem verdade que aos Estados e ao Distrito Federal foi atribuída competência tributária sobre o ICMS, incluídos os poderes tanto para instituição do imposto como sua exoneração. Contudo, por ser imposto de conformação nacional, a conseqüência é que a disciplina deste tributo reflete em todo o território nacional, interessando individualmente a cada uma das demais entidades federativas. Neste sentido, revela-se evidente: a concessão de incentivos fiscais de ICMS, por parte das entidades tributantes detentoras desta competência, para que efetivamente observe o 328 ATALIBA, Geraldo. Convênios Interestaduais e imposto sobre circulação de mercadorias, in Revista dos Tribunais, n. 422, agosto de 1972. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 309. 172 princípio federativo deve resultar do equilíbrio entre a autonomia que cada qual possui e a uniformidade federativa. Isto acontece porque, concretamente, do exercício da competência tributária por parte de uma entidade federativa, outra pode ter sua autonomia tolhida, instaurando, assim, a desarmonia federativa. Daí a necessidade de uma especial manifestação de vontade das outras unidades da federação para que uma delas (ou algumas) possa efetivamente exercer sua autonomia legislativa. Ou seja, a disciplina constitucional do Art. 155, §2º, XII, “g”, objetiva garantir uniformidade à federação pela atribuição de igualdade jurídica entre as entidades federativas. Para tanto, o preceito confere à Lei Complementar – de caráter nacional – a atribuição de disciplinar a forma como os incentivos fiscais em matéria de ICMS serão autorizados através de deliberação conjunta dos entes federados interessados. Repita-se: por este meio, garante-se a unidade federativa, pelo igual tratamento jurídico dispensado a cada uma delas, sem que isto importe em vedação de sua autonomia legislativa. Em suma, proteção ao princípio federativo. Mas que fique claro: não é a lei complementar em si o mecanismo criado pelo sistema jurídico para garantir o princípio federativo em casos como os tratados neste tópico do trabalho. O instrumento de substancial relevância para que os Estados e o Distrito Federal possam conceder incentivos fiscais de ICMS é o convênio interestadual. Esta a forma encontrada pela Lei Complementar para fazer valer o comando do Art. 155, §2º, XII, “g”. É ele, portanto, quem desempenha, diretamente, a função de equilibrar a autonomia das entidades federativas com a uniformidade da federação; manter o equilíbrio entre todo e parte. Enfim, assegura a manutenção da Federação. A celebração dos convênios interestaduais autorizando que os Estados e o Distrito Federal concedam incentivos fiscais de ICMS atende, enfim, à necessidade de equilíbrio entre autonomia e uniformidade; entre os interesses do todo e da parte. Assegura, assim, que as pessoas políticas detentoras da mesma atribuição legislativa, a exerça livremente (autonomia), nos termos da Constituição, mas sem afrontá-la e ao interesse do Estado, promovendo a harmonia e a unidade da Federação. Enfim, os convênios interestaduais são necessários para garantir que todas as entidades federativas mantenham a igualdade jurídica entre si. 173 4.1.3 Os convênios interestaduais em matéria de ICMS e a competência tributária A Constituição Federal de 1988 delineou de modo rígido e pormenorizado as competências legislativas tributárias conferidas a cada uma das entidades federativas. Esta minuciosa atribuição, distribuída entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios permite afirmar, com tranqüilidade, que a completude do Sistema Tributário Brasileiro passa pelo altiplano constitucional. A definição da competência tributária, no entanto, não se forma apenas pela prescrição de normas positivas de atribuição, isto é, que fixam quais os conteúdos facultados às entidades federativas. Mas às normas constitucionais com esta característica somam-se aquelas com timbre negativo, isto é, as que limitam o alcance das primeiras. Significa, por outros termos, que competência é o resultado da ligação entre autorização e limitação, como já afirmara José Souto Maior Borges. Disse ele: [...] Sem esse consórcio, nenhuma competência. Só a autorização não pode explicá-la, porque não há norma positiva com âmbito de validade ilimitado. Só a proibição deixa igualmente incompleta a norma, porque não saberá o seu destinatário como conduzir-se diante dela. Só estar proibido é ser a rigor incompetente.329 Por isto, quando Roque Carrazza afirma que a competência tributária “é a aptidão para criar, in abstracto, tributos, descrevendo, legislativamente, suas hipóteses de incidência, seus sujeitos ativos, seus sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas”,330 há referência ao resultado da autorização e da limitação de que fala José Souto Maior Borges. Neste sentido, competência tributária é faculdade legislativa atribuída às pessoas políticas. Dentre outras características, a privatividade e a indelegabilidade são inerentes à competência tributária, como observa Roque Antonio Carrazza. Elas significam, sinteticamente, que as pessoas políticas que somente e tão-somente a pessoa política que tenha recebido a outorga constitucional pode legislar a respeito, além de lhe ser vedado qualquer transferência ou delegação a outras pessoas para tratar do tema.331 329 SOUTO MAIOR BORGES, José. Incentivos Fiscais e Financeiros, in Revista Trimestral de Direito Público, n. 08. São Paulo: Malheiros, 1986, p. 91. 330 CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 449. 331 Idem, ibidem, p. 463 e ss. 174 Os Estados e o Distrito Federal, por obra do Art. 155, II, da Constituição Federal, são as entidades federativas aptas a legislar acerca do imposto incidente sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicações, ainda que as operações e as prestações iniciem no exterior, conhecido como ICMS. Conjugando esta previsão constitucional com as idéias expostas inicialmente sobre a competência tributária, conclui-se que são estas entidades federativas quem detêm competência tributária para legislar sobre o ICMS. Esta outorga de ‘poder tributário’ deferida aos Estados e ao Distrito Federal, por parte da Constituição, pressupõe a existência de duas parcelas de poder: a de onerar, via instituição do tributo, e a de desonerar, via concessão de incentivos fiscais. Isto é, a competência tributária subentende a existência concomitante da competência exoneratória. Pensar diferente seria um sem sentido jurídico, na medida em que não seria possível imaginar que os Estados e o Distrito Federal detenham a atribuição para instituir o tributo, mas, de outro lado, não possui condições para diminuí-lo ou extingui-lo. Em matéria de ICMS, o constituinte se preocupou largamente com a disciplina jurídico-constitucional do imposto, tamanha sua importância para os Estados e o Distrito Federal e também para a República. Isto se revela pela extensão e minudência com que foi redigido o Art. 155, §2º, da Constituição de 1988. 4.1.4 Os convênios interestaduais em matéria de ICMS e o princípio da livre concorrência Ficou assentado anteriormente que a Constituição Federal de 1988 conferiu ao Estado Brasileiro atribuição interventiva econômica sob duas perspectivas: direta e indireta.332 Na ótica da intervenção indireta do Estado sobre o domínio econômico, o Estado, como agente normativo e regulador da atividade econômica, exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, a teor do Art. 174, caput, da Constituição de 1988. Quer dizer que cabe a ele instituir as políticas públicas necessárias à promoção do desenvolvimento socioeconômico nacional, conforme os objetivos fundamentais previstos no Art. 3º da Constituição de 1988. 332 Cf. item 2.3, supra. 175 A instauração das políticas de intervenção sobre o domínio econômico editadas pelo Estado ainda que visem a realizar as funções previstas no precitado dispositivo constitucional, devem fundar-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com o objetivo de assegurar a todos existência digna, conforme os ditames de justiça social, e observar, dentre outros, o princípio da livre da concorrência, consoante Art. 170, IV, da Constituição Federal. Sendo assim, em que sentido deve-se compreender o termo “Estado” como o agente propulsor do desenvolvimento socioeconômico? Os Estados-membros e o Distrito Federal estão autorizados, pela Constituição a intervir sobre o domínio econômico? Onde figuram, neste contexto, os convênios interestaduais de ICMS? Qual a correlação entre os convênios interestaduais de ICMS e o princípio da livre concorrência, um dos vetores da Ordem Econômica? Estes problemas serão respondidos adiante. De início, deve-se evidenciar que a intervenção sobre as atividades econômicas não é competência privativa cometida ao Estado Brasileiro unicamente, isto é, no sentido de que somente a ordem jurídica total detém competência para tanto. Quando a Constituição dita que ao Estado cabe exercer, na forma da lei, a atribuição de agente normativo e regulador, funcionando como incentivador, fiscalizador e planejador das atividades econômicas, quis ela significar que estas prerrogativas são de competência do Poder Público em geral, de todas as esferas políticas, mediantes todos os órgãos e mecanismos de que disponham. Em suma, o termo “Estado” foi utilizado em sentido lato. Em conseqüência, para melhor definir o alcance e o sentido do Art. 174 da Constituição, quanto ao delineamento da competência para as atribuições ali definidas, ele deve ser interpretado de forma conjunta com a previsão do Art. 24, I, da Constituição Federal, que prescreve ser competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal legislar sobre direito econômico. Ou seja, a disciplina da intervenção do Estado sobre o domínio econômico compete às entidades federativas em geral, de acordo com o seu âmbito de interesse: nacional, regional ou local. A partir destes enunciados prescritivos tem-se por evidente que os Estados-membros e o Distrito Federal, como entidades federativas competentes para tratar do direito econômico, deverão exercer as funções de incentivo, fiscalização e planejamento das atividades econômicas em seus respectivos territórios já que agentes normativos e reguladores, a fim de, em última análise, atuar com vistas à realização dos objetivos fundamentais 176 constitucionalmente previstos. Por isto o alerta: a promoção dos objetivos fundamentais não é um dever cometido exclusivamente ao ente político central, a União, porquanto esta é uma preocupação e mesmo um dever da República Federativa do Brasil, isto é, da ordem jurídica global e das ordens jurídicas parciais, vale dizer, do todo e das partes. Entretanto, considerando toda a gama de mecanismos jurídicos-políticos de que dispõem os Estados e o Distrito Federal para realizar o seu dever constitucional de fomentar os objetivos fundamentais da República, a figura dos incentivos fiscais e financeiro-fiscais assume extrema relevância. São eles, pois, que consistem nos instrumentos mais eficazes de que estas entidades federativas dispõem para incrementar as atividades econômicas no seu âmbito territorial e, assim, promover o desenvolvimento socioeconômico regional. Neste sentido, concorda Maria de Fátima Ribeiro: “Com as funções econômicas do Estado intervencionista, alguns tributos ganham cada vez mais conteúdos de extrafiscalidade, regulando o mercado conforme as políticas monetárias, industriais, comerciais e redistributivas”.333 Ou seja, pela utilização destes expedientes os Estados e o Distrito Federal atraem novas empresas, estimulam e fomentam as atividades econômicas já existentes, diversificam a matriz econômica pela orientação da alocação dos investimentos privados, tudo no intuito de promover seu desenvolvimento socioeconômico. Evidencia-se, portanto, que a concessão dos incentivos fiscais de ICMS é instrumento de grande importância e de máxima eficácia para tais fins. Ou seja, percebe-se que as normas jurídicas tributárias – como, ademais, todo o Direito – são meios de modificação do status quo; servem de mecanismo de que dispõem as entidades federativas estaduais e distrital para incentivar o desenvolvimento social e econômico em sua região. Neste contexto, tem-se o ponto de intersecção entre a Constituição Tributária e Constituição Econômica, o que permite a análise ora pretendida. Assim, os Estados e o Distrito Federal quando legislam para conceder incentivos fiscais relativos ao ICMS, mais do que exercício de competência tributária com vistas à realização de fim meramente arrecadatório, esta atuação tem finalidade extrafiscal, ou seja, pela redução do encargo tributário pretende-se a realização de um objetivo constitucional que naquele momento revela-se mais importante do que apenas arrecadar receitas públicas. 333 RIBEIRO, Maria de Fátima. Os 40 Anos da Zona Franca de Manaus e a Importância dos Incentivos Fiscais para o Desenvolvimento Econômico e Social da Região. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes, PEIXOTO, Marcelo Magalhães [coord.]. Tributação na Zona Franca de Manaus: (Comemoração aos 40 anos da ZFM). São Paulo: MP Editora, 2008, p. 334. 177 Contudo, inolvidável que estas considerações devem ser vistas contextualmente dentro sistema jurídico, pois a legitimidade jurídica deste expediente depende da observância da ordem jurídica como um todo sistemático e unitário, isto é, Disso decorre a necessidade de consideração coordenada dos diversos mandamentos, necessariamente conciliáveis, em suas exigências. Sabe o jurista que não deve obedecer a um só comando jurídico de cada vez, mas que inúmeros comandos devem ser atendidos concomitante e conjugadamente.334 A previsão do Art. 155, §2º, XII, “g” da atual Constituição revela, de plano, a sua finalidade: evitar a “guerra fiscal” e manter a unidade federativa do Estado Brasileiro. Esta é a percepção usual, o lugar comum. Entretanto, a pretensão desta investigação é dar um enfoque distinto do que geralmente ocorre. O objetivo é analisar a figura dos convênios interestaduais em matéria de concessão de incentivos fiscais de ICMS a partir do subsistema normativo que é a Ordem Econômica, especialmente quanto ao princípio da livre concorrência. Ou seja, mais do que uma visão meramente tributária, a análise sob a ótica do direito econômico é necessária e imprescindível, haja vista a lição já consignada de unidade do sistema jurídico. Os convênios interestaduais firmados nos termos da Constituição Federal são claras normas tributárias indutoras. Funcionam, assim, como medida de intervenção indireta do Estado sobre o domínio econômico, segundo lição de Luís Eduardo Schoueri. Como conseqüência, é de bom alvitre que eles sejam analisados sob os auspícios dos princípios de Direito Econômico em conjunto com os primados tributários a eles relacionados. Diz o autor: [...] a inclusão das normas tributárias indutoras como medida de intervenção indireta do Estado sobre o Domínio Econômico impõe a investigação de princípios de Direito Econômico, sejam eles limitadores da intervenção estatal, sejam eles seus propulsores. Tais princípios devem ser aplicados em conjunto com aqueles classicamente identificados com as normas tributárias, qual feixes que interceptam na norma tributária indutora, cujo regime jurídico apenas se pode definir a partir da somatória de seus efeitos.335 Estas idéias decorrem, em larga medida, da concepção plural e sistemática que se tem do ordenamento jurídico, onde há uma especial e íntima relação entre a Constituição 334 ATALIBA, Geraldo. Convênios Interestaduais e imposto sobre circulação de mercadorias, in Revista dos Tribunais, n. 422, agosto de 1972. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 309-310. 335 SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 37. 178 Econômica e o Sistema Constitucional Tributário336, os quais se influenciam reciprocamente. Neste aspecto que se evidencia o timbre interventor sobre o domínio econômico assumido pelos convênios interestaduais celebrados nos termos da Lei Complementar n. 24/75 e da previsão do Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição Federal. Como mecanismo de manifestação conjunta dos Estados e do Distrito Federal em matéria de concessão de incentivos fiscais de ICMS, seu objetivo típico é evitar a guerra fiscal entre as unidades federativas. Porém, entrevê-se neste expediente o viés de regulação jurídica do mercado, principalmente com vistas à proteção da livre concorrência. Tércio Sampaio Ferraz Jr. teve a percepção – correta, diga-se de passagem – de considerar o mecanismo criado pelo Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição Federal um instrumento que para além de impedir a “guerra fiscal”, tem conseqüências claras e diretas para a concorrência. Para ele, a concessão de incentivos fiscais distorcidos, deferido unilateralmente pelos Estados ou pelo Distrito Federal, em regra [...] engendra uma distorção na concorrência que, presumidamente, o ICMS evita. Ou seja, os concorrentes de outros Estados-membros estariam obrigados, em face dos incentivos desnaturados, a enfrentar uma situação de competitividade desequilibrada pela quebra de uma estrutura comum. As piores vítimas de incentivos distorcidos por medidas que reduzem ou eliminam o ônus dos impostos são os agentes econômicos eficientes.337 Luís Eduardo Schoueri, ao comentar o tema, traz informação relevante a corroborar a idéia. Segundo ele, há uma pesquisa feita por Sérgio Prado e Carlos Eduardo G. Cavalcanti, com enfoque da perspectiva econômica ontológica, onde se conclui que: [...] nas condições hoje vigentes em termos de arranjo federativo, a guerra fiscal como mecanismo de orientação da alocação dos grandes blocos de investimento é um processo perverso, controlado integralmente pelas empresas privadas e que leva à maximização do custo fiscal associado à implementação de cada projeto.338 Deve-se lembrar que os princípios norteadores da Ordem Econômica, previstos no Art. 170, da Constituição, orientam, em matéria econômica, tanto a atuação do particular 336 SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 38. 337 FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Guerra Fiscal, Fomento e Incentivo na Constituição Federal. In: SCHOUERI, Luís Eduardo e ZILVETTI, Fernando Aurélio [coord.]. Direito Tributário: Estudos em Homenagem a Brandão Machado.São Paulo: Dialética, 1998, p. 281. 338 Apud SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 95. 179 como do próprio Estado. Assim, por estes magnos princípios, o Estado, quando explorador das atividades econômicas, e o particular submetem-se a sua disciplina. Estão, pois, condicionando a intervenção do Estado no domínio econômico – dita intervenção direta do Estado nas atividades econômicas. O outro viés de atuação dos princípios da Ordem Econômica recai sobre o direcionamento da atuação do Estado como agente normativo e regulador. Esta atribuição lhe foi cometida pela Constituição justamente para interferir sobre o mercado e o livre processo econômico-produtivo quando necessário a corrigir suas distorções.339 Em regra, esta intervenção se dá via edição de normas jurídicas, as quais condicionam o comportamento dos agentes do mercado. É a intervenção estatal indireta sobre a economia. Logo, é neste último segmento que atuam as normas jurídicas tributárias com fins extrafiscais, as quais direcionam-se a regular o mercado econômico. Nesta senda, o Estado deve observar as prescrições advindas dos princípios da Ordem Econômica, sendo inescapável a este regramento, portanto, a concessão dos incentivos fiscais de ICMS por parte das entidades federativas estaduais, pois, via desoneração tributária, eles têm a precípua finalidade de estimular e atrair investimentos econômicos, ou seja, seu propósito será sempre fomentar o surgimento de relações jurídicas de cunho econômico.340 Deste modo, implica em afirmar que os Estados-membros e o Distrito Federal, ao conceder incentivos fiscais de ICMS via regramento jurídico-tributário, não pode resultar em afronta àqueles magnos princípios jurídico-econômicos. Ao contrário, deve-lhes subserviência. Nesta perspectiva, os princípios constitucionais econômicos conferem limitação de conteúdo ao exercício da competência exoneratória – cuja limitação formal é imposta pelo Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição de 1988.341 Por conseguinte, conclui-se que a inobservância, por parte dos Estados e do Distrito Federal, quanto à prévia e necessária deliberação conjunta e conseqüente celebração de convênios interestaduais que autorizem a concessão de benefícios fiscais, além de ser formalmente inconstitucional, na medida em que ofende ao preceito contido no Art. 155, §2º, 339 Sobre a correção das falhas dos mecanismos de mercado, Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 72-78. 340 Cf. definição proposta por CATÃO, Marcos André Vinhas. Regime Jurídico dos Incentivos Fiscais. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 13. 341 Sobre o caráter meramente formal da disciplina contida no Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição Federal de 1988, Cf. CHIESA, Clélio. ICMS – Sistema Constitucional Tributário: algumas inconstitucionalidades da LC 87/96. São Paulo: LTr, 1997, p. 168. 180 XII, “g”, da Constituição, ainda implica em inconstitucionalidade material, por ofensa direta ao princípio da livre concorrência, além, obviamente, da clara afronta ao Pacto Federativo. Livre concorrência, como visto, significa livre competição entre as empresas; liberdade de forças do mercado na disputa pela clientela.342 Sendo assim, cada agente econômico alcança sua parcela do mercado por conta de sua eficiência, seus méritos próprios. A concessão dos incentivos fiscais de ICMS cria uma facilidade aos agentes econômicos, pois suprime o imposto, influenciando diretamente na formação do preço. Ocorre que, este expediente, veiculado de forma unilateral por uma entidade federativa, isto é, sem a anuência dos demais entes políticos, ofende o princípio da livre concorrência na medida em que interfere indevidamente nos mecanismos do mercado, criando uma distorção no custo das operações de circulação de mercadorias ou na prestação dos serviços, pela supressão indevida de impostos, favorecendo, assim, os agentes econômicos menos eficazes pela quebra de uma estrutura que lhes é comum. Vale dizer, confere distinção jurídica entre aqueles que estão na mesma condição jurídico-formal, resultando no vício de inconstitucionalidade material. Neste sentido, deve-se lembrar que a livre concorrência é o mecanismo constitucional de proteção do mercado; e este, por sua vez, recebeu especial atenção da Constituição de 1988, seja porque a Lei Maior adotou expressamente, da perspectiva econômica, o modelo de economia de mercado, isto é, de livre iniciativa, consoante Art. 1º, IV; seja porque, sabendo de sua importância e cônscio de que o bem-estar geral da população dele depende, na medida em que viabiliza o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o constituinte se preocupou em conferir-lhe o status de patrimônio nacional, a teor do Art. 219, da Constituição de 1988. Assim, como princípio fundamental da Ordem Econômica, a livre concorrência atua em duas frentes: ora serve de padrão a ser estimulado, tendo em vista a opção constitucional pela economia de mercado; ora limita a atuação do Estado e dos particulares, haja vista garantir a liberdade que encerra. É neste último aspecto que a livre concorrência serve de limitação à concessão de incentivos fiscais de ICMS pelas entidades federativas sem a anuência das demais. Ou seja, os 342 Cf. PETTER, Lafayette Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica – O significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 221 e ss. 181 Estados e o Distrito Federal, mediante o mecanismo dos incentivos fiscais concedidos sem a celebração dos convênios interestaduais, cria favorecimento desmedido às empresas que atuam em seu território, o que gera distorção no mercado e cria um desequilíbrio na concorrência. E isto, como se vê, é inconstitucional por ofensa à livre concorrência. Veja-se, por fim, que aos Estados e ao Distrito Federal cabe exercer as funções de incentivo, fiscalização e planejamento das atividades econômicas, como acima externado. Entretanto, não se pode esquecer que no contexto do sistema jurídico-normativo, ainda que objetive incentivar o incremento das atividades econômicas e dos investimentos em suas regiões, isto deve se dar conforme as regras do ordenamento. Enfim, a pretexto de cumprir um comando constitucional, de forma alguma deve descumprir outros. É justamente a observância das regras constitucionais que confere unidade ao sistema jurídico e, no caso em tela, fundamenta-lhe a validade. 4.2 O SIMPLES NACIONAL NA PERSPECTIVA DA ORDEM ECONÔMICA E A GARANTIA DA LIVRE CONCORRÊNCIA Como se sabe, recentemente o Congresso Nacional editou a Lei Complementar n. 123, de 14 de dezembro de 2006, cuja ementa oficial enuncia a instituição do “Estatuto Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte”, além de dar outras providências. Referida legislação ficou popularmente conhecida como a lei do “Simples Nacional” ou “Super Simples”, em virtude do especial e favorecido tratamento tributário dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte. Entretanto, uma análise mais detida sobre o texto da lei complementar em questão permite a verificação de que seu conteúdo é muito maior do que a mera instituição de um regime tributário diferenciado e favorecido concedido às empresas que se caracterizem como de micro ou pequeno porte. Em verdade, o tratamento jurídico favorecido e diferenciado conferido pela Lei Complementar n. 123/2006 alcança, além da tributação, questões de ordem civil, comercial, trabalhista, previdenciária, processual e administrativa. Pelo tratamento que foi dispensado às empresas de menor porte econômico de modo intenso pelo Legislador Constituinte como pelo infraconstitucional; pela legislação atual como pela anterior; tanto em nível federal como no âmbito dos Estados e Municípios 182 brasileiros, fica evidente a pretensão do Estado Brasileiro: fomentar e proteger as microempresas e as empresas de pequeno de porte. Obviamente que tudo isto não é algo destituído de um fim constitucional que permita, de modo puro e simples, o tratamento privilegiado destas empresas em detrimento das demais. Ou seja, o tratamento diferenciado recebido pelas microempresas e empresas de pequeno porte não é o fim em si, mas, diversamente, constitui-se em meio para a realização e o alcance de objetivos maiores, fundamentais para o Estado Brasileiro. Por isto, é possível dizer que existem fins imediatos e mediatos a justificar o tratamento diferenciado e favorecido dispensado às microempresas e às empresas de pequeno porte. Imediatamente, pela intervenção indireta do Estado sobre o domínio econômico no exercício da função de incentivo, via extrafiscalidade tributária, o fim é o favorecimento e o fortalecimento das micro e pequenas empresas, porquanto pilares, princípios primordiais da Ordem Econômica, consoante Art. 170, IX, da Constituição de 1988. Indiretamente, por outro lado, pelo incentivo às empresas de menor poder econômico que se realiza os objetivos fundamentais e também os próprios fundamentos da República. A idéia que permeia a edição da Lei Complementar n. 123/2006 é muito simples: via tratamento jurídico diferenciado concedido às microempresas e empresas de pequeno porte, com a concessão benefícios de toda ordem e a simplificação da burocracia visando o lícito desenvolvimento de atividades econômicas deste porte, consegue-se a formalização de negócios econômicos de pequena monta que, em virtude dos excessos burocráticos da legislação brasileira não se desenvolveria, ou se desenvolveria informalmente, e, ao mesmo tempo, labora de modo direto no fomento do desenvolvimento nacional (Art. 3º, II, da Constituição Federal), na erradicação da pobreza e redução das desigualdades (Art. 3º, III, da Constituição Federal); e promove a dignidade da pessoa humana pela valorização do seu trabalho (Art. 1º, incisos III e IV; e Art. 170, caput¸ da Constituição de 1988), porque gera um maior número de empregos formais. Em síntese, o surgimento da Lei Complementar n. 123/2006 é conseqüência da implementação de políticas públicas no intuito de promover o desenvolvimento socioeconômico nacional. Para tanto, incentivam-se as microempresas e as empresas de pequeno porte, que consistem em uma das forças motrizes do mercado econômico, cuja importância fora detectada pelo Constituinte de 1988. 183 A intenção trazida por detrás das normas jurídicas veiculadas pela lei complementar em tela é inquestionável e legítima, do ponto de vista jurídico e mesmo econômico. Entrementes, em razão do novel arcabouço jurídico trazido a lume, ela já surge cercada de muitas polêmicas. Algumas delas, obviamente, advêm desde outros tempos, notadamente por conta da legislação anterior – Lei n. 9.317/96; outras, no entanto, ainda precisam ser debatidas e aprofundadas frente às inovações ora positivadas. São discussões de cunho jurídico que se devem a diversos fatores: desde problemas relativos à competência legislativa, às formalidades legislativo-constitucionais, mas, principalmente, de definição de sentido, de conteúdo, de alcance e de aplicabilidade, tendo em vista a amplitude considerável do novo regramento. Neste sentido, Leonardo Loubet destacou com perspicácia a necessidade de prudência do intérprete do direito no enfrentamento das questões que surgirem com base na novel legislação, razão pela qual, diz ele, “[...] é de importância sobranceira contextualizar a nova lei ao sistema posto, indo à raiz dos fundamentos do ordenamento jurídico, pois, sendo lei, por óbvio, que esse veículo normativo deve se harmonizar à Carta Constitucional”.343 É justamente em razão deste alerta que se desenvolve este estudo nos termos como elaborado. Considerando as modificações promovidas pela Lei Complementar 123/2006 e a diversidade das normas jurídicas com os mais diversos conteúdos por ela veiculada, abordarse-á apenas alguns dos pontos normativamente tratados, os quais são arbitrariamente eleitos com vistas ao tema desenvolvido nesta investigação científica. Isto só é possível em virtude da evidente natureza interventiva assumida pela Lei Complementar n. 123/2006, cuja característica é claramente extrafiscal, indutora de comportamentos por parte dos agentes econômicos sujeitos a sua disciplina jurídica. 4.2.1 O Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte e o Simples Nacional: há diferença? Para responder ao problema que nomeia esta seção, obrigatoriamente deve-se tomar por ponto de partida uma outra pergunta, relacionada à Lei n. 9.317/96 e à Lei n. 9.841/99: qual a diferença entre a Lei Complementar n. 123/2006 e as citadas leis ordinárias federais? 343 LOUBET, Leonardo Furtado. Comentários aos artigos 1º e 2º da LC 123/2006. In: HENARES NETO, Halley (coord.). Comentários à Lei do Supersimples – LC 123/2006. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 21. 184 Em princípio, seria suficiente dizer que a lei complementar traz em seu bojo a disciplina jurídica que antes estava espalhada, dentre outras, nas Leis n. 9.317/96 e 9.841/99. Ocorre, entretanto, que ela criou um novo regime jurídico para as micro e pequenas empresas, fixando um cenário de novidades jurídicas com reflexos sobre diversos “ramos” do direito, dentre outros: o trabalhista, o comercial, o administrativo e o tributário. Enfim, criou o chamado “Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte”, que nada mais é do que o universo jurídico criado pelos enunciados prescritivos que fixam o tratamento favorecido e diferenciado a estas empresas nas mais diferentes áreas do Direito. Assim, verifica-se a diferença existente entre o “Estatuto Nacional das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte” e o “Simples Nacional”: este é apenas parte daquele. O primeiro é a disciplina completa e integral das empresas de menor potencial econômico, que abarca todas as normas jurídicas veiculadas pela lei, refletindo nos mais diversos “ramos” do direito. O segundo é a parte que fixa o “Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte”, isto é, disciplina a tributação desta categoria empresarial. Portanto, há entre eles uma relação entre todo e parte. O tratamento jurídico favorecido e diferenciado decorre justamente da instauração da Lei Complementar 123/2006 e da entrada em vigor do “Estatuto Nacional das Micro e Pequenas Empresas”, em razão da simplificação de diversas obrigações das empresas de micro e pequeno porte econômico. Dentre as obrigações simplificadas, são as relações jurídicas tributárias que receberam maior atenção do legislador, tendo em vista o grande número de dispositivos que tratam do tema, os quais determinam os limites de aplicação do “Simples Nacional”. A verificação da distinção entre o Estatuto Nacional das Microempresas e das Empresas de Pequeno Porte e o Simples Nacional permite afirmar a existência de fundamentos jurídico-constitucionais diversos para cada um deles. Em verdade, os preceitos contidos no Art. 170, IX e no Art. 179, ambos da Constituição de 1988, conferem amplo fundamento de validade à lei complementar em questão, possibilitando desde o estabelecimento do regime tributário simplificado até a concessão de certos benefícios no âmbito das licitações públicas. Enfim, são previsões econômico-normativas de amplo alcance. Por outro lado, dentro deste contexto, o Simples Nacional, isto é, todo o regime jurídico-tributário instalado pela Lei Complementar n. 123/2006 a partir do Art. 12, não retira 185 seu fundamento de validade diretamente das disposições fixadas constitucionalmente no capítulo da Ordem Econômica, mas, sim, em essência, dos arts. 146, III, “d” e 37, XXII, da Constituição, os quais foram acrescentados pela Emenda Constitucional n. 42/2003. Isto ocorre porque a disciplina tributária instaurada pelo Simples Nacional é muito mais do que mera simplificação das obrigações tributárias; traçou-se um regime unificado de arrecadação de tributos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Quer dizer: em razão do âmbito nacional desta idéia, os preceitos constitucionais do Art. 170, IX e do Art. 179 não se revelam suficientes a fundamentá-lo, daí porque somente possível este modelo de tratamento justributário diferenciado a partir da inserção daqueles dispositivos positivados pela Emenda Constitucional n. 42/2003. Esta percepção não escapou à análise que Leonardo Loubet fez sobre os primeiros dois artigos da Lei Complementar n. 123/2006. Segundo ele: Pelo que se vê, a previsão constitucional anterior era, apenas, para que se desse um tratamento diferenciado às microempresas e às empresas de pequeno porte. Não havia previsão de unificação de tributos ou atuação integrada entre os Fiscos Federal, Estaduais e Municipais. Assim, cada entidade federativa, dentro do seu plexo de competências, era responsável por dispensar um regramento jurídico benéfico às pequenas empresas, especialmente em relação aos seus tributos. Contudo, com a EC 42/03 descortinou-se um novo horizonte, na medida em que o constituinte reformador permitiu uma atuação conjugada entre as administrações tributárias dos entes federados, admitindo, inclusive, um regime unificado de arrecadação e recolhimento das suas respectivas exações, o que cria, inegavelmente, um novo paradigma a ser enfrentado.344 Enfim, sem os dispositivos constitucionais inseridos pela Emenda Constitucional 42/2003, e apenas com base nas disposições originais dos arts. 170, IX e 179 seria inconstitucional, por exemplo, a unificação de apuração e arrecadação tributária, por afronta às competências das entidades federativas.345 Como a Lei Complementar estabeleceu uma atuação conjunta entre elas, criou-se, parafraseando o precitado autor, inegavelmente um novo paradigma a ser enfrentado. 344 LOUBET, Leonardo Furtado. Comentários aos artigos 1º e 2º da LC 123/2006. In: HENARES NETO, Halley (coord.). Comentários à Lei do Supersimples – LC 123/2006. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 22. 345 Entretanto, a constitucionalidade do Art. 146, III, “d”, acrescido pela Emenda Constitucional 42/2003 é, em certa medida, duvidosa. Apesar do necessário e constitucionalmente determinado favorecimento dispensado às micro e pequenas empresas, a fixação do sistema “Simples Nacional” não ofende a competência tributária das entidades políticas, o que importaria em afronta ao princípio federativo, na medida que se tem um outro padrão de arrecadação de tributos, baseado inclusive em fatos jurídicos distintos? Esta pergunta precisa ser analisada e respondida, porém, não aqui, por conta do enfoque desta investigação. 186 Forte nestas considerações, conclui-se que a Lei Complementar n. 123/2006 pode ser dividida entre a disciplina tributária (mais extensa) e as normas de conteúdo não-tributário, isto é, cível, comercial, trabalhista, administrativo e processual. Deste modo, considerando a existência de distintos dispositivos constitucionais suficientes a validar juridicamente o conteúdo da lei complementar em questão, então é prudente expor algumas considerações sobre cada um deles em separado. 4.2.2 Os fundamentos constitucionais da Lei Complementar n. 123/2006 Para melhor visualizar os fundamentos constitucionais que sustentam a validade da Lei Complementar n. 123/2006 e, por conseqüência, do Estatuto Nacional das Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, entendeu-se por bem separá-los a fim de fazer as considerações individualizadas sobre eles. Demais disto, há uma questão temporal e outra de conteúdo que os envolve. Temporal, porque há dispositivos – como é o caso dos arts. 170, IX e 179 – que vieram no bojo do texto original da Constituição de 1988, ao passo que aqueles preceitos que fundamentam o regime tributário unificado – os arts. 37, XXII e 146, III, “d” – foram inseridos através do constituinte reformador, via Emenda Constitucional n. 42/2003. De conteúdo, porque, em verdade, as disposições originais são amplas e abertas, de cunho principiológico, servindo de vetor para a atuação geral do legislador infraconstitucional; já as previsões dos dispositivos acrescentados pela emenda constitucional direcionam-se especificamente ao ramo da tributação, fixando regras com conteúdo tributário. 4.2.2.1 As previsões do Texto Constitucional Original: o Art. 170, IX e o Art. 179 De antemão, os preceitos constitucionais ora em exame estão positivados no Texto Constitucional exatamente no mesmo ponto: Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira; Capítulo I – Princípios Gerais da Atividade Econômica. Assim, sua transcrição é relevante: Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País. 187 Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei. A previsão constitucional é evidente: a concessão de tratamento jurídico diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte constitui-se em princípio vetor da Ordem Econômica. Junto com os demais princípios que orientam o domínio econômico, o tratamento favorecido dispensado às empresas de menor porte trabalha em favor da garantia da livre iniciativa e da valorização do trabalho humano, fins da Ordem Econômica e fundamentos da República Federativa do Brasil. Ou seja, como todos os demais princípios que regem a Ordem Econômica, este não é um fim em si, mas, como já aventado, é meio para a consecução de outros fins. Está, portanto, em consonância com o telos constitucional. Portanto, a correlação entre este princípio da ordem econômica e os fundamentos e objetivos fundamentais da República é evidente. De igual maneira, ele também serve à máxima realização da Ordem Econômica, de modo que não pode ser interpretado e compreendido isoladamente. Por detrás desta outorga constitucional privilegiando-o, há, minimamente, dois escopos muito evidentes a serem assegurados: garantia de igualdade e de livre iniciativa, via proteção da concorrência, enquanto objetivos da Ordem Jurídico-Econômica. Neste sentido, destaca André Elali: O que visa o princípio em tela é à própria manutenção do equilíbrio concorrencial, como objetivo da ordem econômica. Num mercado em que grandes e pequenos concorrentes se sujeitam à mesma regra, a concorrência nunca será aquela proposta pela Constituição, isto é, os pequenos serão sempre prejudicados. E isso é contrário à própria noção de livre concorrência, isonomia, pois o tratamento igual se dá entre iguais.346 Luís Eduardo Schoueri, a sua vez, anota que mais do que a concretização da livre concorrência e garantia de livre iniciativa, este princípio ventila a idéia de igualdade vertical, na medida em que resulta em um tratamento diferenciado para aqueles que se encontram em situação distinta. Entretanto, ele faz um alerta, na conclusão da idéia: “Por óbvio que o favorecimento encontra limite na própria diferenciação, não podendo ir além do necessário 346 ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica – um exame da tributação como instrumento de regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora. 2007, p. 92. 188 para o delicado equilíbrio entre os agentes do mercado, sob pena de não se atender o desiderato constitucional da livre concorrência”.347 Para Lafayette Josué Petter, por outro lado, este é um “[...] princípio constitucional impositivo, de caráter conformador, não se configurando, entretanto, uma diretriz ou normaobjetivo. Ele fundamenta a reivindicação de políticas públicas pelas empresas de pequeno porte”.348 A afirmação se concretiza na Lei Complementar n. 123/2006 ora em análise. Antes de prosseguir, um breve parêntese para expor duas observações pertinentes: (i) o Art. 170, IX, da Constituição alude apenas ao tratamento favorecido conferido às empresas de pequeno porte, sem se referir às microempresas e nem detalhar como – via normas jurídicas - isso se materializaria; (ii) o Art. 179, da Constituição, por sua vez, é mais detalhista, na medida em que pormenoriza os entes federativos competentes para legislar sobre o tratamento jurídico diferenciado, alude às micro e pequenas empresas, delimita a função incentivadora a ser exercida pelo Estado e fixa que a diferenciação jurídica se efetivará via simplificação das obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias. No entanto, posto que a disposição do Art. 170, IX seja mais restrita do que a do Art. 179, em verdade, a interpretação entre os dispositivos deve ser conjugada e sistemática, complementando uma à outra, até porque integrantes e indissociáveis, no fim das contas, da mesma Constituição, vista em sua completude. Além disto, ambos os dispositivos estão contidos no mesmo capítulo constitucional – dos Princípios Gerais da Atividade Econômica e, portanto, detém o mesmo objetivo. Esta, portanto, a ratio legis dos preceptivos constitucionais analisados, que, enfim, devem ser entendidos como “tratamento favorecido e diferenciado às microempresas e empresas de pequeno porte” que se realizará por meio da simplificação das obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias com o objetivo de incentivá-las. Compreensão distinta seria contrária ao espírito da Constituição. Aliás, a percepção da busca da ratio legis é sempre relevante, como, ademais, ensina Miguel Reale, com a argúcia de sempre: 347 SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 101. 348 PETTER, Lafayette Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica – O significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 263. 189 O princípio diretor do jurista, segundo os romanos, é a ratio juris, cabendolhe indagar de cada circunstância a sua ratio, a fim de estabelecer sua medida, sua regula – a ratio juris determina a regula juris. Em sentido inverso, quando a regula juris já é dada, a interpretação não pode se fixar apenas nos elementos literais ou gramaticais, porque deverá procurar atingir o espírito, a ratio legis. Foram estes elementos que habilitaram o povo romano a constituir as categorias da Ciência Jurídica.349 Em conclusão, estas disposições constitucionais econômicas justificam o tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte. Este discrímen determinado constitucionalmente decorre da condição fática desigual na qual se encontram estas empresas no seio do domínio econômico, por conta do seu pequeno porte econômico, o que, per se, é fortemente restritivo da garantia de liberdade de iniciativa e de concorrência, isto é, de acesso e de manutenção no mercado, que a Constituição tanto protege. Logo, é por esta situação fática diferenciada que se autoriza a discriminação em favor das micro e pequenas empresas, via tratamento jurídico favorecido e menos burocrático. 4.2.2.2 A Emenda Constitucional n. 42 de 2003 e a inserção do Art. 37, XXII e do Art. 146, III, “d”, à Constituição de 1988 Originariamente, a Constituição Federal referia-se ao tratamento jurídico favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte através dos artigos comentados no item anterior. Entretanto, com a promulgação da Emenda Constitucional n. 42, de 19 de dezembro de 2003, outros dispositivos foram inseridos ao Texto Constitucional: o Art. 37, XXII e o Art. 146, III, “d” e parágrafo único. Ambas disposições com reflexos diretos sobre o Sistema Tributário Brasileiro. Em síntese, o Art. 37, inciso XXII positivou em sede constitucional a dignidade das administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem como previu a possibilidade de atuação integrada e o compartilhamento de cadastros e informações fiscais entre as unidades da Federação, como se vê do preceito, in verbis: Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: [...] XXII – as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades 349 REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 508. 190 essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio. Em verdade, este dispositivo não trouxe nenhuma novidade ao sistema jurídicotributário brasileiro, na medida em que a troca de informações fiscais e a assistência mútua entre as administrações tributárias das entidades federativas já possuíam previsão normativa desde a edição do Código Tributário Nacional, em 1966, conforme Art. 199, o qual prescreve: “A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestarse-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio”. Tem importância para o tema o acréscimo da alínea “d” e do parágrafo único, ao inciso III do Art. 146 da Constituição de 1988. Referido dispositivo prevê que: Art. 146. Cabe à lei complementar: [...] III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: [...] d) definição de tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art. 195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239. Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso III, d, também poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado que: I – será opcional para o contribuinte; II – poderão ser estabelecidas condições de enquadramento diferenciadas por Estado; III – o recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição da parcela de recursos pertencentes aos respectivos entes federados será imediata, vedada qualquer retenção ou condicionamento; IV – a arrecadação, a fiscalização e a cobrança poderão ser compartilhadas pelos entes federados, adotado cadastro nacional único de contribuintes. Colhe-se do dispositivo algumas reflexões. Primeiro, se antes da Emenda Constitucional n. 42/2003 o tratamento favorecido e diferenciado dispensado às microempresas e às empresas de pequeno porte haviam recebido a insígnia de princípio constitucional da Ordem Econômica, nos termos dos artigos anteriormente analisados, com o acréscimo do Art. 146, III, “d”, elas passaram diretamente ao centro das atenções do Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. Pelo comando do Art. 179 da Constituição de 1988, cada unidade federativa deveria incentivar as empresas de menor porte econômico mediante a simplificação das obrigações de 191 natureza administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, concedendo-lhes tratamento jurídico favorecido e diferenciado. Com a inserção do Art. 146, III, “d” e do parágrafo único, fixou-se dentro do Sistema Constitucional Tributário Brasileiro que a definição do sistema simplificado de apuração e recolhimento de tributos dos três âmbitos de poder político seria regulado via lei complementar, pela edição de normas gerais em matéria tributária. Em outras palavras, concedeu-se ao Estado Brasileiro, pela edição de lei nacional, a disciplina do tema na seara tributária. Em segundo lugar, o parágrafo único do Art. 146 também permitiu a instituição de regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios no cerne da lei complementar definidora do tratamento jurídicotributário favorecido e diferenciado dispensado às micro e pequenas empresas, desde que observadas algumas condições previstas nos incisos I a IV do citado parágrafo único. Pode-se dizer que o citado dispositivo assentou um regime nacional de arrecadação de tributos, haja vista a atribuição cometida ao Estado Federal Brasileiro. As condições impostas pelo constituinte à instituição do regime tributário unificado, veiculadas nos incisos I a IV do parágrafo único do Art. 146 da Constituição de 1988, são , em súmula: (i) a faculdade de o contribuinte optar pela novel sistemática de arrecadação; (ii) a possibilidade de cada Estado da federação fixar condições diferenciadas de enquadramento ao regime único; (iii) unificação, centralização e distribuição dos recursos arrecadados pertencentes aos respectivos entes federados sem qualquer tipo de restrição ou condição; e (iv) a possibilidade de adoção de cadastro nacional único de contribuintes e o compartilhamento da arrecadação, da fiscalização e da cobrança do tributo pelos entes federados. Dentre as condições fixadas nos dispositivos ora referidos, chama atenção a questão do compartilhamento, entre as entidades federativas, da arrecadação, fiscalização e cobrança dos tributos, pois podem recair em novos conflitos federativos, alterando mesmo a organicidade do sistema. Neste ponto, lembra Leonardo Loubet que: [...] a competência administrativa de arrecadação e fiscalização de tributos da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, muito embora delegável, por força da Lei Complementar nº 123/2006 acabou por ser fundida, tornando-se uma só, por intermédio da propalada unificação, ao menos em relação à sistemática do Simples Nacional. 192 Esse aspecto é relevantíssimo, pois, agora, poderá ocorrer não só conflitos de competência legislativa, como também conflitos de competência administrativa. [...].350 Portanto, estas são as disposições constitucionais que fundamentam a instalação do novel Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – Simples Nacional. 4.2.3 As inovações jurídicas promovidas pela Lei Complementar n. 123 de 2006: alguns pontos relevantes A entrada em vigor da Lei Complementar n. 123, de 14 de dezembro de 2006, estabeleceu um marco jurídico importante no cenário tributário e econômico brasileiro. Do ponto de vista tributário, implementou o regime único de arrecadação de tributos federais, estaduais e municipais, simplificando, assim, as obrigações tributárias principal e acessórias cometidas às microempresas e empresas de pequeno porte. Na seara econômico-normativa, ela positivou concretamente o princípio constitucional que determina a concessão de tratamento favorecido às empresas de menor potencial econômico, mediante a simplificação das obrigações tributárias, administrativas, previdenciárias e creditícias. Se, por um lado, a reforma realizada pela Lei Complementar n. 123/2006 trouxe benefícios concretos ao setor empresarial de micro e pequeno porte, de outra mão, esta sistemática tocou em diversos conceitos já consolidados, notadamente no âmbito tributário, o que impõe uma análise comedida e detalhada. Entretanto, não se pode olvidar que, conquanto rígido o sistema tributário brasileiro, porque exaustivamente disciplinado pela Constituição de 1988, também é certo que se deve coadunar as interpretações sobre seus dispositivos com as evoluções e necessidades sociais, sem descuidar, por óbvio, da observância das regras básicas do sistema jurídico, em especial da hierarquia constitucional. Em razão disto, os estudos devem ser realizados com atenção redobrada, considerando a rigidez e exaustividade com que o sistema jurídico-tributário brasileiro restou plasmado pela Constituição de 1988. 350 LOUBET, Leonardo Furtado. Comentários aos artigos 1º e 2º da LC 123/2006. In: HENARES NETO, Halley (coord.). Comentários à Lei do Supersimples – LC 123/2006. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 24. 193 Por óbvio que a Lei Complementar n. 123/2006 não cuidou apenas da questão tributária, senão também de regras de natureza civil, administrativa, processual, trabalhista, comercial e outras mais. Estas inovações todas objetivam, enfim, facilitar e promover o desenvolvimento econômico das microempresas e empresas de pequeno porte no Brasil. É pelo tratamento jurídico diferenciado e favorecido a elas dispensado que se as incentiva e protege. Isto reflete a dignidade constitucional que lhes foi deferida, e consagra a importância que estas categorias empresariais tem no seio econômico e social. Ou seja, desvelam sua relevância no cenário socioeconômico nacional. Demais disto, é a Lei Complementar n. 123/2006 lei de caráter nacional, isto é, legislação editada pelo Estado Federal, cuja normatização transcende as circunscrições políticas internas, obrigando a todos quantos estejam no território nacional.351 Por tudo isto, as inovações – ao menos as que se tem por relevantes – trazidas pela lei complementar serão discutidas adiante, para, ao depois, tentar situá-las no contexto da análise concorrencial, como resultado de uma análise a partir do regime jurídico resultante do entrelaçamento entre normas jurídicas tributárias e as econômicas; ou seja, a partir daquele feixe de regras jurídicas posicionadas na intersecção do Sistema Constitucional Tributário com a Ordem Econômica. 4.2.3.1 O alcance do Art. 1º da Lei Complementar n. 123 de 2006 Registradas as considerações propedêuticas, cumpre discorrer sobre alguns pontos da Lei Complementar n. 123/2006. De começo, deveras relevante conhecer o sentido e alcance do seu Art. 1º, que consiste, basicamente, no preceito definidor de toda a disciplina do Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, revelando de antemão o que se encontrará ao longo do seu texto. Prescreve o dispositivo que: Art. 1º Esta Lei Complementar estabelece normas gerais relativas ao tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, especialmente no que se refere: I – à apuração e recolhimento dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, mediante regime único de arrecadação, inclusive obrigações acessórias; II – ao cumprimento de 351 Cf. ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 94-95. 194 obrigações trabalhistas e previdenciárias, inclusive obrigações acessórias; III – ao acesso a crédito e ao mercado, inclusive quanto à preferência nas aquisições de bens e serviços pelos Poderes Públicos, à tecnologia, ao associativismo e às regras de inclusão. Ab initio, é necessário o desenvolvimento de uma questão de ordem semântica. Segundo o Art. 1º da Lei Complementar n. 123/2006, o tratamento a ser dispensado às empresas de micro e pequeno porte será “diferenciado” e “favorecido”. No âmbito jurídico, este discurso não é novo. Lembre-se apenas que a Lei n. 9.317/96 já previa o tratamento diferenciado e favorecido às empresas de menor potencial econômico. Embora tenham na linguagem coloquial sentidos diversos, juridicamente, e no contexto do Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, o tratamento “diferenciado” é sinônimo de tratamento “favorecido”. Vale dizer, há uma redundância no termo, pois sempre que a lei dispensa um regime jurídico favorecido a um sujeito de direito, ela está conferindo-lhe um tratamento diferenciado, na medida em que não fixa as mesmas regras de direito para sujeitos com as mesmas características e atribuições. Isto decorre, em verdade, das condições fáticas e subjetivas que cada qual detém. Mas, principalmente, é conseqüência do princípio da igualdade, que, segundo Rui Barbosa, reeditando as lições de Aristóteles, significa tratar os iguais, na medida de suas igualdades, e os desiguais, na medida de suas diferenças.352 Afirma-se, nestes termos, que utilização seqüencial das expressões “diferenciado” e “favorecido”, em verdade, encerra um pleonasmo, considerando que, da perspectiva jurídica, sempre que se conceder a distinção do favorecimento a algum sujeito, haverá, obviamente, a dispensa de um tratamento favorecido.353 No caso das microempresas e empresas de pequeno porte, o recebimento da distinção quanto ao tratamento jurídico que lhes confira um favorecimento decorre justamente da posição de inferioridade econômica e da menor condição fático-econômica que elas detêm frente às empresas ditas comuns, com maior poderio econômico. Por isto a distinção jurídica. Prosseguindo na análise do Art. 1º, destaca-se o fato de seu caput referir-se ao estabelecimento de “normas gerais” a respeito do tratamento diferenciado e favorecido a ser 352 BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 20. Cf. LOUBET, Leonardo Furtado. Comentários aos artigos 1º e 2º da LC 123/2006. In: HENARES NETO, Halley (coord.). Comentários à Lei do Supersimples – LC 123/2006. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 28-29. 353 195 dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte. Segundo o Art. 146, III, “d”, da Constituição de 1988, carece de lei complementar as normas gerais tributárias que fixem o tratamento jurídico favorecido e diferenciado às micro e pequenas empresas. Entretanto, a Lei Complementar n. 123/2006 não trata apenas de matéria tributária, senão também de regras com conteúdos de naturezas jurídicas diversas: civil, comercial, trabalhista, administrativa, processual, etc., as quais retiram seu fundamento de validade das previsões do Art. 170, IX e do Art. 179, e não daquele preceito insculpido no Art. 146, III, “d”, todos da Constituição de 1988, haja vista este preceito tratar apenas de matéria tributária. Logo, tomando-se por base os fundamentos constitucionais, tem-se por evidente que somente as regras jurídicas com timbre tributário podem ser tidas por “normas gerais” e, bem por isto, é a lei complementar o veículo legislativo adequado para sua edição, nos termos do artigo constitucional recém-referido. Por conseguinte, as demais disposições normativas, de natureza não-tributária, porque não assume a característica de “normas gerais”, prescindiriam de veiculação pela via da lei complementar. Em outros termos, tem-se no bojo da Lei Complementar n. 123/2006 regras jurídicas dos mais diversos matizes, algumas de reserva constitucional desta forma legislativa, e outras, não. Neste ponto, lúcida e esclarecedora a previsão do Art. 86, o qual afirma que “As matérias tratadas nesta Lei Complementar que não sejam reservadas constitucionalmente a lei complementar poderão ser objeto de alteração por lei ordinária”. Leonardo Loubet, percebendo esta distinção, anotou que: Isto só acontece porque a competência para legislar sobre direito tributário é concorrente, como se infere do artigo 24, I, da CF, enquanto que todos os outros “ramos” do direito (civil, comercial, trabalhista, penal, processual) são de competência exclusiva da União, tal qual previsto no artigo 22, I, da Carta da República. Além disso, a maioria das hipóteses em que é necessária a edição de lei complementar está ligada à tributação, algo que também não acontece com outros segmentos jurídicos. Daí a confusão: enquanto no direito civil, no direito comercial, no direito do trabalho, no penal ou no direito processual tudo é resolvido através de lei ordinária federal, no direito tributário a competência é concorrente, exigindo-se, também, lei complementar em uma série de circunstâncias.354 354 LOUBET, Leonardo Furtado. Comentários aos artigos 1º e 2º da LC 123/2006. In: HENARES NETO, Halley (coord.). Comentários à Lei do Supersimples – LC 123/2006. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 27. 196 Conclui-se, ademais, que não poderiam as regras de natureza não-tributária serem compreendidas como “normas gerais”, porquanto inaceitável e juridicamente impossível que seja veiculada tal espécie normativa para quem detém a competência privativa para legislar sobre o tema. É o caso das normas de cunho civil, comercial, trabalhista e processual, de competência privativa da União, que, ao legislar sobre estes temas, disciplina o comportamento tanto dos particulares como das demais entidades federativas, razão pela qual não lhe caberia editar “normas gerais” a serem observadas pelas demais pessoas políticas, pois a observância da disciplina de suas regras é ínsita a privatividade de sua competência. Porém, contrariando parcialmente a colocação do precitado autor, quando diz que as regras de feição civil, comercial, trabalhista e processual são resolvidas via lei ordinária “federal”, entende-se que todas elas são regras de âmbito nacional e não federal, ainda que prescindam da forma complementar e não se caracterizem como normas gerais. Em verdade, não é isto que lhe confere o timbre do alcance nacional, mas, sim, a circunstância de dirigir-se a todos quantos estejam no território nacional, independentemente de quaisquer vinculações a esta ou àquela pessoa política, regulando seus comportamentos, inclusive das próprias pessoas federativas.355 Está-se seguindo, neste ponto, a precisa lição de Geraldo Ataliba, que afirma: É, com efeito, nítido o campo das leis nacionais: as civis, comerciais, penais, etc. são leis brasileiras, ordenatórias do comportamento de todos no território nacional, abstração feita da circunstância – para este efeito – irrelevante de vincularem-se a esta ou àquela pessoa política, residirem aqui ou ali, serem administrados desta ou daquela entidade. Os códigos civil e penal obrigam o presidente da República ou qualquer lavrador, o amazonense ou o campineiro, o militar e o estrangeiro. Tudo isto não importa, como nem nada se altera a questão se o destinatário da norma for munícipe desta ou daquela cidade, ou cidadão de um outro Estado.356 Ou seja, as obrigações civis, comerciais, trabalhistas, etc. simplificadas por esta lei complementar, conquanto não consistam em normas gerais, nem sejam matérias reservadas à lei complementar, são previsões de cunho nacional, devendo ser assim tratadas. Afora estas observações, percebe-se, essencialmente, a existência de três distintos universos normativos tratados no Art. 1º, conforme seus incisos I a III. Estes, no entanto, devem ser compreendidos em conjunto com os demais dispositivos da lei, pois, ao longo da legislação, estabelece-se o regime jurídico próprio e correlacionado a cada um de seus conteúdos normativos. Evidentemente que também deverá estar em consonância com o 355 356 Cf. ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 94-95. Idem, ibidem, p. 94-95. 197 sistema constitucional, pois, por ser lei, seus comandos necessariamente devem respeito às normas do altiplano constitucional. No primeiro inciso, faz-se referência direta ao “Simples Nacional”, isto é, ao regime tributário único de arrecadação e recolhimento de impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Por sua vez, são as previsões dos arts. 12 a 41 da lei em tela que fixam todo o regime jurídico do “Simples Nacional”. Aludidos dispositivo tratam exaustivamente da sistemática do Simples Nacional, isto é, desde os tributos que são abrangidos pelo regime único de arrecadação (Art. 13); as vedações de ingresso ao sistema simplificado (Art. 17); a forma de cálculo do tributo a ser recolhido, pela fixação de bases de cálculo e das alíquotas (Art. 18); outras formalidades, tais como a forma de recolhimento (Art. 21), o repasse das receitas decorrentes da arrecadação (Art. 22), créditos fiscais (arts. 23 e 24) e as obrigações acessórias (arts. 25 a 27); e ainda as situações excludentes do “Simples Nacional” (arts. 28 a 32). Além disso, por óbvio, veicula normas relativas à fiscalização (Art. 33), omissão de receitas (Art. 34), acréscimos legais (arts. 35 a 38), o processo administrativo fiscal (Art. 39) e o processo judicial (arts. 40 e 41). Já no inciso II do Art. 1º da Lei Complementar n. 123/2006, por outro lado, há a previsão de simplificação no cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias, inclusive quanto aos deveres formais que a elas se relacionam. Os pormenores relativos a este universo normativo estão regulados nos arts. 50 a 54, sendo que os arts. 51 e 52 trazem especificamente os contornos dos procedimentos relativos às obrigações trabalhistas que são e que não são dispensados de adimplemento por parte da categoria empresarial de menor porte. Interessante notar, por sua vez, que o Art. 53 da Lei Complementar n. 123/2006 trazia o tratamento especial concedido em sede de obrigações previdenciárias, concedendo-se às microempresas e empresas de pequeno porte alguns benefícios. Porém, com a edição da Lei Complementar n. 127/2007 referida disposição foi revogada, de modo que inexiste, atualmente, tratamento favorecido relativo às obrigações previdenciárias. Por fim, o inciso terceiro estabelece o tratamento jurídico favorecido que viabilize para as microempresas e empresas de pequeno porte o acesso ao crédito e ao mercado, em especial no que se refere à preferência nas aquisições de bens e serviços pelos Poderes Públicos, à tecnologia, ao associativismo e às regras de inclusão. O regramento jurídico relativo ao acesso ao mercado vem integralmente previsto nos arts. 44 a 49, os quais tratam de 198 fixar as preferências e privilégios que as empresas situadas nesta categoria econômica possuem em detrimento das demais no âmbito das contratações com o poder público em geral. Apesar da amplitude desta previsão legal, quanto à diversidade normativa, a seara que parece deter maior importância e, como espécie, tem se confundido com o gênero, é justamente a questão tributária, ou seja, o Simples Nacional, que é apenas parte do Estatuto Nacional das Micro e Pequenas Empresas, como outrora referido. Por esta razão, e considerando sua importância também para a Ordem Econômica, o Simples Nacional merece atenção e análise individualizada. Entretanto, antes de abordá-lo, é relevante consignar alguma palavras sobre a definição de microempresa e empresa de pequeno porte, conforme o Art. 3º da Lei Complementar n. 123/2006. 4.2.3.2 Breve exame acerca da definição de microempresa e empresa de pequeno porte A Constituição Federal de 1988, desde sua promulgação, sempre conferiu especial atenção às microempresas e empresas de pequeno porte. Contudo, o constituinte de 1988 teve o cuidado – acertado – de atribuir ao legislador infraconstitucional a missão de definir, para os fins jurídicos, o que vem a ser uma microempresa ou uma empresa de pequeno porte. Neste sentido, o Art. 179 da Constituição Federal de 1988 sempre foi claro: a definição desta categoria empresarial é atribuição da lei, entendida como o veículo primário de introdução de normas editado pelo Poder Legislativo via procedimento legislativo ordinário – ou seja, a lei ordinária. Por conta da outorga constitucional, desde a edição da Lei n. 9.317/96, que instituiu o Simples Federal, tem optado o legislador infraconstitucional por definir uma microempresa ou uma empresa de pequeno porte tomando por base o valor da receita bruta auferida ao longo do ano-calendário – o exercício financeiro que vai de 1º de janeiro a 31 de dezembro. Neste aspecto, a Lei Complementar n. 123/2006 não foi diferente, segundo enunciado do Art. 3º, que estabelece, in verbis: Art. 3º Para os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se microempresas ou empresas de pequeno porte a sociedade empresária, a sociedade simples e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei no 10.406, de 10 de janeiro de 2002, devidamente registrados no Registro de Empresas Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde 199 que: I – no caso das microempresas, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais); II – no caso das empresas de pequeno porte, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e quatrocentos mil reais). A empresa que auferir receita bruta dentro dos limites dos incisos I e II do Art. 3º serão consideradas micro ou pequenas empresas para os efeitos desta lei complementar, com vistas ao enquadramento ao Simples Nacional, à simplificação quanto ao cumprimento de obrigações trabalhistas e previdenciárias ou mesmo para o acesso a crédito e ao mercado, inclusive quanto à preferência nas aquisições de bens ou serviços pelo poder público. Portanto, deve-se ficar claro que o acesso ao tratamento favorecido dispensado pela Lei Complementar n. 123/2006 tem como base primária o enquadramento aos limites de obtenção de receita bruta ao longo do ano-calendário, nos termos do comentado artigo. Entretanto, cada um dos diferentes subsistemas normativos específicos que a aludida lei complementar veicula, fixa – ou pode fixar – outras condições de inclusão. Exemplo disto são as limitações positivadas pelos arts. 17 e 28 a 32 da referida lei complementar no âmbito do sistema unificado de recolhimento de tributos – Simples Nacional. Aqui reside o dissenso, pois há muito se tem questionado se poderia a lei discriminar dentre as microempresas e empresas de pequeno porte, ou seja, aquelas que tem receita bruta anual nos limites máximos da lei, quem receberia o tratamento jurídico favorecido ou não. A discussão é longa; vem desde a edição da Lei n. 9.317/96, que criou o Simples Federal. Essencialmente, a jurisprudência brasileira, de forma geral, sustenta a possibilidade de vedações ao ingresso ao sistema simplificado de pagamento de tributos com base no entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 1.643-1357, proposta pela Confederação Nacional das Profissões Liberais (CNPL) contra o Presidente da República e o Congresso Nacional, cujo objetivo era a declaração de inconstitucionalidade do inciso XIII do Art. 9º da Lei n. 9.317/96. Acontece que o desfecho foi pela improcedência da ação, o que levou à compreensão generalizada quanto à possibilidade de discriminação entre as microempresas e empresas de pequeno porte no que tange ao ingresso no sistema simplificado. 357 Cf. item 3.4, supra. 200 A contenda ainda hoje permeia o tema, pois boa parte da doutrina sempre entendeu que algumas atividades e certas regras vedatórias – como, por exemplo, aquela que impede o ingresso no sistema simplificado de empresas que tenham débitos tributários – de acesso ao Simples Federal – e, agora, Simples Nacional – seriam ilegítimas, porque o fator de discrímen não teria qualquer correlação lógica com sua finalidade objetiva – ou o próprio fim elegido seria ilegítimo –, razão pela qual seria inconstitucional a disposição normativa com esta característica, por afronta ao princípio da isonomia.358 De modo geral, não se discute que promove o princípio da igualdade a concessão de tratamento jurídico favorecido em favor das microempresas e empresas de pequeno porte, em contraposição às empresas de maior potencial econômico, por conta da situação fática diferenciada na qual se encontram. Entretanto, deve ser bem elegido o critério que servirá de finalidade a concessão de tratamento jurídico desigual a sujeitos que estejam em situação equivalente. Não que a lei não possa fixar o discrímen entre aqueles que estão na mesma situação fática, mas isto deve ter objetivo bem definido e, em regra, resultar em maiores ganhos de interesse geral para a coletividade. De toda sorte, é intuitivo afirmar que a definição de ser uma empresa de micro ou pequeno porte, nos termos legais, depende da análise pura e simples da receita bruta auferida ao longo do ano-calendário. Por outro lado, assim caracterizada a empresa, seu ingresso neste ou naquele sistema simplificado depende, ainda, da observância de certas condições. Isto significa que eventuais condições fixadas para o acesso ao regime único de arrecadação e recolhimento de tributos, por exemplo, não podem ser “importadas” por outro subsistema normativo para condicionar a empresa à fruição dos benefícios que fixe. Tomando a Lei Complementar n. 123/2006 como exemplo, não poderia o sistema de simplificação de acesso ao mercado e de preferência nas contratações de bens e serviços pelo poder público tomar por empréstimo os requisitos fixados pela lei para condicionar o acesso ao Simples Nacional, salvo, obviamente, se houver disposição expressa neste sentido. Ou seja, quando o Art. 44 da Lei Complementar n. 123/2006 assegura que nas licitações a preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte servirá de critério de desempate, quis significar que fruirá do benefício toda e qualquer 358 Sobre o princípio da igualdade, veja-se, por todos, BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 37. 201 empresa que se molde, pura e simplesmente, à definição legal do Art. 3º, sendo irrelevante, para tanto, estar ou não inscrito no Simples Nacional, por exemplo. Esta afirmação, conquanto desnecessária, serve de alerta aos menos avisados: ainda que a Lei Complementar n. 123/2006 seja conhecida como o “Supersimples” ou “Simples Nacional”, estas considerações são verdadeiras apenas em parte, pois tomam o regime tributário diferenciado e favorecido como conteúdo integral da lei, quando, em verdade, isto não ocorre, uma vez que há toda uma disciplina normativa de natureza civil, comercial, trabalhista, processual e etc. naquele corpo legislativo. 4.2.4 O Simples Nacional visto a partir da Ordem Econômica: intervenção indireta do Estado sobre o domínio econômico, extrafiscalidade e equilíbrio da concorrência Anotadas estas observações que servem a fixar parâmetros sistêmicos ao evolver do tema – sempre relevantes para uma adequada exposição científica –, compete agora ir ao cerne da questão, isto é, deve-se realizar a análise do Simples Nacional como mecanismo de intervenção econômica. O Simples Nacional consiste em um regime especial unificado de arrecadação de tributos e contribuições devidos pelas microempresas e empresas de pequeno porte, englobando os tributos federais, estaduais e municipais, consoante Art. 13 da Lei Complementar n. 123/2006. A adoção deste sistema simplificado, segundo o citado dispositivo legal, implica no pagamento dos seguintes impostos e contribuições: (i) imposto sobre a renda da pessoa jurídica; (ii) imposto sobre produtos industrializados; (iii) contribuição social sobre o lucro líquido; (iv) contribuição para o financiamento da seguridade social; (v) contribuição para o Pis/Pasep; (vi) contribuição para a seguridade social, a cargo da pessoa jurídica; (vii) imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação; (viii) imposto sobre serviços de qualquer natureza. Ou seja, abrange tributos devidos nas três esferas políticas de poder: federal, estadual e municipal. James Marins e Marcelo Bertoldi conceituam o Simples Nacional como um [...] regime especial de tributação por estimação objetiva, constituindo em microssistema tributário, material, formal e processual, que unifica a fiscalização, o lançamento e a arrecadação de determinados impostos e contribuições de competência da União, Estados, Municípios e Distrito 202 Federal, aplicável opcionalmente às Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, com o escopo de atribuir a estes contribuintes tratamento fiscal diferenciado e favorecido, em caráter parcialmente substitutivo ao regime geral e compulsório.359 Esta sistemática simplificada de arrecadação e recolhimento de tributos de todos os âmbitos de poder político assume clara conotação extrafiscal, ou seja, a concessão deste tratamento diferenciado e favorecido dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte presta-se à intervenção estatal sobre o domínio econômico com claros objetivos econômicos e sociais. Muito embora se arrecade valores tributários consideráveis, esta não é sua finalidade primária, senão secundária. A função principal do Simples Nacional é de fomento e proteção às micro e pequenas empresas, isto é, exerce típica finalidade extrafiscal. Lafayete Josué Petter lembra que o princípio do tratamento jurídico diferenciado e favorecido para a micro e pequenas empresas tem o objetivo de incentivá-las, pois fomenta o crescimento do número de empresas de pequeno porte, cujo efeito benéfico produz vetor contrário à tendência concentracionista que o mercado apresenta, “[...] com benefícios para toda a coletividade, pois a maior dispersão do poder econômico diminui a possibilidade de ocorrência de situações de abuso de poder”.360 Ora, precisa a lição acima exposta, pois via incentivo às microempresas e empresas de pequeno porte – concedido mediante tratamento jurídico favorecido e diferenciado no que tange às obrigações administrativa, tributária, trabalhista, comercial, etc. – o Estado realiza seu mister interventor sobre o domínio econômico, ao mesmo tempo em que previne o abuso do poder econômico e a eliminação da concorrência, nos termos do Art. 173, §3º, da Constituição Federal de 1988. Como instrumento de política tributária com finalidade extrafiscal, o Simples Nacional é eficiente, pois mediante a simplificação do recolhimento dos tributos, diminuição do ônus tributário – principalmente para os menores – e redução dos deveres instrumentais (obrigações acessórias, na linguagem do Código Tributário Nacional), tem-se forte estímulo para a formalização da atividade empresária. Some-se a estas facilidades tributárias a desburocratização, pela redução ou supressão das obrigações civis, comerciais e trabalhistas – 359 MARINS, James; BERTOLDI, Marcelo Marco. Simples Hacional – Estatuto da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte Comentado (LC 123, de 14 de dezembro de 2006 e LC 127, de 14.08.2007). São Paulo: RT, 2007, p. 68. 360 PETTER, Lafayette Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica – O significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 266. 203 outras disciplinas da Lei Complementar n. 123/2006 – e mais do que o fomento ao ingresso no mercado formal de novas empresas, viabiliza-se, também, a sobrevivência daqueles que já atuam na economia de modo legal, porém com dificuldades. Tudo isto possibilita uma maior participação de agentes econômicos no mercado, o que é salutar tanto da perspectiva jurídica como da econômica, pois implica diretamente em benefícios à própria economia, pelo estímulo à concorrência, e também aos consumidores, pela maior quantidade de opções de produtos e preços. Neste sentido, novamente, anda bem Lafayete Josué Petter, quando afirma que: A economia, deixada a agir tão-somente segundo as livres forças do mercado, tende a situações monopolísticas e oligopolísticas: empresas de grande vulto controlam parcela significativa do mercado, impondo aos concorrentes a dura realidade através do poder econômico que representam. São naturais, então, as dificuldades de criação e desenvolvimento a que pequenas e micro ficam expostas. Neste sentido, a adoção de um tratamento favorecido pode fomentar a sobrevivência dos pequenos, provocando maior presença de agentes econômicos na economia, o que invariavelmente se traduz em benefícios a consumidores e ao próprio mercado em face do estímulo da concorrência.361 Portanto, o mecanismo tributário simplificado instaurado pelo Simples Nacional consiste claramente em meio de intervenção indireta do Estado sobre o domínio econômico. Como tal, ele se caracteriza como norma indutora de comportamentos, uma vez que a intervenção se dá pela indução dos agentes econômicos, que, em virtude da outorga do tratamento jurídico favorecido, são tentados a ingressar no mercado formal ou, para aqueles que já estão, conferem-lhe novo fôlego para continuar atuando, permitindo inclusive melhores condições de concorrência, o que se traduz em condições de expansão dos negócios. Destaque-se, neste ponto, a característica indutora do Simples Nacional. Segundo Luís Eduardo Schoueri, as normas indutoras – e o Simples Nacional é, claramente, norma tributária que positiva a intervenção estatal por indução – caracterizam-se por serem dispositivas, ou seja, “[...] O agente econômico não se vê sem alternativas; ao contrário, recebe ele estímulos ou desestímulos que, atuando no campo de sua formação de vontade, levam-no a se decidir pelo caminho proposto pelo legislador”.362 361 PETTER, Lafayette Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica – O significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 266. 362 SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 43-44. 204 Quando se diz que as normas indutoras são sempre dispositivas, significa o autor que na intervenção por indução, não há um comando imperativo por parte do Estado, isto é, o destinatário da norma – em regra, os agentes econômicos – não está obrigado a cumpri-la; o Estado abre mão deste poder de obrigar em favor do seu poder econômico. Por esta razão, o ator econômico detém alternativas de atuação, sendo-lhe possível agir de modo diverso daquele que a norma jurídica tenha previsto sem que isto resvale para a ilicitude. Em razão da disponibilidade inerente às normas indutoras, Luís Eduardo Schoueri assevera como conseqüência a possibilidade de as normas de incentivo ou de desestímulo não serem suficientes para “coagir” o agente econômico a tomar a decisão nos termos da previsão normativa. Deste modo, porque pode adotar comportamento diverso, conclui Luís Eduardo Schoueri, com base em lições de Semiótica, que sintaticamente a norma indutora vincula duas conseqüências à hipótese normativa, ligadas pela conjunção alternativa.363 Apoiado nestas idéias, verifica-se o traço indutor do Simples Nacional já na norma constitucional que autoriza a criação do regime único de arrecadação tributária. Prescreve o Art. 146, parágrafo único, da Constituição que “A lei complementar de que trata o inciso III, d, também poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado que: I - será opcional para o contribuinte”. A Constituição foi clara ao legislador infraconstitucional, destinatário direto desta regra de estrutura364: não é permitido legislar instituindo o Simples Nacional com finalidade impor a obrigatoriedade de opção pelo regime simplificado ao micro e pequenos empresários. Ou seja, quis dizer que a norma tributária é indutora, serve de incentivo para que estes agentes econômicos migrem do mercado econômico informal para o formal, ao mesmo tempo em que estimula aqueles que já estejam atuando no mercado, que se mantenham. É óbvio, entretanto, que haverá sempre o modal deôntico obrigatório após a opção pelo Simples Nacional. Neste ponto, Luís Eduardo Schoueri encerra seu pensamento consignando que “a norma de intervenção por indução também traz o funtor ‘obrigatório’; sua 363 SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 44. 364 Sobre as regras de estrutura, v. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 154-155. 205 peculiaridade é a possibilidade de seu destinatário escolher adotar, ou não, um comportamento. Conforme sua escolha, o ordenamento lhe imputará uma conseqüência”.365 Que o Simples Nacional é uma norma tributária indutora haja vista as lições de Luís Eduardo Schoueri, não resta dúvida. Porém, como tal, a norma indutora tem uma finalidade, pois o estímulo (ou desestímulo) concedido visa induzir o agente econômico a se comportar de uma dada maneira. Assim, o que visa o Simples Nacional? Porque induzir os agentes econômicos a optarem por um regime simplificado de arrecadação de tributos? A resposta é evidente, e extrai-se objetivamente da própria Constituição de 1988: harmonia da Ordem Econômica pela proteção à livre concorrência, garantia de isonomia, formalização da economia, valorização do trabalho, enfim, desenvolvimento socioeconômico. Melhor explicando. O Simples Nacional, como instrumento de intervenção do Estado para incentivar as microempresas e empresas de pequeno porte não é o fim de per si, mas apenas meio. De fato o tratamento jurídico diferenciado e favorecido das microempresas e empresas de pequeno porte se caracteriza como princípio da ordem constitucional econômica. Porém, o incentivo puro e simples às micro e pequenas empresas não é o desiderato constitucional propriamente dito, senão meio de harmonização da Ordem Econômica, na medida em que mantém o equilíbrio da concorrência, garante isonomia de tratamento no mercado econômico, induz à formalização das atividades econômicas, valoriza o trabalho humano, protege o consumidor, enfim, promove o que se conhece como desenvolvimento socioeconômico, que “[...] não é apenas crescimento econômico nem tampouco distribuição de riqueza. Pressupõe a distribuição da riqueza em favor do bem-estar social e a participação da sociedade [...]”.366 Afirma-se que o Simples Nacional mantém o equilíbrio concorrencial porque ao facilitar e simplificar o cumprimento das obrigações tributárias – principal e acessória – a norma em questão permite a expansão na quantidade de agentes econômicos atuando no mercado. Com isto, repele o abuso do poder econômico e assegura a todos liberdade iniciativa, pois serve de garante de que aqueles que estão fora do mercado, nele poderão ingressar, e aqueles que ali já se encontram, nele poderão se manter. 365 SCHOUERI, Luís Eduardo. ob. cit., nota de rodapé n. 11, p. 44. RIBEIRO, Maria de Fátima. Os 40 Anos da Zona Franca de Manaus e a Importância dos Incentivos Fiscais para o Desenvolvimento Econômico e Social da Região. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes, PEIXOTO, Marcelo Magalhães [coord.]. Tributação na Zona Franca de Manaus: (Comemoração aos 40 anos da ZFM). São Paulo: MP Editora, 2008, p. 336. 366 206 Além disto, possibilita uma competição mais justa e igual, pois na medida em que confere tratamento jurídico diferenciado àqueles que se encontram em situação fática distinta, isto é, empresa de maior ou de menor porte, valoriza e protege o mercado econômico, como também o Princípio da Isonomia, base democrática do Estado Brasileiro. A simplificação da tributação ainda reflete na questão concorrencial o problema do custo de produção, o que permite melhorias na questão do preço. Demais disto, cria-se um ambiente de maior competitividade, aproximando-se do modelo de “concorrência perfeita”, “[...] onde são muitos os vendedores e muitos os compradores e, isoladamente, nenhum deles tem poder suficiente para dominar o mercado”.367 Outra importante conseqüência da instituição do Simples Nacional é a indução à formalização das atividades econômicas. Ao incentivar as micro e pequenas empresas, o Estado está induzindo à migração da informalidade para o setor formal da economia, harmonizando, assim, as relações econômicas. Neste aspecto, a formalização do mercado é extremamente relevante para o equilíbrio concorrencial, pois coloca os competidores do mercado em uma mesma posição de igualdade jurídico-formal, qual seja, possuem as mesmas obrigações tributárias, trabalhistas, civis e comerciais, por exemplo, ainda que simplificadas. De igual maneira, valoriza o trabalho humano pela observância e cumprimento dos encargos trabalhistas, pagamento de salários de acordo com os valores do mercado, sujeitando-se, enfim, à observância da legislação em geral, o que encerra, em última instância, realização da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, da Constituição de 1988). Por outro lado, também reflete na proteção ao consumidor, pois empresas formais obedecem às regrar jurídicas e econômicas do mercado, sujeitando-se, por exemplo, à fiscalização pelo poder público. Ademais, a questão do preço, da qualidade dos produtos e do acesso aos mecanismos de defesa do consumidor depende, em larga medida, da existência formal das empresas, sem o que se cria grandes dificuldades e restrições. Enfim, é o Simples Nacional um mecanismo de intervenção indireta na economia, resultante do desiderato constitucional que atribui ao Estado dever-poder de estabelecer políticas públicas com o objetivo de dispensar às microempresas e empresas de pequeno porte 367 PETTER, Lafayette Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica – O significado e o alcance do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 222. 207 tratamento jurídico favorecido e diferenciado em matéria tributária, com o objetivo de incentivá-las e, com isto, promover a Ordem Econômica e Social, harmonizando-as. Portanto, revela-se a importância da tributação para a Ordem Econômica – e o desenvolvimento socioeconômico como um todo –, em especial como mecanismo de regulação concorrencial. 208 SÍTESE COCLUSIVA Sistema jurídico é expressão plurívoca, pois empregada para significar distintos objetos. Porém, esta não é uma característica que lhe é exclusiva, haja vista que a ambigüidade é algo ínsito a maioria das palavras. Em regra, a vaguidade das palavras decorre da indefinição do ponto de referência a partir do qual elas serão compreendidas. Assim, a superação da incerteza no sentido das expressões depende da pré-definição de um ponto de referência. O vocábulo “sistema” revela um objeto que se constitui pela reunião ordenada e harmônica das diversas partes de um todo formando uma unidade. Isto demonstra que a compreensão geral de “sistema” identifica duas características que lhe é peculiar: unidade e ordenação. Em relação ao sistema jurídico, não é diferente. Uma vez que todo sistema é formado por elementos que se relacionam de modo ordenado e formam um conjunto unitário, define-se sistema jurídico, entendido como o sistema do direito positivo, como um complexo ordenado de normas jurídicas orientado por princípio unificador, ou seja, ele não é formado pela pura e simples ligação entre as normas jurídicas que o compõe, senão pela harmonia e unidade entre elas, cuja relação ocorre pelos vínculos de subordinação e de coordenação. Não são todas as normas jurídicas que integram o sistema jurídico-positivo, mas apenas as normas jurídicas válidas, independentemente do degrau hierárquico em que se encontrem. Esta percepção permite visualizar o sistema jurídico como uma pirâmide escalonada de maneira hierárquica, onde as normas de hierarquia superior conferem fundamento de validade para aquelas localizadas nos degraus inferiores. As normas jurídicas, por sua vez, distinguem-se dos textos do direito positivo, na medida em que estes são apenas os pontos de partidas para a construção daquelas. Deste modo não se confundem uns com os outros. Afirma-se que as normas jurídicas são os significados que se extraem a partir dos textos do direito positivo; são, por assim dizer, construções de sentido realizadas pelo intérprete do direito a partir de uma análise sistemática dos textos normativos. Significa que há uma desvinculação entre normas jurídicas e textos do direito positivo. 209 Por conta desta desvinculação, não se pode afirmar que a norma jurídica dependa exclusivamente do texto pré-existente; nem que este ou aquele enunciado textual normativo tenha condições de definir, por si, o sentido da norma; ou mesmo que este texto normativo contenha esta ou aquela norma jurídica. Em verdade, a norma jurídica é o produto, o resultado da interpretação dos textos do direito positivo, de modo que ela não está a ele incorporada. Norma jurídica, no entanto, é expressão que revela um gênero. O gênero normativo é formado por duas ou três espécies normativas, de acordo com a doutrina que se adote: regras, princípios e postulados normativos aplicativos. Há, na doutrina de modo geral, concordância quanto à existência das duas primeiras espécies. No que se refere aos postulados, esta se caracteriza como uma nova espécie normativa cunhada por recentes estudos doutrinários. O papel do intérprete no processo de construção das normas jurídicas é de extrema relevância para a caracterização destas como regra, princípio ou postulado, especialmente porque dependente da situação concreta, dos fatos jurídicos envolvidos e os valores que lhes são sobrejacentes. Independentemente disto, inegável que o sistema jurídico-positivo é formado por normas jurídicas de diversas espécies, e também com os mais diversos conteúdos. Como um sistema, a ordem jurídica tem na unidade sua característica central, razão pela qual não se pode afastar ou mesmo dissociar definitivamente as normas tributárias das normas econômicas; elas não se afastam, mas, diversamente, se atraem. Sempre haverá um ponto de intersecção entre o direito tributário e o direito econômico, causando a necessidade de análise articulada entre eles. Este ponto de intersecção revela-se na questão relativa à intervenção econômica do Estado, notadamente quando se trata do emprego das normas tributárias extrafiscais, as quais têm consistido no mecanismo de que mais se tem valido o Estado para intervir na economia. Desta forma, mesmo que na perspectiva do enunciado do Texto Constitucional o direito tributário e o direito econômico estejam enumerados em títulos distintos, isto não significa que as normas que os compõem estejam totalmente divorciadas umas das outras; nem que não se influenciam reciprocamente. Ao contrário, significa apenas uma opção do legislador constituinte em tratar cada tema conforme as especialidades e propriedades que lhes são características. 210 Ao enumerar o capítulo do Sistema Tributário Nacional, o legislador constituinte não previu ali a integralidade das normas jurídicas tributárias, mas definiu um referencial inicial, o ponto de partida no qual se constitui o texto do direito positivo. Por isto que “Sistema Constitucional Tributário” é expressão que melhor significa o conjunto das normas constitucionais que disciplinam as limitações formais e materiais ao poder tributar. Compreendida como a ordem jurídica da economia, a Ordem Econômica significa o conjunto de todas as normas jurídicas que objetivam regular as atividades econômicas. E a Constituição Econômica é a parte fundamental e mais importante da ordem jurídica econômica, na medida em que esta consiste no subsistema normativo constitucional daquela, caracterizando uma relação entre todo e parte. As ferramentas necessárias à compreensão e melhor visualização da interdisciplinaridade existente entre as normas tributárias e as normas jurídicas econômicas são os princípios instrumentais de interpretação constitucional. Os princípios da supremacia da Constituição, da unidade da Constituição e da interpretação conforme a Constituição são os mecanismos que possibilitam uma melhor visualização da interligação entre tributação e intervenção econômica, pois serve a instrumentalizar a análise de sujeição das normas tributárias tanto ao regime jurídico tributário como ao regime econômico. É a Constituição Econômica o principal subconjunto normativo a formar a Ordem Jurídico-Econômica. Em sua grande maioria, as normas jurídicas que formam a Constituição Econômica são de cunho programático e têm por finalidade o desenvolvimento socioeconômico nacional, conforme se depreende da interpretação sistemática entre a previsão do Art. 3º, II e III, Art. 1º, IV, e Art. 170, todos da Constituição Federal de 1988. Este último dispositivo positiva em sede constitucional os princípios fundamentais regentes das atividades econômicas, direcionando tanto a atuação dos particulares no bojo do domínio econômico como servindo de limitação às atividades do Estado nesta área. Dentre os princípios que informam as atividades econômicas, o princípio da livre concorrência, previsto no Art. 170, IV, da Constituição de 1988, é um dos mais importantes, possuindo função instrumental no sistema jurídico econômico, porquanto serve de meio à promoção da liberdade de iniciativa. A enumeração da livre concorrência como princípio constitucional econômico reflete, ainda, o modo capitalista de produção adotado pelo sistema jurídico-político para a vida econômica nacional. A livre concorrência, assim, objetiva 211 garantir o livre jogo das forças do mercado no intuito da manutenção do justo equilíbrio entre a oferta e a procura, garantindo a liberdade de ação que lhe é inerente. Porém, o princípio da livre concorrência, como todos os demais princípios informadores das atividades econômicas, deve servir de vetor para direcionar a economia no sentido da realização dos fins da ordem econômica, segundo os ditames de justiça social, nos termos do Art. 170, caput, da Constituição de 1988, e ainda tem por escopo evitar a concentração econômica ilegítima. Como é inerente ao próprio conceito de economia de mercado a noção de concentração econômica, e nem sempre os mecanismos livres do mercado têm condições de corrigir as falhas surgidas, então há a necessidade do Estado intervir sobre o domínio econômico para corrigir estas falhas. Por isto se diz que o princípio da liberdade de concorrência direciona a atuação estatal sobre o domínio econômico. A intervenção econômica do Estado se realiza de modo direto, quando o Estado atua no mercado como agente econômico, com intuito lucrativo, conforme autorização do Art. 173, da Constituição Federal. O Estado também pode atuar no mercado de forma indireta, ou seja, agindo sobre o domínio econômico, como agente normativo e regulador da atividade econômica, mediante as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, nos termos do Art. 174 da Constituição de 1988. Na intervenção indireta, o Estado tem a possibilidade de editar normas de direção ou normas de indução, conforme o caso e nos termos em que pretenda. No caso das normas tributárias, tendo em vista suas características, elas agem por indução, ou seja, seu objetivo é influir diretamente no comportamento dos agentes econômicos, induzindo-os a optar pelo caminho que lhe parece mais adequado para realizar os objetivos socioeconômicos prédefinidos constitucionalmente. A norma tributária indutora, por sua natureza, tem caráter extrafiscal, o que significa que o objetivo precípuo da norma não é arrecadar dinheiro aos cofres públicos, mas tem objetivo diverso: no caso, o fim é econômico. A afirmação de que a norma tributária é uma norma de intervenção do Estado sobre o domínio econômico a posiciona como norma jurídica de natureza econômica, na perspectiva pragmática. Mas ela também não deixa de se caracterizar como norma de direito tributário, porquanto encerra sempre uma relação jurídica tributária entre Estado e contribuinte. 212 Portanto, a norma tributária extrafiscal com finalidade indutora se sujeita a dois regimes jurídicos – o econômico e o tributário. Mas não são todas as normas tributárias que se sujeitam a este regime dúplice, mas apenas aquelas que assumam finalidade extrafiscal indutora econômica. Deste modo, não basta observar as regras jurídicas que disciplinam o domínio econômico, mas também deve observância ao regime jurídico tributário. Por isto, além dos limites ao exercício da competência reguladora econômica, a norma tributária extrafiscal tem que observar as delimitações impostas pelas normas que disciplinam a competência tributária, sejam as regras atributivas de competências como as limitativas do exercício da atividade tributária. Contudo, o conteúdo interventivo econômico que a norma tributária indutora possui, isto é, sua finalidade extrafiscal, pode influir na aplicação de alguns princípios tributários, pois, em regra, o estudo dos princípios constitucionais tributários se realiza sob a premissa da finalidade fiscal do tributo. Partindo do pressuposto da extrafiscalidade, que revela fim diverso daquele, poderá haver uma diferenciação quanto à aplicação dos princípios tributários. Ressaltando ainda que a extrafiscalidade das normas tributárias manifesta-se mediante os mais diversos mecanismos: incentivos fiscais, imunidades, isenções, regimes simplificados de recolhimento de tributos. Como conseqüência da natureza extrafiscal que os convênios interestaduais de ICMS e o Simples Nacional assumem, a sujeição ao regime jurídico econômico, além da disciplina tributária, é irremediável. Neste ponto, dentre os princípios constitucionais econômicos, os estes mecanismos extrafiscais devem especial atenção ao princípio da livre concorrência, tendo em vista os concretos reflexos que sua aplicação produz sobre o mercado econômico. No que se refere aos convênios interestaduais de ICMS, além de mecanismo criado pelo sistema jurídico para evitar a guerra fiscal entre as entidades federativas e assim assegurar a unidade da Federação. Eles revelam claro viés de regulação jurídica do mercado, em especial quanto à proteção da livre concorrência, tendo em vista que a concessão unilateral – sem a prévia celebração dos convênios – dos incentivos fiscais de ICMS pelos Estadosmembros ou pelo Distrito Federal, provoca séria distorção concorrencial. Em casos como tais, a competitividade entre os agentes econômicos fica desequilibrada pela quebra de uma estrutura comum. O princípio da livre concorrência soma à formalidade constitucionalmente definida para a concessão dos incentivos fiscais de ICMS, 213 pois estabelece uma limitação de conteúdo ao exercício da competência exoneratória, implicando, por conseqüência, em vício por inconstitucionalidade material sua concessão sem a anuência dos demais Estados-membros da Federação. Por outro lado, a previsão, no plano constitucional, do tratamento favorecido a ser dispensado às microempresas e às empresas de pequeno porte pela simplificação de suas obrigações tributárias já revela a finalidade extrafiscal das normas tributárias com esta qualidade. É a intervenção estatal indireta com claros objetivos econômicos e sociais. Embora arrecade valores tributários, o escopo precípuo do Simples Nacional é o fomento e a proteção às micro e pequenas empresas, pois ao incentivá-las, induz o crescimento desta categoria empresarial e, como conseqüência, reduz a concentração do mercado, dispersando o poder econômico entre o maior número de agentes econômicos, diminuindo, assim, a ocorrência de abusos. Por meio do Simples Nacional, utilizado como ferramenta de estímulo à formalização da atividade empresarial de pequeno porte econômico, possibilita-se uma maior participação de agentes econômicos no mercado, redundando em benefícios ao consumidor e incentivando a concorrência de modo a equilibrá-la. Em suma, a redução das obrigações tributárias, principais e acessórias, decorrentes do Simples Nacional cria condições de competição mais justa e igual entre as empresas, pois na medida em que confere tratamento jurídico diferenciado àquelss que se encontram em situação fática distinta, isto é, empresa de maior ou de menor porte, valoriza e protege o mercado econômico, como também o Princípio da Isonomia, base democrática do Estado Brasileiro. Cria, enfim, um ambiente de maior competitividade. 214 REFERÊCIAS AGUIAR, Glauco Lubacheski de. A tributação extrafiscal como mecanismo de desenvolvimento sócio-econômico da Zona Franca de Manaus. In: MARTIN, Ives Gandra da Silva; RAMOS FILHO; Carlos Alberto de Moraes; PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord.). Tributação na Zona Franca de Manaus: comemoração aos 40 anos da ZFM. São Paulo: MP Editora, 2008. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Competências na Constituição de 1988. 4. ed. São Paulo: Atlas, 2007. AMARO, Luciano. 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