UNIVERSIDADE DE MARÍLIA
GLAUCO LUBACHESKI DE AGUIAR
TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL E ITERVEÇÃO ECOÔMICA:
UMA AÁLISE COCORRECIAL DOS COVÊIOS
ITERESTADUAIS DE ICMS E DO SIMPLES ACIOAL
MARÍLIA – SP
2008
GLAUCO LUBACHESKI DE AGUIAR
TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL E ITERVEÇÃO ECOÔMICA:
UMA AÁLISE COCORRECIAL DOS COVÊIOS
ITERESTADUAIS DE ICMS E DO SIMPLES ACIOAL
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado
em Direito da Universidade de Marília, como
exigência parcial para a obtenção do grau de Mestre
em Direito, sob orientação da Profª. Drª. Maria de
Fátima Ribeiro.
MARÍLIA – SP
2008
GLAUCO LUBACHESKI DE AGUIAR
TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL E ITERVEÇÃO ECOÔMICA:
UMA AÁLISE COCORRECIAL DOS COVÊIOS
ITERESTADUAIS DE ICMS E DO SIMPLES ACIOAL
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Universidade de Marília,
área de concentração Empreendimentos Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social,
sob orientação da Profª. Drª. Maria de Fátima Ribeiro.
Aprovado pela Banca Examinadora em 31/10/2008
__________________________________________
Profª. Drª. Maria de Fátima Ribeiro
Orientadora
__________________________________________
Profª. Drª. Marlene Kempfer Bassoli
__________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Henrique Lopes Figueiredo
Este trabalho é dedicado aos meus pais, Jaime
e Elisabete, pelo incentivo e apoio dispensado
desde sempre, incondicionalmente.
Dedico, ainda, a Susu, meu amor, pela
paciência, por entender que o tempo que lhe
foi roubado e os finais de semana perdidos não
foram em vão, pois tinham um objetivo maior.
E também por acordar todas as madrugadas,
sem exceção, para preparar as coisas de
viagem, além de viajar comigo, em
pensamento, ao longo dos dois anos do curso.
Ao Pugo, na esperança de que, antes de tudo,
sirva de inspiração para que alcance seus
objetivos.
Como os grandes objetivos não se alcançam
sozinho, é imprescindível agradecer, de
coração, àqueles que ajudaram diretamente na
realização deste sonho:
Em
primeiro
lugar,
meus
sinceros
agradecimentos a Universidade Católica Dom
Bosco e a UNIDERP, através da Fundação
Manoel de Barros, pelo apoio financeiro
dispensado mediante a bolsa de estudos. Sem
isso, não teria sido possível esta realização.
Especial agradecimento à Juliana Medida,
companheira de viagem nestes dois anos e
grande amiga. Sem ela, com absoluta certeza,
não teria sido possível chegar ao final.
Merece menção duplamente especial e
diferenciada a Profa. Dra. Maria de Fátima
Ribeiro, pela orientação precisa e inestimável,
sempre provocando novas idéias e novos
pontos de vista, de modo que, sem isto, este
trabalho não teria se materializado. E também
por ter oportunizado a realização de outro
sonho: ter um livro publicado. Por isto a
menção especialíssima.
Ao Dr. Leonardo Furtado Loubet, advogado
tributarista, professor e amigo, o grande
responsável, em verdade, pelo direcionamento
empreendido a este trabalho, bem como
incentivador e debatedor de primeira hora.
Aos colegas de escritório, Dr. Fábio Alves
Monteiro e Dr. Evandro Silva Barros, que
sempre supriram minha ausência nas lides da
advocacia, permitindo, assim, que este
Mestrado pudesse se realizar tranqüilamente,
sem sobressaltos.
A Suzane Ribeiro Vismara – a Susu – que
mais do que me apoiar e ultrapassar junto
comigo este obstáculo, ainda contribuiu
efetivamente para a realização desta
dissertação, formatando-a e organizando-a.
Por fim, inolvidável a menção aos colegas de
Mestrado pelos vários e prazerosos momentos,
intelectual e festivo, pessoal e profissional,
cuja convivência ao longo do curso resultou
em grandes amizades.
Os limites da minha linguagem significam os
limites do meu mundo.
(Ludwig Wittgenstein)
TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL E ITERVEÇÃO ECOÔMICA:
UMA AÁLISE COCORRECIAL DOS COVÊIOS
ITERESTADUAIS DE ICMS E DO SIMPLES ACIOAL
Resumo:
As normas tributárias possuem finalidades diversas. Por vezes, elas objetivam arrecadar
dinheiro aos cofres públicos, o que significa o fim fiscal da tributação; outras vezes elas visam
servir como instrumento de intervenção econômica, revelando sua finalidade extrafiscal.
Quando se concretizar este fim extrafiscal, e ele for preponderante na norma jurídica
tributária, então isto influirá diretamente na determinação do regime jurídico aplicável,
sujeitando-a não ao regime tributário ou ao regime econômico, mas a ambos. Em razão disto,
sempre que uma norma tributária, qualquer que seja ela, se enquadrar no modelo extrafiscal
com fim de intervenção econômica, sua edição haverá, necessariamente, de observar os
princípios e regras de ambos os subsistemas normativos, isto é, sujeitar-se-á às disposições
constitucionais contidas nos artigos 145 a 156 e nos artigos 170 a 174, que fixam,
respectivamente, os capítulos tributário e econômico no texto da Constituição Federal de
1988. Em razão disto, o deslinde do tema depende de uma análise sistemática. Significa que,
muito embora instrumentos eminentemente tributários, os convênios interestaduais em
matéria de ICMS e o Simples Nacional caracterizam-se como normas tributárias extrafiscais
com finalidade interventiva econômica e, portanto, sujeitam-se tanto ao regime jurídico
tributário como econômico. Por conseqüência, abre-se a possibilidade de se realizar uma
análise destes mecanismos tributários sob a ótica concorrencial, isto é, sob a perspectiva do
direito econômico e do princípio da livre concorrência. Enfim, esta idéia caracteriza um novo
instrumental prático a viabilizar discussões jurídicas que envolvam a problemática relativa ao
Simples Nacional e aos convênios interestaduais em matéria de ICMS.
Palavras-Chaves: tributação extrafiscal; intervenção econômica; concorrência.
EXTRAFISCAL TAXATIO AD ECOOMIC ITERVETIO : A
COMPETITIOAL AALYSIS OF THE ICMS ITERSTATE
AGREEMETS AD ATIOAL SIMPLE TAX
Abstract:
Tax norms have various purposes. At times they aim to collect money for the government ,
which is the fiscal goal of taxation; at other times they aim to serve as an instrument of
economic intervention revealing its extra fiscal goal. When this fiscal aim becomes concrete
and preponderant in the juridical tax norm , it will directly influence the determination of the
applicable juridical regime and it will be subject not only to either the tax or the economic
regime, but to both. Thus, when a tax norm , whatever it is , fits the extra fiscal model with an
economic intervention goal , its edition will necessarily have to observe principles and rules
of both normative subsystems . That is , it will be subject to constitutional dispositions
included in the articles 145 to 156 and in the articles 170 to 174 which respectively determine
the tax and economic chapters in the text of the Federal Constitution of 1988. Therefore , the
solution to matters related to the theme depends on systematic analysis . This means that even
though they are eminently tax instruments, the interstate agreements concerning the ICMS
and the National Simple tax are characterized as extra fiscal tax norms with an economic
interventional goal and as such are subject to both the juridical tax regime and the economic
regime. As a consequence, there is a possibility to perform an analysis of these taxation
mechanisms from a competitional perspective , that is , through economic law and the
principle of free competition. Furthermore , this idea reflects a new practical instrument to
ensure the viability of juridical discussions involving issues related to the National Simple tax
and the interstate agreements concerning the ICMS.
Keywords: extra fiscal taxation ; economic intervention ; competition.
SUMÁRIO
ITRODUÇÃO ...................................................................................................................... 11
1 O SISTEMA JURÍDICO-POSITIVO BRASILEIRO ..................................................... 16
1.1 O CONCEITO DE SISTEMA JURÍDICO E A PLURIVOCIDADE DA EXPRESSÃO . 17
1.2 O SISTEMA JURÍDICO COMO SISTEMA DO DIREITO POSITIVO .......................... 22
1.3 AS UNIDADES COMPOSITIVAS DO SISTEMA DO DIREITO POSITIVO: AS
NORMAS JURÍDICAS............................................................................................................ 25
1.3.1 O conceito de norma e sua distinção em relação ao texto do direito positivo................. 26
1.3.2 As espécies normativas e o papel do intérprete do direito na sua construção ................. 29
1.4 SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO BRASILEIRO E A ORDEM
JURÍDICO-ECONÔMICA ...................................................................................................... 34
1.4.1 Aproximação interdisciplinar entre Direito Tributário e Direito Econômico ................. 36
1.4.2 Sistema Tributário Nacional ou Sistema Constitucional Tributário: diferença? ............. 40
1.4.3 A Ordem Econômica ....................................................................................................... 42
1.5 OS PRINCÍPIOS INSTRUMENTAIS DE INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO . 45
1.5.1 O princípio da supremacia da Constituição ..................................................................... 47
1.5.2 O princípio da unidade da Constituição .......................................................................... 48
1.5.3 O princípio da interpretação conforme a Constituição .................................................... 50
2 O PRICÍPIO COSTITUCIOAL DA LIVRE COCORRÊCIA COMO
GARATE DA ORDEM ECOÔMICA ............................................................................ 53
2.1 A CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988 .......... 56
2.1.1 Constituição Econômica: noção, espécies e as normas programáticas ........................... 58
2.1.2 A finalidade da Constituição Econômica: desenvolvimento socioeconômico ................ 64
2.1.3 Os princípios gerais da atividade econômica e o papel do Estado na ordem
constitucional econômica de 1988............................................................................................ 68
2.2 O PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA COMO VETOR DA ATUAÇÃO
INTERVENTIVA ECONÔMICA DO ESTADO .................................................................... 74
2.2.1 O significado do princípio constitucional econômico da livre concorrência .................. 78
2.2.2 A fragilidade da liberdade de concorrência e a necessária intervenção estatal no intuito
de garanti-la .............................................................................................................................. 82
2.3 A ATUAÇÃO ESTATAL ECONÔMICA E DESENVOLVIMENTO: INTERVENÇÃO
DIRETA E INDIRETA ............................................................................................................ 83
2.3.1 O Estado como agente regulador das atividades econômicas: compreensão do Art. 174
da Constituição de 1988 ........................................................................................................... 86
2.3.2 Normas de direção e normas indutoras: formas de intervenção indireta do Estado sobre a
economia................................................................................................................................... 92
2.3.3 As normas tributárias indutoras como mecanismo de intervenção do Estado sobre o
domínio econômico .................................................................................................................. 94
10
3 O REGIME JURÍDICO-TRIBUTÁRIO DA TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL .......... 98
3.1 OS FINS DA TRIBUTAÇÃO: FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE ................. 102
3.2 COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA: AS NORMAS CONSTITUCIONAIS QUE
DELINEIAM A COMPETÊNCIA IMPOSITIVA DAS ENTIDADES FEDERATIVAS .... 107
3.2.1 Normas constitucionais positivas: regras atributivas de competência........................... 111
3.2.2 Normas constitucionais negativas: os princípios jurídicos e as imunidades tributárias 113
3.2.3 Os princípios constitucionais tributários e a finalidade extrafiscal da tributação ......... 115
3.2.3.1 O princípio da estrita legalidade tributária e a tributação extrafiscal ...................... 116
3.2.3.2 Irretroatividade e normas tributárias extrafiscais ..................................................... 121
3.2.3.3 Anterioridade tributária e extrafiscalidade................................................................ 124
3.2.3.4 Extrafiscalidade e o princípio da igualdade tributária .............................................. 127
3.2.3.5 Extrafiscalidade e o dever de proporcionalidade ...................................................... 132
3.2.3.6 Tributação extrafiscal e o princípio da capacidade contributiva .............................. 134
3.3 A COMPETÊNCIA REGULADORA E A TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL ............... 136
3.4 INCENTIVOS FISCAIS: MECANISMOS JURÍDICOS DE MANIFESTAÇÃO DA
TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL .......................................................................................... 140
4 TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL: UMA AÁLISE COCORRECIAL DOS
COVÊIOS ITERESTADUAIS DE ICMS E DO SIMPLES ACIOAL ............. 145
4.1 A PERSPECTIVA DA CONCORRÊNCIA NOS CONVÊNIOS DE ICMS FIRMADOS
ENTRE OS ESTADOS FEDERADOS .................................................................................. 147
4.1.1 As disposições normativas relativas à concessão de incentivos fiscais em matéria de
ICMS: o Art. 155, §2º, XII, “g” da Constituição Federal de 1988, a Lei Complementar n.
24/75 e a necessidade dos convênios interestaduais............................................................... 149
4.1.1.1 A primeira fase no processo legislativo de concessão de incentivos fiscais – a
celebração dos convênios interestaduais: sua definição, natureza jurídica e finalidade ...... 151
4.1.1.2 A segunda fase no processo legislativo de concessão de incentivos fiscais de ICMS – a
ratificação dos convênios celebrados: órgão competente e meio legítimo ............................ 153
4.1.1.3 Considerações finais sobre a concessão dos incentivos fiscais de ICMS – alguns
pontos da Lei Complementar n. 24/75 ................................................................................... 160
4.1.2 Os convênios interestaduais em matéria de ICMS e o princípio federativo.................. 164
4.1.3 Os convênios interestaduais em matéria de ICMS e a competência tributária .............. 173
4.1.4 Os convênios interestaduais em matéria de ICMS e o princípio da livre concorrência 174
4.2 O SIMPLES NACIONAL NA PERSPECTIVA DA ORDEM ECONÔMICA E A
GARANTIA DA LIVRE CONCORRÊNCIA ....................................................................... 181
4.2.1 O Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte e o Simples
Nacional: há diferença? .......................................................................................................... 183
4.2.2 Os fundamentos constitucionais da Lei Complementar n. 123/2006 ............................ 186
4.2.2.1 As previsões do Texto Constitucional Original: o Art. 170, IX e o Art. 179 .............. 186
4.2.2.2 A Emenda Constitucional n. 42 de 2003 e a inserção do Art. 37, XXII e do Art. 146,
III, “d”, à Constituição de 1988............................................................................................. 189
4.2.3 As inovações jurídicas promovidas pela Lei Complementar n. 123 de 2006: alguns
pontos relevantes .................................................................................................................... 192
4.2.3.1 O alcance do Art. 1º da Lei Complementar n. 123 de 2006 ....................................... 193
4.2.3.2 Breve exame acerca da definição de microempresa e empresa de pequeno porte .... 198
11
4.2.4 O Simples Nacional visto a partir da Ordem Econômica: intervenção indireta do Estado
sobre o domínio econômico, extrafiscalidade e equilíbrio da concorrência........................... 201
SÍTESE COCLUSIVA ................................................................................................... 208
REFERÊCIAS ................................................................................................................... 214
11
ITRODUÇÃO
A Constituição Federal de 1988 positivou, em títulos diferentes – respectivamente,
Título VI e Título VII –, toda a disciplina relativa à Tributação e à Ordem Econômica. O
estudo a respeito das normas jurídicas tributárias e econômicas é efetuado de forma isolada
pela doutrina, especialmente em virtude de suas características e finalidades.
Na prática dos Tribunais não é diferente. Casos concretos que envolvam questões
constitucionais tributárias são analisados apenas da perspectiva da tributação, prescindindo
dos seus concretos efeitos sobre o campo do direito econômico; os temas jurídicoeconômicos, por sua vez, são submetidos tão-somente à observância dos princípios gerais da
atividade econômica, sem se perquirir a respeito das conseqüências tributárias porventura
existentes ou da natureza tributária das regras que tenham finalidade interventiva econômica.
Não há, em verdade, uma análise interdisciplinar destas matérias.
A proposta deste estudo, assim, é de articulação entre a Tributação e a Ordem
Econômica. Precisamente, pretende-se demonstrar como o emprego de normas jurídicas
tributárias reflete diretamente sobre a concorrência, razão pela qual devem ser levados em
conta os princípios e regras constitucionais econômicos quando da análise jurídica da
tributação. Óbvio, porém, que nem todas as normas tributárias sujeitam-se ao regime jurídico
econômico, mas essencialmente aquelas que detém finalidade extrafiscal.
A fim de delimitar o alcance do trabalho e de poder analisar concretos mecanismos
tributários com reflexos econômicos, optou-se, para este estudo e por motivos de relevância
prática, pela escolha dos convênios interestaduais de ICMS e do Simples Nacional. No
primeiro caso, os convênios interestaduais, além de meio para impedir a “Guerra Fiscal” entre
os Estados-membros e assim garantir o pacto federativo, são normas tributárias de natureza
extrafiscal com reflexos econômicos sobre a concorrência, o que justifica sua escolha. Do
mesmo modo o Simples Nacional, instituído pela Lei Complementar n. 123, de 14 de
dezembro de 2006. O regime especial unificado de arrecadação de tributos e contribuições
devidos pelas microempresas e empresas de pequeno porte é, além de instrumento tributário
simplificador, norma jurídica com clara finalidade intervencionista econômica, produzindo
reflexos diretos sobre a concorrência.
12
A fundamentação deste trabalho sustenta-se, em primeiro lugar, na característica
sistêmica que a ordem jurídico-positiva possui. Igualmente imprescindível tomar em conta a
unidade e a supremacia constitucional, e a necessidade de interpretação que leve em
consideração o todo sistêmico, de modo que as normas constitucionais sejam privilegiadas e
concretizadas ao máximo, implicando na sua efetividade social.
Por conseguinte, esta opção de se tomar como base o ordenamento jurídico-positivo
importa em afirmar sua unidade e ordenação, ou seja, todas as normas que o compõe formam
o todo, que é coeso, ordenado e unitário. Uma vez que a ordem jurídico-normativa é
constituída por normas jurídicas, então é relevante fixar sua compreensão e também a
distinção entre as normas jurídicas e os textos do direito positivo. Em verdade, constrói-se a
norma a partir do texto, que nada mais é do que o ponto de partida para a construção
normativa. Deste modo, a afirmação de ser uma norma regra ou princípio, não depende
exclusivamente do enunciado normativo-positivo, mas, entre outras coisas, de sua estrutura,
de sua finalidade e de diversos outros fatores, inclusive as circunstâncias fáticas e os valores
que lhes axiologicmaente sobrejacentes.
Distinguindo-se a norma do texto, a circunstância de este ou aquele comando estar
posicionado dentro do Texto Constitucional neste ou naquele Título é irrelevante. Em
verdade, em razão da característica sistêmica do ordenamento jurídico, as normas jurídicas
que o compõe, das mais diversas naturezas, irremediavelmente interligam-se em algum ponto,
já que construídas com base nos mais diversos textos.
No que tange ao direito tributário e ao direito econômico, este liame estabelece-se no
plano da intervenção estatal sobre o domínio econômico, porquanto a norma tributária tem
sido o instrumento de que mais tem se valido o Estado para exercer sua função de agente
normativo e regulador das atividades econômicas, ou seja, tem sido utilizada como meio a
realização daquela finalidade econômica constitucionalmente definida.
Em virtude da existência de inúmeras disposições constitucionais com conteúdo
econômico, afirma-se haver, na Constituição de 1988, uma “Constituição Econômica”, a qual,
composta por normas programáticas, tem uma finalidade precípua: o desenvolvimento
nacional. Para realizá-lo, o Estado intervirá como agente normativo e regulador das atividades
econômicas, exercendo as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, conforme Art.
174 da Constituição Federal de 1988.
13
Toda a Ordem Econômica, ainda, deve observar os princípios econômicos previstos
no Art. 170 da Constituição Federal. Ressaltando que inclusive a atuação interventiva estatal
deve observância a eles. Por isto, os princípios constitucionais econômicos assumem função
destacada no processo de intervenção do Estado sobre o domínio econômico, já que informam
tanto a atuação do Estado como do particular nesta senda.
Dentre os princípios constitucionais informadores da Ordem Econômica, o princípio
da livre concorrência é o mais relevante ao desenvolvimento desta investigação científica,
pois limita não apenas a atuação interventiva do Estado sobre o domínio econômico, como
também serve de vetor ao exercício das atividades econômicas pelos particulares. O princípio
da livre concorrência exerce, assim, atuação que se pode denominar de “bivetorial”. Ele ainda
consiste em bem jurídico a ser protegido; caracteriza-se como instrumento de garantia dos
valores sociais da livre iniciativa e do trabalho; e, em ultima ratio, serve de meio de proteção
e promoção do desenvolvimento nacional, enquanto objetivo fundamental.
Por outro lado, inolvidável que a intervenção econômica estatal se instrumentaliza
mediante a expedição de normas jurídicas das mais diversas naturezas. Ou seja, para que os
objetivos traçados constitucionalmente sejam concretamente garantidos e efetivados, é
imprescindível que o Estado fixe as políticas públicas necessárias ao desenvolvimento e que
isto se implemente pela via da disciplina jurídica.
As normas jurídicas tributárias, neste contexto, detêm grande importância.
Entretanto, o foco recai sobre aquelas que tenham por finalidade a efetivação da intervenção
econômica estatal, trabalhando com vistas a influenciar o comportamento econômico dos
agentes do mercado com direção à realização dos fins constitucionais econômicos, isto é,
aquela detentora de finalidade extrafiscal. Por esta razão, afirma-se que as normas tributárias
extrafiscais, conquanto formalmente tributárias, detêm conteúdo jurídico-econômico, o que
revela sua submissão a este regime jurídico.
Significa trazer para a discussão jurídica um dado que tem sido desprezado pela
doutrina tributária em geral: a questão da finalidade da norma. A partir do momento que a
norma jurídica tributária passa a servir de meio de intervenção econômica, empregada com o
intuito de realização dos fins constitucionalmente enumerados, este detalhe passa a ser
pertinente para o debate jurídico, em especial para a definição do regime jurídico aplicável.
14
Em termos semióticos: para uma adequada análise das normas tributárias extrafiscais, importa
a perspectiva pragmática, ou seja, a relação das normas com seus destinatários.
Por conseguinte, possuindo conteúdo econômico, as normas tributárias extrafiscais,
também nomeadas de normas indutoras, se sujeitam ao regime jurídico econômico, devendo
observância às suas regras e princípios, seja na perspectiva de sua edição como aplicação. Por
outro lado, as normas indutoras, antes de ser indutora, é norma jurídica de natureza tributária,
o que é suficiente para determinar sua inclusão, também, no regime jurídico tributário.
Esta qualidade dualista de que se revestem as normas tributárias indutoras permite,
assim, uma análise tanto sob a ótica do regime tributário como do econômico, na medida em
que é o ponto de intersecção entre ambos. Assim, elas posicionam-se tanto na sistemática da
intervenção econômica estatal como dentro da disciplina jurídica tributária. Em especial, este
tipo de exame prestigia a integralidade da estrutura do sistema jurídico, notadamente as regras
constitucionais que conferem direitos individuais aos cidadãos, bem assim os princípios
informadores da ordem econômica.
Deste modo, submetendo-se a regimes jurídicos distintos, o problema que precisa ser
resolvido reside na influência que a materialidade econômica ínsita à norma tributária
extrafiscal produz sobre os princípios e regras definidores do regime tributário. Ou seja, devese demonstrar como o conteúdo econômico da norma indutora influência diretamente nas
normas tributárias que definem, em termos gerais, a competência tributária, tanto no que se
refere às normas atributivas de competência como aquelas limitativas desta atribuição.
Enfim, a extrafiscalidade como finalidade da norma tributária pode importar em
modificação de aplicação dos princípios constitucionais tributários. Em outros termos, a
finalidade indutora da norma tributária projeta influxos jurídicos sobre a aplicação das normas
gerais definidoras do regime tributário. Conquanto a finalidade normativa possa, por vezes,
significar fatores externos ao ambiente jurídico e, assim, ser irrelevante para o estudo do
direito, há situações em que o fim é um dado juridicamente relevante, e, por isto, deve ser
considerado na análise científica. Este é o caso.
Com estas idéias, o grande problema a se responder: é possível promover uma
análise dos instrumentos tributários escolhidos – os convênios interestaduais em matéria de
incentivos fiscais de ICMS e o Simples Nacional – sob a ótica econômica, fundamentalmente
da perspectiva concorrencial?
15
Ora, a adequada manipulação do instrumental tributário, como se sabe, tem forte
conseqüências sociais, da perspectiva pragmática. Vale dizer, a implementação de intervenção
econômica pela via da manipulação tributária detém eficácia social acentuada. Entretanto,
mesmo que se observem as formalidades fixadas pelo regime jurídico tributário, ainda assim
tentar-se-á demonstrar que estes mecanismos atingem diretamente a concorrência.
Para se chegar ao objetivo proposto e demonstrar a solidez da idéia, o ponto de
partida será as previsões positivadas tanto pelo Texto Constitucional como pela legislação
infraconstitucional, quando relacionada ao tema e interessante a desvendá-lo. A sustentação
ainda fundar-se-á em análise doutrinária, sempre tomando em conta a lição de que o intérprete
do direito não apenas constrói, mas reconstrói as normas jurídicas, já que é ele quem atribui
sentido aos textos positivados. Além disto, apontar-se-á, sempre que necessário, a
jurisprudência constitucional brasileira sobre o tema e circunstâncias sob análise.
Assim, as hipóteses que se apresentam neste estudo são simples: É possível que
normas tributárias sujeitem-se ao regime jurídico econômico, além do regime tributário? São
todas as normas tributárias que se sujeitarão ao regime jurídico econômico? A finalidade da
norma tributária é fator jurídico relevante para a definição do regime jurídico aplicável?
Respondidos estes problemas, que de resto fixam as idéias gerais sobre o tema, deve-se saber:
os convênios interestaduais de ICMS e o Simples Nacional são normas extrafiscais? Estes
instrumentos tributários devem se sujeitar aos princípios constitucionais econômicos? Sua
aplicação tem reflexos sobre a concorrência?
16
1 O SISTEMA JURÍDICO-POSITIVO BRASILEIRO
Enquanto objeto cultural integrante do sistema social, o Direito pode ser analisado a
partir de diferentes aspectos e perspectivas; sua relação com outros sistemas sociais permite
que se constitua em objeto de exame das mais diversas ciências: social, econômica, política,
além, é claro, da própria Ciência Jurídica.
Estando este estudo centralizado na área jurídica, e tendo em vista a pretensão de
cientificidade que a ele se pretende imprimir, a escolha do método dogmático jurídico e a prédefinição do sistema jurídico positivo como ponto de partida revela a intenção de estudar o
tema – Tributação e Concorrência – a partir da dimensão normativa destes institutos.
Desta forma, elegido o ponto de partida no intuito de reduzir a complexidade do
estudo, então como primeira providência a ser tomada, deve-se esclarecer o que se considera
“sistema jurídico”, para o que aqui se pretende.
Esta escolha, como primeiro passo neste trabalho, é imprescindível, pois, segundo
Geraldo Ataliba,
[...] o estudo de qualquer realidade – seja natural, seja cultural – quer em
nível científico, quer didático, será mais proveitoso e seguro, se o agente é
capaz de perceber e definir o sistema formado pelo objeto e aquele maior no
qual este se insere. Se se trata de produto cultural, ainda que o esforço
humano que o produziu não tenha sido consciente de elaborar um sistema,
previamente deliberado neste sentido, deve procurá-lo e apreendê-lo o
observador ou intérprete.1 (grifos do autor)
Por isto que o autor, ao esclarecer a compreensão do termo “sistema”, afirma que:
[...] o caráter orgânico das realidades componentes do mundo que nos cerca
e o caráter lógico do pensamento humano conduzem o homem a abordar as
realidades que pretende estudar, sob critérios unitários, de alta utilidade
científica e conveniência pedagógica, em tentativa de reconhecimento
coerente e harmônico da composição de diversos elementos em um todo
unitário, integrado em uma realidade maior. A esta composição de
elementos, sob perspectiva unitária, se denomina sistema.2
1
2
ATALIBA, Geraldo. Sistema constitucional tributário brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 4.
Idem, ibidem, p. 4.
17
Deste modo, revela-se essencial conceituar “sistema jurídico” para fins de
estabelecer adequadamente o ponto de partida deste estudo.
1.1 O CONCEITO DE SISTEMA JURÍDICO E A PLURIVOCIDADE DA EXPRESSÃO
Conceituar sistema jurídico é algo que demanda algumas considerações iniciais, haja
vista a plurivocidade da expressão. Afirmar que o termo possui mais de um sentido, em
verdade, não chega a ser particularidade própria desta expressão, mas, ao contrário, é algo
ínsito a maioria das palavras, como adverte Alf Ross: “La mayor parte de las palabras no
tienen um campo de referencia único, sino dos o más, cada uno de ellos construido en la
forma de una zona central a la que se añade un círculo de incertidumbre. Talas palabras son
llamadas ambiguas”.3
O jusfilósofo dinamarquês esclarece que a ambigüidade das palavras decorre da
indefinição do seu campo de referência, ou seja, o seu conteúdo semântico depende da
escolha de um parâmetro certo e definido. Assim, enquanto indefinido o referencial a partir do
qual elas (as palavras) serão compreendidas, subsistirá a ambigüidade. Contudo, pré-definido
o ponto de referência, a utilização de qualquer expressão perde sua vaguidade, assumindo um
sentido inequívoco.
Luis Alberto Warat reforça a questão da vaguidade das palavras, mormente dos
termos jurídicos. Ao tratar da linguagem do direito, o autor pontifica a lição de que mesmo
que plurívoca a expressão, ela sempre possuirá uma significação de base, além de outras
dependentes do contexto em que inseridas.4 Ou seja, valendo-se de outros termos, estabeleceu
idêntico pensamento ao de Alf Ross, no sentido de que a superação da ambigüidade de uma
expressão demanda a definição de um ponto de referência.
A ambigüidade da expressão sistema jurídico, portanto, deve ser superada, a fim de
se estabelecer o seu teor semântico. Para tanto, imperativo que se anote de modo indistinto, de
início, em qual sentido ela será utilizada, a fim de estabelecer uma compreensão unívoca para
a investigação científica ora desenvolvida. De toda sorte, a plurivocidade desta expressão tem
que ver com duas circunstâncias: (i) a palavra “sistema” detém grande quantidade de
3
ROSS, Alf. Sobre el derecho y la justicia. 2. ed. Buenos Aires: Eudeba, 1997, p. 150.
Sobre significado de base e significado contextual, v. WARAT, Luis Alberto. O direito e sua linguagem. 2. ed.
Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris Editor, 1995, p. 65.
4
18
significações5; (ii) o problema da ambigüidade da expressão “sistema jurídico” decorre de sua
utilização para significar dois objetos distintos, o que comprova a afirmação de Norberto
Bobbio de que “[...] o termo ‘sistema’ é um daqueles termos de muitos significados, que cada
um usa conforme suas próprias conveniências”.6
Se assim o é, para superar a plurivocidade do termo, valer-se-á desta expressão com
um único significado. Para tanto, o primeiro expediente a ser usado deve indicar o sentido em
que o vocábulo “sistema” é compreendido, eliminando todos os demais significados
existentes. Ao depois, quando predicado pelo termo “jurídico”, essencial que seja apontado o
significado que a expressão “sistema jurídico” receberá ao longo do texto, indicando a qual
dos objetos normalmente significados por esta expressão se está referindo, a fim de superar,
em definitivo, a equivocidade da expressão.
A idéia de que a palavra “sistema” possui várias significações resta bem
exemplificada por Cristiano Carvalho, que ao estudar o sistema jurídico e a inter-relação entre
direito, economia e tributação, apresenta quatro significações para este vocábulo:
(i) o conjunto de partes coordenadas entre si; (ii) a reunião de proposições,
de princípios coordenados de molde a formarem um todo científico ou um
corpo de doutrina; (iii) a reunião, combinação de partes reunidas para
concorrerem para um certo resultado; (iv) o método ou a combinação de
meios de processo destinados a produzirem um certo resultado.7
Em outra versão sobre a compreensão de “sistema”, Tércio Sampaio Ferraz Jr.
chama a atenção para a idéia de limite que dele resulta, isto é, todo sistema supõe a
demarcação de um quadro, uma moldura que permite identificar o que está dentro, o que
entra, o que sai e o que permanece fora. Em conseqüência, o autor conclui afirmando que o
sistema caracteriza-se como um complexo composto por um repertório e por uma estrutura,
consistindo aquele no conjunto de elementos, e esta no plexo de regras que determinam as
relações entre aqueles elementos.8
5
Apenas o Dicionário Aurélio traz nada menos do que 22 (vinte e duas) acepções distintas para significar o
vocábulo “sistema”.
6
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. 10. ed. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos
Santos. Brasília: UnB, 1999, p. 76.
7
CARVALHO, Cristiano. Teoria do Sistema Jurídico: direito, economia e tributação. São Paulo: Quartier Latin,
2005, p. 38.
8
FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São Paulo:
Atlas, 2007, p. 176.
19
Sendo um complexo dual formado por repertório e estrutura, é possível estudar o
sistema isolando-se cada uma das partes que o compõe. Assim, significa que o estudo do
sistema pode abordar tanto os elementos que o compõe, isto é, o seu repertório, como também
o conjunto das regras que disciplinam a dinâmica daqueles elementos, a sua estrutura.
O vocábulo “sistema”, ainda que detentor de sem número de significados, possui um
teor semântico com o qual há concordância doutrinária, qual seja, de que ele se constitui na
reunião ordenada e harmônica das diversas partes de um todo formando um complexo
unitário, onde a relação entre os elementos e destes com o todo é coesa. Neste sentido, a lição
de Paulo de Barros Carvalho, que entende sistema como
[...] o objeto formado de porções que se vinculam debaixo de um princípio
unitário ou como a composição de partes orientadas por um vetor comum.
Onde houver um conjunto de elementos relacionados entre si e aglutinados
perante uma referência determinada, teremos a noção fundamental de
sistema.9
Claus Wilhelm-Canaris também salienta a ordenação e a unidade como
características que acompanham o conceito geral de sistema, seja este sistema o normativo
(denominado como sistema objetivo) como o sistema das proposições doutrinárias
(denominado de sistema científico). Esta conclusão é alcançada mediante minucioso estudo
empreendido acerca do tema, e após a exposição das distintas conceituações que o termo
“sistema” recebeu na evolução da ciência do direito.10
Enfim, pode-se sintetizar a compreensão de “sistema”, fixando-se aquela acepção de
base outrora referida, na enfática afirmação de Juan Manuel Teran: “sistema é um conjunto
ordenado de elementos segundo um ponto de vista unitário”.11
Neste aspecto, o sistema jurídico é, em primeiro lugar, um complexo ordenado de
normas jurídicas orientado por princípio unificador. Entretanto, dizer categoricamente quais
normas jurídicas que se caracterizam como elementos integrantes do sistema jurídico e, além
disso, indicar o que faz a vez de princípio unificador depende de mais algumas considerações.
9
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva,
1998, p. 40.
10
CANARIS, Claus-Wilhelm. Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito. 3. ed.
Tradução de Antônio Menezes Cordeiro. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 09-13.
11
Apud CHIESA, Clélio. CHIESA, Clélio. ICMS – Sistema Constitucional Tributário: algumas
inconstitucionalidades da LC 87/96. São Paulo: LTr, 1997, p. 19.
20
Um sistema jurídico não é formado pela mera junção de normas de forma
desordenada, mas, sim, por decorrência da reunião coesa e harmônica entre elas, ou melhor,
das características de ordenação e unidade que permeia todo e qualquer sistema. Ademais, já
pontificara Geraldo Ataliba, com suas sempre precisas lições: “os sistemas não são formados
pela soma de seus elementos, mas pela conjugação harmônica deles. Os sistemas normativos
são formados pela composição hierárquica e sistemática das normas que o compõe”.12
Norberto Bobbio, ao tratar do tema, toma o ordenamento jurídico como um sistema.
Para aclarar sua percepção, ele afirma que a compreensão sistemática da ordem jurídica pode
ser alcançada por três diferentes sentidos: (i) em primeiro lugar, porque todos os elementos
que compõe um dado ordenamento derivam, por corolário lógico, de alguns princípios gerais;
(ii) secundariamente, por conta da possível ordenação de conteúdo de cada qual das normas
que a compõe (a ordem jurídica), resultando em divisões e classificações gerais a partir das
matérias contidas naquelas normas; e (iii) por fim, em razão da impossibilidade de
coexistência de normas incompatíveis no seu bojo.13
Nesta terceira acepção tomada por Bobbio para significar o ordenamento jurídico
como um sistema, nota-se a clara influência kelseniana subjacente à idéia desenvolvida, na
medida em que afirma não poder existir simultaneamente normas incompatíveis entre si, o
que equivale a asseverar a formação do ordenamento pelo conjunto das normas jurídicas
válidas. Por conseqüência, a incompatibilidade implica na impertinência da norma jurídica em
relação ao sistema, sendo, portanto, inválida.
Mais do que isto, ao afirmar a impossibilidade de coexistência de normas jurídicas
incompatíveis no bojo da ordem jurídica, há a indicação clara de que o relacionamento entre
elas é de subordinação (há uma relação de hierarquia) e de coordenação, e, por isto mesmo,
sua configuração ordenada e unitária, ou seja, um conjunto organizado de elementos (normas
jurídicas) e não um amontoado caótico e desarmônico.
Após breve análise acerca das acepções conferidas ao termo sistema, também André
Elali destaca que o direito pode ser estudado como um sistema, haja vista possuir as duas
características que acompanham este conceito, quais sejam: ordenação e unidade. Por isto
que, segundo considerações do autor:
12
ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 20.
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos.
10 ed. Brasília: UnB, 1999, p. 77-81.
13
21
A partir de qualquer das significações postas, constata-se que o direito, na
acepção de um conjunto de várias partes, estruturadas de forma harmônica e
com um mesmo objetivo, pode ser estudado enquanto sistema. Materializase, nesse diapasão, através de normas jurídicas. Assim, ter-se-á sistema onde
houver norma jurídica, sendo esta uma unidade daquele.14
Inolvidável, no entanto, que a expressão “sistema jurídico” tem sido tomada para
significar tanto o sistema do direito positivo como o sistema da ciência do direito. Isto tem
causado problemas de compreensão no que se refere ao emprego da expressão, cujos
resultados são a pouca clareza na mensagem transmitida, como também na dificuldade de
compreensão pelo seu destinatário, pois esta terminologia tem sido empregada para significar
dois planos de linguagem distintos, duas realidades diversas.
O sistema do direito positivo situa-se no plano do dever-ser; sua linguagem é
prescritiva; a valência de suas proposições é figurada pelo binômio validade/invalidade; a
finalidade dos elementos que o compõe objetiva regular materialmente as condutas
intersubjetivas de seus utentes. Por outro lado, o sistema da ciência do direito localiza-se no
plano ontológico; a linguagem que o permeia é descritiva; a valoração de suas proposições
verte-se em verdadeiras ou falsas, em razão das premissas e fundamentos adotados; e suas
proposições objetivam apenas descrever o direito, como seu objeto, sem nele intervir.
Isto significa, portanto, que “sistema jurídico” não é expressão apropriada a
significar dois distintos objetos. Por isto, apesar das considerações anteriores, não se objetiva
aprofundar a análise sobre o termo “sistema jurídico”, mas, sim, pretende-se evitar falácias
que a contenda semântica relativa a esta expressão envolve, a fim de significar, de antemão, o
sentido a ser emprestado, neste texto, a esta expressão.
Enfim, como significação de base, esta terminologia é tomada como expressão
designativa de sistema do direito positivo, isto é, como o conjunto composto por elementos
normativos regidos por um critério unitário. Os elementos que o integra: as normas jurídicas
válidas; o critério unificador: a norma hipotética fundamental.15
14
ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica: um exame da tributação como instrumento e regulação
econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora, 2007, p. 39.
15
Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, passim; e KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. Tradução de Luis Carlos
Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 161-163.
22
1.2 O SISTEMA JURÍDICO COMO SISTEMA DO DIREITO POSITIVO
Tomado o sistema jurídico como sistema do direito positivo, então, pode-se afirmar,
segundo Paulo de Barros Carvalho, que ele (o sistema do direito positivo) se constitui “[...] no
conjunto de todas as normas jurídicas válidas, num determinado intervalo de tempo e sob
específico espaço territorial, inter-relacionadas sintática e semanticamente, segundo um
princípio unificador [...]”.16
Carlos Maximiliano, em sua conhecida obra acerca da hermenêutica e aplicação do
direito, expressou sua percepção sistemática do direito positivo ao referir-se a sua totalidade
orgânica e à ilicitude que resultaria da análise isolada apenas de parte das normas sem a
consideração e concordância com as demais, corroborando, assim, a idéia de sistema que
subjaz à ordem jurídica.17 Segundo ele,
[...] o direito objetivo não é um conglomerado caótico de preceitos; constitui
vasta unidade, organismo regular, sistema, conjunto harmônico de normas
coordenadas, em interdependência metódica, embora fixada cada uma no seu
lugar próprio. De princípios jurídicos mais ou menos gerais deduzem
corolários; uns e outros se condicionam e restringem reciprocamente,
embora se desenvolvam de modo que constituem elementos autônomos
operando em campos diversos. Cada preceito, portanto, é membro de um
grande todo; por isso do exame em conjunto resulta bastante luz para o caso
em apreço.18
Destas conceituações extraem-se que todas as normas jurídicas válidas constituem o
sistema do direito posto, independentemente da hierarquia em que se encontre, vale dizer,
desde aquelas situadas no plano constitucional até as de menor hierarquia, localizadas na base
da pirâmide jurídica. Outra circunstância que se verifica nesta conceituação está na
localização espaço-temporal deste “conjunto de normas jurídicas válidas”, ou seja, considerase apenas o direito objetivo presente no seio de certa sociedade, a ordem jurídica posta, isto é,
“[...] o direito positivo considerado hic et nunc”.19 Ainda, se deduz deste conceito a existência
dos vínculos que interligam as normas jurídicas que compõe o direito positivo, o que lhe
confere unidade. Estas relações são verticais (subordinação, hierarquia) e horizontais
(coordenação).
16
CARVALHO, Paulo de Barros. Direito Tributário: fundamentos jurídicos da incidência. São Paulo: Saraiva,
1998, p. 45.
17
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 16 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 159.
18
Idem, ibidem, p. 105.
19
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 13.
23
Estas ponderações revelam a configuração do sistema normativo exatamente como
descrito por Tércio Sampaio Ferraz Jr., ou seja, um objeto formado por um repertório e por
uma estrutura: as normas jurídicas válidas, o repertório; suas interligações mediante vínculos
de subordinação e coordenação, a estrutura. Neste aspecto, deve-se consignar a afirmação
peremptória do autor de que o sistema jurídico-positivo é formado não apenas por elementos
normativos, mas também por unidades não-normativas que integram o repertório do sistema.20
Considerado desta forma, e tomando-se apenas o repertório como tema de
esquadrinhamento neste momento, o sistema do direito positivo é um plexo composto por
elementos vertidos em linguagem prescritiva, ou seja, suas proposições têm por escopo reger
as condutas intersubjetivas, disciplinando-as. Vale dizer, portanto, que os elementos que
compõem o repertório da ordem jurídica são sempre de caráter imperativo.
Por conseguinte, constituindo-se em proposições prescritivas, as normas jurídicas
somente podem ser cogitadas, em sua perspectiva jurídico-axiológica, se são válidas ou não.
Assim, o sistema jurídico-normativo se afigura como uma pirâmide, escalonado
hierarquicamente, onde as normas situadas nos degraus mais elevados da ordem jurídica
conferem fundamento de validade às demais, surgindo, no seu ápice, a norma hipotética
fundamental, como chamada por Hans Kelsen, a qual se presta a legitimar as normas
constitucionais, e estas, conseqüentemente, a validar sintaticamente as restantes normas
jurídicas, conferindo-lhes a unidade sistêmica.21
Esta concepção dogmática permite a visualização estática do sistema do direito
positivo, ou seja, como se fosse possível congelar os elementos normativos – o repertório
sistemático – em um dado instante.
Tomada a premissa do sistema jurídico como o sistema do direito positivo, a
afirmação quanto à possibilidade de vislumbrá-lo como um sistema estático não contradiz a
idéia de dinamicidade que caracteriza a ordem jurídica vista sob a tese kelseniana, adotada
neste trabalho. Ao contrário, quer significar tão-somente uma análise a partir de um plano
lingüístico da sintaxe, como exposto na teoria jurídica de Tércio Sampaio Ferraz Júnior.22
20
Sobre este assunto, cf. FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão,
dominação. 5. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 177-178.
21
Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6.ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, passim.
22
FERRAZ JR. Tércio Sampaio. ob. cit., p. 177-178.
24
A teoria proposta por Kelsen concebe a ordem jurídico-positiva como um sistema
dinâmico de normas, porque é o próprio sistema, a partir da norma fundamental, quem dita o
processo de criação e anulação das normas.23 Tércio Sampaio Ferraz Júnior esclarece de
modo preciso o motivo da qualidade dinâmica da ordem jurídica: isto ocorre porque ela “[...]
capta as normas dentro de um processo de contínua transformação [...]”.24
Esta perspectiva de análise do fenômeno normativo permite dizer se uma norma é
válida ou não, ou seja, é preciso vislumbrá-la dentro do conjunto normativo. Imprescindível,
portanto, saber se ela é pertinente ao sistema jurídico no qual ela foi colocada. Para tanto, uma
vez que as normas são criadas, extintas, alteradas ou mesmo substituídas, então a visão
dinâmica do sistema é necessária para explicar os fenômenos.
Entretanto, deve-se recordar que o ordenamento jurídico consiste em um sistema
dinâmico, idéia que é sobremaneira importante, à medida que permite o estudo das normas
jurídicas em suas inter-relações com o próprio sistema jurídico no qual está posta, com seus
destinatários e também quanto aos efeitos dela sobre estes. Em termos outros, estas idéias
comportam o estudo do sistema jurídico, e principalmente das normas que o formam, tanto
em uma dimensão estática como dinâmica.
Por esta percepção explica-se o motivo de se construir normas que sejam válidas
quando abstratamente consideradas, mas que, em certas e determinadas situações concretas,
elas assumem feição incompatível com o sistema jurídico, vale dizer, os efeitos dela são
ilegítimos. É a dinâmica do ordenamento jurídico se manifestando de modo efetivo. Em
situações como tais, é possível afirmar que sintaticamente a norma jurídica é perfeita; porém,
em face dos contornos da situação concreta, isto é, da ótica semântica ou da pragmática, ela
produz conseqüências jurídicas inconstitucionais, levando, por vezes, ao conflito concreto.
Este é um problema decorrente das próprias circunstâncias em que se encontra,
atualmente, a dogmática jurídica. A evolução dos estudos constitucionais, mormente acerca
dos princípios jurídicos, influenciou largamente o debate jurídico. Além disto, ao longo do
tempo um dado foi acrescentado ao debate como conseqüência dos avanços dos estudos
dogmáticos e da própria necessidade social surgida: a questão de conteúdo das normas.
23
Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, passim; e KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. Tradução de Luis Carlos
Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 165-167.
24
FERRAZ JR. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2007, p. 178.
25
Ora, se a idéia que dominou o positivismo kelseniano era no sentido de rechaçar a
questão substancial, prevalecendo, sempre, a ótica formal da validade jurídica, atualmente a
tendência tem se guiado no sentido de conferir efetividade às normas e a ordem jurídicopositiva, em especial ao comando constitucional.
Em outros termos, passou-se a levar em consideração os destinatários da norma, a
matéria, a força de incidência, a finalidade, o funtor, enfim, problemas semânticos e
pragmáticos decorrentes da dinamicidade do sistema jurídico. Inclusive, incorporou-se ao seu
corpus constitucional valores e princípios políticos e morais que antes não recebiam o timbre
da juridicidade. Com isto, enfim, estes princípios assumiram a condição de norma jurídica.
Deve-se, então, afirmar indistintamente o que vem a ser “norma jurídica” e quais
suas espécies. Antes, porém, que fique claro: sistema jurídico é tomado como sinônimo de
ordenamento jurídico-positivo, isto é, a ordem jurídica iniciada com a Constituição de 1988.
Um breve parêntese antes de encerrar: em razão da tendência de busca pela justiça do
caso concreto; de luta pela efetividade constitucional; do conflito normativo entre princípios
jurídicos, que só é possível de ser analisado concretamente; e da natureza programática dos
diversos enunciados normativos constitucionais; enfim e em geral, das questões semânticas e
pragmáticas da ordem jurídica, alguns autores na doutrina brasileira têm afirmado a evolução
(ou superação, dependendo da linha de pensamento adotada) do positivismo para o
surgimento de um pós-positivismo.25
1.3 AS UNIDADES COMPOSITIVAS DO SISTEMA DO DIREITO POSITIVO: AS
NORMAS JURÍDICAS
O sistema jurídico é um organismo composto pelo plexo de normas jurídicas válidas,
as quais são extraídas a partir dos diversos textos do direito positivo. Elas, as normas
jurídicas, são as unidades compositivas do conjunto. Contudo, para a completa compreensão
sobre este tema, imprescindível a noção de norma jurídica adotada neste trabalho. Neste
contexto, deve-se expor, também, a distinção entre norma jurídica e o texto normativo.
25
Sobre o neoconstitucionalismo, cf. BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da
história: a nova interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís
Roberto. A Hova Interpretação Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003. No que se refere às críticas a esta doutrina, cf., por todos, DIMOULIS, Dimitri;
DUARTE, Écio Oto Ramos [coord]. Teoria do Direito Heoconstitucional: Superação ou Reconstrução do
Positivismo Jurídico? São Paulo: Método, 2008.
26
Logo, o conceito de norma jurídica é necessário ao adequado prosseguimento desta
investigação científica. Embora não seja o seu objeto, esta é premissa necessária ao
desenvolver do tema, isto é, tributação e concorrência na Constituição Federal de 1988.
Inolvidável que norma jurídica é noção que descortina o gênero da unidade que
compõe o sistema jurídico-positivo. Como tal, ela se subdivide, segundo a doutrina
dominante, em duas espécies: regras e princípios, distinção cunhada já há algum tempo pela
doutrina da Teoria do Direito e que ultimamente adquiriu relevo no debate doutrinário e
jurisprudencial brasileiro, notadamente a partir da Constituição de 1988.
Por outro lado, recentemente Humberto Ávila conferiu novo fôlego à discussão sobre
as espécies normativas ao estabelecer um modelo tripartite: princípios, regras e postulados
normativos aplicativos, onde as duas primeiras espécies situam-se no âmbito das normas de
primeiro grau, e a última localiza-se no patamar das metanormas, isto é, das normas de
segundo grau.26
De toda sorte, neste momento importa conceituar norma jurídica e fixar sua distinção
em relação ao texto do direito positivo, bem assim apontar algumas observações sobre a
construção de sentido das normas jurídicas. Ao depois, oportunamente, serão traçadas as
considerações relativas à distinção entre as espécies normativas.
1.3.1 O conceito de norma e sua distinção em relação ao texto do direito positivo
Fixar o conceito de norma é trabalho que há muito atormenta os estudiosos do
direito. Dar-lhe a conceituação é algo tão controvertido que já houve quem reunisse 82
definições de norma, consoante assinala Tércio Sampaio Ferraz Júnior.27 Não obstante, o tema
deste trabalho tem por cerne a questão da tributação e da concorrência no contexto da
interpretação constitucional, o que não permite, neste setor, expor as generalidades e
discussões dogmático-jurídicas sobre a norma jurídica e seu conceito. Ao contrário,
simplificar-se-á, tomando por empréstimo o conceito que se compreende mais adequado e que
serve aos fins desta investigação.
26
Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São
Paulo: Malheiros, 2006, p. 29 e ss.
27
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Teoria da Horma Jurídica. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 36.
27
Afora a discussão sobre seu conceito, há relativo aceite na doutrina quanto à
distinção que existe entre a norma e o texto. Ainda hoje, encontra-se em diversos estudos
jurídicos uma confusão entre norma jurídica e o enunciado textual do direito positivo. Além
da impropriedade semântica, a confusão entre estas categorias causa graves erros na análise
jurídica empreendida sobre certos casos, resultando em problemas dos mais diversos matizes.
Exemplo disto são as decisões judiciais que recorrentemente substanciam-se em uma análise
apressada e literal de um único dispositivo legal sem, no entanto, considerar o contexto
jurídico no qual ele está colocado, ou mesmo sem analisá-lo sob as luzes dos magnos
princípios constitucionais a lhe direcionar a aplicação; também as afirmações desencontradas
da Jurisprudência ao empreender análises sobre determinados preceptivos normativos são
conseqüências da inadequada compreensão a respeito da distinção entre norma e dispositivo.
Em virtude disto, os cientistas do direito tem se esforçado em firmar esta distinção.
Paulo de Barros Carvalho, por exemplo, é claro ao dizer: “A norma jurídica é a significação
que obtemos a partir dos textos do direito positivo”.28 Na mesma linha assevera Humberto
Ávila: “Hormas não são textos nem o conjunto deles, mas os sentidos construídos a partir da
interpretação sistemática de textos normativos”.29
Deste modo, normas jurídicas, segundo noção ora aceita, são construções de sentido
dadas as mais diversas disposições prescritivas contidas no ordenamento jurídico. Os textos
do direito positivo são os suportes físicos que se constituem de enunciados prescritivos. A
norma é o resultado da interpretação sistemática dos dispositivos legais. Estes são os objetos
de análise; aquela é o produto do processo interpretativo destes, por isto que, com efeito, a
norma diferencia-se do texto normativo.
Esta desvinculação entre a norma e a disposição legal permite a percepção de que,
para o Direito, o texto não é decisivo para a criação da norma, conquanto seja o ponto de
partida. Para Lenio Luiz Streck observa que “[...] O texto não existe em si mesmo. O texto
como texto é inacessível, e isto é incontornável. O texto não segura, por si mesmo, a
interpretação que lhe será dada. Do texto sairá, sempre, uma norma. A norma será sempre o
produto da interpretação do texto”.30
28
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 08.
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São
Paulo: Malheiros, 2006, p. 30.
30
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do
direito. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 314.
29
28
Uma breve consideração sobre a assertiva precitada: deve-se ficar claro que o autor,
ao afirmar que a partir do texto extrair-se-á, sempre, uma norma, não quer significar, em
absoluto, que cada dispositivo produzirá uma única (numericamente falando) norma. Até
porque, em virtude da dissociação entre o dispositivo e a norma, sua construção não depende
da pré-existência do dispositivo, porquanto dependente de circunstâncias externas a ele,
como, por exemplo, a perspectiva do intérprete que está a lhe descortinar o significado, a
situação concreta, ou mesmo a condição espaço-temporal na qual é analisada.
A norma, porque é o resultado da exegese feita a partir do texto, nele não está
contida. Ou seja, o sentido das palavras não é algo que está incorporado ao seu conteúdo. O
fraseado jurídico, ao ser investigado – seja para construir o sentido das normas a serem
eventualmente aplicadas, seja para descrevê-las enquanto objeto da ciência jurídica – pode ser
visto sob três “planos lingüísticos”: sintático, semântico e pragmático. Somem-se a isto as
circunstâncias individuais do intérprete – o qual realizará o processo de construção de
significados –, bem como o sentido recebido pelo texto em um dado momento histórico
(condição espaço-temporal), além dos fatos subjacentes ao comando legal analisado e ter-se-á
os fatores determinantes do sentido da norma, extraída a partir do texto do direito positivo.
Óbvio, por outro lado, que o texto do direito positivo não é algo totalmente
desprovido de significado. De uma perspectiva sintática de análise do fraseado sempre se
encontrará uma significação mínima, resultado do uso corrente da linguagem. A isto,
Wittgenstein denomina de “jogos de linguagem”; Heiddeger, de “enquanto hermenêutico”; já
Miguel Reale refere-se à “condição a priori intersubjetiva”.31
Enfim, ainda que o texto não seja decisivo para o Direito, e as normas prescindam
dele para sua construção, não se pode olvidar que o texto é o ponto de partida que traça os
limites à determinação de significado das normas, pois esta será sempre o resultado de uma
interpretação, que não desconsidera a pré-existência de sentidos já incorporados aos símbolos
lingüísticos que formam o dispositivo, mas a ele incorporam novas significações.
A diferença existente entre norma e texto do direito positivo resulta em algumas
conclusões inelutáveis: (i) primeiramente, como resultado lógico do conceito adotado, se pode
afirmar que as normas jurídicas sempre são implícitas32; expresso, sempre, é o enunciado
31
Para uma melhor compreensão sobre isto, e de forma sintética, cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios –
da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 32-33.
32
Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 10.
29
prescritivo do dispositivo normativo; (ii) em segundo lugar, uma vez que não se confunde
norma e texto, fica evidente que a construção de normas jurídicas independe da existência
concreta de textos positivados. Nesta medida, por vezes construir-se-ão normas sem que
existam dispositivos normativos; outras vezes, de um único texto positivo formar-se-á mais de
uma norma jurídica; em outros casos, será necessária mais de uma disposição normativa para
se construir uma única norma jurídica.
Enfim, as normas jurídicas independem dos enunciados prescritivos positivados,
porquanto são juízos, significações extraídas a partir deles. Porém, não se deve perder de vista
que são os dispositivos os pontos de partida para a construção da norma, qualquer que seja sua
espécie. Ou seja, havendo um dispositivo expresso, as normas jurídicas devem ser construídas
pelo intérprete a partir deles.
1.3.2 As espécies normativas e o papel do intérprete do direito na sua construção
Em geral, a doutrina define as espécies normativas em regras ou princípios. Esta
distinção é antiga, pelo que já se produziu farta literatura a respeito. Vez por outra esta
discussão ressurge nos meios doutrinários. No entanto, o fenômeno atual, notadamente no
direito brasileiro, assume sobremaneira importância, não pela distinção em si, mas pela
extensão e conseqüências práticas que daí advém.
Ainda que com atraso em relação à doutrina comparada, este debate ganhou relevo
no cenário jurídico brasileiro por conta de fatores políticos e também jurídicos, a saber: (i) a
promulgação, em 05 de outubro de 1988, da Constituição Federal; (ii) a idéia de efetividade
das normas constitucionais, que tomou de assalto tanto a doutrina como os Tribunais pátrios a
partir de então; (iii) a ascensão dos princípios jurídicos no seio do sistema jurídico-normativo,
bem como de seus estudos.
As primeiras abordagens da dogmática jurídica compreendiam os princípios como
meras formulações de ordem política ou moral, destituído de timbre normativo, pelo que lhe
faltaria condições para gerar efeitos jurídicos ou aplicação direta e imediata sobre as situações
por eles alcançadas. Esta visão se deve, em grande medida, à compreensão que se tinha de que
a Constituição seria mero repositório de intenções, caracterizando-se como uma Carta Política
cuja finalidade seria apenas fixar os programas, as ações a serem alcançadas pelo Estado.
Justamente por esta razão, seria ela, a Constituição, o espaço por natureza dos princípios.
30
Neste quadro, norma jurídica seria apenas aquela categoria que hoje é mais
conhecida como “regra”, ou seja, a proposição jurídica com caráter hipotético-condicional,
isto é, que contém relato (antecedente normativo; hipótese de incidência) objetivo descritivo
de certas e determinadas condutas e aplicáveis a um plexo específico de situações.
No entanto, à medida que as normas constitucionais conquistaram o status de normas
jurídicas dotadas de imperatividade, prenhes de comandos de dever-ser, também os princípios
galgaram esta posição. Ao adquirir timbre normativo pleno, os princípios passaram a ser
estudados, junto com as regras, como normas jurídicas. Contudo, a conjunção de fatores como
a falta de tradição jurídica no estudo dos princípios e o positivismo legalista que vigorava nos
estudos jurídicos nacionais não permitiam um avanço mais acelerado sobre o tema. Como
resultado desta evolução no estudo da Teoria Geral do Direito, elaborou-se teorias mais ou
menos sofisticadas para distinguir princípios e regras.33
O evoluir histórico-doutrinário sobre o tema descortina a existência de duas correntes
doutrinárias a respeito da distinção entre as espécies normativas. A primeira corrente, mais
antiga e já descartada por muitos em razão de sua inconsistência teórica, diferencia os
princípios das regras com base no elemento “generalidade”. Para esta linha de pensamento, os
princípios são normas detentoras de elevado teor de abstração e generalidade, ou seja, o
universo de situações e pessoas às quais este espécie normativa se direciona é indeterminado,
o que permite sua aplicação com boa carga de subjetivismo do aplicador. Já as regras,
diversamente, são normas com pouca (ou nenhuma) abstração e generalidade, na medida em
que são destinadas a um conjunto determinado de situações e pessoas. Seus relatos são
objetivos e descritivos de certas condutas, razão pela qual sua aplicação não demanda
qualquer influência subjetiva do intérprete.
A distinção entre as espécies normativas, segundo esta doutrina, funda-se no grau de
indeterminação deste ou daquele tipo de norma, como esclarece Humberto Ávila:
O fundamento dessa distinção, dependendo da radicalidade com que seja
defendido, está no grau de indeterminação das espécies normativas: os
princípios, porque fluidos, permitem maior grau de mobilidade valorativa, ao
33
A estas distinções mais ou menos sofisticadas acerca dos princípios e regras, Humberto Ávila nomeou de
“distinção fraca” e “distinção forte”. Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios e o Direito Tributário, in
Revista Dialética de Direito Tributário, n. 125. São Paulo: Dialética, 2006, p. 34-40.
31
passo que as regras, porque pretensamente determinadas, eliminam ou
diminuem sensivelmente a liberdade apreciativa do aplicador [...].34
Com a evolução doutrinária em sede de Teoria Geral do Direito, superou-se o
positivismo legalista e literal e passou-se a diferenciar os princípios das regras com base em
sua estrutura normativa, o que tornou esta tese um dos principais alicerces da moderna
dogmática jurídica. Este novo paradigma no estudo das espécies normativas firmou-se sobre
as premissas teóricas concebidas por Ronald Dworkin e desenvolvida pelos estudos de Robert
Alexy35, para quem os princípios são normas aplicáveis mediante a ponderação com outras
normas, podendo-se realizar em vários graus. Por sua vez, as regras são normas que fixam, em
seu antecedente normativo, o dever-ser (proibido, permitido ou obrigatório) de forma
definitiva, o que resulta na sua aplicação pelo processo subsuntivo. Advém daí a asserção de
que a diferença entre princípios e regras está no modo de aplicação e nos mecanismos de
solução das antinomias surgidas entre elas.
Quanto ao modo de aplicação das regras, porque fixam deveres definitivos, sua
aplicação deve se efetivar por subsunção, ou seja, amoldando-se perfeitamente o fato
concretamente realizado à hipótese de incidência descrita na lei, aplica-se a conseqüência
jurídica prevista. Nestes termos, as antinomias entre regras solvem-se no plano abstrato, vale
dizer, produz como conseqüência a invalidação de uma delas, ou, como expressado por
Dworkin, resolve-se em “tudo ou nada” (all-or-nothing). Enfim, a questão é de validade.
Já os princípios, porque implicam em deveres provisórios, devem ser aplicados
mediante ponderação. O aplicador deve atribuir-lhes dimensão de peso segundo a situação
concreta, e os conflitos entre eles somente são verificáveis e solvíveis no plano concreto, o
que não importa na invalidação de um deles, haja vista a atribuição de preponderância entre
eles diante das circunstâncias concretas verificadas. Nestes casos, a questão é eficacial.
Sobre o tema, Humberto Ávila esclarece:
O fundamento desta distinção está na estrutura normativa: os princípios,
porque instituem mandamentos superáveis no confronto com outros
princípios, permitem o sopesamento, ao passo que as regras, porque
34
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios e o Direito Tributário, in Revista Dialética de Direito Tributário, n.
125. São Paulo: Dialética, 2006, p. 34.
35
Cf. BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação
constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro, in Revista de Direito da Procuradoria Geral da
Câmara Municipal do Rio de Janeiro, 2003, p. 91-134.
32
estabelecem deveres pretensamente definitivos, eliminam ou diminuem
sensivelmente a liberdade apreciativa do aplicador [...].36
Afora estes esclarecimentos, não se pode deixar de consignar, aqui, importante
contribuição dada por Humberto Ávila37 acerca das espécies normativas. Ganhou destaque na
doutrina e também nos Tribunais pátrios sua proposta tripartite quanto à tipologia normativa,
dividindo-a em normas de primeiro grau –princípios e regras – e normas de segundo grau –
postulados normativos aplicativos –, atribuindo-lhes o timbre de metanormas.
A partir desta classificação o autor constrói sua teoria com base em novos critérios –
natureza do comportamento prescrito, natureza da justificação exigida e a medida de
contribuição para a decisão – distintos dos acima referidos. Ainda, no processo de elaboração
desta tese e depois de expor minimamente os critérios distintivos e os fundamentos das
correntes doutrinárias que abordam as espécies normativas e sua diferenciação, o autor aponta
críticas para demonstrar suas inconsistências. Neste contexto surge o seu conceito de
princípios e de regras, a partir dos critérios de dissociação que propõe, in verbis:
As regras são normas imediatamente descritivas, primariamente
retrospectivas e com pretensão de decidibilidade e abrangência, para cuja
aplicação se exige a avaliação da correspondência, sempre centrada na
finalidade que lhes dá suporte ou nos princípios que lhes são
axiologicamente sobrejacentes, entre a construção conceitual da descrição
normativa e a construção conceitual dos fatos.
Os princípios são normas imediatamente finalísticas, primariamente
prospectivas e com pretensão de complementaridade e de parcialidade, para
cuja aplicação se demanda uma avaliação da correlação entre o estado de
coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como
necessária a sua promoção.38
Por tudo isto, se vê que o ganho qualitativo nos estudos a respeito das espécies
normativas deve-se, em larga medida, à difusão da idéia de desvinculação entre norma e
dispositivo, tratado anteriormente. Esta diferenciação como premissa base permitiu ver que a
construção de normas-princípios e de normas-regras39 é algo que depende de fatores externos
ao próprio texto do direito positivo, na medida em que uma norma, regra ou princípio, é
36
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios e o Direito Tributário, in Revista Dialética de Direito Tributário, n.
125. São Paulo: Dialética, 2006, p. 36-37.
37
Cf. ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. São Paulo:
Malheiros, 2006.
38
Idem, ibidem, p. 78-79.
39
Consoante nomenclatura de Jorge Miranda, in Teoria do Estado e da Constituição. Rio de Janeiro: Forense,
2003, p. 432.
33
sempre o resultado de um processo interpretativo, que leva em consideração o texto, mas
apenas como ponto de partida, e que a ele conecta as circunstâncias do intérprete, desde os
seus pré-juízos até às condições espaço-temporais nas quais está inserida a questão. Além
disso, os fatos subjacentes, as conseqüências práticas e os novos métodos hermenêuticos
ganharam relevância no processo interpretativo.
Em síntese, não se pode afirmar que uma norma é (ou contém) uma regra ou um
princípio, dado que é o resultado de um processo de interpretação realizado por “alguém” a
partir de “algo”, e que depende, ainda, de inúmeras outras conexões axiológicas externas ao
próprio texto positivo. Assim, construir (ou reconstruir, como defende Humberto Ávila) uma
norma – seja princípio ou regra – é um processo que depende da interação com os fatos e da
colaboração do intérprete, justamente porque é o resultado, sempre, de um processo
interpretativo que leva em consideração o texto do direito positivo e outras circunstâncias.
Entretanto, Lenio Streck faz uma advertência que além de relevante é imperiosa:
[...] a afirmação de que o “intérprete sempre atribui sentido (Sinngebung) ao
texto” nem de longe pode significar a possibilidade deste estar autorizado a
“dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa”, atribuindo sentidos de forma
arbitrária aos textos, como se texto e norma estivessem separados (e,
portanto, tivessem “existência” autônoma).40 (grifos do autor)
Este alerta, deve-se sempre tê-lo em mente, visa a esclarecer eventuais falácias que
possam resultar desta afirmação. O fato de ser o intérprete quem atribui sentido ao texto
positivo não significa que ele tenha discricionariedade interpretativa, no sentido de ser livre
para conferir ao texto, arbitrariamente, o sentido que melhor lhe sirva, de forma casuística.
Apesar de o intérprete ter ganho importância no cenário hermenêutico atual por conta das
escolhas que lhe cabem no processo exegético, e na medida em que há certo subjetivismo ao
trabalhar com princípios, normas constitucionais – que, via de regram, são abertas – e
conceitos indeterminados, há, por outro lado, limites interpretativos, pontos de partida que se
materializam nos textos positivados (detentores de significação mínima), valores, interesses e
bens jurídicos protegidos pela ordem normativa, como fins a serem realizados, além da
necessária consideração dos fatos subjacentes.
Luis Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos lembram que
40
STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise: uma exploração hermenêutica da construção do
Direito. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 114. (grifos do autor).
34
[...] Boa parte da produção científica da atualidade tem sido dedicada,
precisamente, à contenção da discricionariedade judicial, pela demarcação
de parâmetros para a ponderação de valores e interesses e pelo dever de
demonstração fundamentada da racionalidade e do acerto de suas opções.41
Por fim, que fique claro um último dado: inexiste hierarquia normativa entre regras e
princípios, notadamente em âmbito constitucional, em vista do postulado (ou princípio, de
acordo com a doutrina que se adote)42 da unidade da Constituição, que será visto
oportunamente – item 1.5.2, infra.
1.4 SISTEMA CONSTITUCIONAL TRIBUTÁRIO BRASILEIRO E A ORDEM
JURÍDICO-ECONÔMICA
A adoção do conceito de sistema jurídico como um conjunto de normas jurídicas
válidas é importante na medida em que delimita o objeto de estudo, possibilitando, assim, a
feitura de novo corte, a fim de reduzir a complexidade do tema, conferindo maior proveito e
segurança no desenvolver do estudo. Logo, serve como premissa básica inicial.
Também fornece subsídio imprescindível para esta investigação científica a fixação
anteriormente anotada concernente à exata noção de norma jurídica, além da consideração
quanto às espécies normativas – regras e princípios. Oportunamente, estes conceitos serão
úteis para ajudar na resolução dos problemas propostos.
O Direito é uno, conforme as características de ordenação e unidade que
acompanham a conceituação de sistema jurídico. Porém, isto não impede a afirmação de que
ele compõe-se de vários “subsistemas”, formados por normas jurídicas de semelhantes
características, tanto pela natureza lógica de suas unidades como pelo conteúdo que versam,
as quais regulam a conduta social, nos mais diversos setores de atividades. Significa que o
ordenamento jurídico vigente é formado por outros subconjuntos normativos, todos buscando
seu fundamento de validade na Constituição Federal.
E é justamente a Constituição que importa neste momento. Aliás, é a Constituição
Federal de 1988 a que importa a este trabalho. Especialmente como base para a definição do
conteúdo, sentido e alcance de normas tributárias e econômicas.
41
BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação
constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação
Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 334.
42
Cf. item 1.5, infra.
35
Falar em Constituição demanda alguns cuidados. Primeiro, porque esta palavra tem
sentidos vários. A depender do seu contexto de uso, a expressão pode traduzir, em sentido
amplo e descritivo, o modus estrutural do poder político de uma sociedade. Ainda, pode
expressar o significado de um documento normativo detentor de certas características formais
e portador de um conteúdo específico. Ou também pode conotar um sentido normativo; um
conceito de dever-ser, externando a idéia de Constituição em sentido normativo.
A Constituição não é mero documento, simples tinta sobre o papel, mas uma lei
detentora de particularidades especiais, resultantes da forma, do procedimento de criação e da
posição hierárquica de suas normas. Mais do que isto, ela é significativa de um conteúdo
específico, consagradora de princípios considerados fundamentais em uma ordem jurídica e
política materialmente legitimada.43
É com este sentido normativo que se a utiliza a partir deste ponto. Porque assim,
entendida como um conjunto de normas jurídicas superiores – regras e princípios – e
assentadas em um texto normativo (um documento) que ela, a Constituição, também se
caracteriza como subsistema normativo a conformar a ordem jurídica. A Constituição
configura-se como o mais importante subsistema a integrar o ordenamento jurídico-positivo.
Esta relevância decorre, principalmente, de sua posição hierárquica superior, de onde todas as
demais normas do sistema jurídico-positivo extraem seu fundamento de validade.
No atual estágio de conhecimentos acerca das normas constitucionais chega a ser um
truísmo afirmar que neste altiplano normativo que se encontram as normas jurídicas de
superior hierarquia integrantes do sistema jurídico-positivo. Ainda assim, esta lembrança é
sempre necessária, pois são elas que iniciam o ordenamento jurídico, organizando e
estruturando o Estado Brasileiro; ditando as competências legislativas das entidades
federativas e, em especial, traçando as garantias e os direitos dos indivíduos, os quais, de
forma geral, limitam a atuação estatal.
Neste plexo normativo superior que se situam os textos de direito positivo que
interessam a esta investigação. E será a partir destes enunciados prescritivos que se
construirão as normas jurídicas tributárias e econômicas relevantes ao tema. Assim, importam
os Títulos VI e VII da Constituição Federal Brasileira de 1988, os quais prevêem,
respectivamente, as disposições acerca “Da Tributação e do Orçamento” e “Da Ordem
43
Sobre os usos da Constituição, v. CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição.
6. ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 1115-1117.
36
Econômica e Financeira”. Mas que fique claro: não serão todos os enunciados que importarão.
Ao contrário, apenas aqueles que, direta ou indiretamente, se refiram à tributação e à
concorrência, como fenômenos jurídico-constitucionais, e assim sirvam ao deslinde do tema.
Óbvio, de outro lado, que os dispositivos que formam o “Sistema Tributário
Nacional” e a “Ordem Econômica” dentro da Lei Maior caracterizam-se como meros pontos
de partida para elaboração das normas constitucionais. Isto é resultado da definição de norma
jurídica adotada anteriormente, na medida em que há uma abertura no “corpus
constitucional”44, que aceita a inclusão das interpretações do texto positivo. Em outros termos,
“uma Constituição não é apenas o seu texto, mas é, principalmente, uma prática”, como
lembra Geraldo Ataliba em referência à lição de Tércio Sampaio Ferraz Jr45, significando que
mais do que o texto, importa sua efetividade e a obediência aos seus comandos normativos.
Por isto se diz que a Constituição é um sistema jurídico-normativo aberto46 formado
por regras e princípios, “permeável a valores jurídicos suprapositivos, no qual as idéias de
justiça e de realização dos direitos fundamentais desempenham um papel central”.47
Deste modo, compreender a aproximação entre tributação e concorrência, a
influência das normas tributárias sobre a questão concorrencial, e esta sobre a discussão
tributária, enquanto eixo temático deste trabalho, demanda, de antemão, a fixação de mais
algumas premissas basilares que não devem ser olvidadas.
1.4.1 Aproximação interdisciplinar entre Direito Tributário e Direito Econômico
A ciência do direito em geral há muito debate a questão relativa à autonomia dos
ramos do direito. Independentemente do setor do direito sob estudo, é comum a afirmação de
suposta autonomia inerente a este ou aquele subconjunto normativo. Esta discussão vinculase, em geral, a pretensas especificidades e particularidades de um dado conjunto de normas
jurídicas, o que lhes distinguiria dos demais ramos do direito.
44
Denominação de J.J. Gomes Canotilho, in Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Coimbra:
Almedina, 2002, p. 1117 e ss.
45
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 16.
46
Entende-se que a Constituição, como de resto o sistema do direito positivo, tem abertura apenas semântica e
pragmática, na medida em que é um sistema autopoiético, sendo, portanto, fechado da perspectiva sintática,
como claramente expõe CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19 ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 147-152.
47
Cf. BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação
constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação
Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 338.
37
Porquanto possa parecer estéril e monótona a controvérsia, como afirmou Aliomar
48
Baleeiro , ainda hoje o debate mantém-se em voga, notadamente no âmbito do direito
tributário, por conta do problema de aplicação das regras tributárias sobre os fatos que,
porventura, sejam disciplinados por outros setores do direito (ou que assim o pareçam).
De toda sorte, a razão está com Alfredo Augusto Becker49 e Paulo de Barros
Carvalho50, os quais afirmam categoricamente que não se pode cogitar de autonomia deste ou
daquele ramo do direito sem que isto soçobre um de seus alicerces basilares que é o princípio
da unidade do Direito.
Ora, a ordem jurídica é una e indecomponível, formada, dentre outros elementos, por
unidades normativas que visam regular os mais diversos setores da vida social, e se ligam, no
plano jurídico, por vínculos de coordenação e hierarquia, extraindo seus fundamentos de
validade da Constituição. Isto, enfim, que lhe confere unidade, sendo irrelevantes as
peculiaridades que esta ou aquela norma porventura possua.
Portanto, o direito é incindível. E sendo ele o objeto de estudo da ciência do direito,
esta por não se expressar na mesma linguagem sua; por não possuir a mesma valência e por
estar em plano de linguagem distinto dele, de modo algum tem condições de alterá-lo, a fim
de compartimentalizá-lo. Em outros termos, se o estudo do direito se realiza mediante a
separação dos inúmeros conjuntos normativos que compõe o todo jurídico, cuja divisão se
baseia nas especialidades e propriedades das unidades normativas que os formam, isto é
conseqüência das finalidades didáticas ínsitas ao processo de ensino-aprendizagem do direito.
Fixada a noção de que o direito é uno e indissociável, a conclusão só poderia ser no
sentido da proximidade jurídico-normativa entre os seus diversos “ramos”. Por termos outros,
ainda que cada ramo do direito possua um universo próprio de atuação, eles sempre terão um
espaço de correlação e aproximação, ou seja, de interdisciplinaridade, o que, ademais,
permeia a própria linha de pesquisa deste programa de pós-graduação.
É justamente neste ponto que se situa esta investigação científica, no espaço de
intersecção entre as normas tributárias e as econômicas – em especial, as relativas à
48
BALEEIRO, Aliomar. Prefácio. In: FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução ao Direito Tributário. Rio de
Janeiro: Ed. Rio, 1976, p. 12.
49
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007, p. 31-37.
50
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, p. 13-17.
38
concorrência. Em virtude disto, algumas palavras são necessárias para situar o direito
tributário e o direito econômico no universo jurídico-normativo brasileiro.
Direito Tributário e Direito Econômico são termos usados para significar, em regra,
dois planos de linguagem distintos. Usam-se estas expressões para se referir ao universo
normativo e ao espaço metalingüístico da ciência do direito.
Na perspectiva deôntica, o direito tributário é o plexo formado pelas normas jurídicas
que, direta ou indiretamente, relacionam-se com a instituição, arrecadação e fiscalização de
tributos,51 independentemente do plano hierárquico-normativo no qual se encontrem. Como
ciência, é aquela que estuda o direito tributário positivo, descrevendo-o.
A despeito desta amplitude, faz-se necessário um corte metódico e epistemológico
para assentar que este trabalho preocupa-se com as normas tributárias localizadas no plano
constitucional, a fim de estabelecer uma interpretação a partir da Constituição sobre a
tributação e a concorrência.
O direito econômico52, por outro lado, é ramo relativamente recente no universo
jurídico-normativo. Sua vocação é de interdisciplinaridade. Por estas razões, ainda se discute
qual a conceituação mais adequada para expressar os seus lindes, ou seja, ainda debate-se qual
o objeto do direito econômico. Porém, é certo o aspecto marcante e fundamental que a
intervenção estatal na vida econômica assume para o direito econômico.53
Por isto, direito econômico será tomado nesta dissertação como o ramo jurídico que
estuda as relações entre os entes públicos e os sujeitos privados, na perspectiva da intervenção
do estado na vida econômica (na ótica da ciência jurídica). Sendo assim, as normas jurídicas
que disciplinam a intervenção do estado na economia caracteriza-se como seu objeto.54
Sendo vocacionado à interdisciplinaridade, e tendo a intervenção do estado na
economia como idéia fundamental, então se evidencia a aproximação entre o direito
econômico e o direito tributário, na medida em que as normas tributárias, longe de servirem
apenas aos fins fiscais, têm sido utilizadas com claro objetivo extrafiscal, vale dizer,
intervencionista sobre o domínio econômico e social.
51
Cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 13-17.
Para conhecer a amplitude das concepções adotada para o Direito Econômico, v. MONCADA, Luís S. Cabral
de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 8-10.
53
Sobre a compreensão e distinção entre intervenção econômica direta ou indireta, v. item 2.3 infra.
54
MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 11.
52
39
Em outros termos, conquanto sirva para fins de abastecimento dos cofres públicos, o
que, em si, pode-se compreender como instrumento de intervenção socioeconômica (mas
apenas de forma mediata), a manipulação da tributação com objetivos extrafiscais influem
diretamente sobre a Ordem Econômica e seus objetivos, pelo que tem sido usada como um
dos meios mais eficazes de intervenção do estado na economia.
Estas considerações iluminam o caminho interpretativo da questão em tela,
aproximando as normas jurídicas tributárias e econômicas, na medida em que a tributação em
geral funciona como meio de alcance e realização das diretrizes econômicas e sociais, e não
propriamente como um fim em si. E é exatamente neste ponto que elas se interseccionam.
Com efeito, Geraldo Ataliba lembra que é inerente à tributação incidir sobre os
fenômenos econômicos.55 Por conta desta circunstância, manipulando-se as normas
tributárias, que são sempre de sobreposição, tem-se então um mecanismo de intervenção
estatal na economia. Deste modo, se pretende incentivar ou desestimular esta ou aquela
atividade econômica, as quais operam-se no substrato das relações econômicas estritamente
privadas, então as normas tributárias passam a ter a característica de normas jurídicas de
direito público com fins econômicos, isto é, intervencionistas. Significa que elas têm fins
extrafiscais como instrumento de intervenção econômica, indicando o ponto de encontro entre
estes diferentes ramos jurídicos.
Entre as normas tributárias e as econômicas, então, a interação é plural, íntima e
profunda, como lembra Ricardo Lobo Torres, ressaltando apenas que:
[...] Não há subordinação entre elas, pois a Constituição Tributária não se
dilui na Econômica nem ocorre o contrário. Estão em equilíbrio permanente,
influenciando-se mutuamente e relacionando-se em toda a extensão dos
fenômenos econômico e tributário.56
Ainda segundo o autor, esta dialeticidade entre a Constituição Econômica e a
Tributária ocorre, de início, sob a perspectiva dos valores, daí porque importante neste estudo
o influxo dos fundamentos (Art. 1º, III e IV, especialmente) e objetivos fundamentais da
República (Art. 3º, II e III, principalmente). Mas, mais do que isto, esta relação estende-se a
55
ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 150.
TORRES, Ricardo Lobo. Sistemas Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 630, apud
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 38.
56
40
temas que vão além da ordem econômica global, atingindo a política fiscal e econômica e ao
campo da policy, isto é, da intervenção estatal indireta sobre a economia.57
Portanto, a inter-relação entre o direito tributário e o direito econômico é
irremediável. O estudo das normas jurídicas que estão localizadas exatamente neste ponto de
intersecção entre os dois subsistemas normativos que é o objeto desta investigação, em
especial porque as regras tributárias condicionam, induzem e direcionam as atividades
econômicas, porquanto mecanismo de que dispõe o Estado para intervir sobre a economia.
Deste modo, tanto os preceitos constitucionais contidos no “Sistema Tributário
Nacional” como na “Ordem Econômica” são fundamentos relevantes para o presente trabalho,
como também influem nesta conformação os fundamentos e os objetivos fundamentais da
República, e os direitos individuais, notadamente os de liberdade, igualdade e propriedade.
Tudo isto, enfim, conseqüência da unidade do sistema jurídico.
1.4.2 Sistema Tributário Nacional ou Sistema Constitucional Tributário: diferença?
Outro ponto que precisa ser desvelado neste início, refere-se ao âmbito do conjunto
de normas jurídicas tributárias que interessa ao tema.
Se se analisar o Texto Constitucional, encontrar-se-á ali, no Capítulo I do Título VI,
aquilo que o Constituinte denominou “Do Sistema Tributário Nacional”. Segundo se extrai da
perspectiva literal das disposições ali contidas, o Sistema Tributário Nacional é composto da
seguinte maneira: (i) Dos Princípios Gerais (Seção I); (ii) Das Limitações Constitucionais ao
Poder de Tributar (Seção II); (iii) Dos Impostos das Entidades Federativas (Seções III, IV e
V); e (iv) Da Repartição das Receitas Tributárias (Seção VI).
Em vista destas disposições, a questão que se põe é se estes preceitos normativos
revelam a integralidade do “Sistema Constitucional Tributário Brasileiro”, isto é, se se
confunde este com o capítulo que a Constituição nominou de “Sistema Tributário Nacional”.
Evidentemente que a resposta é negativa.
Mas responder a este questionamento demanda recordar de duas premissas, expostas
anteriormente: (i) as normas jurídicas são interpretações de sentido extraídas a partir dos
57
TORRES, Ricardo Lobo. Sistemas Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 630, apud
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 38.
41
textos do direito positivo, mas que com estes não se confundem. Os textos são, sempre, os
pontos de partida para a construção das unidades normativas. (ii) A unidade e a ordenação são
qualidades inerentes ao sistema jurídico. Mesmo que didaticamente exista uma separação
entre os “ramos” do direito, cientificamente, no entanto, o estudo deve tomar em conta a
integralidade da ordem jurídica, tomando-se uma unidade normativa com relação ao todo
sistêmico.
Isto é suficiente para asseverar, inequivocamente, que o “Sistema Tributário
Nacional” não forma, per se, a completude do conjunto das normas constitucionais que
regulam a matéria tributária, senão, como previsões normativas, trazem apenas um referencial
inicial, um ponto de partida de enunciados prescritivos positivos a partir do qual se construirá
as normas tributárias. Porém, eles não trabalham isoladamente, mas devem ser conjugados
com as demais disposições do sistema jurídico.
Aliás, adverte Geraldo Ataliba que não há identidade entre sistema constitucional
tributário e “sistema tributário” simplesmente.58 Neste aspecto, ele foi pioneiro em afirmar
que a compreensão do sistema constitucional tributário depende, em primeiro lugar, das
demais normas da Constituição, na medida em que a subestrutura tributária da Constituição de
modo algum pode estar em confronto ou desacordo com o todo; há de haver, sempre,
coerência e harmonia entre as parcelas do sistema constitucional com o seu todo, a própria
Constituição, na sua integralidade. Imprescindível, segundo ele, a vinculação das normas
tributárias com os direitos fundamentais e os princípios gerais e estruturantes da Constituição
para compreender o que é o sistema constitucional tributário brasileiro.59
Ocorre que, em geral, a doutrina tributária ao fazer referência ao sistema
constitucional tributário alude apenas “[...] a subclasse, o subconjunto [...] formado pelo
quadro orgânico das normas que versem matéria tributária, em nível constitucional”,60 e que
se caracteriza pelas seguintes particularidades fundamentais: “[...] 1º - minúcia e
exaustividade no delineamento do âmbito de outorga das competências; 2º - privatividade e 3º
- rigidez das competências tributárias outorgadas a cada ente político”.61
58
ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, nota de rodapé n. 7,
p. 8.
59
Idem, ibidem, p. 4-11.
60
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 157.
61
CHIESA, Clélio. A Inconstitucionalidade da Exigência de Tributo sobre “Fato Gerador Futuro” – Emenda
Constitucional nº 3, de 17 de Março de 1993, in Cadernos de Direito Constitucional e Ciência Política, ano 4, n.
15, abril-junho de 1996. São Paulo: RT, 1996, p. 160.
42
Ou seja, faz-se um corte analítico mantendo-se preso apenas ao espaço constitucional
que trate da matéria tributária específica e diretamente, como meros limites formais, conforme
a linha de estudo desenvolvida por Sacha Calmon Navarro Coelho, que divide o que ele
chama de “Constituição Tributária” em três grupos temáticos, a saber:
A) o da separação das competências tributárias entre a União, os estados e os
municípios; B) o dos princípios tributários e das limitações ao poder de
tributar; C) o da partilha direta e indireta do produto da arrecadação dos
impostos entre as pessoas políticas da Federação (participação de uns na
arrecadação de outros).62
No entanto, o sistema constitucional tributário é muito mais do que a junção de
regras de competência aos princípios tributários formais com características negativas, vistos
apenas como restrições ao poder de tributar. Em verdade, o sistema constitucional tributário
forma-se pela disciplina das limitações constitucionais ao poder de tributar, que tracejam os
contornos formais da matéria tributária, em soma com outros princípios e direitos
fundamentais, tais como o direito de propriedade, a liberdade e a igualdade, o que confere as
limitações de conteúdo que ele reclama. De igual modo, os princípios meramente tributários
podem ser combinados com outros bens jurídicos protegidos pela Lei Maior, com os
fundamentos e os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, prescritos nos
arts. 1º e 3º da Constituição Federal de 1988.63
1.4.3 A Ordem Econômica
Ordem Econômica é expressão ambígua, como de resto ocorre com a maioria dos
termos utilizados para significar planos de linguagem distintos; campos de estudos científicos
diferentes, enfim, mundos diversos. Em suma, usa-se a expressão para significar tanto o
mundo da realidade fática (plano do ser) como o universo jurídico (plano do dever-ser).
Dificulta ainda mais a compreensão da expressão o fato da Constituição de 1988 ter
trazido em seu bojo os arts. 170 a 192, que compõem o Título VII, nomeado “Da Ordem
Econômica e Financeira”, cujos diversos preceitos normativo-positivos visam à disciplina
jurídica, em altiplano constitucional, da vida econômica, seja da ótica do Estado, seja da
perspectiva dos particulares em geral.
62
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2006, p. 48.
63
Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 18-27.
43
Entretanto, esclarecedora, neste contexto, a lição de Vital Moreira, que vê na
expressão “Ordem Econômica” três sentidos distintos, ambos correlacionados com a idéia
inicial de separação entre o mundo do ser e do dever-ser. Leciona o autor português que:
Em um primeiro sentido, "ordem econômica" é o modo de ser empírico de
uma determinada economia concreta; a expressão, aqui, é termo de um
conceito de fato (é conceito do mundo do ser, portanto); o que o caracteriza é
a circunstância de referir-se não a um conjunto de regras ou a normas
reguladoras de relações sociais, mas sim a uma relação entre fenômenos
econômicos e matérias, ou seja, relação entre fatores econômicos concretos;
conceito do mundo do ser, exprime a realidade de uma inerente articulação
do econômico como fato; - em um segundo sentido, "ordem econômica" é
expressão que designa o conjunto de todas as normas (ou regras de conduta),
qualquer que seja a sua natureza (jurídica, religiosa, moral etc.), que
respeitam à regulação do comportamento dos sujeitos econômicos; é o
sistema normativo (no sentido sociológico) da ação econômica; - em um
terceiro sentido, "ordem econômica" significa ordem jurídica da economia.64
A existência destas três significações, retiradas a partir de dois universos lingüísticos
distintos, demonstra a ambigüidade do termo. Porém, importa a esta investigação a Ordem
Econômica como ordem jurídica (plano do dever-ser), ou seja, aquela situada no plano
lingüístico do Direito, cuja finalidade é mesmo conformar a ordem econômica (plano do ser).
A ordem jurídica econômica caracteriza-se, portanto, como o conjunto de normas
jurídicas de todas as hierarquias e espécies, que tem por escopo regular as atividades
econômicas, fixando, através de regramentos autorizadores ou limitativos, como deve ser o
comportamento do Estado e dos particulares no campo da economia (mundo do ser). É, pois,
aquela “[...] constituída por todas as normas e actos jurídicos que disciplinam a actividade
económica, sejam eles leis, decretos-leis, regulamentos, portarias, despachos ou outras”.65
Se a finalidade da ordem econômica é, em suma, disciplinar as atividades
econômicas, intervindo direta ou indiretamente pela via da normatização jurídica, então se
percebe claramente a interação existente entre o jurídico e o econômico, cujo escopo é a
intervenção direta ou indireta daquele sobre este, a fim de viabilizar que a economia se
desenvolva da melhor maneira possível para atender aos valores primazes da sociedade
brasileira, positivados constitucionalmente.
64
Apud GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 55-56.
65
MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 91.
44
Compreendendo-se a ordem econômica como o todo normativo relativo à disciplina
jurídica da economia, então é perceptível que esta integralidade possui diversas e diferentes
partes que a conforma. Cada parte compositiva da ordem econômica tem sua essencialidade,
âmbito de regulação normativa, prestando-se a um fim específico. Destaca-se como parte
fundamental da ordem econômica o subsistema normativo-econômico constitucional, ou seja,
a Constituição Econômica.
Vânya Senegalia Morete Spagolla registra esta aproximação, afirmando:
A interpretação acima descrita aproxima os conceitos de ordem econômica,
sendo essa caracterizada como um conjunto de normas que institucionaliza o
setor, e de Constituição Econômica, a qual engloba os princípios e regras
essenciais ordenadores da economia, as normas básicas reguladoras do fato
econômico e das relações principais dele decorrentes. Em outras palavras,
Constituição Econômica configura o conjunto de preceitos e instituições
jurídicas que instituem uma determinada forma de organização e
funcionamento da economia, garantindo, instaurando e realizando uma
ordem econômica concreta.66
Logo, esta aproximação entre a Constituição Econômica e a Ordem Econômica
(entendida como a ordem jurídica da economia) decorre da relação entre todo e parte que as
vincula. Ou seja, como a ordem econômica é formada pelas mais diversas normas jurídicas,
posicionadas em diferentes degraus hierárquico-normativos, que laboram no intuito de intervir
na atividade econômica, então a Constituição Econômica consiste no mais relevante
subsistema jurídico que a compõe. Estas as lições de Luís S. Cabral de Moncada:
[...] fala-se por vezes em Constituição Económica (CE) para designar
precisamente os princípios fundamentais que dão unidade à actividade
económica geral e dos quais decorrem todas as regras relativas à organização
e funcionamento da actividade económica de uma certa sociedade. Não é
exigível que tais princípios constem de alguma parte essencial da
constituição, a eles dedicada, bastando que as disposições económicas
estejam dispersas pelo texto constitucional ou por legislação avulsa. A CE
constitui assim a parte fundamental de toda a ordem jurídica da economia.67
Como a Constituição Econômica – e, assim também, a Ordem Econômica – não
existe isoladamente, ou seja, não está destacada do Texto Constitucional, nem a ele se
sobrepõe, menos ainda tem condição de existência fora dele, então sua compreensão demanda
66
SPAGOLLA, Vânya Senegalia Morete. Tributação Ambiental: Proposta para Instituição de um Imposto
Ambiental no Direito Brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pós-graduação em Empreendimentos
Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social da Universidade de Marília. Marília: 2008, p. 24.
67
MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 92.
45
interpretação sistemática qualificada pela unidade, ordenação e coerência internas que
permeiam o ordenamento jurídico, isto é, a apreensão do seu sentido fundamental deve levar
em consideração a Constituição na sua integralidade, como salienta Celso Ribeiro Bastos:
A existência destas normas específicas sobre a economia não deve, contudo,
conduzir a afirmações ousadas no sentido da configuração de uma
Constituição autônoma dentro do Texto Constitucional. Em outras palavras,
Constituição econômica existe sim, mas como um sistema ou conjunto de
normas jurídicas, tendo como critério unificador o dado econômico ou a
regulação da economia. Ela não é todavia autônoma. Pelo contrário, só
ganha sentido dentro da perspectiva ampla da Constituição, em função da
qual se torna inteligível e compreensível. [...].68
Portanto, entende-se a Ordem Econômica, na sua parte mais fundamental que é a
Constituição Econômica, como sendo “[...] o conjunto dos princípios fundamentais
informadores da actividade e da organização económica [...]”69 de um Estado.
Essencialmente, importa aquelas normas jurídicas que disciplinam a intervenção econômica.
1.5 OS PRINCÍPIOS INSTRUMENTAIS DE INTERPRETAÇÃO DA CONSTITUIÇÃO
Interpretar significa atribuir sentido aos signos. Denomina-se Hermenêutica a técnica
científica que objetiva estudar os métodos interpretativos. No âmbito do direito, a
interpretação das normas jurídicas presta-se a construir o seu conteúdo, sentido e alcance, ou
seja, sua finalidade é elaborar o sentido dos textos normativos, e não apenas desvendá-lo.70
Com a promulgação da Constituição de 1988 e a evolução dos estudos jurídicos
erigidos sobre sua base, toda a dogmática jurídica brasileira recebeu novos ares, influenciada
por uma nova perspectiva interpretativa. Os reflexos das normas constitucionais alcançaram
outros ramos do direito, conferindo-lhes nova possibilidade, novo sentido, conteúdo e alcance.
Neste aspecto, os trabalhos de investigações jurídico-científicas obrigatoriamente perpassam,
hoje em dia, pela adequada interpretação das normas constitucionais.
Neste contexto, parte da doutrina constitucional brasileira tem afirmado a existência
de novos métodos de interpretação. Para eles, os métodos interpretativos tradicionais – literal,
teleológico, lógico, histórico e sistemático –, conquanto ainda sejam fundamentais para a
68
BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de Direito Administrativo. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 2001, p. 269-270.
MONCADA, Luís S. Cabral. ob. cit., p. 92.
70
Sobre este assunto, cf. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19 ed. São Paulo: Saraiva,
2007, p. 96 e ss.
69
46
dinâmica jurídica, tornaram-se insatisfatórios em virtude da ascensão e expansão das normas
constitucionais, de conteúdo aberto e principiológico. Também caracteriza esta doutrina a
afirmação do desenvolvimento de novas fórmulas de realização da vontade da Constituição. A
esta linha de pensamento, enfim, tem se denominado neoconstitucionalismo; e póspositivismo é a expressão que pretende significar o ideal filosófico a orientar esta corrente.
Luis Roberto Barroso tem capitaneado estes estudos jurídicos no Brasil. Segundo ele,
três fatores são suficientes a demonstrar o surgimento do neoconstitucionalismo: (i) a força
normativa da Constituição; (ii) a ampliação da jurisdição constitucional; e (iii) a nova
interpretação constitucional.71
Contudo, há quem discorde destas idéias. A crítica que se faz é no sentido de que
este neoconstitucionalismo e o pós-positivismo não existem, porquanto as idéias que
fundamentam esta corrente não passam das idéias do próprio positivismo. Em outros termos,
não haveria, propriamente, a superação do positivismo jurídico como se tem dito, senão
apenas uma reconstrução.72
Discussão doutrinária à parte, inegável que a interpretação das normas
constitucionais é condicionada a alguns princípios de interpretação especificamente dirigidos
a este plano normativo. Em verdade, estes princípios de interpretação decorrem logicamente
da própria posição hierárquica do Texto Constitucional e das idéias que envolvem sua
supremacia. Em outros termos, é conseqüência daquela própria estrutura piramidal da ordem
jurídica, como concebido por Hans Kelsen.73 Assim, os princípios de interpretação
constitucional relevantes são: (i) princípio da supremacia da Constituição; (ii) princípio da
unidade da Constituição; (iii) princípio da interpretação conforme a Constituição.
Um detalhe final: há concordância doutrinária no que se refere aos instrumentos de
interpretação das normas constitucionais. Entretanto, há uma questão semântica, pois alguns
71
Sobre este assunto v. BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova
interpretação constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto [coord].
A Hova Interpretação Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro:
Renovar, 2003.
72
Para conhecer melhor estas idéias, cf. DIMOULIS, Dimitri; DUARTE, Écio Oto Ramos [coord]. Teoria do
Direito Heoconstitucional: Superação ou Reconstrução do Positivismo Jurídico? São Paulo: Método, 2008.
73
Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
47
autores aludem a “princípios”74 de interpretação constitucional, ao passo que outros referemse a “postulados”75 interpretativos relativos às previsões constitucionais.
1.5.1 O princípio da supremacia da Constituição
Como lei fundamental de um Estado, a Constituição é a lei suprema. Esta supremacia
sobre as demais normas da ordem jurídica decorre de sua posição hierárquico-normativa
superior. Todas as outras normas integrantes do sistema jurídico – desde as leis até os mais
simples atos normativos emanados pelas autoridades administrativas, e os atos jurídicos em
geral – somente existem validamente se com ela se compatibilizarem formal e materialmente.
Ou seja, todas elas derivam da Lei Constitucional.
Em virtude desta característica especial de superioridade jurídica sobre todos os
demais atos normativos no seio da ordem jurídica, a interpretação da Constituição assenta-se
neste primeiro pressuposto. Afirmar que as normas constitucionais detêm supremacia sobre as
demais normas jurídicas, implica em dizer que estas, para subsistirem validamente,
obrigatoriamente devem observar os ditames da lei superior. Por termos outros, as leis, os atos
normativos infralegais, os atos jurídicos e as manifestações de vontade de forma geral,
inclusive dos particulares, somente terão juridicidade plena se compatível com a Constituição.
Esta posição hierárquica superior da Constituição condiciona toda a atividade do
Estado, seja legislativa, executiva ou judicial, até porque, antes de existir, por exemplo, o
Órgão Legislativo, com atribuições legislativas, há a Constituição estabelecendo sua
existência, suas funções, competências e limitações.
Estas idéias são conseqüência direta da teoria da validade das normas conforme a
estrutura piramidal proposta por Kelsen, ou seja, uma vez que se pressupõe a norma
fundamental, dentro da ordem jurídica positiva, a Constituição caracteriza-se como o degrau
74
Cf. BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação
constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação
Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 334.
75
Cf. ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: Conteúdo e Alcance. Revista Diálogo Jurídico, Salvador,
CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I, n. 3, junho de 2001. Disponível em:
http://www.direitopublico.com.br.
48
mais elevado, porquanto é documento solene (Constituição formal) que enuncia as regras que
regulam a criação das normas jurídicas gerais (Constituição material).76
Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos lembram que o princípio não tem
conteúdo próprio – daí porque instrumental de interpretação –, de modo que a supremacia das
normas da Constituição é garantida pela via dos distintos mecanismos de controle de
constitucionalidade: controle difuso ou controle concentrado.77 Ainda a respeito do princípio
da supremacia da Constituição, destaca-se a lição sempre precisa de J. J. Gomes Canotilho,
onde afirma inequivocamente que:
A constituição é uma lei dotada de características especiais. Tem um brilho
autónomo expresso através de uma forma, do procedimento de criação e da
posição hierárquica das suas normas. [...]. Em primeiro lugar, caracteriza-se
pela sua posição hierárquico-normativa superior relativamente às outras
normas do ordenamento jurídico. Ressalvando algumas particularidades do
direito comunitário, a superioridade hierárquico-normativa apresenta três
expressões: (1) as normas constitucionais constituem um lex superior que
recolhe o fundamento de validade em si própria (autoprimazia normativa);
(2) as normas da constituição são normas de normas (normae normarum)
afirmando-se como uma fonte de produção jurídica de outras normas (leis,
regulamentos, estatutos); (3) superioridade normativa das normas
constitucionais implica o princípio da conformidade de todos os actos dos
poderes públicos com a Constituição.78
Enfim, o traço distintivo primeiro da Constituição é sua supremacia, isto é, sua
posição de preeminência dentro do sistema jurídico. Deve-se, no entanto, tê-lo sempre em
mente ao iniciar a interpretação e a aplicação das normas jurídicas, em especial quando tratem
de matéria tributária e econômica, disciplinadas rigidamente no plano constitucional.
1.5.2 O princípio da unidade da Constituição
O princípio da unidade da Constituição79 decorre diretamente da própria noção de
unidade que permeia a ordem jurídica. Ficou assentado anteriormente que o sistema jurídico
76
Sobre o assunto, cf. KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado. 3. ed. Tradução de Luis Carlos
Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 182.
77
BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação
constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação
Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 360.
78
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002,
p. 1131. (grifos do autor)
79
Para Humberto Ávila, este e os demais princípios interpretativos constitucionais aqui expostos são tidos por
postulados. Cf. ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: Conteúdo e Alcance. Revista Diálogo Jurídico,
Salvador, CAJ – Centro de Atualização Jurídica, v. I, n. 3, junho de 2001. Disponível em:
http://www.direitopublico.com.br.
49
pressupõe uma unidade e uma ordenação. A manutenção da unidade tem que ver com a
harmonização entre as normas jurídicas e o sistema jurídico, via processo de fundamentação,
onde a norma de hierarquia inferior retira sua condição de validade da norma superior.
Entretanto, quando se toma o universo constitucional como plano de análise, precisa
ser fixada claramente a idéia da unidade da Constituição, no sentido de que entre suas normas
inexiste hierarquia. Se as normas constitucionais detêm supremacia sobre as demais normas
da ordem jurídica, entre elas isto não ocorre. Por ser o degrau hierárquico último da ordem
jurídico-positiva, significa que não há relação de proeminência entre elas. Acima delas apenas
a norma hipotética fundamental, pressuposta e não posta, conforme teoria kelseniana.80
O princípio da unidade da Constituição serve de instrumental interpretativo dos mais
importantes, na medida em que fixa um parâmetro exegético para solucionar eventuais
conflitos entre as normas jurídicas constitucionais. Quando o conflito se dá no nível
infraconstitucional, então os métodos tradicionais da hierarquia, da norma posterior e da
especialização se revelam aptos. No entanto, em nível constitucional, esta técnica não é
suficiente. Surge então a necessidade de aplicação das técnicas de ponderação para resolver a
colisão de normas constitucionais. E esta é orientada pela unidade da Constituição, no sentido
de se buscar a harmonia possível entre os comandos normativos envolvidos para a solução do
caso concreto, tendo em vista a inexistência de hierarquia entre as normas constitucionais.
Esta é precisamente a lição de Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos:
[...] Por força do princípio da unidade, inexiste hierarquia entre normas da
Constituição, cabendo ao intérprete a busca da harmonização possível, in
concreto, entre comandos que tutelam valores ou interesses que se
contraponham. Conceitos como os de ponderação e concordância prática são
instrumentos de preservação do princípio da unidade, também conhecido
como princípio da unidade hierárquico-normativa da Constituição.81
A Constituição é tomada por um sistema aberto de regras e princípios. Esta
característica impõe ao princípio da unidade grande utilidade, pois é nesta perspectiva que
assume o sentido de unidade hierárquico-normativa, ou seja, apesar da abertura das normas
constitucionais, é o princípio instrumental interpretativo em questão que confere o
80
Cf. KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6. ed. Tradução de João Baptista Machado. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
81
BARROSO, Luís Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação
constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação
Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 362.
50
fundamento de que todas elas detêm a mesma dignidade constitucional. J. J. Gomes
Canotilho, ao abordar este princípio, expõe de modo claro:
O princípio da unidade hierárquico-normativa significa que todas as
normas contidas numa constituição formal têm igual dignidade (não há
normas só formais, nem hierarquia de supra-infra-ordenação dentro da lei
constitucional). Como se irá ver em sede de interpretação, o princípio da
unidade normativa conduz à rejeição de duas teses, ainda hoje muito
correntes na doutrina do direito constitucional: (1) a tese das antinomias
normativas; (2) a tese das normas constitucionais inconstitucionais. O
princípio da unidade constituição é, assim, expressão da própria positividade
normativo-constitucional e um importante elemento de interpretação.82
Com fulcro nesta premissa – de unidade da Constituição – J. J. Gomes Canotilho
conclui que sempre haverá uma exigência de “coerência narrativa” do sistema jurídico, além
de o comando principiológico se identificar como princípio de decisão, dirigidos aos
aplicadores do direito –juízes e as demais autoridades –, de modo que se devem compreender
as regras e princípios jurídicos constitucionais como um todo unitário, obra de um autor só,
exprimindo, assim, uma correta concepção de direito e de justiça.83 Por tudo isto, afirma:
[...] Neste sentido, embora a Constituição possa ser uma “unidade dividida”
(P. Badura) dada a diferente configuração e significado material das suas
normas, isso em nada altera a igualdade hierárquica de todas as suas regras
e princípios quanto à sua validade, prevalência normativa e rigidez.84 (grifos
do autor).
Logo, relevantíssimas estas idéias para este trabalho, mormente em razão do enfoque
dado, que reside justamente sobre o ponto de intersecção entre dois subsistemas normativos
constitucionais que se influenciam reciprocamente: o tributário e o econômico. Deste modo, a
interpretação de normas jurídicas que se situem nesta posição não pode prestigiar um em
detrimento do outro, afastando-o completamente, mas, ao contrário, deve-se preservar a
unidade da Constituição, pela promoção da igualdade hierárquica das normas constitucionais.
1.5.3 O princípio da interpretação conforme a Constituição
Falar no princípio da interpretação conforme a Constituição pode parecer, de
começo, um truísmo, considerando que já está mais do que difundida a idéia de superioridade
82
CANOTILHO, J.J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 5. ed. Coimbra: Almedina, 2002,
p. 1167. (grifos do autor).
83
Idem, ibidem, p. 1168.
84
Idem, ibidem, p. 1168.
51
hierárquica da Lei Maior e de que suas normas conferem fundamento de validade a todas as
demais normas do sistema jurídico.
No entanto, a evolução do direito constitucional e a percepção de que as normas
constitucionais – princípios e regras – são de conteúdo aberto, finalístico e principiológico
demandam uma nova análise, por força da novel perspectiva. A interpretação e a aplicação do
direito, neste contexto, deixa de ser unicamente subsuntiva, pois depende da realidade que lhe
é subjacente e, principalmente, os fatos e o intérprete ganham relevo no processo. Significa
que se alterou o processo interpretativo; ganhou novos mecanismos, mas também encontrou
novas dificuldades.
Por isto, os princípios instrumentais de interpretação constitucional são relevantes. A
interpretação conforme a Constituição é mecanismo para enfrentar os conflitos e casos que
envolvam normas constitucionais que, in concreto, conflitam-se. Daí a necessidade de se
lembrar, com Luís Roberto Barroso e Ana Paula de Barcellos, que a interpretação conforme a
Constituição, como princípio interpretativo, decorre da confluência entre os princípios da
supremacia da Constituição e da presunção de constitucionalidade das leis e dos atos do poder
público.85 Significa que o aplicador da norma infraconstitucional deve buscar a interpretação
que mais se coadune com a Constituição, isto é, “À vista dos elementos do caso concreto, dos
princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido
da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a
ser resolvido”.86
Além disto, a interpretação conforme a Constituição também se presta como técnica
de controle de constitucionalidade, na medida em que impõe ao aplicador do direito,
notadamente o judicial, que expressamente exclua uma interpretação da norma que seja
contrária ao espírito constitucional, corrigindo eventuais desvios que porventura possam
exsurgir a partir das possibilidades semânticas do texto. Esta ação corretiva se dá via
declaração de inconstitucionalidade sem redução de texto.87
85
BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação
constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação
Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 361.
86
Idem, ibidem, p. 332.
87
BARROSO, Luis Roberto; BARCELLOS, Ana Paula de. O começo da história: a nova interpretação
constitucional e o papel dos princípios no direito brasileiro. In: BARROSO, Luís Roberto. A Hova Interpretação
Constitucional – ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 361.
52
Portanto, a interpretação conforme a Constituição converte-se em instrumental de
extrema importância para a compreensão e discussão em matéria tributário-econômica,
notadamente quando conjugada com os demais princípios interpretativos.
53
2 O PRICÍPIO COSTITUCIOAL DA LIVRE COCORRÊCIA COMO
GARATE DA ORDEM ECOÔMICA
Direito e economia sempre foram temas coligados, de relação muito próxima. Em
verdade, não é demais assentar a influência recíproca entre ambos, pois a adoção de inúmeras
medidas jurídicas sempre tiveram reflexos econômicos e as questões econômicas sempre
demandaram um mínimo de disciplina jurídica.
À medida que o Estado passou a ter importante papel no domínio econômico, o
relacionamento entre direito e economia acentuou-se. Deveras, esta maior aproximação, em
larga medida, deve-se à função intervencionista assumida pelo Estado. Não significa que a
relação entre os domínios jurídico e econômico não existia antes do surgimento da função
interventiva, apenas que se restringia ao papel negativo frente aos indivíduos, porquanto
detentor de funções mínimas, de mero garantidor dos direitos e das liberdades individuais.
António Carlos Santos, Maria Eduarda Gonçalves e Maria Manuel Leitão Marques,
ao tocarem o tema da relação entre a economia e o direito, lembram que as questões jurídicas
e econômicas são facetas conexas e interdependentes de um todo, pois, apesar da diferença,
ambos integram o fenômeno das relações sociais. Neste aspecto, pontuam que:
[...] mesmo questões que, aos olhos do senso comum, são mais
marcadamente econômicas como, por exemplo, as ligadas ao circuito
económico (produção, circulação, distribuição, consumo) são providas de
importantes dimensões jurídicas (disciplina jurídica da força de trabalho,
estatuto e perfis da empresa, regulação jurídica do mercado e das trocas,
regime jurídico de tributação, direitos dos consumidores, etc.).
Por outro lado, a produção de normas de direito, a sua aplicação, bem como
a resolução de litígios por meio de processos e decisões judiciais, aspectos
predominantemente tidos por jurídicos, contêm, eles também, inequívocas
dimensões económicas. Não raro, as diversas teorias económicas (clássicas e
neo-clássicas, marxistas e neo-marxistas, institucionalistas e Keynesianas e
pós-keynesianas) têm procurado, a partir das suas diferentes premissas,
contribuir para o aprofundamento do problema. 88
A lição citada corrobora a percepção de que este vínculo não é novo. Em nível
constitucional, sabe-se que esta relação existe ao menos desde o advento das Constituições
88
SANTOS, António Carlos; GONÇALVES, Maria Eduarda; MARQUES, Maria Manuel Leitão. Direito
Económico. 2. ed. Coimbra: Almedina, 1997, p. 09-10.
54
escritas, ou seja, não é algo inerente às Constituições democráticas, senão também às
liberais.89 A diferença entre as Constituições liberais e as democráticas, no que tange à
questão econômica, está justamente no modus como esta inter-relação direito-economia se
materializa. No modelo liberal, as normas constitucionais não dispunham explicitamente
sobre o modo como a economia deveria-ser, pois a racionalidade e a espontaneidade do
mercado econômico por si eram suficientes e não demandavam alterações. “Assim, bastava o
que definido, constitucionalmente, em relação à propriedade privada e à liberdade contratual,
ao quanto, não obstante, acrescentava-se umas poucas outras disposições veiculadas no nível
infraconstitucional, confirmadoras do capitalismo concorrencial [...]”90.
Estas Constituições simplesmente não regulavam o domínio econômico, deixavamno ao talante das livres forças do mercado e de seus agentes. Ou seja, as Constituições e suas
normas não objetivavam transformar o domínio econômico, mas recebiam-no tal como
praticado no mundo real,91 pois tipicamente liberal, cingindo-se a tutelar as liberdades e
direitos individuais, “[...] formulando uma política de abstenção, mediante rígida separação
das funções de governo e técnicas de limitação jurídica do poder. A ele – Estado – seria
defeso imiscuir-se em temas relegados à atuação dos particulares, cabendo à Constituição,
nesse contexto, coibir os excessos do Poder Público92”.
Por outro lado, com o surgimento das Constituições sociais, especialmente a
Mexicana de 1917 e a de Weimar de 1919 – e praticamente todas as demais do mundo
ocidental depois destas – as Constituições passaram a se preocupar explicitamente com o
econômico, porém distintamente do modus liberal, na medida em que positivaram de maneira
evidente uma Constituição Econômica com escopo de preservar e aprimorar o domínio
econômico através de normas jurídicas que importem em políticas públicas neste setor, vale
dizer, com notas de prestações positivas por parte do Estado.
Não significa, contudo, que se tenha abandonado o regime capitalista de produção;
indica apenas que a ordem econômica capitalista foi qualificada pela feição social,
transformando sua essência. Portanto, em razão desta modificação na relação entre Direito e
Economia, estes institutos aproximaram-se ainda mais. Em verdade, a preocupação com a
89
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 60-63.
90
Idem, ibidem, p. 62.
91
Idem, ibidem, p. 62.
92
PUCCINELLI, André, Jr. A Omissão Legislativa Inconstitucional e a Responsabilidade do Estado Legislador.
São Paulo: Saraiva, 2007. p. 21-22.
55
proteção e o aprimoramento das relações econômicas, cujos efeitos sociais são evidentes,
levaram à constitucionalização da economia. Persegue-se, com isto, não apenas a preservação
do capitalismo e da economia em geral, mas sim a própria sociedade e seus anseios.
Neste contexto, a intervenção estatal é indispensável. Seu cometimento ao Estado
transmutou-o, assim, em importante ator econômico em comparação ao que era no período
liberal. Ou seja, deixou de ser mero garante do processo econômico – Estado-vigia (État
Gendarme)93 – para se posicionar no centro dele, como agente interveniente.
Surge, destarte, o conceito de desenvolvimento (processo político e social),
vinculando mais fortemente as questões jurídicas e econômicas. Explica-se: com vistas ao
desenvolvimento como objetivo primaz a se realizar, porque capaz de possibilitar o bem-estar
geral, o Direito passa a dirigir a Economia, no sentido de direcioná-la para aquele fim
específico, fixando como deve-ser a conduta dos agentes econômicos.
Ainda que seja um fenômeno sociológico inter-relacionado por inúmeros fatores –
econômico, educacional, tecnológico, científico, etc. –, situado, é verdade, dentro do universo
social, fato é que o problema do desenvolvimento recai enfaticamente sobre o econômico,
como demonstra a preclara lição de Lourival Vilanova:
Ainda que o processo de mudança sociológica que se denomina
desenvolvimento seja um processo inter-relacionado de fatores, que seja
processo dentro do universo social, em que impera o princípio da
causalidade circular, em que as variáveis ora tomam o posto de dependentes,
ora de independentes [...], e de que haja uma conexão totalizante de sentido,
na acepção diltheyana, interligando todas as faces componentes do mundo
histórico, o fato é que, na situação atual, a ênfase recai no econômico. A
matéria que enche as formas jurídicas não é exclusivamente econômica, mas
direta ou indiretamente sobre ela repercute. [...]94
Para ele, esta circunstância evidencia-se na intervenção do Estado na propriedade
privada e na ordem econômica, pois
[...] Ali, expropriando por necessidade pública ou interesse social,
requisitando pro tempore seu uso, ou impondo servidões administrativas.
Aqui, na ordem econômica, reprimindo o abuso do poder econômico,
93
VILANOVA, Lourival. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa sociedade em desenvolvimento, in Escritos
Jurídicos e Filosóficos, v. 2. São Paulo: Axis Mundi, 2003, p. 476.
94
Idem, ibidem, p. 487.
56
tabelando os preços, impedindo o controle do mercado e a imposição
unilateral de preço, por intermédio de trustes e cartéis [...]95
Portanto, em busca do desenvolvimento, o Estado passa a atuar com afinco sobre a
economia, por intermédio das normas jurídicas. O desenvolvimento socioeconômico, como
uma aspiração da sociedade e do Estado, efetivado pela via das políticas públicas, torna-se a
preocupação da ordem jurídica econômica, parcela da ordem jurídica total.
É dentro deste quadro que surge a Constituição Econômica, aspecto fundamental e
mais importante da ordem jurídica econômica. O termo designa aquela parte das
Constituições que cuida de disciplinar as atividades econômicas desempenhadas pelo
particular e pelo Estado. Para tanto, a Constituição Econômica veicula normas jurídicas com
fins estatutários, cujo objetivo é proteger as características básicas do sistema econômico, ou
normas programáticas, onde se apontam as suas principais linhas de evolução.96
Assim, a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada em 05 de
outubro de 1988 amolda-se perfeitamente a esta compreensão. Portanto, imprescindível
discorrer sobre o tema, o que se passa a fazer.
2.1 A CONSTITUIÇÃO ECONÔMICA NA CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988
Com a promulgação da Constituição de 1988 fixou-se no Brasil um novo modelo
estatal. Segundo previsão do Art. 1º, caput, a República Federativa do Brasil constitui-se em
“Estado Democrático de Direito”. Mas ao contrário dos modelos anteriores, esta concepção
estatal, segundo Miguel Reale, é o resultado de uma convergência de ideologias, decorrente
de recíprocas influências entre as diretrizes liberais e as sociais.97 Ou seja, conjuga-se a
liberdade e os direitos individuais com a igualdade e a justiça social. Isto leva à conclusão de
que todo desenvolvimento só é legítimo se promover ganho econômico com justiça social,
cabendo o mister de proteção aos ideais liberais e de realização dos interesses sociais ao
Estado Brasileiro.
95
VILANOVA, Lourival. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa sociedade em desenvolvimento, in Escritos
Jurídicos e Filosóficos, v. 2. São Paulo: Axis Mundi, 2003, p. 487.
96
Cf. MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 5. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 33-34.
97
REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
1999, prólogo. p. XII.
57
Na pretensão de mudança no processo social, o desenvolvimento vai além do mero
progresso. Ou seja, o econômico e o social não mais se contrapõem como nos modelos
estatais anteriores, mas caminham juntos, complementam-se. Entretanto, reitere-se: a ênfase
atual recai sobre o econômico que é o instrumento capaz de promover o desenvolvimento.
Daí porque a nítida preocupação constitucional com a economia; também o motivo
do cometimento ao Estado do papel primordial no desenvolvimento socioeconômico nacional.
Essencialmente, estes os motivos da intervenção econômica.
A partir destas considerações iniciais, o destaque recai sobre a Constituição Federal
de 1988, que assumiu o papel de garante do desenvolvimento nacional, e do Estado Brasileiro,
que recebeu da Lei Maior a função de timoneiro neste processo de desenvolvimento, sempre
tendo como base suas disposições. Ou seja, definido o paradigma democrático de direito, o
telos da criação desta concepção de Estado visa a conferir efetividade aos direitos e às
liberdades
fundamentais,
concretizando
a
pretendida
transformação
da
realidade
socioeconômica. Tudo isto, enfim, para realizar a “[...] árdua tarefa de redefinir o papel do
Estado de forma a ajustá-lo às exigências dos novos tempos”, 98 com vistas à modificação do
status quo e a efetiva realização do desenvolvimento econômico com justiça social.
O desenvolvimento, como preocupação constitucional, fica evidente a partir do seu
Preâmbulo, sendo ressaltado já no Art. 3º, quando enumera a garantia do desenvolvimento
nacional (inciso II do Art. 3º) e a redução das desigualdades sociais e regionais (inciso III do
Art. 3º) como objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil. Some-se a isto,
ainda, as disposições contidas nos arts. 170 a 192 da Constituição de 1988, os quais compõem
o Título VII – “Da Ordem Econômica e Financeira” –, e tem-se toda a concernência
constitucional acerca do desenvolvimento econômico.
Como objetivo fundamental da República, a idéia do desenvolvimento passa
inexoravelmente pela economia, o que, em razão do modelo estatal adotado, importa
necessariamente em intervenção estatal. Por conta disto, revela-se uma Constituição
Econômica no bojo da ordem jurídica, isto é, há uma parcela do sistema jurídico cujo objeto é
a disciplina constitucional da vida econômica.
98
FONSECA, João Bosco Leopoldino da. Direito Econômico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 266.
(grifos do autor).
58
Entretanto, saliente-se que não se deve confundir, na Lei Constitucional Brasileira, a
Constituição Econômica com o Título VII – “Da Ordem Econômica”. Apesar desta traçar
regras e princípios vetores da atividade econômica, eles são apenas parte dos princípios
fundamentais que dão unidade e ordenação ao funcionamento das atividades econômicas em
geral. Em outros termos, a vida econômica brasileira não é disciplinada, em altiplano
constitucional, apenas pelas normas jurídicas contidas naquela parte, até porque, como lembra
Luís S. Cabral de Moncada, “[...] Não é exigível que tais constem de alguma parte especial da
constituição, a eles dedicada, bastando que as disposições econômicas estejam dispersas pelo
texto constitucional ou por legislação avulsa [...].”99
Logo, a Constituição Econômica Brasileira não se cinge apenas às disposições
contidas no espaço prescritivo positivo que vai do Art. 170 ao Art. 192 da Constituição
Federal de 1988. Ao contrário, ela está espalhada por todo o texto constitucional – por
exemplo, no Art. 1º, III e IV; e no Art. 3º, II e III – ou esparsa em legislação avulsa100 – a Lei
n. 8.884/94, que trata da defesa da concorrência, exemplifica a asserção.
Para melhor esclarecer esta última afirmação, é pertinente expor algumas breves
considerações acerca da noção de Constituição Econômica e suas espécies, além das normas
constitucionais que delineiam esta figura jurídica: as normas programáticas.
2.1.1 Constituição Econômica: noção, espécies e as normas programáticas
Ao falar em Constituição Econômica imagina-se que exista algum espaço próprio no
bojo da Lei Maior que veicule normas jurídicas vertidos à disciplina da vida econômica. Esta
percepção não é de todo equivocada, mas também não é integralmente verdadeira. Consiste,
tão-só, em uma visão parcial do universo normativo-constitucional econômico.
Eros Roberto Grau, em referência à lição de José Simões Patrício, destaca que a
concepção inicial ampla dispensada à noção de Constituição Econômica, tomada como o
conjunto de normas voltadas à organização econômica, pode-se considerar ultrapassada.101
99
MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Econômico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 92.
A afirmação de que a Constituição Econômica Brasileira não se restringe apenas às previsões do “Título VII –
Da Ordem Econômica e Financeira”, mas está espalhada ao longo da Constituição como um todo e da legislação
esparsa, se está utilizando, como premissa, a diferença adotada pela doutrina entre Constituição Econômica
Formal e Material. Sobre isto, v. MONCADA, Luís S. Cabral. ob. cit., p. 92.
101
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 68.
100
59
Para ele, isto se deve ao fato de haver, ao longo do Texto Constitucional, sem
número de previsões normativas de cunho socioeconômico. Deste modo, há a necessidade de
se compreendê-la de modo mais restrito. Daí porque a conceitua como
[...] “o conjunto de preceitos e instituições jurídicas que, garantindo os
elementos definidores de um determinado sistema econômico, instituem uma
determinada forma de organização e funcionamento da economia e
constituem, por isso mesmo, uma determinada ordem econômica” (Vital
Moreira); ou, definida a partir de sua função, como “formada pelo
ordenamento essencial da actividade económica – contendo os princípios e
as normas essenciais ordenadoras da economia, dos quais decorrem
sistematicamente as restantes normas da ordem jurídica da economia”
(Antonio L. Sousa Franco).102
Mais do que isto, afirma que a Constituição Econômica:
[...] “restringe-se ao essencial do Direito da Economia, aos seus princípios
gerais” (Antônio Menezes Cordeiro); e que dela “fazem parte os princípios
mediante os quais se garante e define a estrutura duma certa economia
(constituição estatutária)... e, bem assim, o seu modo de funcionamento,
organização e orientação (constituição directiva)” (Simões Patrício).103
A existência de princípios fundamentais regentes das atividades econômicas,
tomados como objetos de uma Constituição Econômica, tem levado a doutrina a afirmar que
há uma constituição econômica material e uma constituição econômica formal. Assim,
compreende-se como constituição econômica material aquela cujas normas jurídicas
caracterizam-se como pilares, normas fundamentais da organização das atividades
econômicas, integrando o núcleo essencial do sistema econômico, a despeito de não terem
assento na Lei Maior. Isto está a indicar que o conteúdo da constituição econômica não se
esgota na Lei Constitucional, senão também no plano a ela inferior.
Ressalte-se que não estando formalmente positivadas no plano constitucional, posto
que fundamentais à estruturação da ordem econômica, as normas jurídicas integrantes da
constituição econômica material podem ser alteradas total ou parcialmente pelo legislador
infraconstitucional, refletindo a diferença de hierarquia normativa entre elas e as normas
formalmente constitucionais. Em verdade, dentro do entendimento de constituição econômica
material cabe a colocação de normas constitucionais e infraconstitucionais que se prestam a
disciplinar a organização nuclear do sistema econômico.
102
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 68-69. (grifos do autor).
103
Idem, ibidem, p. 69. (grifos do autor).
60
Nesta linha de entendimento, Luís S. Cabral de Moncada aduz que “[...] A
apreciação e identificação das normas que integram a CE material, faz-se predominantemente
a partir da realidade constitucional e não a partir do sistema económico, puro ou misto, que o
texto constitucional consagrou. [...]”104. Traduzindo a idéia: as normas jurídicas que
caracterizam a constituição econômica material são aquelas que, conquanto não estejam
formalmente postas no bojo da Lei Maior, conformam-se com suas prescrições, ou seja,
coadunam-se com as normas constitucionais, delas extraindo seu fundamento de validade.
De outro lado, entende-se por constituição econômica formal aquela cujas normas
jurídicas estão prescritas no próprio Texto Constitucional. Tomando-se como exemplo a
Constituição Federal Brasileira de 1988, encontrar-se-á um espaço reservado à Ordem
Econômica e Financeira, como enuncia o Título VII. Mas além delas, as normas jurídicas
constitucionais da economia não estão previstas única e exclusivamente naquela extensão que
vai do Art. 170 ao Art. 192 do Texto Supremo. Em verdade, como consignado anteriormente,
a “Constituição Econômica” espalha-se por todo o texto da Lei Maior.
Deve-se recorrer, aqui, a Eros Roberto Grau, que aludindo à lição de Antonio L.
Sousa Franco, assentou que mais do que aquelas normas econômicas fixadas ao texto
constitucional e dotadas de seus requisitos e características formais, ainda podem-se
considerar parte integrante da Constituição Econômica formal outras normas com “[...]
incidência econômica, ainda que desprovidas, de per si, daquela particular relevância
material”.105 Em outras palavras, compõe a Constituição Econômica formal todas as normas
que, de algum modo, reflitam uma conseqüência econômica, mesmo que não sejam
diretamente direcionadas ao âmbito econômico ou que não tenham conteúdo econômico
objetivo.
As prescrições constitucionais contidas no Art. 1º e no Art. 3º precitados assumem a
qualidade de normas constitucionais que possuem incidência econômica, mas que não detêm
esta particular relevância material. De igual modo, as normas tributárias extrafiscais, como é o
caso do Art. 146, III, “d”, da Constituição de 1988, que confere fundamento de validade ao
Simples Nacional, abordado no último capítulo, e o Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição
Federal, que fixa a necessidade de deliberação entre os Estados-membros e o Distrito Federal
104
MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra: 2000, p. 92-93.
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 69.
105
61
– via convênios interestaduais – para concessão de incentivos fiscais em matéria de ICMS,
também objeto de investigação adiante.
Em conclusão parcial, consigne-se que a utilização da expressão “Constituição
Econômica”, ao contrário de ser pacífica, tem causado dissensos. Não há um sentido unívoco
no seu emprego. Eros Roberto Grau, após comentá-la, critica severamente o emprego da
expressão Constituição Econômica como também da locução “Ordem Econômica”. Ele
entende que o conceito tem pouca utilidade. Ainda, lembra a crítica de Carlos Ferreira de
Almeida, que afirma ser o conceito de Constituição Econômica uma ficção, pois as normas
jurídicas que o integram não são verdadeiramente constitucionais.106
José Afonso da Silva, a seu turno, faz uma ressalva sobre a idéia que se tem de
Constituição Econômica. Segundo ele, na perspectiva brasileira, é possível tomá-la apenas
como Constituição Econômica formal, que se consubstancia “[...] na parte da Constituição
Federal que contém os direitos que legitimam a atuação dos sujeitos econômicos, o conteúdo
e limites desses direitos e a responsabilidade que comporta o exercício da atividade
econômica”.107 Do conceito exposto percebê-se que o autor concebe a Constituição
Econômica formal com uma noção mais ampla do que a doutrina que a entende como a
disciplina jurídica fundamental da intervenção do Estado na economia.
É o caso de Jorge Miranda, que vê a Constituição Econômica como algo significativo
exclusivamente do conjunto de preceitos que regulam a intervenção estatal na economia, ou
seja, sua compreensão a respeito dela é mais restrita, não alcançando a organização e a
estruturação da vida econômica em geral.108
Desenvolvendo um pouco mais a idéia acerca da Constituição Econômica, porém
alterando-se o enfoque, nota-se que afora a discussão sobre a constituição econômica formal e
material, há ainda uma dualidade na sua compreensão quanto ao modus como as normas
constitucionais econômicas regem as relações econômicas.
João Bosco Leopoldino da Fonseca salienta que a constituição econômica tem o
condão de converter o regime econômico em ordem jurídico-econômica, pois fixa os
106
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 75.
107
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 26. ed. São Paulo: Malheiros, 2006, p.
791. (grifos do autor).
108
Apud MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, nota de rodapé n.
2, p. 93.
62
princípios e as regras jurídicas que informam as relações econômicas. Assim, dependendo de
como a ordem jurídico-econômica trata o regime econômico – (i) se aceita e acolhe o já
existente, adotando-o como base de toda a organização que a norma implanta; ou (ii) se
procura criar um novo regime econômico, tem-se a distinção entre constituição econômica
estatutária e constituição econômica programática, diretiva ou dirigente.109
Deste modo, a constituição econômica estatutária é aquela composta por normas
jurídicas definidoras de uma certa e determinada forma econômica, um verdadeiro “estatuto”
que caracteriza uma dada ordem jurídica da economia.110
Afirma-se, com José Joaquim Gomes Canotilho, que este modelo de constituição
econômica concebe-se como simples instrumento governamental, estabelece competências e
regulam os processos econômicos. Em síntese, a constituição econômica estatutária apenas
recebe a ordem econômica real, aquela desempenhada no plano factual.111
É por meio das normas jurídicas estatutárias que se definem, portanto, as reais
características da ordem jurídica da economia, expondo sua ideologia. Por exemplo, como a
liberdade de iniciativa e a propriedade privada são tratadas por uma certa e determinada
ordem jurídica é reflexo do estatuto da economia em vigor em um dado Estado.
De outro lado, encontra-se a figura da constituição econômica programática, diretiva
ou dirigente. Esta, mais do que mero instrumento de governo, revela-se um meio de reação
sobre a ordem econômica (mundo do ser), conformando-a, modificando-a, enfim,
direcionando-a em um sentido que se o entende mais correto, preestabelecido. Ou seja, ela
estabelece diretrizes, fins a serem atingidos pelo Estado e pela sociedade. Em outros termos,
por intermédio das normas jurídicas programáticas busca-se a realização de valores
constitucionais materiais como o desenvolvimento socioeconômico e a justiça social.
A constituição econômica programática funciona como um vetor da ordem
econômica (plano da realidade), com o escopo de condicioná-la a realizar as metas e
programas juridicamente definidos no altiplano constitucional.112
109
FONSECA, João Bosco Leopoldino. Direito Econômico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 93.
MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 96.
111
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 66.
112
A respeito da constituição econômica programática, cf. MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico.
3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 95-97.
110
63
Conquanto exista esta distinção conceitual entre a constituição econômica estatutária
e a programática, é possível afirmar que esta é mais ampla, de modo que contém aquela. Ou
seja, se a constituição estatutária é aquela que, em última análise, define a realidade
econômica do Estado de modo a expor sua ideologia, então não é demais asseverar que a
constituição programática também detém esta qualidade, com a diferença que a isto ela
acresce um plus que é a fixação de diretrizes e metas econômicas a serem atingidas pelo
Estado, e não como mera aceitação e acolhimento da realidade econômica.
Como a constituição programática tem um “plano” para a economia e sobre ela
intervém para realizá-lo, afirma-se, com tranqüilidade, que a constituição programática é uma
criação do Estado Social, contrapondo-se à “Constituição Econômica” do Estado Liberal,
meramente estatutária. Seu aperfeiçoamento, sua evolução, contudo, se dá, como é
perceptível, sob a égide do Estado Democrático de Direito, pois, ao invés de se desenvolver a
função de “grande provedor” e de explorador das atividades econômicas, há uma mudança de
foco, na medida em que ela cometeu ao Estado a função primaz de regulador da economia,
fiscalizando-a, incentivando-a, planejando-a.
Tendo em vista esta classificação das constituições econômicas, é fácil perceber que
a Constituição Federal de 1988 enquadra-se perfeitamente no segundo conceito, isto é, de
constituição programática, diretiva ou dirigente, o que significa ser ela prenhe de normas
jurídicas programáticas, ou seja, normas jurídicas de natureza teleológica. Estas, por sua vez,
são aquelas que José Afonso da Silva define como
[...] normas constitucionais, através das quais o constituinte, em vez de
regular, direta e imediatamente, determinados interesses, limitou-se a traçarlhes os princípios para serem cumpridos pelos seus órgãos (legislativos,
executivos, jurisdicionais e administrativos), como programas das
respectivas atividades, visando à realização dos fins sociais do Estado.113
Se a constituição econômica programática é aquela que fixa as diretrizes econômicas
a ser perseguida pelo Estado, e isto se faz pela previsão das normas constitucionais
programáticas, então não precisa se demorar no texto da Lei Constitucional Brasileira para se
verificar a existência de diversas normas programáticas com fins socioeconômicos. Já no Art.
3º constam os objetivos fundamentais da República, os quais são as metas, os fins a serem
alcançados pelo Estado Brasileiro.
113
SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p.
138.
64
Ali constam claros exemplos de normas programáticas, que indicam justamente a
característica dirigente que acomete a Constituição Brasileira em vigor. Em verdade, estes
objetivos são os vetores condicionantes de toda a atividade dos órgãos Legislativo, Executivo
e Judiciário, enquanto componentes da estrutura estatal.
Ainda sob esta mesma ótica, vê-se, atualmente, valorização do trabalho e a liberdade
de iniciativa. Estas categorias jurídicas, positivadas como fundamentos da República, no dizer
do Art. 1º, inciso IV, da Constituição de 1988, são valores sociais. Eles revelam sua natureza
programática na medida em que se os encontra como alicerces da Ordem Econômica,
conforme caput do Art. 170 da Constituição. Ou seja, além de fundamentos da República, eles
se caracterizam, ainda, como bases sobre as quais toda a ordem da economia – entendida
como aquela localizada no plano do real-social – deve se estruturar e desenvolver. Vale dizer,
a valorização do trabalho e a livre iniciativa fundamentam a ordem jurídica econômica.
Estas mesmas idéias se aplicam sobre os demais princípios gerais da atividade
econômica, constantes nos incisos I a IX do Art. 170 da Constituição. Eles não são os fins em
si, mas, diversamente, consistem em princípios jurídico-econômicos que condicionam a
economia brasileira como um modelo democrático, ou seja, que prestigia, ao mesmo tempo, a
liberdade de iniciativa e os valores liberais sem deixar de lado as preocupações e anseios
sociais e coletivos. Em outros termos, o sistema de produção é capitalista, isto é, a economia é
de mercado, mas só é legítima se fundada na valorização do trabalho e na liberdade de
iniciativa e se promover desenvolvimento econômico com justiça social.
Portanto, a Constituição Brasileira de 1988, como constituição econômica
programática, tem como escopo promover o desenvolvimento como justiça social, esta sua
finalidade, que serve, em conseqüência, à realização do fim último de todo Estado: a
promoção do bem estar geral da sociedade.
2.1.2 A finalidade da Constituição Econômica: desenvolvimento socioeconômico
O desenvolvimento, como lembrado outrora por Lourival Vilanova, é um processo
de mudança social integrado por uma série de fatores, mas cuja ênfase recai, em dias de hoje,
sobre o econômico.114 Apesar disto, deve-se lembrar que o desenvolvimento econômico não é
114
VILANOVA, Lourival. Proteção Jurisdicional dos Direitos numa sociedade em desenvolvimento, in Escritos
Jurídicos e Filosóficos, v. 2. São Paulo: Axis Mundi, 2003, p. 487.
65
apenas crescimento ou progresso econômico, ou seja, mera acumulação de riquezas.
Tampouco consiste em distribuição de riqueza. Ao contrário, desenvolvimento pressupõe
distribuição eqüitativa de riqueza, crescimento econômico equilibrado; pressupõe, também, a
idéia força de um programa do Poder determinante de uma política desenvolvimentista.
Enfim, trabalha em favor do bem-estar social.115
É adequado dizer, neste sentido, que desenvolvimento, apesar do enfoque econômico
salientado por Lourival Vilanova, é sempre desenvolvimento socioeconômico – até em face
das próprias previsões constitucionais que disciplinam juridicamente a questão econômica,
jungindo-a ao pretexto social. Talvez por isto que Gilberto Bercovici pontue que não há bemestar social sem desenvolvimento, pois condição necessária para tanto.116
De todo modo, ciente disto o constituinte de 1988 preocupou-se largamente com o
tema. Tal foi sua fixação sobre a idéia do desenvolvimento socioeconômico nacional, que,
curiosamente, o termo aparece 46 (quarenta e seis) vezes ao longo da Constituição de 1988.
Ora ele surge como objetivo fundamental, ora é colocado no bojo dos direitos individuais; ora
é fim da ordem econômica, em outras vezes aparece ao longo das regras definidoras das
competências legislativas das entidades federativas; vislumbra-se-lo, também, na organização
dos poderes do Estado e mesmo no Sistema Tributário Nacional. Ele é traçado, ainda, no bojo
da Política Urbana, no Sistema Financeiro Nacional, na questão educacional, na cultura e no
capítulo da Ciência e Tecnologia.
É, destarte, o escopo maior de toda a ordem jurídica brasileira, notadamente aquela
traçada no plano constitucional.
De toda sorte, interessa a esta investigação as previsões constitucionais dispostas no
Art. 3º, incisos I, II e III. É da combinação destes dispositivos constitucionais que se assenta o
desenvolvimento nacional como objetivo fundamental da República. A interpretação
sistemática daqueles dispositivos confere ao desenvolvimento importante status, pois a partir
deles que se direcionam os caminhos que devem ser seguidos pelos governantes ao traçar suas
115
RIBEIRO, Maria de Fátima. Os 40 Anos da Zona Franca de Manaus e a Importância dos Incentivos Fiscais
para o Desenvolvimento Econômico e Social da Região. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, RAMOS FILHO,
Carlos Alberto de Moraes, PEIXOTO, Marcelo Magalhães [coord.]. Tributação na Zona Franca de Manaus:
(Comemoração aos 40 anos da ZFM). São Paulo: MP Editora, 2008, p. 336.
116
BERCOVICI, Gilberto. Constituição Econômica e Desenvolvimento- uma leitura a partir da Constituição de
1988. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 51.
66
políticas sociais e econômicas, estabelecendo, desta forma, um programa socioeconômico em
nível constitucional, indicador e regulador das políticas governamentais.
Em outras palavras, vê-se que tais disposições – que, em última instância, significam
conjugadamente a mesma circunstância, isto é, objetivam o desenvolvimento socioeconômico
nacional – indicam quais são as finalidades sociais e econômicas que o Estado deve realizar.
Exatamente por isto é que:
Os poderes públicos devem buscar os meios e instrumentos para promover
condições de igualdade real e efetiva e não somente contentar-se com a
igualdade formal, em respeito a um dos objetivos fundamentais da
República: construção de uma sociedade justa.
Para adoção desse preceito, deve existir uma política legislativa e
administrativa que não pode contentar-se com a pura igualdade legal,
adotando normas especiais tendentes a corrigir os efeitos díspares
ocasionados pelo tratamento igual dos desiguais, buscando a concretização
da igualdade social.117
Destaque-se, ainda, que de forma inovadora a Constituição Federal traz em seu bojo
os objetivos fundamentais a serem perseguidos pela República Federativa do Brasil, o que
reforça mais uma vez a preocupação do legislador constituinte e de toda a sociedade brasileira
com o desenvolvimento socioeconômico nacional.
Por outro lado, tratando do desenvolvimento no texto da Constituição Portuguesa,
Luís S. Cabral de Moncada situa-o como um princípio, mas, como tal, sua compreensão é
próxima àquela que se tem exposto no Brasil. Diz ele:
Este princípio não aponta, sem mais, para uma política de crescimento
económico medido pela mera acumulação do produto nacional bruto. De
facto, a ideia de desenvolvimento veicula desde logo considerandos de
equidade social dependentes de uma intervenção dos poderes públicos na
esfera da produção e da repartição. O crescimento deve pois obedecer a
certas condições que própria constituição precisa; deve ser um crescimento
equilibrado [...], equitativo [...] e eficiente que se não pode medir pelo
simples acumular de riqueza. É por isso que se quer agora desenvolvimento
e “sustentável” [...].118
Não obstante, o próprio Luís S. Cabral de Moncada lembra que desenvolvimento é
um crescimento condicionado e problemático, na medida em que os elementos que o compõe
117
MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada e Legislação Constitucional. 2. ed. São Paulo:
Atlas, 2003, p. 146.
118
MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 147.
67
conflitam uns com os outros. Em razão disto, cabe ao Estado decidir qual dele deva favorecer
de acordo com cada caso e momento. É neste contexto que a lição de Moncada revela-se mais
interessante, pois, conquanto concorde que desenvolvimento não significa crescimento
econômico puro e simples ou mesmo distribuição de riqueza, ele entende que primeiro deve
haver crescimento e só depois há que se falar em desenvolvimento. É sua letra:
A tarefa de conciliação referida é difícil e delicada, já que o
desenvolvimento só pode ter sentido a partir da acumulação prévia de um
mínimo de riqueza. Só a partir daí é que é possível fazer intervir os aludidos
considerandos de equidade social. Na verdade, antes do desenvolvimento,
que é uma opção política, é necessário garantir o crescimento que é uma
necessidade econômica e social. Isto significa que a política de
desenvolvimento só pode ter um sentido útil a partir de um certo nível de
crescimento econômico, pois que os considerandos igualitários só podem
fazer-se sentir a partir de certa altura e não como preocupação inicial da
política econômica, frustrando o crescimento.119
O desenvolvimento, portanto, é objetivo fundamental da República. Porém, não é o
objetivo-fim em si, pois que visa promover o bem estar geral da sociedade. Entretanto, visto
da ótica jurídico-constitucional, o desenvolvimento como objetivo fundamental depende de
outras normas jurídicas que tendam a efetivá-lo concretamente, uma vez que norma de cunho
programático. Precisamente por isto que sua ligação com as normas jurídicas econômicas é
irremediável, notadamente aquelas contidas no Capítulo I do Título VII da Constituição
Federal, quando trata dos Princípios Gerais da Atividade Econômica.
Ficou assentado anteriormente que a Constituição Econômica Formal é perfeita pelas
normas constitucionais que integram aquela parte que o constituinte denominou de “Da
Ordem Econômica” e também por outras que disponham sobre a organização e a estruturação
das atividades econômicas, ou seja, todas as normas constitucionais que disciplinam a vida
econômica da nação. Neste sentido, as disposições do Art. 3º da Constituição de 1988, acima
referidas, fazem parte da Constituição Econômica, revelando que a ordem jurídica da
economia, com seus princípios e regras fundantes e estruturantes, é informada pelos objetivos
fundamentais da República. Via de conseqüência, a relação entre estes e as disposições do
Art. 170 e seguintes da Constituição – que constitui a Ordem Econômica – é indissociável.
119
MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 147-148.
68
Reforça esta idéia, verbi gratia, a circunstância de a redução das desigualdades
sociais e regionais estar inserida constitucionalmente como objetivo fundamental (Art. 3º,
inciso III) e ainda como princípio geral da atividade econômica (Art. 170, inciso VII).
Assim, o desenvolvimento socioeconômico é o fim da Constituição Econômica; as
atividades econômicas informadas pelos princípios gerais enumerados no Art. 170 da
Constituição laboram no sentido de sua realização, pois vetor de interpretação e aplicação
destas normas jurídico-constitucionais.
Porém,
inolvidável
que
este
mister,
de
promoção
do
desenvolvimento
socioeconômico nacional, compete ao Estado, que o realiza, entre outras formas, mediante
intervenção na economia e no âmbito social, com vistas a implementá-lo.120
2.1.3 Os princípios gerais da atividade econômica e o papel do Estado na ordem
constitucional econômica de 1988
O Título VII do Texto Constitucional trata “Da Ordem Econômica e Financeira”,
cujas disposições iniciam-se, como já referido, no Art. 170 e prolonga-se até o Art. 192. Neste
título, o Capítulo I cuida “Dos Princípios Gerais da Atividade Econômica”, conforme
previsões do Art. 170 e seguintes. Mas mais do que os princípios gerais da atividade
econômica, encontram-se ali positivadas, também, as normas constitucionais que disciplinam
toda a atuação estatal no domínio econômico, entre outras coisas.
Nada obstante, por hora é relevante para este trabalho o contido no Art. 170, que
veicula os princípios gerais propriamente ditos. Referido dispositivo prescreve, in verbis:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: I –
soberania nacional; II – propriedade privada; III – função social da
propriedade; IV – livre concorrência; V – defesa do consumidor; VI – defesa
do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o
impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração
e prestação; VII – redução das desigualdades regionais e sociais; VIII –
busca do pleno emprego; IX – tratamento favorecido para as empresas de
pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e
administração no País.
120
AGUIAR, Glauco Lubacheski de. A tributação extrafiscal como mecanismo de desenvolvimento sócioeconômico da Zona Franca de Manaus. In: MARTIN, Ives Gandra da Silva; RAMOS FILHO; Carlos Alberto de
Moraes; PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord.). Tributação na Zona Franca de Manaus: comemoração aos 40
anos da ZFM. São Paulo: MP Editora, 2008, passim.
69
Parágrafo único. É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade
econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos
casos previstos em lei.
Perceptível, ab initio, que a ordem econômica tem dois fundamentos e uma
finalidade. Os fundamentos: a valorização do trabalho humano e a livre iniciativa121; a
finalidade: assegurar a todos existência digna conforme os ditames da justiça social. Significa
que os fundamentos da ordem econômica não se esgotam em si mesmos, pois não são os
objetivos-fins, mas, sim, propõem-se a garantir dignidade a todos e promover a justiça social.
Para que isto se efetive, entrementes, há a necessidade de observância dos princípios
gerais da ordem econômica, que, como apercebe José Afonso da Silva, “[...] se revelam mais
tipicamente como objetivos da ordem econômica [...]”122 do que propriamente princípios.
Todavia, a discussão semântica, neste momento, é secundária. Importa ter em mente apenas
que a Constituição confere-lhes relevante papel no contexto econômico, notadamente porque
condiciona a atuação do particular e também do próprio Estado.
A soberania nacional (Art. 170, inciso I, da Constituição de 1988) posta como
princípio da ordem econômica é mais do que simples repetição daquela previsão contida no
Art. 1º, inciso I, da Lei Maior, pois consiste em sua complementação, na medida em que
afirma a independência nacional do ponto de vista econômico. Neste aspecto, João Bosco
Leopoldino da Fonseca ressalta que a soberania, ao lado da igualdade e da solidariedade
constitui a tríade principiológica fundamental do direito internacional do desenvolvimento,
sendo vedado a qualquer Estado interferir em outro com o fito de lhe impor direcionamentos
econômicos, a teor da Resolução n. 2625 da Organização das Nações Unidas (ONU).123
Segundo Lafayete Josué Petter, em uma primeira aproximação – única cabível neste
trabalho – a soberania nacional como princípio da ordem econômica pode ser entendido como
autodeterminação de condução da política econômica.124
Por sua vez, a propriedade privada e a sua função social estão enunciadas como
princípios constitucionais da ordem econômica, conforme os incisos II e III do Art. 170. A
121
Aqui vale a lembrança de que a valorização do trabalho e a livre iniciativa são, ao mesmo tempo,
fundamentos da ordem econômica e também da República. E funcionam, igualmente, como princípio informador
das atividades econômicas.
122
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 792.
123
FONSECA, João Bosco Leopoldino. Direito Econômico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 127.
124
PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 190.
70
abordagem conjunta destes princípios decorre da necessidade de uma compreensão ampla
sobre o direito de propriedade, uma vez que é a função social que traça os limites do seu
exercício, reduzindo-lhe aquela pecha de plenitude que as duas primeiras constituições
brasileiras – a imperial de 1824 e a republicana de 1891 – lhe outorgavam.
Muito embora o direito de propriedade se constitua em direito individual, sua
consagração como princípio da ordem econômica lhe dá o tom adequado de sua existência no
bojo da ordem constitucional em vigor, na medida em que “[...] os princípios da ordem
econômica são preordenados à vista da realização de seu fim: assegurar a todos existência
digna, conforme os ditames da justiça social.”125 Assim, a propriedade privada vincula-se à
consecução daqueles fins, para mais de atender a sua função social.
Interessante relembrar algo que já fora exposto e que agora ressurge: diz respeito ao
aspecto estatutário da constituição econômica, ou seja, conhece-se a natureza do regime
econômico segundo o tratamento jurídico dispensado ao direito de propriedade privada. No
caso brasileiro, é indubitável a adoção do sistema econômico fundado na iniciativa privada,
nos termos do Art. 170 combinado com o Art. 1º, IV e com o Art. 5º, XXII e XXIII.
Todavia, a observação de João Bosco Leopoldino da Fonseca é pertinente acerca do
erro lógico levado a efeito pela Constituição de 1988 no que tange aos fundamentos da ordem
econômica. Para ele, ao invés de dizer a livre iniciativa como fundamento da ordem
econômica e o direito de propriedade privada como princípio, a inversão desta consideração
seria mais adequada, pois o princípio da livre iniciativa encontra-se na aceitação do direito de
propriedade privada, isto é, dela é corolário lógico.126
Um detalhe: Luís Eduardo Schoueri recorda, o que é de todos conhecido, que o
princípio da propriedade privada tem estreita ligação com a tributação, uma vez que esta
implica necessariamente em diminuição da esfera patrimonial privada pela sua transferência
ao setor público. Entretanto, ele adverte que a tomada das normas tributárias com efeito
indutor também encontra na propriedade privada seus limites, porém, com índole mais rígida
do que aquela que delimita a atuação apenas arrecadatória.127
125
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 812.
FONSECA, João Bosco Leopoldino. Direito Econômico. 5. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 128.
127
Sobre o assunto, cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio
de Janeiro: Forense, 2005, p. 91-92.
126
71
A defesa do consumidor também é colocada como princípio da ordem econômica
(Art. 170, V, da Constituição Federal) em razão da relevância que ele assume no contexto
econômico. Tutelá-lo é reflexo da evidente vulnerabilidade frente ao fornecedor, além das
conseqüências que a massificação das relações de consumo lhe inflige por conta da produção
em grandes escalas. Em verdade, tornou-se indispensável sua proteção em virtude de sua
importância no cenário econômico, principalmente onde impera a economia de mercado.
Ora, é inegável sua importância, vez que inexiste economia de mercado sem
consumidor. Como consiste em elemento imprescindível à própria existência do mercado –
que depende do equilíbrio entre a oferta e a demanda para seu justo equilíbrio –, a defesa da
concorrência sempre tem o consumidor e seus direitos como um de seus focos principais,
como bem lembra Lafayete Josué Petter, referindo-se principalmente à experiência norteamericana e européia.128 Em outros termos, tutelando-se o consumidor, a Constituição garante
a concorrência e, assim, traceja os limites de atuação do mercado, assegurando a manutenção
de seu funcionamento, já que inerente ao modelo econômico por ela adotado.
Ou seja, por intermédio deste princípio defende-se a concorrência e assim garante a
racionalidade e o esclarecimento da decisão econômica, pois permite “[...] ao consumidor que
exerça a sua escolha sem ser para tal pressionado pelo poder económico dos monopólios ou
por comportamentos abusivos das empresas [...]”.129
Note-se, ainda, que ao abordar o tema, José Afonso da Silva toma a defesa do
consumidor como princípio de integração, pois se dirige a solver problemas de
marginalização regional ou social, colocando-o, assim, em conjunto com a defesa do meio
ambiente, com a redução das desigualdades sociais e regionais e com a busca do pleno
emprego.130
Tamanha é a significação da defesa do consumidor para o sistema jurídico-político
instituído a partir de 1988, que a Constituição também o fixou como direito individual,
atribuindo ao Estado a sua promoção, a teor do Art. 5º, inciso XXXII da Constituição Federal.
Ou seja, reconhece-lhe direitos e atende-se às necessidades que lhes são inerentes, como o
respeito à sua dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, etc.
128
PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 230.
129
MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 371.
130
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 796.
72
Outro princípio que recebeu menção expressa do constituinte no rol dos princípios
jurídicos econômicos é a tutela do meio ambiente (Art. 170, VI, da Constituição Federal). A
enunciação da defesa do meio ambiente no bojo da ordem jurídica econômica implica na
necessidade de modificação do modelo de desenvolvimento, no sentido de que se realize de
modo equilibrado e sustentado. Ou seja, traduz a premente necessidade de que todo o
empenho e esforço dos agentes econômicos, públicos ou privados, para a máxima promoção
do desenvolvimento efetivem-se em respeito ao meio ambiente. Daí porque chamado de
desenvolvimento sustentável, em vista da estreita ligação entre o econômico e o ambiental.
Vale consignar que a expressão “desenvolvimento sustentável” não alcança
unanimidade
doutrinária,
pois
o
conceito
de
“desenvolvimento”
pressupõe
uma
sustentabilidade, porque ínsita a ele. Assim, todo desenvolvimento só se caracteriza como tal
porque é sustentável. Lafayete Josué Petter pondera neste sentido, pois considera haver uma
contradictio in terminis na expressão, já que desenvolvimento significa aumento da qualidade
de vida dos integrantes da sociedade, o que supõe a idéia de sustentabilidade.131
Ao falar em desenvolvimento sustentável e o liame existente entre o econômico e o
ambiental, não se pode perder de vista algo que ficou assentado no capítulo inicial acerca da
interpretação das normas constitucionais. Sendo o desenvolvimento socioeconômico objetivo
fundamental, mas tendo em vista a proteção e preservação ambiental, como parcela vital da
dignidade da pessoa humana, também encampada pela ordem jurídica, é determinante que a
interpretação das normas que versem sobre este âmbito se realize de modo a assegurar a
unidade da Constituição, promovendo-se ambos os bens jurídicos precitados.
Enfim, enunciar a defesa do meio ambiente no rol dos princípios econômicos
demonstra a estreita correlação entre estes domínios, mas revela, principalmente, a existência
de um espaço onde se une dignidade humana, qualidade de vida e desenvolvimento.
Além de princípio econômico, a tutela do meio ambiente consta, também, no rol dos
direitos individuais, conforme Art. 5º, LXXIII, da Constituição de 1988, como um dos bens
jurídicos que poderão ser protegidos via ação popular, além de consistir em tema de
competência comum entre as unidades federativas (Art. 23, VI, da Constituição Federal).
Mas, principalmente, vê-se sua importância porque ganhou capítulo próprio dentro do Texto
131
PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 243.
73
Constitucional, consistindo em “bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de
vida”, consoante Art. 225 da Constituição de 1988.
A redução das desigualdades regionais e sociais e a busca do pleno emprego também
foram inseridos na relação de princípios gerais das atividades econômicas, a teor do Art. 170,
incisos VII e VIII, da Constituição Federal. Estes princípios decorrem de outras previsões
constitucionais. A redução das desigualdades sociais e regionais, além de princípio
econômico, é também objetivo fundamental da República, conforme Art. 3º, III, da
Constituição de 1988; o pleno emprego é conseqüência direta da dignidade da pessoa humana
por meio da valorização do trabalho, que consistem em fundamentos da República, consoante
Art. 1º, incisos III e IV, da Lei Maior, além, obviamente, de se caracterizar como direito
social inalienável, a teor do Art. 6º da Constituição.
Como princípios da ordem econômica, fixam objetivos ao Estado e aos agentes
econômicos.132 Além disso, são primados constitucionais impositivos e, simultaneamente,
norma-objetivo, “[...] dotada de caráter constitucional conformador, a justificar a
reivindicação pela realização de políticas públicas”.133
José Afonso da Silva trata-os, assim como a outros dantes comentados, como
princípios de integração, porquanto vertidos à solução dos problemas de marginalização
regional ou social, buscando, em última instância, igualização das condições sociais.
Especialmente quanto à busca do pleno emprego, enfim, o autor pondera sua harmonização
com a valorização do trabalho humano, fundamento da ordem econômica.134
Estas considerações sobre os princípios da ordem econômica prestam-se a
contextualizá-los ao tema desenvolvido. E apenas isto, pois que os princípios que importam
efetivamente ao tema são a livre iniciativa, a liberdade de concorrência e o tratamento
favorecido dispensado as pequenas empresas, todos tratados oportunamente adiante.
Sobre os princípios constitucionais econômicos enumerados no Art. 170, chama
atenção o fato de todos eles, além de princípio econômico, estarem positivados em outros
132
ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica – um exame da tributação como instrumento de
regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora, 2007, p. 89.
133
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 205.
134
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.
796-797.
74
pontos da Constituição, ora significando fundamentos da República, ora objetivos
fundamentais; em outros casos direitos e garantias individuais ou mesmo direitos sociais.
Enfim, por força destas circunstâncias que se denota a unidade constitucional e o
inter-relacionamento existente entre as diversas partes do Texto Maior, isto é, a correlação e
proximidade entre os mais diferentes conteúdos. Exatamente nesta linha de raciocínio a
advertência de Lafayete Josué Petter: “[...] torna-se ilógica a compartimentalização de
determinados preceitos constitucionais em face da evidência da interconexão de todos”.135
Brevemente anotadas algumas linhas acerca dos princípios gerais da atividade
econômica, de plano percebe-se a abstenção de considerações sobre o princípio da livre
concorrência, estipulado no Art. 170, inciso IV, da Constituição de 1988. Assim foi feito por
dois motivos, conseqüência um do outro: (i) consiste em uma discricionariedade do cientista;
(ii) no exercício de sua discricionariedade investigativa, entende-se que pela importância do
princípio ao presente trabalho, a ele deve ser conferido espaço próprio e individualizado.
Por outro lado, também não foram abordados os enunciados prescritivo-normativos
contidos nos arts. 173, 174 e 175 da Constituição, que positivam as formas de atuação do
Estado em relação ao processo econômico, posto que contidos no Capítulo I que
supostamente trata dos “Princípios Gerais da Atividade Econômica”. Em verdade, também
porque detém relevância especial para o desenvolvimento do tema que será feita uma análise
específica sobre os pontos que importam. Porém, é factível sintetizar que destas disposições
normativas revelam-se três diferentes papéis cometidos ao Estado no contexto econômico: (i)
como explorador das atividades econômicas; (ii) como agente normativo e regulador das
atividades econômicas; e (iii) como prestador de serviços públicos.
2.2 O PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA COMO VETOR DA ATUAÇÃO
INTERVENTIVA ECONÔMICA DO ESTADO
Abordar o princípio constitucional econômico da livre concorrência depende do
conhecimento de algumas premissas iniciais basilares. Prima facie, deve-se ter em mente que
inexiste livre concorrência sem liberdade de iniciativa – de empresa, principalmente. Muito
embora sejam princípios distintos, eles são umbilicalmente ligados.
135
PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, nota de rodapé n. 3, p. 149.
75
Logo, falar de liberdade de concorrência implica em tratar, igualmente, da livre
iniciativa. Aquela é elemento indissociável desta, na medida em que a livre concorrência
pressupõe a liberdade de iniciativa. Porém, a recíproca não é verdadeira, ou seja, embora a
livre concorrência seja corolário da liberdade de iniciativa e sem ela não exista, esta subsiste
sem aquela.136 Pode-se dizer, assim, que a livre concorrência é parte da livre iniciativa.
A teor do Art. 1º, inciso IV, da Constituição de 1988, a livre iniciativa constitui um
valor social e, como tal, caracteriza-se como fundamento da República. Além disso, nos
termos do Art. 170, caput, da Lei Maior, a livre iniciativa, ao lado da valorização do trabalho
humano, são as bases sobre as quais estrutura-se a ordem econômica brasileira.
A livre iniciativa é conceito que pode ser traduzido no direito individual de se lançar
no mercado econômico por sua conta e risco. Segundo MIGUEL REALE, ela
[...] não é senão a projeção da liberdade individual no plano da produção,
circulação e distribuição de riquezas, assegurando não apenas a livre escolha
das profissões e das atividades econômicas, mas também a autônoma eleição
dos processos ou meios julgados mais adequados à consecução dos fins
visados. Liberdade de fins e de meios informa o princípio da livre iniciativa,
conferindo-lhe um valor primordial, como resulta da interpretação conjugada
dos citados arts. 1º e 170.137
Corolário, no âmbito econômico, do valor liberdade e do direito de propriedade, a
livre iniciativa manifesta-se de diversas formas. Seu influxo alcança a liberdade de iniciativa
econômica, a liberdade de contratar, o direito de propriedade privada e, essencialmente, a
liberdade de concorrência, objeto de análise desta investigação neste momento.
No que tange à liberdade de iniciativa das atividades econômicas, atente-se que sua
ligação com a livre concorrência tem a isonomia como pressuposto. Pode-se afirmar, em
termos, que a livre concorrência limita a liberdade de iniciativa econômica de modo que se
valorize a igualdade. Ou melhor, é pela garantia de atuação de todos agentes no mercado, bem
como sua permanência, conferindo-lhes igualdade de oportunidades e tratamento que se
protege o direito de liberdade econômica. Assim destaca André Elali, para quem:
O sistema, pois, ao mesmo tempo em que admite a livre iniciativa, deve
controlar o equilíbrio das relações econômicas, através da manutenção da
livre concorrência. Livre-iniciativa e livre concorrência são princípios que se
136
Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 94.
137
REALE, Miguel. Inconstitucionalidade de congelamentos. Folha de São Paulo. 19 de out. de 1988, p. A-3.
76
complementam, representando liberdades relativas, já que vinculadas ao fim
da harmonia da estrutura social.138
Como princípio explícito da ordem econômica, catalogado no inciso IV do Art. 170,
a livre concorrência, recorde-se, é um princípio instrumental, pois serve de meio à promoção
da liberdade de iniciativa. Esta asserção revela que não é ele o fim em si, mas a ferramenta
para o alcance de um objetivo maior. Neste particular, Isabel Vaz preleciona:
[...] Defende-se a opinião segundo a qual a concorrência empresarial ‘não é
um valor-fim, mas um valor meio’ classificada como instituto jurídico
filiado às normas do Direito econômico. E nesta condição, adquire a
natureza de instrumento de realização de uma política econômica, cujo
escopo principal não é simplesmente reprimir práticas econômicas abusivas
e sim estimular todos os agentes econômicos a participarem do esforço do
desenvolvimento, tal como descrito por Perroux.139
A enumeração da livre concorrência como princípio constitucional econômico –
somado à livre iniciativa – reflete o modo capitalista de produção adotado pelo sistema
político para a vida econômica nacional. A livre concorrência só tem lugar onde houver um
sistema de economia de mercado, pois seu escopo é garantir o livre jogo de suas forças no
intuito da manutenção do justo equilíbrio entre a oferta e a procura, garantindo a liberdade de
ação inerente ao mercado, sem prescrições ou prestações estatais. Como resultante do valor
fundamental da liberdade, a livre concorrência denota, de início, a ausência de intervenções
externas no mercado – leia-se “estatal” –, no intuito de corrigir-lhe eventuais falhas.
Contudo, na ótica democrática de direito, a pretensão da desregulação do mercado
não subsiste, haja vista dois motivos principais: (i) a Constituição fixou fins a serem atingidos
pela ordem econômica, de modo que eventuais desvios, ações econômicas que não primem
pela realização daqueles fins, deverão ser corrigidas pela intervenção estatal; (ii) mesmo
sendo decorrência da liberdade, ela não é absoluta, como, ademais, nenhum valor o é, de
modo que extremá-la acabaria por contrariar as próprias regras constitucionais.
Duas questões, assim, são inescapáveis: adotada a economia de mercado e sua
proteção pela livre concorrência, alçada ao patamar constitucional, seria cabível a intervenção
estatal? Intervindo o Estado, haveria limites a tanto?
138
ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica – um exame da tributação como instrumento de
regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora, 2007, p. 83.
139
VAZ, Isabel. Direito Econômico da Concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p.9-10.
77
Com efeito, inegável a opção da Constituição pela economia de mercado e também
pela intervenção estatal econômica. A adoção desta formatação jurídica para o sistema
político-econômico não significa algo contraditório. Diversamente, é o resultado da percepção
de que aquela racionalidade espontânea e natural do mercado por si só não é capaz de se
garantir, de remover os obstáculos ao livre desenvolver das atividades econômicas.
Não se nega o papel da livre concorrência como mecanismo de proteção do livre agir
das forças de mercado, mas afirma-se que este instrumental é frágil e dificilmente subsistiria
se entregue à auto-regulação do mercado. Implica, assim, na necessária intervenção estatal
para salvaguardar outros interesses e fins também protegidos pela ordem constitucional.
Como o modelo estatal em vigor pós-1988 somente aceita a liberdade de atuação econômica
se esta se realizar no interesse da justiça social, e é da natureza do mercado a tendência
concentracionista, então a regulação estatal deve corrigir esta falha – entre outras –, até
porque, onde há concentração não há concorrência, e esta recebe a proteção constitucional.
Em suma, a adoção da economia de mercado e a consagração da livre concorrência
como princípio constitucional econômico não colide com a intervenção estatal na economia.
Ao contrário, complementam-se, pois o Estado atua justamente para assegurar a concorrência.
Quanto a isto, Washington Peluso Albino de Souza é preciso, como sempre: “O Estado, face a
seus princípios ideológicos, permite que as empresas atuem livremente no mercado, apenas
agindo quando necessário para salvaguarda de seus próprios princípios e dos interesses
individuais e coletivos deles decorrentes”.140
O princípio da livre concorrência funciona como um vetor de atuação estatal no
domínio econômico, além de condicionar as ações econômicas do particular. Ou seja, ao
Estado reserva-se função interventiva, desde que não suprima a liberdade de concorrência,
mas aja no intuito de corrigir eventuais desvios ao livre desenvolver das relações econômicas.
Vale dizer, cabe-lhe o papel de proteger e fomentar da livre concorrência, mediante atos
concretos que a assegure e a estimule.
Conforme Lafayete Josué Petter:
O papel reservado ao poder público, neste particular, é o de fomentar a livre
concorrência. [...] Ao Estado, então, é deferida a relevante tarefa de velar
pela regularidade do mercado. Ao disciplinar normativamente a defesa da
140
SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 6 ed. São Paulo: LTr, 2005,
p. 159.
78
concorrência, deve mesmo estabelecer um conjunto de regras que tenham
por objetivo a intervenção do Estado na vida econômica, de modo a garantir
que a competição das empresas no mercado não seja falseada por meio de
práticas colusórias ou abusivas.141
O particular, a sua vez, vê-se garantido e limitado pela livre concorrência, na medida
em que sua manutenção no mercado é assegurada pela liberdade de concorrência, mas não lhe
é lícito agir de modo abusivo com intuito de dominar o mercado, suprimir outros concorrentes
do setor econômico de atuação, aumentar arbitrariamente seus lucros
As proposições de Fábio Ulhoa Coelho corroboram este entendimento, quando
pondera que “[...] Em duas direções se projeta a defesa do direito à livre iniciativa [que se dá,
via livre concorrência]: contra o próprio estado, que somente pode ingerir-se na economia nos
limites constitucionalmente definidos, e contra os demais particulares”.142 Feitas estas
considerações, é hora de anotar algumas palavras sobre o sentido e o alcance do princípio da
livre concorrência.
2.2.1 O significado do princípio constitucional econômico da livre concorrência
O princípio constitucional econômico da livre concorrência está positivado no Art.
170, inciso IV, da Constituição de 1988. Coligado diretamente a este dispositivo, traçando-lhe
o perfil constitucional, o Art. 173, §4º, da Constituição Federal estabelece que “a lei reprimirá
o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da
concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros”.143
A análise jurídica do princípio da livre concorrência tem estes dispositivos
constitucionais como ponto de partida. Como o objetivo final desta investigação é promover
uma análise, sob a perspectiva da concorrência, dos dois instrumentos extrafiscais anotados
no capítulo 4 adiante, é de grande valia, neste momento, traçar o sentido e o alcance deste
princípio constitucional econômico.
141
PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do art.
170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 223.
142
COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 8. ed., v. 1. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 188.
143
A doutrina critica a colocação do §4º dentro do Art. 173 da Constituição, pois é o dispositivo que trata da
atuação estatal como agente explorador de atividade econômica. Segundo entendem, esta determinação deveria
estar prevista, para ser mais adequada, dentro do Art. 174, que trata justamente da atuação do Estado como
agente normativo e regulador das atividades econômicas.
79
Para sua melhor compreensão, é relevante que se saiba, antes, o que é concorrência.
De antemão, anote-se que concorrência é conceito econômico que, por força das aludidas
disposições constitucionais, foi juridicizada, o que a converteu, assim, em figura jurídica
constitucional relevantíssima.
Paulo Sandroni define concorrência nos seguintes termos:
Também chamada livre-concorrência. Situação do regime de iniciativa
privada em que as empresas competem entre si, sem que nenhuma delas
goze da supremacia em virtude privilégios jurídicos, força econômica ou
posse exclusiva de certos recursos. Nessas condições, os preços de mercado
formam-se perfeitamente segundo a correção entre a oferta e a procura, sem
interferência predominante de compradores ou vendedores isolados. Os
capitais podem, então, circular livremente entre os vários ramos e setores,
transferindo-se dos menos rentáveis para os mais rentáveis em uma
conjuntura econômica. De acordo com a doutrina liberal, propugnada por
Adam Smith e pelos economistas neoclássicos, a livre concorrência entre
capitalistas constitui a situação ideal para a distribuição mais eficaz dos bens
entre as empresas e os consumidores. Com o surgimento de monopólios e
oligopólios, a livre concorrência desaparece, substituída pela concorrência
controlada e imperfeita.144
Isabel Vaz, por sua vez, é mais sucinta, mas não menos preclara, ao tratar acerca da
compreensão de concorrência. Segundo ela:
A noção tradicional de concorrência pressupõe uma ação desenvolvida por
grande número de competidores, atuando livremente no mercado de um
mesmo produto, de maneira que a oferta e a procura provenham de
compradores ou de vendedores cuja igualdade de condições os impeça de
influir, de modo permanente ou duradouro, no preço dos bens e serviços.145
Pela amplitude das definições citadas, extraem-se algumas conclusões. Primeiro,
concorrência pressupõe livre jogo das forças econômicas na disputa pelo mercado. Presume,
também, que a competição entre as empresas se dá dentro de uma perspectiva de igualdade de
condições – igualdade jurídico-formal –, ou seja, completa ausência de artificialidades –
privilégios jurídicos, força econômica ou posse exclusiva de certos recursos –, significando
que a parcela do mercado obtida por cada um dos agentes econômicos é resultado de seus
próprios méritos, de sua eficiência. Na situação de concorrência, os preços decorrem da
racionalidade natural do mercado, ou seja, formam-se livremente pelo justo equilíbrio entre
oferta e procura, sem sofrer qualquer tipo de influência de fornecedores ou consumidores.
144
145
SANDRONI, Paulo. Hovíssimo dicionário de economia. 9. ed. São Paulo: Best Seller, 2002, p. 118-119.
VAZ, Isabel. Direito Econômico da Concorrência. Rio de Janeiro: Forense, 1993, p. 27.
80
Ainda, e principalmente, haverá concorrência onde houver uma pluralidade de agentes
econômicos – compradores e vendedores – disputando o mercado de um mesmo produto.
As situações onde há muitos compradores e vendedores agindo no mercado, e estes
não têm condições de influir, isoladamente, sobre o preço dos produtos, nem lhe é possível
dominá-lo, convencionou-se chamar de “concorrência perfeita”.
A definição de concorrência determina, portanto, a compreensão de sentido do
princípio da livre concorrência. Ou seja, sua enumeração em altiplano constitucional, como
primado conformador das atividades econômicas, demonstra claramente a pretensão do
constituinte: impedir que a competição entre as empresas seja falseada, isto é, liga-se a
necessidade de se corrigir as falhas do mercado.
O alcance do princípio da livre concorrência é delimitado, por outro lado, pela
previsão contida no Art. 173, §4º, da Constituição de 1988. O preceito ali contido submete o
poder econômico aos ditames constitucionais. Em melhores palavras:
Os dois dispositivos se complementam no mesmo objetivo. Visam tutelar o
sistema de mercado e, especialmente, proteger a livre concorrência, contra a
tendência açambarcadora da concentração capitalista. A Constituição
reconhece a existência do poder econômico. Este não é, pois, condenado
pelo regime constitucional. Não raro, esse poder econômico é exercido de
maneira anti-social. Cabe, então, ao Estado intervir para coibir o abuso.146
A conjugação do Art. 173, §4º ao Art. 170, IV, ambos da Constituição Federal tem
por finalidade conferir efetividade, conseqüência prática ao princípio da livre concorrência,
traçando-lhe a mínima compreensão, haja vista seu elevado grau de abstração. Além disso, a
verificação acurada destas previsões constitucionais – as quais são apenas o ponto de partida
para a exata definição do seu sentido e alcance – permite determinar duas funções cometidas à
livre concorrência, conforme lição de Calixto Salomão Filho: (i) garantir que o sucesso
relativo das empresas no mercado dependa exclusivamente de sua eficiência, e não de sua
“esperteza negocial”; ii) preservar o mercado como agente de transmissão de informações.147
Estas funções apontadas refletem a percepção de liberdade subjacente à compreensão
de livre concorrência: liberdade de competição e liberdade de escolha. Luís Roberto Barroso
averba, nesta linha: “O princípio da livre concorrência contém a crença de que a competição
146
147
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 795.
SALOMÃO FILHO, Calixto. Direito Concorrencial: as estruturas. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 55.
81
entre agentes econômicos de um lado e a liberdade de escolha do outro produzirão os
melhores resultados sociais, quais sejam: qualidade de bens e serviços e preço justo”.148
Ainda, livre concorrência implica em discussão acerca do poder econômico.
Questiona-se, nesta circunstância, como funciona a relação livre concorrência-poder
econômico? Em que medida aquela limita o seu exercício?
Para responder a esta pergunta, indispensável destacar a lição de Washington Peluso
Albino de Souza, que entende ser ilegítimo o exercício do poder econômico se exceder os
limites da licitude e ilicitude tracejados por norma jurídica. Segundo ele:
Destacando-se nas “relações de poder” a modalidade do poder econômico,
teremos aquelas relações jurídicas já permeadas de sentido de relações
econômicas, cujas motivações deverão ajustar-se ao objetivo de justiça, sob
pena de se contraporem aos direitos que devem assegurar. O exercício do
poder econômico, portanto, far-se-á em obediência a um equilíbrio de
interesses postos em jogo de acordo com uma linha traçada como
delimitadora do justo e do injusto e que, traçada pela lei jurídica, coincidirá
com o lícito e o ilícito (grifos do autor).149
Isto quer dizer, como se denota da própria ordem jurídica, que o poder econômico
em si e por si não é algo ilegítimo. Ele é corolário do valor fundamental de liberdade.
Juridicamente, o exercício do poder econômico com mero intuito de lucro e satisfação pessoal
é válido.150 A Constituição reconhece sua existência e o assegura, na medida em que adota um
regime de livre iniciativa, de economia de mercado como modo de produção econômica.
Com tranqüilidade é possível afirmar que o poder econômico não é reprimido pela
Ordem Econômica; a repressão constitucionalmente definida direciona-se ao seu uso abusivo.
Vale dizer, a ilegitimidade não está no poder econômico em si, mas na caracterização do
abuso, de modo que aquele é condição para que este ocorra, mas, isolado, não é suficiente.
Portanto, como sói acontecer a todos os valores jurídicos, o exercício do poder sofre
limitações jurídicas. Particularmente em relação à concorrência, o exercício do poder
econômico será tido por ilícito se empregado abusivamente, isto é, quando visar à dominação
do mercado, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros.
148
BARROSO, Luís Roberto. Temas de Direito Constitucional. Tomo II. Rio de Janeiro: Renovar. 2003. p. 58.
SOUZA, Washington Peluso Albino de. Primeiras Linhas de Direito Econômico. 6 ed. São Paulo: LTr, 2005,
p. 207.
150
Cf. COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de Direito Comercial. 8. ed., v. 1. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 187-188.
149
82
Por derradeiro, rememore-se que a concorrência não é o fim em si. Destarte, o
princípio da livre concorrência
[...] deve observância ao caput do art. 170, buscando-se, através de sua
inviolabilidade, a garantia da existência de concorrência como meio de
alcance aos fundamentos da ordem econômica, quais sejam, a valorização do
trabalho humano, a livre iniciativa e a existência digna a todos, conforme os
ditames da justiça social.151
Enfim, o princípio da livre concorrência expressa a vedação de qualquer ação, estatal
ou particular, que objetive influir no livre jogo das forças do mercado e crie um desequilíbrio
na competição entre os agentes econômicos. Ocorrendo, no entanto, o desequilíbrio,
aventando-se falhas no mecanismo de mercado, a intervenção econômica é necessária para
assegurar a manutenção da concorrência, cabendo ao Estado este agir.
2.2.2 A fragilidade da liberdade de concorrência e a necessária intervenção estatal no intuito
de garanti-la
Por redundante que possa parecer, o princípio da livre concorrência tem por
finalidade assegurar a liberdade de concorrência, de atuação no mercado. Presta-se, assim, a
evitar a concentração econômica ilegítima. Paradoxalmente, é inerente ao próprio conceito de
economia de mercado a noção de concentração econômica. Em situações normais, decorrentes
da racionalidade e naturalidade da movimentação do mercado, a concentração econômica
como conseqüência da eficiência dos agentes econômicos faz parte da álea da normalidade da
atividade econômica.152 É, portanto, legítima.
O fluir do tempo demonstrou, no entanto, que a ausência de uma entidade regulatória
do mercado, não é salutar, na medida em que diversas são as situações onde os mecanismos
livres do mercado não têm condições de corrigir as falhas surgidas. Destarte, incorrendo na
circunstância onde a competição entre os agentes econômicos torna-se desequilibrada em
razão de expedientes externos ao livre jogo das forças do mercado, então cabe ao Estado agir,
regulando as atividades econômicas. Isto significa que a livre concorrência, per se, não se
garante; o mecanismo da concorrência é frágil e como tal assegurá-lo é função estatal.
151
LOSS, Giovani R. A guerra fiscal e a concorrência: a análise dos incentivos financeiros, in Revista de Direito
Tributário. v. 85. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 142.
152
Cf. PETTER, Lafayete Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica: o significado e o alcance do
art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 224-226.
83
Daí o motivo de dizer que o princípio da liberdade de concorrência direciona a
atuação do Estado no domínio econômico, isto é, cabe-lhe regular a economia. Entretanto, é
bom que se diga: “A regulação DEVE proteger a CONCORRÊNCIA e NÃO DEVE proteger
o MERCADO, pois o mercado não necessariamente concretiza valores sociais”.153
Significa que a garantia da livre concorrência é um dos objetivos que fundamentam a
intervenção estatal na economia. Em outros termos, imprescindível a intervenção do Estado,
para adequar os comportamentos dos sujeitos econômicos de maneira a prestigiar a liberdade
econômica e também realizar os fins constitucionalmente consagrados à ordem econômica.
Necessária, portanto, a intervenção econômica. Indispensável, deste modo, uma
análise um pouco mais detida deste fenômeno jurídico, como se realiza subseqüentemente.
2.3 A ATUAÇÃO ESTATAL ECONÔMICA E DESENVOLVIMENTO: INTERVENÇÃO
DIRETA E INDIRETA
Tamanha é sua relevância para o processo de desenvolvimento socioeconômico das
nações, que a intervenção econômica tem sido objeto de análises e estudos já há longa data.
Desde que John Maynard Keynes publicou seu The General Theory of Employment, Interest
and Money, em 1936, muito se discutiu e muito se propôs acerca do modus como o Estado
deveria se portar perante o fenômeno econômico. Essencialmente, esta discussão sempre
dependeu, a bem da verdade, do modelo estatal e econômico adotado em cada país.
No Brasil, isto sempre passou pela análise do texto das constituições surgidas ao
longo da história. Atualmente, o Texto Constitucional de 1988 permite verificar 03 (três)
distintas funções cometidas ao Estado Brasileiro em relação ao tema econômico. São elas: (i)
ao Estado é permitido agir na exploração da atividade econômica, nos termos do Art. 173 da
Constituição de 1988; (ii) o Estado tem o dever de atuar como agente normativo e regulador
da atividade econômica, circunstância na qual exercerá funções de fiscalização, de incentivo
ou de planejamento, conforme expressa previsão do Art. 174 da Constituição Federal; (iii) o
Estado atuará, ainda, como prestador de serviços públicos de modo direto ou indiretamente,
mediante concessão ou permissão, a teor do Art. 175 da Constituição Federal.
153
BASSOLI, Marlene Kempfer. Notas de aula. Programa de Mestrado em Direito da Unimar. Marília. 28 e 29
de abril de 2006.
84
Genericamente tem-se utilizado o termo “intervenção” para significar as diversas
formas de atuação do Estado em relação ao processo econômico. Embora sejam formas de
atuação econômica do Estado, há, entre elas, diferenças marcantes, o que implica dizer que
assiste razão a Eros Roberto Grau, que utiliza os vocábulos “atuação estatal” e “intervenção”
para significar mais adequadamente as três formas de atuação estatal em relação ao processo
econômico. Segundo ele, a expressão “atuação estatal” tem sentido amplo e exprime a atuação
do Estado no campo da atividade econômica em sentido amplo, ou seja, tanto na área de
titularidade própria – quando, verbi gratia, presta serviço público ou regula sua prestação –
quanto em área de titularidade do setor privado. “Intervenção”, de outro lado, tem sentido
restrito, porquanto expressa a atuação do Estado em área de titularidade do setor privado, vale
dizer, conota a atuação estatal no campo da atividade econômica em sentido estrito.154
Logo, detém relevância para este trabalho apenas a questão da intervenção. Assim, o
corte metodológico que ora se faz, exclui a questão da atuação estatal em sentido amplo para
tratar exclusivamente da “intervenção”, entendida naquele significado recém exposto.
Elegida a base terminológica e o corte necessário para o melhor desenvolvimento e
compreensão deste ponto do trabalho, é hora de apontar a classificação das modalidades de
intervenção. Óbvio, por outro lado, que as classificações não são nem verdadeiras nem falsas;
nem melhores nem piores do que as demais. As classificações, como universalmente
conhecido, ou são úteis ou inúteis. E no caso, a classificação mais útil é aquela que trata da
intervenção econômica do Estado como sendo (i) direta ou (ii) indireta.
Entende-se por intervenção econômica direta, quando o Estado atua no domínio
econômico como agente econômico, ou seja, quando explora qualquer dos setores da
economia com o objetivo de lucro, em competição com os particulares. Nesta forma de
intervenção, o Estado, por ser titular da exploração das atividades econômicas, recebe o
mesmo tratamento jurídico dispensado aos particulares. É o Estado Empresário.
São precisas as palavras de Luís S. Cabral de Moncada acerca da intervenção direta,
quando afirma que nesta, o Estado se torna o agente económico principal, equiparado ao
agente económico privado, e “[...] só é concebível numa forma de estado claramente
intervencionista, que veja numa certa representação que das suas funções se faz o fundamento
154
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 82-83.
85
da ordem jurídico-econômica”.155 É, enfim, a intervenção estatal no domínio econômico, de
que fala Eros Roberto Grau.156
Interessante consignar ainda, a título de informação, a intervenção no domínio
econômico subdivide-se, segundo Eros Roberto Grau, em intervenção “por absorção” e
intervenção “por participação”. Naquela, há a total assunção do controle dos meios de
produção e/ou troca pelo Estado; nesta, apenas parte dos meios de produção de algum setor do
domínio econômico é detida pelo Estado.157
Em resumo, sempre que o Estado imiscuir-se na função de agente econômico,
explorando as atividades econômicas com vistas ao lucro, circunstância que não lhe é afeita
precipuamente, porquanto de titularidade do setor privado, este estará intervindo diretamente
no domínio econômico.
Na sistemática brasileira da intervenção econômica, intervenção econômica direta só
tem lugar “quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse
coletivo, conforme definidos em lei”, a teor do caput do Art. 173 da Constituição de 1988.
Além disso, agindo diretamente no domínio econômico, o Estado não goza de quaisquer
privilégios ou facilidades que os diferencie do setor privado, mas sujeita-se ao regime jurídico
próprio da empresa privada, no que tange aos direitos e obrigações civis, comerciais,
trabalhistas e tributários, conforme Art. 173, §1º, inciso II, da Constituição de 1988.
Por sua vez, na intervenção indireta, “o estado não se comporta como sujeito
económico, não tomando parte activa e directa no processo econômico. Trata-se de uma
intervenção exterior, de enquadramento e de orientação que se manifesta em estímulos ou
limitações, de vária ordem, à actividade das empresas”.158 A intervenção indireta significa que
o Estado, ao invés de atuar como sujeito econômico, atua de modo periférico, assumindo o
papel de agente normativo e regulador, ou seja, intervém sobre o domínio econômico.159
O destaque, nesta passagem, fica por conta da classificação que Eros Roberto Grau
adota para a questão da intervenção estatal sobre o domínio econômico. Segundo ele, neste
155
MONCADA, Luís S. Cabral de. Direito Econômico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 221.
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 126.
157
Idem, ibidem, p. 127.
158
MONCADA, Luís S. Cabral de. Ibidem, p. 337.
159
Idem, ibidem.
156
86
caso o Estado intervirá “por direção” ou “por indução”, segundo o modo como manipular as
normas interventivas se cogentes e imperativas de comportamentos ou se dispositivas.160
De toda sorte, Vânya Spagolla averba que esta intervenção tem por pressupostos
básicos: “[...] preservar o mercado dos vícios do modelo econômico (concentração
econômica, abuso do poder econômico, entre outros) e assegurar a realização dos fins da
ordem econômica, quais sejam propiciar vida digna a todos e realizar a justiça social”.161
O Estado promove estes pressupostos quando atua como agente normativo e
regulador da atividade econômica, que se efetiva em três planos: polícia econômica, fomento
econômico e planejamento econômico. Essencialmente, as funções de fiscalização, incentivo
e planejamento, previstas no Art. 174 da Constituição Federal.
Por fim, uma última ponderação: como o enfoque da dissertação é a análise de dois
mecanismos tributários extrafiscais – os convênios interestaduais em matéria de incentivos
fiscais de ICMS e o Simples Nacional – à luz do direito econômico, mais precisamente sob a
ótica da concorrência, então é imprescindível destacar dois pontos importantes, ainda neste
capítulo: a atuação estatal como agente regulador das atividades econômicas e a compreensão
sobre a intervenção por direção e por indução, sendo esta última a mais importante.
2.3.1 O Estado como agente regulador das atividades econômicas: compreensão do Art. 174
da Constituição de 1988
Prescreve o Art. 174, caput, da Constituição Federal, in verbis: “Art. 174. Como
agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as
funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor
público e indicativo para o setor privado”.
Do fraseado contido no precitado dispositivo constitucional destacam-se algumas
elucubrações. Em primeiro lugar, revela-se uma distinção entre o Estado “agente normativo”
e o Estado “agente regulador” das atividades econômicas. Intuitivamente, pode-se
correlacionar a atividade normativa do Estado com sua função de fiscalização, onde a atuação
160
GRAU, Eros Roberto. Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica.
8. ed. São Paulo: Malheiros, 2003, p. 127-130.
161
SPAGOLLA, Vânya Senegalia Morete. Tributação Ambiental: proposta para instituição de um imposto
ambiental no direito brasileiro. Dissertação (Mestrado em Direito) – – Pós-graduação em Empreendimentos
Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social da Universidade de Marília. Marília: 2008, p. 34.
87
estatal opera-se de modo unilateral, com vistas à vigilância da atuação econômica privada
vetorizada à promoção dos fins da ordem econômica: valorização do trabalho humano e livre
iniciativa, conforme, obviamente, os ditames da justiça social. A atividade de regulação, por
outro lado, junge-se às funções de incentivo e planejamento, na medida em que intervém de
modo bilateral, contratual, enfatizando a política econômica, conferindo vantagens fiscais em
atenção a um planejamento econômico pré-estabelecido.
Neste sentido, verbera Eros Roberto Grau:
“[...] A atuação normativa reclama fiscalização que assegure a efetividade e
eficácia do quanto normativamente definido – daí porque, em rigor, nem
seria necessária a ênfase que o preceito adota ao expressamente referir a
função de fiscalização. A atuação reguladora há de, impõe a Constituição,
compreender o exercício das funções de incentivo e planejamento. [...]”.162
Não obstante estas considerações, em verdade, não é possível separar, pura e
simplesmente, a atuação normativa da atuação reguladora do Estado, pois é evidente que a
regulação também se sujeita à fiscalização do mesmo modo que a ação normativa também
toma como funções constitucionalmente atribuídas incentivar e planejar.163
Em verdade, isto está a depender da corrente doutrinária sobre a regulação
econômica que se adote, como ficou bem destacado por Marlene Kempfer Bassoli, em nota de
aula proferida no Programa de Mestrado em Direito da Unimar, na disciplina “Estado, Direito
e Relações Empresariais”, realizada nos dias 28 e 29 de abril de 2006. Isto fica mais claro a
partir da análise do material utilizado nas aulas, que separa as atribuições do Estado na
intervenção indireta em “agente regulador” e “agente fiscalizador”.
De toda sorte, é fato na intervenção econômica indireta, a atuação estatal como
agente normativo ou como agente regulador sempre se dará por intermédio das normas
jurídicas, sejam elas gerais e abstratas inaugurais ou secundárias, ou ainda as individuais e
concretas secundárias. É dizer: neste contexto elas detêm grande destaque e consistem no
instrumento por excelência da intervenção estatal indireta sobre a economia.
Retornar-se-á, adiante, na questão das normas jurídicas. Agora, mais algumas
ponderações sobre o texto positivo do Art. 174 da Constituição Federal. Denota-se deste
162
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 97.
163
Idem, ibidem, p. 97.
88
preceito que a atuação estatal normativa e reguladora opera-se em três frentes distintas: na
fiscalização econômica, no incentivo à economia e no planejamento desta.
A função de fiscalização significa o poder de polícia econômica, parcela do poder de
polícia administrativa. O exercício da função fiscalizadora consiste em uma interferência
unilateral do Estado sobre o fenômeno econômico, no intuito de prevenir ou reprimir ações
contrárias à ordem econômica, seus princípios, fundamentos e fins. Em outros termos, é o
poder de polícia em sentido estrito, que Celso Antonio Bandeira de Mello aponta como
restrito às normas produzidas pelo Executivo, abstratas e gerais contidas em regulamento e
concretas e individuais contidas, por exemplo, em licenças para a efetivação de atividades
econômicas, restringindo-as ou prevenido-as quando contrastantes com os interesses sociais.
Ou seja, é a noção de polícia administrativa.164
Como polícia administrativa que é, porém no âmbito econômico, a atividade de
fiscalização econômica efetuada pelo Estado importa, sempre, em limitação ou disciplina de
direito, interesse ou liberdade, consoante precisa previsão do Art. 78 do Código Tributário
Nacional. Expondo nesta linha de raciocínio, Luís S. Cabral de Moncada consigna que:
A polícia limita, pois, nos termos legais, acções individuais que poderiam,
sem a actuação preventiva ou repressiva da administração, desrespeitar a lei
e lesar interesses gerais. A actuação repressiva completa, por óbvio, as
medidas preventivas.
A polícia económica, tal como a polícia administrativa em geral, manifestase através da edição de normas legais e regulamentares, da fiscalização da
sua observância (vigilância) e de actos administrativos de carácter
preventivo (licenças, autorizações) ou repressivo (multas, etc.).165
O CADE – Conselho Administrativo de Defesa Econômica exerce a função de órgão
fiscalizador da concorrência no país, nos termos da Lei n. 8.884/94, exemplificando
concretamente a função da polícia econômica no direito brasileiro. Em resumo, a defesa da
concorrência é algo que ingressa no âmbito da função de fiscalização estatal econômica.
O Estado exerce a função de incentivo, por sua vez, quando atua no sentido de
proteger ou promover os sujeitos econômicos privados, concedendo, assim, apoio para as
empresas, de modo que se fomente a economia. José Afonso da Silva denomina de “Estado
164
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antonio. Curso de Direito Administrativo. 25. ed. São Paulo: Malheiros,
2008, p. 809.
165
MONCADA, Luís S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 349.
89
Promotor da economia” a função estatal desempenhada nestes termos, pois “[...] consiste em
proteger, estimular, promover, apoiar, favorecer e auxiliar, sem empregar meios coativos, as
atividades particulares que satisfaçam necessidades ou conveniências de caráter geral”.166
No fomento econômico, a atuação estatal realiza-se com intuito de prestigiar a
atividade econômica privada por motivo de interesse público. E lembre-se que nem sempre é
o puro interesse econômico que serve de justificativa às medidas incentivadoras da economia.
Por vezes, por trás do incentivo econômico, há mesmo um fim de ordem social ou cultural.
Em regra, porém, o Estado exerce a função de incentivador econômico porque disto depende
a satisfação de necessidades públicas e gerais.
O tratamento jurídico diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e
empresas de pequeno porte, determinado constitucionalmente, é revelador da função de
incentivo econômico do Estado. Mais do que interesse econômico, há neste favorecimento
evidente interesse social, com vistas, pro exemplo, a trazer para o mercado formal estas
empresas e, assim, formalizar também os empregos por elas gerados. Neste ponto, denunciase exatamente em que ponto do direito econômico situa-se a Lei Complementar n. 123/2006,
que instituiu o Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte.
Na função de planejamento econômico, por fim, o Estado traça a organização da
economia, direcionando as atividades econômicas para que se realizem no sentido de
objetivos pré-estabelecidos. Considerando o Texto Constitucional de 1988, base sobre a qual
se empreende este estudo, e tendo em vista que a ordem econômica é parcela da ordem
jurídica global e, como tal, possui fins constitucionais a serem atingidos, é inegável que a
função de planejamento deferida ao Estado deve se efetivar com foco na realização dos
objetivos fundamentais fixados pela Constituição.
A compreensão de José Afonso da Silva acerca do planejamento econômico
direciona-se na linha do que se consignou acima. Tomando o planejamento como um
processo técnico instrumentado com escopo transformador da realidade existente, averba que
o planejamento econômico consiste num processo de intervenção estatal no domínio
166
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.
808. (grifos do autor).
90
econômico com o fim de organizar as atividades econômicas para obter resultados
previamente colimados.167 Entretanto, este mesmo autor, porém em outra obra, afirma que
[...] enquanto simples processo, o planejamento não opera transformação da
realidade existente, não surte efeitos inovadores da realidade urbana. Estes
só se manifestam quando o processo de planejamento elabora o plano ou
planos correspondentes, com o que, então, ingressa no ordenamento jurídico
por seu caráter conformador ou inovativo [...].168
Com estes mesmos contornos, Eros Roberto Grau assevera que o planejamento
econômico é “[...] forma de ação racional caracterizada pela previsão de comportamentos
econômicos e sociais futuros, pela formulação explícita de objetivos e pela definição de meios
de ação coordenadamente dispostos [...]”.169 A despeito da significação exposta, o autor
critica o entendimento do planejamento como técnica de intervenção, pois para ele,
planejamento é mero qualificativo da intervenção do Estado sobre e no domínio econômico,
não se configurando como a intervenção em si, mas apenas sistematiza racionalmente a ação
interventiva do Estado. Neste ponto, diz ele, tanto a intervenção no domínio econômico
quanto a intervenção sobre o domínio econômico pode se realizar de modo planejado.170
Estas considerações permitem a visualização de que o planejamento é sempre algo
abstrato, porquanto se caracteriza como um programa definidor de metas, diretrizes, objetivos
a serem alcançados. Por meio do planejamento identificam-se os focos de atuação e assim
definem-se quais ações deverão ser tomadas no intuito da realização dos objetivos préestabelecidos. No planejamento fixam-se, também, os meios a serem empregados na
realização das metas definidas. Neste aspecto, diferencia-se do plano, que é o ato concreto que
põe em prática a ação definida no planejamento. Em suma, o plano instrumentaliza o
planejamento.
No altiplano constitucional, encontram-se algumas previsões que acabam por
demonstrar esta distinção entre planejamento e plano. É o caso do Art. 165, I, §§1º e 4º, da
Constituição Federal. Estes preceptivos tratam do chamado “plano plurianual”, o que, em boa
técnica semântica, deveria ser denominado por “planejamento plurianual”, em virtude de
167
SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p.
809.
168
BARROS, Evandro Silva. A Contribuição do Planejamento Municipal na Efetivação dos Princípios Gerais
da Atividade Econômica. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pós-graduação em Empreendimentos
Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social da Universidade de Marília. Marília: 2007, p. 71.
169
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 129.
170
Idem, ibidem, p. 130.
91
traçar, como se observa da redação constitucional do Art. 165, §1º, “[...] as diretrizes,
objetivos e metas da administração pública federal para as despesas de capital e outras delas
decorrentes e para as relativas aos programas de duração continuada”. (grifo nosso).
O plano plurianual consiste em instrumento de programação econômica
governamental, cujo intuito é determinar as metas econômicas e sociais do governo instalado
pelo período de seu mandato.
Fixadas as previsões de ações racionais a serem implementadas, traçados as
diretrizes e os objetivos, e determinados os instrumentos a serem empregados – ou seja,
efetuado o planejamento – isto será colocado em prática por intermédio dos planos. Tanto é
assim que o §4º do Art. 165 determina: “Os planos e programas nacionais, regionais e
setoriais previstos nesta Constituição serão elaborados em consonância com o plano
plurianual e apreciados pelo Congresso Nacional” (grifo nosso). Ou seja, planos nacionais,
regionais e setoriais serão realizados conforme o planejamento plurianual.
Estas considerações, brevemente deslocadas do cerne da questão desenvolvida,
servem para justificar a distinção entre planejamento e plano.
Última lembrança sobre a questão do planejamento econômico: a parte final do Art.
174, caput, da Constituição Federal estabelece que a o planejamento é determinante para o
setor público e indicativo para o setor privado. Esta previsão desvela, em primeiro lugar, o
modelo político-econômico adotado pela Constituição, pois ao fixar a vinculação do setor
público ao planejamento estabelecido e a desvinculação do setor privado, expõe-se claramente
a qualidade intervencionista econômica do Estado brasileiro. Secundariamente, por ser o
planejamento indicativo ao setor privado, ou seja, por caracterizar mera sugestão àquele, não
é impositivo de comportamentos, sendo os sujeitos econômicos privados livres para ajustar-se
ou não ao planejamento público.
Como modo de ajustar as condutas econômicas dos particulares ao sentido prefixado
no planejamento econômico, o Estado dispensa-lhes estímulos ou desestímulos, de acordo
com a pretensão a ser atingida. Nesta circunstância, portanto, intervém indiretamente pela
92
veiculação de normas jurídicas diretivas ou indutoras. Vislumbram-se, então, as figuras da
“intervenção por direção” e da “intervenção por indução” de que fala Eros Roberto Grau.171
Esta classificação e distinção detêm extrema relevância para o tema, de modo que as
normas de direção e as normas indutoras serão tratadas a seguir, em item próprio, a fim de
direcionar o trabalho para o terceiro capítulo que tem a tributação como cerne. Contudo, o
destaque será conferido à intervenção por indução, uma vez que normas tributárias
extrafiscais revelam nítida natureza indutora, a qual se vislumbra nos instrumentos tributários
analisados no último capítulo – os convênios interestaduais em matéria de incentivos fiscais
de ICMS e o Simples Nacional.
2.3.2 Normas de direção e normas indutoras: formas de intervenção indireta do Estado sobre a
economia
Assentou-se anteriormente que a intervenção indireta do Estado sobre a economia
pode-se operar, conforme classificação adotada por Eros Roberto Grau, “por direção” ou “por
indução”. Como a intervenção indireta se materializa através das normas jurídicas, então estas
normas ora terão cunho diretivo, ora terão natureza indutora. Daí se falar em “normas de
direção” e “normas de indução”.
Na intervenção por direção os comandos normativos são dotados de imperatividade e
cogência, vale dizer, são impositivos de certos e obrigatórios comportamentos a serem
observados pelos agentes econômicos. As normas de intervenção por direção, porque impõe
uma conduta compulsória ao agente econômico, se não cumpridas pelo seu destinatário,
sujeita-o a sanções. Por isto que Luís Eduardo Schoueri afirma que “[...] A norma de direção
vincula a determinada hipótese um único conseqüente”.172
Já na intervenção por indução, as normas jurídicas assumem qualidade distinta das
normas diretivas, pois neste caso o Estado intervém pela positivação de regras dispositivas, ou
seja, ao invés de coagi-lo pela vinculação de sanção, o Estado privilegia aqueles mais
desejáveis173, influenciando na formação de vontade do destinatário da norma – o agente
171
GRAU, Eros Roberto. A Ordem Econômica na Constituição de 1988 – interpretação e crítica. 8. ed. São
Paulo: Malheiros, 2003, p. 127-128.
172
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 43.
173
ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica – um exame da tributação como instrumento de
regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora, 2007, p. 104.
93
econômico – pela via do incentivo ou do desestímulo. Neste caso, “[...] O Estado abre mão do
seu poder de dar ordens, substituindo-o por seu poder econômico, com efeito equivalente”.174
Como a norma indutora tem natureza dispositiva, pode ser que o sujeito econômico
opte por não conduzir sua ação econômica no sentido pretendido pelo legislador, mas nem por
isto recairá em comportamento ilícito. Em verdade, a norma indutora abre-lhe duas
alternativas, de, realizando a hipótese por ela descrita, sofrer as conseqüências prescritas –
sejam estimulantes ou desestimulantes daquele comportamento – ou então escolher
comportar-se de modo distinto da previsão normativa, em outro sentido. Justamente por conta
disto que Luís Eduardo Schoueri afirma ser ela, da ótica sintática, uma norma que à hipótese
vinculam-se duas conseqüências distintas, ligadas pela conjunção alternativa.175
Detalhe interessante das normas indutoras: elas podem assumir tanto feição positiva
como negativa, segundo os efeitos que produza. Esta colocação é deveras importante porque
em um primeiro momento pode parecer que a intervenção por indução represente, sempre,
estímulos, incentivos, benefícios, quando, em verdade, podem-se instituir normas indutoras
com caráter desestimulante, como é exemplo a tributação do cigarro, de cunho elevadíssimo.
Ou seja, a produção e comercialização deste produto não são vedadas; a livre iniciativa é
assegurada, entretanto, por razões outras – saúde pública, etc. – este comportamento é
desencorajado pela via da norma indutora negativa.
Registre-se, ainda, a ponderação de Luís Eduardo Schoueri de que as normas
indutoras tomam o mercado como pressuposto, daí serem conhecidas, na doutrina norteamericana, como market-based incentives, ou seja, incentivos baseados no mercado. Por meio
delas, trabalha-se a questão das externalidades176, privilegiando-se o papel do mercado, no
sentido de que, pelo mecanismo de internalização dos custos das externalidades, é ele (o
mercado) quem vai decidir o fracasso ou o sucesso de um produto.177
Deste modo, a distinção jurídica entre a norma de direção e a norma indutora reside
no seu objeto, qual seja, o grau de liberdade do administrado. Enquanto aquela tem por
propósito impor o modus comportamental do agente econômico, obrigado-o a agir conforme
174
SCHOUERI, Luís Eduardo. ob. cit., p. 44.
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 44.
176
Sobre as externalidades, que podem ser positivas ou negativas, Cf. SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação
da Atividade Econômica. São Paulo: Malheiros, 2001.
177
SCHOUERI, Luís Eduardo. ob. cit., p. 44.
175
94
sua previsão, sob pena de ser sancionado; esta faculta ao agente econômico a liberalidade de
observar ou não o comando normativo, sem que isto lhe acarrete sanções. Evidente que uma
vez optado por agir consoante a previsão da norma indutora, concretizada hipótese normativa
estará ele vinculado à conseqüência prescrita.
Nota-se, enfim, que as normas de direção e as normas de indução são claramente
interventivas. Por meio delas, efetiva-se a normatização e a regulação das atividades
econômicas, seja quando fiscalizadas, incentivas (ou desestimuladas) ou ainda planejadas.
Última consideração: uma vez que este trabalho desenvolve-se naquele espaço
normativo de inter-relação entre o direito econômico e o direito tributário, como vem se
denunciando desde o início, passa a interessar de ora em diante apenas as normas de indução
com conteúdo tributário. Deixam-se de lado as normas de direção por dois motivos: (i)
primeiro, em virtude do objetivo encampado neste trabalho; (ii) em segundo lugar, porque
incogitável a existência de normas de direção com este aspecto material tributário,
notadamente em vista do conceito e da distinção entre direção e indução.
Como a norma de direção sempre impõe comando imperativo e cogente,
determinando, assim, o exato comportamento do seu destinatário, de modo que este não pode
cogitar em não realizá-lo, sob pena de ser sancionado; e a concretização do fato jurídico
tributário é de liberalidade e conveniência da vontade do agente econômico em praticá-lo ou
não, por isto incogitáveis. Seria absolutamente inconstitucional, por ofensa ao direito de
propriedade e em razão de efeito confiscatório, se uma norma tributária qualquer obrigasse o
agente econômico, neste caso contribuinte, incorrer no fato gerador in concreto, como
precisamente apercebeu Luís Eduardo Schoueri.178
2.3.3 As normas tributárias indutoras como mecanismo de intervenção do Estado sobre o
domínio econômico
Afirmar a natureza indutora de uma norma jurídica nada tem que ver com dizer o seu
conteúdo. Ao contrário, a natureza indutora ou diretiva aborda um outro aspecto da norma
jurídica, sua finalidade da perspectiva econômica. Melhor dizendo, o aspecto indutor da
178
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 46.
95
norma jurídica encerra, na perspectiva semiótica, uma análise pragmática, ou seja, a interação
da norma com seu destinatário.179
A compreensão de norma indutora é resultante da noção de “intervenção por
indução”, classificação adotada por Eros Roberto Grau para designar a circunstância de o
Estado intervir sobre o domínio econômico com o objetivo de incentivar ou desestimular
certos setores da economia, de modo que, por meio da indução, tenha-se uma reação por parte
dos destinatários da norma.
Então, é possível identificar-se inúmeras normas, com os mais diversos conteúdos,
com finalidade indutora. Dentre estas, entretanto, sobressaem-se, no universo jurídiconormativo brasileiro, as normas tributárias. Sua preeminência no bojo da indução econômica é
resultante, ao menos em nível nacional, da soma de alguns fatores metajurídicos, como, por
exemplo, a elevada carga tributária brasileira e o emaranhado legislativo-tributário que assola
o país. Assim, normas de indução com conteúdo tributário são sobremaneira eficazes do ponto
de vista social, porque ao estimular ou desestimular os comportamentos econômicos, seu
efeito é imediato, em razão da realidade brasileira subjacente às circunstâncias de sua criação.
Não se pode deixar de afirmar, por outro lado, que é possível encontrar normas
indutoras com outros conteúdos, como, por exemplo, normas administrativas, financeiras,
cíveis, processuais, etc. Porém, apenas as normas tributárias indutoras, forma de intervenção
estatal sobre o domínio econômico, importam a esta investigação.
A escolha das normas tributárias indutoras como foco de fechamento deste capítulo,
depois de todas as ponderações sobre a Constituição Econômica, seus princípios e o papel
interventivo do Estado Brasileiro pós-1988, tem por finalidade fixar justamente o ponto de
intersecção entre o espaço normativo econômico e o tributário, pois sua legitimidade depende,
além da observância dos ditames jurídico-econômicos, já que inseridas no âmbito da
intervenção sobre o domínio econômico, de obediência aos princípios e regras informadores
do direito tributário. Ou seja, em razão de seu especial posicionamento dentro da ordem
jurídica vigente, as normas tributárias indutoras submetem-se a dois regimes jurídicos –
econômico e tributário –, sem prevalência de um ou de outro, pois ambos externados no plano
constitucional, o que revela o emprego necessário os instrumentos de interpretação
constitucional apontados no capítulo inicial deste trabalho.
179
Cf. FERRAZ Jr. Tércio Sampaio. Introdução ao Estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 5. ed. São
Paulo: Atlas, 2007, p. 123 e ss.
96
Em essência, antes de indutora, a norma jurídica é tributária. Ou, valendo-se das
lições semióticas, a norma tributária indutora é do ponto de vista sintático e semântico uma
norma tributária; mas na perspectiva pragmática, ela é norma indutora.
Mais, opta-se nesta investigação pela terminologia “norma tributária indutora” e não
“tributo indutor”, seguindo, assim, os passos da obra de Luís Eduardo Schoueri, em razão de
que nem sempre será o tributo em si o mecanismo da indução. Os comportamentos
econômicos podem ser induzidos por meio de deveres instrumentais (obrigação acessória, na
linguagem do Código Tributário Nacional), também mediante a criação de regimes especiais
de tributação (simplificadores ou agravantes) ou pela concessão de incentivos fiscais os mais
diversos (imunidades, isenções, anistias, concessões de créditos presumidos, etc.).
Em conseqüência, toda norma tributária indutora possui natureza extrafiscal, na
medida em que sua finalidade sempre é de fomento ou desestímulo de condutas econômicas,
com vistas à promoção de objetivos socioeconômicos. Deste modo, as normas tributárias
indutoras, porque não visam arrecadação de dinheiro aos cofres públicos e possuem estrutura
condicional-imperativa com características pragmáticas, podem positivar benefícios e
desvantagens, segundo o comportamento que se pretenda ver realizado.
Mais uma vez evidencia-se a vinculação entre direito tributário e o direito
econômico, ambos, no fim das contas, completamente informados pelo direito constitucional.
Assiste razão, assim, a Alfredo Becker, que percebeu, há muito, o timbre fundamental do
direito tributário como instrumento do Estado para a intervenção econômica.180
A relevância do direito tributário como instrumento de efetivação dos desideratos
constitucionais socioeconômicos conota, na ótica atual da intervenção econômica, a superação
da tese da neutralidade da tributação, que expressa a idéia “[...] de que eventuais alterações na
tributação não tragam distorções no sistema de preços relativos, o que implicaria menor
eficiência nas decisões econômicas e, portanto, redução do nível de bem-estar [...]”.181
Contudo, a pretendida tributação neutra não tem guarida no Texto Constitucional
Brasileiro de 1988. São inúmeras as previsões constitucionais que conferem evidente efeito
intervencionista à tributação. Pensar o contrário, seria afirmar que o tributo presta-se a único e
180
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007, p. 623.
REBOUÇAS, Helder. A defesa da concorrência e a tributação. Jornal Valor Econômico. São Paulo, 07 de
abril de 2008.
181
97
exclusivo fim, qual seja, servir como meio de abastecimento dos cofres públicos. A
neutralidade da tributação é insustentável mesmo se tivesse o tributo mera finalidade fiscal,
haja vista que nestes casos, por mínima que seja, a tributação sempre trará distorções no
sistema de preços, notadamente no sistema tributário brasileiro, uma vez que se adota aqui a
sistemática de se tributar produção e circulação de bens e serviços, e não o consumo.
De toda sorte, a partir do momento que ao Estado foi cometida atribuição de
intervenção econômica e este passou a valer-se dos mais diversos meios jurídicos de que
dispõe para pôr em prática este mister, a extrafiscalidade da tributação acabou por destacá-la
no contexto econômico pela sua eficácia, o que a remeteu ao centro da discussão jurídica e
econômica atual.
Portanto, imprescindível expor os contornos da tributação extrafiscal – normas
tributárias indutoras – como instrumento de intervenção econômica.
É o que se passa a fazer a partir do capítulo seguinte.
98
3 O REGIME JURÍDICO-TRIBUTÁRIO DA TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL
Evidenciou-se na última parte do capítulo anterior a natureza extrafiscal inerente às
normas tributárias indutoras. Aliás, para a finalidade desta investigação, normas tributárias
indutoras e tributação extrafiscal têm o mesmo sentido semântico. Cuidar deste tema, porém,
demanda alguns cuidados e necessita de esclarecimentos, notadamente no que se refere ao
emprego da expressão “extrafiscalidade” e ainda quanto ao adequado enquadramento das
normas tributárias extrafiscais (ou indutoras) no regime jurídico tributário.
No que concerne à questão terminológica, alguns autores resistem em empregar a
expressão “extrafiscalidade” para significar as normas tributárias com fins interventivos, em
razão da amplitude e generalidade desta terminologia, que pode alcançar, inclusive, normas
que (i) não sejam tributárias, mas detêm fins extrafiscais; ou sendo normas tributárias, (ii) sua
finalidade extrafiscal não tenha alcance estritamente econômico, mas diverso182. Além disto,
esta preocupação também objetiva prevenir (iii) discussões em relação a sujeição destas
normas ao regime jurídico tributário, em virtude da finalidade fiscal da norma tributária ser
apenas atípica, secundária.
Apesar disto, e ciente destas problemáticas, ao longo do trabalho as expressões
“tributação extrafiscal” ou “normas tributárias extrafiscais” serão empregadas no sentido de
normas tributárias indutoras, reveladoras de finalidade interventiva econômica.
Ainda na problemática semântica, deve ficar claro que se emprega aqui a expressão
“normas tributárias extrafiscais” ou “tributação extrafiscal” em detrimento de “tributos
extrafiscais”, justamente para significar maior amplitude ao termo. É certo que os tributos
podem ter objetivos fiscais ou extrafiscais, todavia, esta característica também acomete outras
normas tributárias que não aquelas que tratem especificamente da instituição dos tributos.
Assim, por exemplo, os instrumentos tributários tratados no capítulo a seguir: os convênios
interestaduais em matéria de incentivos fiscais de ICMS e o Regime Especial Unificado de
Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de
Pequeno Porte – Simples Nacional.
182
É o caso de Luís Eduardo Schoueri, que prefere o termo “norma tributária indutora” em detrimento de
“extrafiscalidade”, cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. ob. cit., p. 34.
99
Por outro lado, não sobeja reafirmar, neste começo, que as normas tributárias
indutoras, porque de natureza extrafiscal, sujeitam-se a dois regimes jurídicos distintos: o
econômico e o tributário. Submete-se àquele em razão da finalidade indutora, indicativa da
intervenção econômica indireta; deve observância a este, porque, a despeito do fim
interventivo econômico, é, antes de tudo, uma norma tributária, isto é, conforma uma hipótese
de incidência tributária. Logo, a finalidade extrafiscal da norma tributária não descaracteriza
sua estrutura normativa; em verdade, ela continua a regular as relações jurídicas tributárias, de
modo que o regime tributário também deve ser observado.
Como já se expôs toda a questão relativa ao regime jurídico-econômico no capítulo
anterior, situando as normas tributárias extrafiscais no seu bojo, agora se faz mister dissertar
sobre os contornos do regime jurídico tributário delineador da tributação extrafiscal. Noutros
termos, o foco, agora, é a análise jurídico-tributária das normas tributárias que tenham
finalidade extrafiscal. Mas é bom que se diga, de antemão, que, se para fins de exclusão das
normas tributárias extrafiscais o aspecto teleológico é despiciendo, o mesmo não ocorre
quanto à definição de sentido e a influência das regras e princípios aplicáveis. Ou seja, o dado
finalístico da norma tributária altera a perspectiva de aplicação dos princípios constitucionais
tributários. Vale dizer, ela tem o condão de definir seus limites jurídicos.
A ponderação de Humberto Ávila a respeito é base deste pensamento. Segundo seu
entendimento, a finalidade da tributação é um dado juridicamente relevante quando serve de
fundamento para a instituição de tributos e a diferenciação entre os contribuintes. Nestas
circunstâncias, diz ele:
[...] será a finalidade mesma da tributação que irá definir os seus limites:
quando a tributação tiver finalidade eminentemente fiscal e, por isso, visar a
repartir os encargos tributários, o critério da repartição será a própria
capacidade de contribuir para esse custeio; já quando tiver finalidade
principalmente extrafiscal e, por isso, visar a atingir um fim concreto,
econômico ou social, o critério da repartição não mais será a capacidade de
contribuir, mas a adequação, a necessidade e a correspondência do meio
relativamente àquela finalidade. O desconhecimento dessa distinção tem
deixado sem controle os contornos da instituição de impostos ligados ao
comércio exterior, a instituição legislativa de responsáveis tributários e
mesmo a criação de mecanismos variados para facilitar a fiscalização de
tributos.183
183
ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v. I, n. 3.
Salvador: CAJ - Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 07. Disponível em:
http://www.direitopublico.com.br
100
Melhor desenvolvendo a idéia. Ao tratar da tributação extrafiscal, previamente
consignou-se o entendimento de que estas normas submetem-se a dois regimes jurídicos: o
econômico e o tributário. No entanto, e apesar da sua corrente utilização, ainda há discussão
doutrinária no que se refere ao regime jurídico das normas tributárias extrafiscais. Em sede
doutrinária, há três correntes relativas à discussão.
A doutrina que tem maior aceitação no meio jurídico entende que a circunstância de
a norma tributária possuir esta ou aquela finalidade não significa uma desvinculação do
regime tributário, pois os fins eventualmente perseguidos (fiscal ou extrafiscal), como
elementos externos à estrutura normativa, são despiciendos para a definição do regime
jurídico aplicável, até porque estes são elementos que dizem respeito, em verdade, à Ciência
das Finanças e não à Ciência Jurídica.184 Noutro dizer, a finalidade da tributação, porque
elemento metajurídico, é irrelevante para a definição do regime jurídico aplicável.
Nesta linha de entendimento pensam, na doutrina brasileira, Geraldo Ataliba185,
Paulo de Barros Carvalho186 e José Souto Maior Borges187, entre outros; na doutrina
estrangeira, vale referência às lições de José Juan Ferreiro Lapatza188 e A. D. Giannini189.
Enfim, afirmam que a perspectiva teleológica da norma é irrelevante para a definição do
regime jurídico aplicável. Sendo normas tributárias, se os fins são fiscais ou extrafiscais, o
regime jurídico será sempre tributário, em especial no que tange aos princípios constitucionais
informadores da tributação.
Por sua vez, uma segunda corrente vislumbra as normas tributárias extrafiscais como
regras de direito fora do âmbito do direito tributário. No Brasil, Ricardo Lobo Torres tende a
seguir esta linha de pensamento, porquanto, para ele, “a extrafiscalidade também pode revestir
a forma de ingressos não-tributários, de conteúdo exclusivamente econômico, sem o objetivo
de contribuir para as despesas gerais do Estado”.190 As idéias expostas relevam o
entendimento de que extrafiscalidade não tem relação apenas com as normas tributárias, senão
também com normas jurídicas com outros conteúdos.
184
MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 61.
ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 156-157.
186
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 254.
187
SOUTO MAIOR BORGES, José. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, passim.
188
FERREIRO LAPATZA, J. J. Direito Tributário: teoria geral do tributo. Barueri: Marcial Pons, 2007, p. 24.
189
GIANNINI, A. D. Istituzioni di Diritto Tributario. 5. ed. Milano: Giuffrè, 1951, p. 54.
190
TORRES, Ricardo Lobo. Sistemas Constitucionais Tributários. Rio de Janeiro: Forense, 1986, p. 636-639.
185
101
Na doutrina comparada, Klaus Tipke, Paul Kirchhof e Karl Friauf, com vistas a
ordem jurídica alemã, consideram que as normas tributárias extrafiscais, porque de natureza
interventiva econômica, estão situadas, em verdade, na seara do direito econômico e não nas
sendas do direito tributário.191
Há, ainda, uma terceira linha de pensamento, adotada por Luís Eduardo Schoueri,
cuja posição pode-se dizer intermediária, pois entende que as normas tributárias extrafiscais
(nomeadas pelo autor de “normas indutoras”), apesar de assumirem nota interventiva
econômica, são normas que conformam hipóteses de incidência de tributos, de modo que
estão dentro do espaço jurídico tributário. Porém, não se sujeita apenas a ele, justamente
porque o campo material de influência é econômico, de maneira que também deverá
submissão aos princípios constitucionais da ordem econômica. Basicamente, esta doutrina é
aquela externada anteriormente como o pensamento adotado para esta investigação.
Nesta base de pensamento, todavia antes da promulgação da Constituição de 1988,
Antônio Roberto Sampaio Dória afirmara que
[...] a decretação de tributos, conquanto válida em si mesma, poderá infringir
indiretamente garantias ou direitos individuais, constitucionalmente
tutelados. E, se determinados interesses individuais ou são protegidos pela
ação direta do Estado, não se há de permitir que sejam obliquamente
infringidos, sob pena de absoluta inocuidade e até inutilidade de todo o
aparelho constitucional vigente.192
Mesmo que não tenha referido expressamente a sujeição das normas tributárias
extrafiscais a dois regimes jurídicos simultâneos – tributário e econômico –, isto se infere,
porquanto a idéia desenvolve-se com base em uma análise sistemática do sistema, valendo-se
do princípio da unidade da Constituição, isto é, por mais que observe as regras inerentes a um
dado subsistema normativo, pode ocorrer de a norma extrafiscal atingir outros de modo
indireto, o que, se aceito, resultaria na fragilidade da própria estrutura da ordem jurídica,
notadamente quando se toma em análise a questão tributária e econômica que são
eminentemente constitucionais.
Em dissertação de mestrado apresentada na Universidade de São Paulo, Leila Paiva,
seguindo a mesma linha de raciocínio exposta por Antonio Roberto Sampaio Dória, averbou:
191
Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 228.
192
Apud SCHOUERI, Luís Eduardo. ob. cit., p. 231.
102
O ingresso válido da lei extrafiscal no ordenamento jurídico pressupõe a
observância
dos
princípios
constitucionais
fundamentais
e,
conseqüentemente, dos princípios constitucionais tributários, dos direitos e
garantias dos cidadãos, dos princípios da ordem econômica, bem como de
todas as diretrizes constitucionais imprescindíveis à efetividade da segurança
jurídica e da justiça.193
Inegável o conteúdo tributário das normas extrafiscais. Indiscutível, de igual modo,
que elas tem evidente finalidade de intervenção econômica. Estas duas características não se
sobrepõem, mas justapõem-se, complementam-se. Por esta razão que se afirma a localização
das normas tributárias extrafiscais no ponto de intersecção entre o direito tributário e o direito
econômico, sujeitando-as a ambos os regimes.
Em outros termos, a validade da norma tributária extrafiscal depende da sua
compatibilidade com os princípios e regras que estruturam tanto o sistema tributário como
também a ordem econômica. Em súmula, a finalidade da tributação detém relevância jurídica.
Todavia, em razão do objetivo extrafiscal, alguns princípios tributários não resguardam os
interesses envolvidos. Ou melhor, não são aplicáveis ao caso; ou o são de modo diferenciado
em relação ao método de utilização quando se trata de fins fiscais. Significa que a maneira
como as limitações ao poder de tributar se relaciona com as normas tributárias extrafiscais é
brevemente distinta do modus como isso ocorre em relação à finalidade fiscal da tributação.
Neste contexto, as regras de competência, o pacto federativo e outros princípios mais
assumem funções diferentes e revelam conseqüências jurídicas distintas, mas não menos
importantes, a depender da finalidade da norma jurídica tributária: se fiscal ou extrafiscal.
Significa, enfim, que a finalidade precípua da norma tributária é pertinente para definição das
normas aplicáveis, em especial no que tange aos princípios constitucionais tributários.
Portanto, imprescindível que sejam expostas algumas palavras a respeito. Mas antes
disto, alguns conceitos e considerações iniciais sobre as finalidades da tributação se fazem
necessários para melhor situar o tema.
3.1 OS FINS DA TRIBUTAÇÃO: FISCALIDADE E EXTRAFISCALIDADE
Historicamente, a experiência do Estado Liberal e, depois, do Estado Social serviram
para demonstrar com clareza a necessidade de uma política estatal intervencionista para a
193
Apud SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 231.
103
realização equânime de direitos individuais e sociais. Primeiro, porque o liberalismo político e
econômico revelou-se desastroso para a promoção do desenvolvimento socioeconômico e
para a garantia mínima de direitos individuais e coletivos; depois, a política de intervenção
direta do Estado no domínio econômico, assumindo para si o papel de agente econômico e de
provedor das necessidades sociais da população, mostrou-se ineficiente, não produziu os
resultados esperados e acabou por resultar na própria falência do Estado.194
Superando aquelas duas concepções de Estado, surge o Estado Democrático de
Direito, tido como uma terceira opção ideológica, pois que encampa valores liberais e sociais.
Este novel modelo estatal objetiva implementar concretamente um ideal de desenvolvimento
com justiça social, pela garantia aos direitos individuais mas sem deixar de lado os valores
sociais. Em sua vertente econômica, a intervenção estatal assume novo papel, pois converte o
“Estado-Empresário” no “Estado Regulador” – ainda que mantida, em alguns casos, a
intervenção direta –, de modo que resgatada a liberdade de iniciativa econômica, o Estado
assume outra função: ser agente normativo e regulador daquelas, direcionando-as rumo ao
desenvolvimento e à justiça social, valores supremos da ordem constitucional.
Neste contexto, valores éticos e morais são convertidos, agora, em princípios
jurídicos. O desenvolvimento e a justiça social tornam-se objetivos fundamentais consagrados
constitucionalmente. A intervenção econômica indireta, isto é, o papel regulador cometido ao
Estado, depende de instrumentos os mais diversos. As normas jurídicas ganham destaque
como mecanismos que servem à política estatal intervencionista, ou seja, desvelam clara
natureza instrumental, dado que servem de meio à efetivação das políticas públicas estatais.
Ponderações deste jaez conferem veracidade à antiga, posto que atual, lição de
Alfredo Augusto Becker, de que todas as normas jurídicas não têm objetivos próprios. Os
objetivos – econômicos e/ou sociais – são traçados pelas políticas, e bem por isto, a razão de
existir das normas é servir de instrumento a uma política.195
Com razão a afirmação do mestre gaúcho. O Estado possui fins constitucionais a
realizar. Para tanto, é de sua essência que institua os tributos no intuito de atingir os objetivos
fundamentais. Neste sentido, Marlene Kempfer Bassoli também adverte:
194
195
Cf. BOTELHO, Werther. Da Tributação e sua Destinação. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 36-37.
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007, p. 632.
104
Entre as atribuições que compõem a essência do Estado, está a de produzir
normas jurídicas que impõem aos cidadãos o dever de pagar tributos. A
arrecadação desse dinheiro tem várias finalidades, em especial, manter a
estrutura estatal, justificável somente para realizar interesses públicos. Por
meio dela, é possível o próprio Estado viabilizar políticas públicas
realizadoras de direitos fundamentais.196
Em virtude disto, as normas tributárias passam para o centro das atenções, já que
instrumento eficaz de intervenção econômica. Ou seja, a tributação passa a ser meio de
efetivação de políticas. A tese da neutralidade da tributação, surgida a partir das idéias do
liberalismo econômico, fica superada, em razão da finalidade interventiva por ela adquirida,
como destaca Luís S. Cabral de Moncada:
A ordem jurídica do estado intervencionista atribui à norma um papel
completamente diferente do que tinha anteriormente. A norma jurídica
assume agora um conteúdo económico e social perdendo a neutralidade
axiológica que a caracterizara na fase liberal.
A permeabilidade aos valores da norma jurídica, quer constitucional quer
legislativa, atribui-lhe um novo significado. Ao veicular valores, a norma
jurídica intervém constitutivamente no terreno económico e social,
conformando-o de acordo com a carga axiológica que assumiu. A norma
como que se transformou num programa de realizações.
A neutralidade da norma jurídica está pois definitivamente ultrapassada. O
novo conteúdo da norma jurídica, pelo contrário, constitui-se como um dos
pressupostos da actividade económica e social.197
Por sua vez, Werther Botelho registra que a moderna tributação caracteriza-se, hoje,
como um dos principais instrumentos de repartição de riqueza e de desenvolvimento
econômico, de maneira que tomá-la apenas como meio de obtenção de recursos para o Estado
implica em diminuir-lhe as finalidades.198 Esta sua percepção tem como base as lições de
Klaus Tipke, para quem:
O moderno direito tributário está concebido com uma dupla finalidade, já
que não se destina, exclusivamente, à obtenção de recursos. Ao mesmo
tempo, procura dirigir a economia e a redistribuição de renda.
196
BASSOLI, Marlene Kempfer. A Tributação e Direito Fundamentais que Realizam os Valores da Liberdade,
Igualdade e Solidariedade, in ARGUMEHTUM – Revista de Direito da Universidade de Marília. Vol. 5. Marília:
Unimar, 2005, p. 104.
197
MONCADA, Luís. S. Cabral. Direito Económico. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000, p. 27.
198
BOTELHO, Werther. Da Tributação e sua Destinação. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 37.
105
Ante o exposto, não se pode conceber o Estado Democrático de Direito
dissociado de uma tributação com finalidades amplas, extrafiscais, que não
se resumam na mera fiscalidade.199
Deste modo, as normas tributárias são instrumentos de realização de diferentes
objetivos, de fins diversos. Ora elas servirão ao puro e simples abastecimento dos cofres
públicos, ora sua finalidade será outra, sendo empregadas como meios de influir no
comportamento econômico e social dos indivíduos. Em síntese: finalidade fiscal ou
extrafiscal, segundo o escopo que a lei vise a atingir.
Com efeito, evidencia-se que a tributação pode ser dirigida a realizar finalidades as
mais diversas, de acordo com o propósito intentado pelo legislador ou com os valores
constitucionais que se deseja proteger ou promover. Assim, quando a tributação tiver por
escopo exclusivo o abastecimento dos cofres públicos, sem outros interesses que não o
meramente arrecadatório, afirma-se sua finalidade fiscal. Este objetivo indica que os tributos
são instituídos e cobrados sem fim específico a ele relacionado, prestando-se, apenas, ao
suprimento dos recursos financeiros de que necessita o Estado para custear suas despesas.200
Em outra vertente, o tributo terá natureza extrafiscal quando ficar caracterizada uma
finalidade política, econômica ou social alheia ao objetivo meramente arrecadatório de
dinheiro para os cofres públicos. Na extrafiscalidade, o que orienta a tributação não é,
primordialmente, o interesse em arrecadar os tributos, mas, sim, a necessidade de intervenção
estatal no seio social ou na economia, com o intuito de se realizar um fim pré-determinado.
Por exemplo, para José Marcos Domingues de Oliveira tributação extrafiscal
[...] é aquela orientada para fins outros que não a captação de dinheiro para o
Erário, tais como a redistribuição da renda e da terra, a defesa da indústria
nacional, a orientação dos investimentos para setores produtivos ou mais
adequados ao interesse público, a promoção do desenvolvimento regional ou
setorial, etc.201
Marcos de Freitas Gouvêa tem entendimento bem elaborado acerca da
extrafiscalidade, notadamente quanto a sua sujeição às sendas do direito tributário. Diz ele:
199
BOTELHO, Werther. Da Tributação e sua Destinação. Belo Horizonte: Del Rey, 1994, p. 37.
Cf. AGUIAR, Glauco Lubacheski de. A tributação extrafiscal como mecanismo de desenvolvimento sócioeconômico da Zona Franca de Manaus. In: MARTIN, Ives Gandra da Silva; RAMOS FILHO; Carlos Alberto de
Moraes; PEIXOTO, Marcelo Magalhães (coord.). Tributação na Zona Franca de Manaus: comemoração aos 40
anos da ZFM. São Paulo: MP Editora, 2008, passim.
201
OLIVEIRA, José Marcos Domingues de. Direito Tributário e Meio Ambiente: proporcionalidade, tipicidade
aberta, afetação da receita. 3 ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2007, p. 25.
200
106
A extrafiscalidade é o princípio ontológico da tributação e epistemológico do
Direito Tributário, que justifica juridicamente a atividade tributante do
Estado e a impele, com vistas na realização dos fins estatais e dos valores
constitucionais, conforme as políticas públicas constitucionalmente
estabelecidas, delimitada (a atividade estatal) pelos princípios que revelam
as garantias fundamentais do contribuinte.202
Prosseguindo, Alfredo Augusto Becker lembra, ao tratar dos fins dos tributos, que:
A principal finalidade de muitos tributos (que continuarão a surgir em
volume e variedade e sempre maiores pela progressiva transfiguração dos
tributos de finalismo clássico ou tradicional) não será a de um instrumento
de arrecadação de recursos para o custeio de despesas públicas, mas a de um
instrumento de intervenção estatal no meio social e na economia privada. Na
construção de cada tributo, não mais será ignorado o finalismo extrafiscal,
nem será esquecido o fiscal. Ambos coexistirão agora de um modo
consciente e desejado; apenas haverá maior ou menor prevalência deste ou
daquele finalismo.203
Pelo simples fato de onerar ou desonerar certos fatos, o tributo assume a condição
interventiva estatal. Nestes casos, quando a tributação é usada como ferramenta de realização
dos objetivos fundamentais da ordem constitucional, diz-se que ela tem finalidade extrafiscal.
No momento em que isto ocorre, evidente que o escopo fiscal do tributo continua a existir,
mas secundariamente, pois os recursos arrecadados continuam sendo empregados no custeio
das despesas estatais, sem, no entanto, que esta se caracterize como sua função primordial.204
O finalismo extrafiscal impregnado nas normas tributárias é sempre o seu objetivo
primaz, ou seja, nestas normas é o resultado que dela advém que se tem por importante; o
comportamento consagrado na hipótese normativa e as conseqüências jurídicas surgidas dos
eventuais fatos jurídicos realizados naqueles termos são secundários.
Em síntese, a tributação adequadamente manejada serve como instrumento de
intervenção econômica. Ela assume, nestas circunstâncias, finalidade extrafiscal, sem que
deixe de assumir, também e atipicamente, uma nota fiscal, de abastecimento dos cofres
públicos. É de se lembrar, neste passo, a lição de Alfredo Augusto Becker apontada
anteriormente, quanto à coexistência dos finalismos da tributação – fiscal ou extrafiscal.
202
GOUVÊA, Marcus de Freitas. A extrafiscalidade no Direito Tributário e suas classificações . Jus Havigandi,
Teresina, ano 11, n. 1226, 9 nov. 2006. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9151>.
Acesso em: 21 jul. 2008.
203
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1972, p. 536.
204
VINHA, Thiago Degelo. A Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico incidente sobre
Combustíveis e Derivados. Dissertação (Mestrado em Direito) – Pós-graduação em Empreendimentos
Econômicos, Desenvolvimento e Mudança Social da Universidade de Marília. Marília: 2006, p. 125.
107
Aliás, a percepção de que as normas tributárias podem ser utilizadas como
mecanismo de intervenção do Estado no seio social e econômico é antiga. Tem-se notícia de
diversos expedientes tributários instituídos com o objetivo de intervenção e direcionamento
socioeconômico há cerca de cinco séculos.205 Isto decorre, em larga medida, da efetividade
que estas normas possuem em modificar o comportamento dos indivíduos.
Por fim, ressalte-se que este capítulo, como elo de ligação entre os anteriores e o
último a seguir desenvolvido, tem como foco de análise a tributação extrafiscal com fins
interventivos econômicos sob a perspectiva do regime tributário. Ou seja, é imprescindível
conhecer os contornos do regime jurídico-tributário que tem direta ligação com a tributação
quando esta tem a extrafiscalidade por finalidade precípua.
Destarte, pela posição que as normas tributárias extrafiscais detêm no ordenamento
jurídico, de ao mesmo tempo estar situada no âmbito jurídico econômico e no tributário, surge
a necessidade de análise tanto da competência para tributar e como da competência para
regular, distintas uma da outra. Passa-se, de ora em diante, a discorrer sobre ambas, suas
diferenças e a possibilidade de conflito entre elas, além de reservar um último tópico para as
considerações sobre os instrumentos de manifestação da extrafiscalidade da tributação.
3.2
COMPETÊNCIA
TRIBUTÁRIA:
AS
NORMAS
CONSTITUCIONAIS
QUE
DELINEIAM A COMPETÊNCIA IMPOSITIVA DAS ENTIDADES FEDERATIVAS
Não sobeja lembrar que, no Brasil, a atividade tributária do Estado é integralmente
regrada pela Constituição Federal. O Constituinte de 1988 foi rígido e exaustivo na matéria
tributária. Diferentemente dos demais países, o Texto Constitucional de 1988, e assim
também outros que o precederam, delineia exaustivamente o ambiente tributário brasileiro,
vale dizer, traça de modo claro e pormenorizado a competência tributária. Em relação a isto,
Aliomar Baleeiro registra que “Nenhuma Constituição excede a brasileira, a partir da redação
de 1946, pelo zelo com que reduziu a disposições jurídicas aqueles princípios tributários.
Nenhuma contém tantas limitações expressas em matéria financeira [...]”.206
205
Para um apanhado geral sobre o uso das normas tributárias com características interventivas econômicas, cf.
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 104.
206
BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1999, p. 02.
108
A exaustividade com que a Constituição tratou da matéria tributária revela os
contornos do Sistema Constitucional Tributário Brasileiro,207 o qual condiciona toda a
atividade estatal neste tema, desde a atuação do legislador ordinário na instituição do tributo
até da autoridade administrativa que tem o dever de aplicar a lei, ao mesmo tempo em que
concede direitos subjetivos públicos aos contribuintes. Significa afirmar que o direito
tributário positivo está plasmado integralmente na Lei Constitucional.
Em razão disto, como lei fundamental de um Estado, a Constituição é a “Carta de
Competências”, pois veicula um plexo de normas – regras e princípios – que delineiam o
âmbito de atuação tributária das entidades federativas – União, Estados, Distrito Federal e
Municípios. Fixa, por assim dizer, a competência tributária, que “[...] é a aptidão para criar, in
abstracto, tributos, descrevendo, legislativamente, suas hipóteses de incidência, seus sujeitos
ativos, seus sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas”.208 Ou, segundo
entendimento de Celso Bastos, “[...] é a faculdade atribuída pela Constituição às pessoas de
direito público com capacidade política para criar tributos”.209
Mais do que isso, dissertar sobre este tema implica, sempre, na abordagem do
princípio federativo, mesmo que minimamente, haja vista os reflexos desta forma de Estado
sobre as normas de competência tributária, porquanto se diz que esta é fruto do princípio
federativo e da autonomia dos municípios. Esta é a face fiscal do federalismo. Para assegurar
e promover estas características fundamentais que a Constituição da República atribui às
pessoas políticas a faculdade de criar tributos, bem como da distribuição da receitas obtidas
com a tributação.210
Deve-se rememorar que Federação pressupõe autonomia – política, financeira,
administrativa – das entidades que a integram. Entrementes, a discriminação das
competências tributárias não é algo que lhe seja inerente, como bem apercebeu Antonio
Roberto Sampaio Dória.211 A rígida discriminação da competência tributária é, em verdade, a
ferramenta de realização da autonomia financeira. Esta, a sua vez, visa garantir o pacto
207
Cf. ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, passim.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 449.
209
BASTOS, Celso. Curso de Direito Financeiro e de Direito Tributário. 8. ed. São Paulo: Saraiva: 2001, p.
125.
210
CHIESA, Clélio. A Competência Tributária do Estado Brasileiro: desonerações nacionais e imunidades
condicionadas. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 90.
211
DÓRIA, Antonio Roberto Sampaio. Discriminação de Rendas Tributárias. São Paulo: José Bushatsky, 1972,
p. 15.
208
109
federativo, caracterizando a igualdade entre os entes federados, em especial em virtude da
intangibilidade da Federação, prevista no Art. 60, §4º, I, da Constituição de 1988.
Entretanto, optou a Lei Maior em garantir a autonomia financeira para a manutenção
da Federação pela distribuição detalhada de competências e assim das rendas tributárias. Ou
seja, a Constituição de 1988 cometeu a cada uma das pessoas políticas a atribuição de legislar
e arrecadar os tributos que lhe são próprios, de modo a custear-lhes as despesas.
Por conseqüência desta detalhada repartição de competências tributárias que a
discussão a seu respeito sempre tangencia a questão federativa. Como o constituinte valeu-se
da técnica de outorga legislativa tributária para garantir a autonomia financeira das entidades
federativas e, via de conseqüência, a própria Federação, e sendo esta imodificável, nos termos
da cláusula pétrea precitada, o mecanismo de distribuição das competências tributárias serve
de instrumento de efetivação e garantia daquela, o que implica em dizer que qualquer atuação
legislativa, seja do “poder reformador”, seja do legislador infraconstitucional, seja das
próprias autoridades administrativas, que de algum modo suprima ou mesmo reduza as bem
definidas linhas de atuação tributária das pessoas constitucionais, importará, em verdade, em
ofensa ao pacto federativo, sendo, desde logo, inconstitucional.
Amílcar de Araújo Falcão registra que:
[...] é evidente que a autonomia assegurada pelo sistema federativo aos entes
que integram a federação é plena, no exercício do poder tributário
(competência tributária) que lhes for conferido. Essa plenitude lhes assegura
a qualidade não só para disciplinar legislativamente os tributos próprios,
como para exercitar as atividades administrativas ligadas à arrecadação e
fiscalização.212
Ou seja:
[...] quem pode tributar (criar unilateralmente o tributo, com base em normas
constitucionais), pode, igualmente, aumentar a carga tributária (agravando a
alíquota ou a base e cálculo do tributo, ou ambas), diminuí-la (adotando o
procedimento inverso) ou, até, suprimi-la, através da não-tributação pura e
simples ou do emprego do mecanismo jurídico das isenções. Pode, ainda,
212
FALCÃO, Amílcar de Araújo. Introdução ao Direito Tributário. 3. ed. atual. por Flávio Bauer Novelli. Rio
de Janeiro: Forense, 1987. p. 91-92.
110
perdoar débitos tributários já nascidos ou parcelá-los, anistiando, se entender
que é o caso, as eventuais infrações tributárias cometidas.213
O exercício das competências tributárias deve observância estrita às autorizações e
limitações constitucionais fixadas pela Lei Fundamental, sob pena de afrontar a própria
estrutura federativa. No que tange à tributação extrafiscal, esta afirmação também procede,
uma vez que a veiculação de normas tributárias extrafiscais, ainda que se tenha manifesta e
objetiva intenção interventiva econômica, depende, em primeiro lugar, do atendimento às
regras positivas e negativas de fixação de competência tributária.
Em outras palavras, a entidade competente para tributar possui livre arbítrio para
atuar. Pode aumentar o tributo, diminuí-lo, parcelar seu pagamento, conceder isenções,
anistiar as infrações tributárias, ou, até mesmo, não tributar. Tudo isso vai depender da
decisão política da entidade tributante, pois a Constituição lhe faculta instituir ou não o
tributo, devendo, obviamente, ser observadas as diretrizes constitucionais. Essa faculdade, na
verdade, não é irrestrita, mas rigorosamente delimitada pelo Texto Constitucional.
Exemplo desta afirmação reside na questão da concessão dos incentivos fiscais em
matéria de ICMS por parte dos Estados-membros e do Distrito Federal, que será analisado
detidamente adiante. Conquanto esteja dentro de sua competência tributária a possibilidade
de, entre outras coisas, não-tributar, em razão de questões federativas e concorrenciais, não
pode qualquer das entidades estaduais autorizar a concessão de incentivos fiscais em matéria
de ICMS se não houver a anuência dos demais Estados e do Distrito Federal.
Em sentido amplo, competência designa o resultado decorrente de autorizações
menos limitações. Noutros termos, a competência forma-se pela prescrição de normas
positivas de atribuição ou autorização diminuídas as normas constitucionais com timbre
negativo, isto é, as que limitam o alcance das primeiras.
José Souto Maior Borges é quem bem expõe estas idéias. Sua lição bem aponta a
exata compreensão de sentido das competências, ademais de ser, como sempre, precisa. Para
ele, a competência significa o resultado da ligação entre autorização e limitação, pois
[...] Sem esse consórcio, nenhuma competência. Só a autorização não pode
explicá-la, porque não há norma positiva com âmbito de validade ilimitado.
213
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros,
2004, p. 431.
111
Só a proibição deixa igualmente incompleta a norma, porque não saberá o
seu destinatário como conduzir-se diante dela. Só estar proibido é ser a rigor
incompetente.214
De tudo quanto se anotou, sobressai que o desenho da competência legislativa
tributária forma-se por normas constitucionais com distintas características: (i) aquelas que
prevêem de modo positivo o conteúdo, o âmbito de atuação do legislador das pessoas
federativas; e (ii) aquelas que limitam o alcance de ação do legislador infraconstitucional, isto
é, que restringem sua atuação. Aquelas são, de ora em diante, nomeadas de normas de
competência em sentido estrito – ou, autorizações, como quer Souto Maior Borges; estas, os
princípios jurídicos e as imunidades tributárias – as ditas limitações. Daí porque dizer que a
competência tributária é um poder juridicamente delimitado e dividido.
Infere-se destas considerações iniciais que toda a disciplina relativa à atividade
tributária, da instituição dos tributos, passando pelo “poder” de não-tributar, isto é, de isentar
e chegando na edição das regras diretivas da atuação administrativa fiscalizadora e
arrecadatória, decorrem de expressa outorga constitucional, que estabelece o âmbito de
atuação das pessoas políticas e de seus órgãos, além dos limites impostos à realização deste
mister. A Constituição fixa, por estes meios, as competências tributárias.
Neste particular, entende-se relevante discorrer, de modo individualizado, sobre cada
uma das normas constitucionais que formam, no seu resultado, a competência tributária.
3.2.1 Normas constitucionais positivas: regras atributivas de competência
Visto que toda competência significa a conjunção de autorizações e limitações,
importa, então e por ora, apenas as normas jurídicas que ditam as autorizações constitucionais
para as entidades federativas legislar a respeito de tributos. Por outra terminologia, discorrese, agora, sobre as normas positivas de fixação da competência tributária, isto é, a
competência tributária em sentido estrito.
Elas são, como registrado alhures, normas constitucionais que ditam o âmbito de
atuação positiva do legislador tributário infraconstitucional. Estabelecem, por assim dizer, a
matéria tributária acerca da qual o legislador das pessoas políticas tem autorização para tratar.
214
BORGES, José Souto Maior. Incentivos Fiscais e Financeiros, in Revista Trimestral de Direito Público, n.
08. São Paulo: Malheiros, 1986, p. 91.
112
Demonstram esta afirmação, por exemplo, as previsões contidas nos arts. 153, 154,
155 e 156, da Constituição de 1988, que estabelecem o âmbito de tributação por impostos das
entidades federativas, pela designação de suas materialidades. O mesmo se pode assegurar
quanto às taxas, cujas espécies e materialidades vêm tratadas pelo Art. 145, II, da Lei Maior.
Estas, dentre outras disposições normativas existentes no Texto Constitucional, são
“[...] normas que atribuem poder ao Estado para instituir tributos por meio da especificação
dos fatos e situações que torna suscetíveis de tributação (normas atributivas de competência)
[...]”; elas são os pontos de partida estabelecidos que definem as competências tributárias,
pois delimitam as hipóteses de incidência dos tributos.215
Neste sentido, ainda, o entendimento do Supremo Tribunal Federal:
[...] o conteúdo político de uma Constituição não pode levar ao desprezo do
sentido vernacular das palavras utilizadas pelo legislador constituinte, quer
ao técnico, considerados institutos consagrados pelo Direito (...). Realmente
a flexibilidade de conceitos, o câmbio do sentido destes conforme os
interesses em jogo, implicam insegurança incompatível com o objetivo da
própria Carta que, realmente, é um corpo político, mas o é ante os
parâmetros que encerra e estes não são imunes ao real sentido dos vocábulos,
especialmente os de contornos jurídicos. Logo, não merece agasalho o ato de
dizer-se da colocação, em plano secundário, dos conceitos consagrados,
buscando-se homenagear, sem limites técnicos, o sentido político das normas
constitucionais.216
Por outro lado, mesmo que porventura pareça um paradoxo, as normas de atribuição
de poder – as autorizações de competência – trazem em seu bojo interpretativo também regras
negativas, limitativas da própria competência tributária em sentido estrito, porquanto ao fixar
detalhadamente os fatos e situações suscetíveis a oneração tributária, implicitamente, mas de
modo insofismável, ela veicula a própria limitação semântica de seu alcance, pois revela o
que não pode ser tributado.
Enfim, o importante é que fique claro que as normas de autorização, as quais fixam a
atribuição de poder para tributar, caracteriza apenas uma das espécies que formam o gênero
competência tributária. A outra espécie, excludente ou limitativa de competência, será a
seguir desenvolvida. São os princípios e as imunidades tributárias.
215
ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v. I, n. 3.
Salvador: CAJ - Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 10. Disponível em:
http://www.direitopublico.com.br
216
idem, ibidem.
113
3.2.2 Normas constitucionais negativas: os princípios jurídicos e as imunidades tributárias
Além das regras atributivas de competência, que fixam os fatos materialmente
sujeitos ao ônus tributário, a Constituição veicula, ainda, normas limitativas ou excludentes de
competência tributária. São, nestes termos, normas constitucionais de conteúdo negativo, pois
subtraem, diminuem a atribuição de competência das pessoas políticas.
Estas normas, ao contrário de ditar o âmbito de atuação das pessoas políticas
detentora de competência tributária, fixam o campo onde a tributação não alcança.
Estabelecem, por assim dizer, a delimitação jurídica do poder impositivo das pessoas
políticas, seja mediante a fixação de limites formais, seja pela enumeração de limites
materiais, segundo classificação adotada por Humberto Ávila.217
Acerca das limitações ao poder tributário, Humberto Ávila assinala, de modo claro:
As normas que compõem o ordenamento jurídico não são uniformes na sua
função limitativa do poder de tributar. Com efeito, enquanto algumas normas
estabelecem “como” e “quando” os tributos podem ser instituídos ou
cobrados, outras delimitam “o quê” pode ser objeto de tributação.
Os limites decorrentes de normas que prescrevem o procedimento e os
limites de eficácia das normas que instituem tributos podem ser
didaticamente agrupados sob a rubrica de limites formais (relativos à forma
da tributação); os que prescrevem quais os fatos e situações que podem ser
objeto de tributação, bem como os seus requisitos, podem ser reunidos na
categoria de limites materiais (referentes ao conteúdo da tributação).218
Na nomenclatura constitucional: as limitações constitucionais ao poder de tributar,
conforme terminologia cunhada por Aliomar Baleeiro e, ao depois, adotada pelo Legislador
Constituinte de 1988.219 Em síntese, os princípios e as imunidades tributárias, os quais
formam o conjunto de limitações constitucionais ao poder ativo de tributar.
Sendo assim, normas-princípio e normas-imunidade caracterizam-se como limitações
da competência tributária dos entes políticos. Contudo, inolvidável que, muito embora
caracterizem, indubitavelmente, limitações ao “poder de tributar”, são normas jurídicas
distintas, especialmente porque encerram estruturas diferentes, na medida em que os
217
ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v. I, n. 3.
Salvador: CAJ - Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 8-11. Disponível em:
http://www.direitopublico.com.br
218
idem, ibidem, p. 5-6.
219
BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1999.
114
princípios são normas imediatamente finalísticas, ao passo em que as imunidades consistem
em regras jurídicas que prescrevem uma vedação à tributação, isto é, fixa um exato e
determinado comportamento, sendo regras apenas mediatamente finalísticas. Neste sentido a
lição sempre precisa de Humberto Ávila:
As normas que formam o ordenamento jurídico também não são uniformes
em sua estrutura. De fato, há normas que determinam a realização de fins,
sem uma hipótese de incidência capaz de prescrever qual o comportamento
adequado a essa realização (e.g. segurança jurídica, democracia); há normas
que, ainda que ligadas à realização de fins, prescrevem, permitem ou
proíbem determinado comportamento ou prevêem o conteúdo que outras
normas devem possuir, instituindo as conseqüências que advém do seu
descumprimento (e.g. normas atributivas de competência). As normas
imediatamente finalísticas podem ser qualificadas de princípios; as
mediatamente finalísticas, de regras. O importante é que enquanto a relação
entre os princípios caracteriza-se como um entrecruzamento, e soluciona-se
mediante a atribuição de uma dimensão de peso a cada um dos princípios
envolvidos, com a conseqüente criação de regras de prevalência diante do
caso concreto, a relação entre as regras qualifica-se como uma antinomia, e
resolve-se por meio da abertura de exceções à regra ou com a declaração de
invalidade de uma delas.220
Clélio Chiesa, por sua vez, destaca a diferença entre os princípios e as imunidades,
posto que entenda que ambos caracterizem-se como limitações a competência tributária:
É verdade que tanto as imunidades quanto os princípios limitam o chamado
“poder de tributar”, ou seja, o exercício das competências tributárias,
entretanto, são realidades distintas. Os princípios são diretrizes basilares que
visam a estruturar o sistema; não contemplam hipóteses de incompetência
para tributar, como ocorre com as imunidades. Como observa Mizabel Derzi,
“não dizemos que todos somos ‘imunes’ a tributos, instituídos por decretos
do Executivo, nem tampouco que somos ‘imunes’ a leis retroativas. Isso por
que tais princípios são diretrizes, requisitos ou critérios de validade formal
ou material à criação de normas jurídicas, cuja observância leva ao exercício
adequado de competência tributária”.221
Recorde-se que a forma como os princípios e as imunidades trabalham dentro da
sistemática de limitação da competência tributária também diverge. Se, de um lado, os
princípios são vetores de atuação estatal tributária, pois estabelecem diretrizes ao ato de
tributar, guiando o Estado desde a instituição dos tributos até o exercício de sua arrecadação;
220
ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v. I, n. 3.
Salvador: CAJ – Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 8-11. Disponível em:
http://www.direitopublico.com.br.
221
CHIESA, Clélio. A Competência Tributária do Estado Brasileiro: desonerações nacionais e imunidades
condicionadas. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 99-100.
115
de outro norte, as imunidades fixam, objetiva e materialmente, o que não se sujeita à
tributação; giza o campo de incompetência tributária das pessoas políticas.
Tendo esta diferenciação em vista, é bem possível afirmar que a limitação imposta
pelos princípios é meramente restritiva, pois condiciona o exercício da competência tributária
à observância de certos diretrizes; já as imunidades implicam em vedações à atividade
tributária, estabelecendo o que efetivamente não pode, jamais, sofrer o ônus impositivo.
Era o que se tinha a expor nesta parte, pois o objetivo destas considerações é no
sentido de, tão-somente, traçar os contornos do regime tributário da tributação extrafiscal.
Evidentemente, o emprego das normas tributárias com fins extrafiscais, já que sujeita
ao regime tributário, embora não exclusivamente, somente pode se realizar pela entidade
federativa que detenha competência tributária para legislar sobre o tema. Sobre isto, adverte
Geraldo Ataliba, ao dizer que o emprego dos instrumentos tributários com fins não fiscais
deve-se realizar por quem os tem à disposição.222 Assim, a veiculação de normas jurídicas
tributárias, seja qual for sua finalidade, deve observância aos contornos da competência
tributária definida constitucionalmente. A finalidade da norma tributária, por ser fator
metajurídico, já que não integra a estrutura normativa, não é suficiente para sustar a
necessidade de observância das regras de competência tributária.
Apesar das normas tributárias extrafiscais dever observância às normas de
competência tributária traçadas pela Constituição de 1988, a finalidade normativa, quando
juridicamente relevante, gera como conseqüência modificações no exame de aplicação e
cumprimento aos princípios tributários.
3.2.3 Os princípios constitucionais tributários e a finalidade extrafiscal da tributação
Resolvida a discussão sobre a compreensão dos princípios jurídicos, o foco aqui tem
relação com outra discussão: é momento de abordar os princípios constitucionais atinentes à
tributação e cotejá-los com os fins que estas normas buscam atingir.
222
ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 150-151.
116
Os trabalhos jurídico-científicos produzidos no Brasil acerca dos princípios são
vários, densos e, muitos deles, alcançaram a distinção de “clássicos”, como ocorre com a obra
de Celso Antonio Bandeira de Mello “Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade”.223
Na seara tributária, muitos autores também se dedicaram ao tema. Entretanto,
costumeiramente estes estudos tomam os princípios tributários como limitações à edição de
normas tributárias cuja finalidade precípua é o abastecimento dos cofres públicos, ou seja,
promovem os estudos apenas com vistas aos fins fiscais da tributação.
Neste trabalho, o enfoque é diferente. As normas tributárias que ora importam, como
já se apontou por diversas vezes, são aquelas que assumem finalidade extrafiscal, mas apenas
quanto às suas conseqüências sobre o domínio econômico (intervenção econômica indireta). E
os princípios sobre os quais se discorrerá adiante são estritamente tributários e eleitos
discricionariamente para alcançar o pretendido. Assim, não se esgotará o tema porque
incabível nos quadros desta investigação.
Sendo assim, correto o destaque dado por Humberto Ávila às questões que envolvam
os “fins externos” da tributação, vale dizer, o escopo extrafiscal propriamente dito. Para ele,
em casos como tais há uma diferenciação quanto à aplicação dos princípios tributários.224 Luís
Eduardo Schoueri também pensa desta forma, pois, segundo adverte, há a necessidade de se
rever alguns posicionamentos a respeito dos princípios tributários quando se tiver por pano de
fundo as normas tributárias indutoras, haja vista sua natureza interventiva econômica.225
Demais disto, alguns princípios que são formalmente tributários devem ser
analisados, sempre à luz das idéias da submissão da extrafiscalidade ao regime tributário.
3.2.3.1 O princípio da estrita legalidade tributária e a tributação extrafiscal
O princípio da estrita legalidade tributária encontra amparo, na Constituição de 1988,
no Art. 150, I, que prevê ser vedado às entidades políticas exigir ou aumentar tributo sem lei
que o estabeleça. Ele é decorrência, no âmbito da tributação, do princípio da legalidade,
223
Cf. BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São
Paulo: Malheiros, 1997.
224
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 344. Cf. também:
ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v. I, n. 3. Salvador:
CAJ – Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 8-11. Disponível em: http://www.direitopublico.com.br.
225
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 232 e ss.
117
previsto genericamente no Art. 5º, II, da Lei Maior, cuja enunciação é conhecida de todos:
“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”. Em
termos objetivos, a repetição do primado da legalidade no capítulo do “Sistema Tributário
Nacional” não foi despropositada, mas quis o constituinte reforçá-lo, dando-lhe ares de estrita
legalidade, visando resguardar os direitos dos contribuintes.
Buscando a ancestralidade do princípio, Aliomar Baleeiro registra que ele remonta
ao tempo do Rei João Sem-Terra, quando os súditos lhe impuseram a condição de somente ser
tributado mediante sua autorização, ilustrada na expressão inglesa “no taxation without
representation”.226 Já Victor Uckmar salienta que a atribuição da competência para a
imposição de tributos, via Poder Legislativo, inspirou-se na doutrina de Locke, pois “[...] sem
dúvida os impostos são necessários, mas não podem ser exigidos sem o consentimento da
maior parte dos componentes da sociedade, ou daqueles que os representam ou que foram
escolhidos por estes”.227
No sistema atual, o princípio da legalidade é mecanismo garantidor do princípio
democrático, que lhe é sobrejacente. Ou seja, é o influxo do princípio democrático sobre a
legalidade tributária que assegura a participação do cidadão, ainda que mediante
representação, no processo de elaboração e instituição dos tributos.228
Mais do que isto, a legalidade da tributação consiste em norma jurídica que trabalha
no sentido de realizar concretamente os princípios do Estado de Direito e da Segurança
Jurídica. Deve-se rememorar, a este respeito, que a lei, emanada do Poder Legislativo, sempre
significou a expressão maior do Estado de Direito. É por esta razão que o princípio da
legalidade encerra, também, foros de segurança jurídica, pois garantidor da estabilidade e da
previsibilidade das relações jurídicas.
Sobre sua importância para o sistema tributário instalado no atual regime jurídicopolítico brasileiro, Aliomar Baleeiro registra que:
A defesa do sistema tributário e do próprio regime político do país processase por um conjunto de limitações ao poder ativo de tributar. Delas, o mais
importante, por suas implicações políticas e jurídicas, é o da legalidade dos
tributos. Mas existe, também, a nosso ver, a limitação do poder de nãotributar ou isentar, inclusive a de a União isentar imposto estranho à sua
226
BALEEIRO, Aliomar. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 74.
UCKMAR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário. 2. ed. Tradução e notas ao
Direito brasileiro Marco Aurélio Greco. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 32.
228
Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 121-142.
227
118
competência (Constituição Federal de 1969, art. 19, §2º) ou de isentar o
Estado do ICM sem os convênios com outros Estados (Idem, art. 23, §6º).229
Em matéria tributária, o princípio da legalidade é preeminente, em especial pelas
razões e interesses privados envolvidos. Como o direito de propriedade é um direito
individual fundamental, a teor do Art. 5º, XXII, da Constituição Federal, e tributar, a rigor,
importa em limitação deste direito. Daí se dizer, nesta senda, que este primado ganha foros de
maior rigidez, ou seja, a legalidade tributária é estrita.
Embora o ponto de partida jurídico-positivo deste princípio traga uma redação
simples e até de fácil compreensão, a verdade é que o conteúdo e o alcance semântico contido
no Art. 150, I, da Constituição de 1988 é amplíssimo. No Brasil, as produções jurídicas foram
tantas a seu respeito que se chegou mesmo a extrair dele as mais diversas conseqüências.
Neste sentido, Luís Eduardo Schoueri adverte que entre os vários textos jurídicos
produzidos no Brasil acerca do princípio da legalidade da tributação, deve-se destacar a obra
de Gerd Willi Rothmann, que ao esmiuçar os meandros desta limitação ao “poder tributário”
estatal, encontrou nele desdobramentos em quatro feições distintas: (i) legalidade da
administração; (ii) reserva da lei; (iii) estrita legalidade tributária; e (iv) conformidade da
tributação com o fato gerador. No primeiro aspecto, alude-se à plena vinculação entre a
atuação das autoridades administrativas e a previsão legal, impossibilitando-lhe qualquer
discricionariedade. No segundo caso, a legalidade tributária desdobra-se na necessidade do
emprego de lei formal, entendida no seu sentido estrito, para veicular matéria tributária. Neste
passo, esclareça-se que é desta suposição que se infere a necessidade da veiculação da lei nos
termos do processo legislativo constitucionalmente eleito. Já na ótica da estrita legalidade
tributária, terceira decomposição referida, a legalidade da tributação encerra, em verdade, o
comando constitucional proibitivo de instituição dos tributos – e, por conseguinte, sua
modificação, diminuição ou aumento – sem que pré-exista a respectiva lei autorizadora.
Enfim, o último desdobramento consiste na detalhada previsão dos elementos suficientes à
configuração do tributo, não podendo deixar à administração qualquer tipo de
discricionariedade. O chamado princípio da tipicidade tributária.230
229
BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de Tributar. 7. ed. Rio de Janeiro: Forense,
1999, p. 02.
230
Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 241.
119
Minimamente, então, o princípio da legalidade tributária implica na obrigação de
veiculação de tributos através de lei no sentido estrito e formal do termo; impõe que esta lei
advenha do Órgão Legislativo do ente federativo competente para legislar sobre o tema;
demanda que esta lei preveja todos os critérios da regra-matriz tributária, isto é, definidores
do fato jurídico e da obrigação tributária, além de, obviamente, não deferir ao órgão executivo
a faculdade de estabelecer qualquer dos critérios configuradores do tributo.
Humberto Ávila, a seu turno, traz perspectiva inovadora sobre a legalidade tributária.
Segundo ele, jamais se pode esquecer que sua interpretação e sua aplicação devem tomar em
conta, sempre, o princípio democrático que lhe é sobrejacente. Além disto, na ótica de sua
dimensão normativa, a legalidade é uma norma tridimensional231, ou seja, é,
preponderantemente uma norma-regra (e não princípio, como costumeiramente afirma-se na
doutrina e na jurisprudência brasileira, conforme teoria e premissas por ele adotadas), pois
encerra a descrição do comportamento proibitivo de instituição ou majoração de tributos sem
o procedimento parlamentar adequado, a ser adotado pelo Poder Legislativo diretamente e
obliquamente pelo órgão Executivo. Assume também dimensão principiológica, na medida
em que estabelece o dever de previsibilidade e determinabilidade da atuação do Estado e
mesmo dos contribuintes. Por fim, consiste em postulado normativo aplicativo pois que impõe
ao aplicador do direito a total fidelidade aos pontos de partida, as condições materiais
mínimas, estabelecidas na própria legislação.232
Ao se relacionar o princípio da legalidade tributária com as normas tributárias
extrafiscais (normas tributárias indutoras), Luís Eduardo Schoueri sustenta a necessidade de
haver uma mitigação desta proteção constitucional, haja vista o escopo de intervenção
econômica que estas normas assumem; e uma vez que a pretensão é regulatória dos
comportamentos econômicos e estes, por sua natureza, são extremamente dinâmicos, deverse-ia aplacar a hirteza da estrita legalidade tributária.233
Na paráfrase a André Elali, que toma estas lições como base:
231
Vale lembrar que a terminologia empregada pelo autor ao tratar do assunto nada tem que ver com a Teoria
Tridimensional do Direito, de Miguel Reale. Ao contrário, ele se vale da expressão para significar que a
legalidade tributária pode ser vista sob três óticas dimensionais distintas: como regra, como princípio e como
postulado normativo aplicativo.
232
Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 123.
233
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 261-267.
120
Deve-se atentar para o fato de que as normas tributárias indutoras precisam
regular os comportamentos econômicos que, por serem extremamente
dinâmicos, não podem ser totalmente definidos na lei. A indução, para ser
eficaz e eficiente, precisa se efetivar através da conjunção dos critérios da lei
com os do seu aplicador. A lei não tem a possibilidade de definir os critérios,
mas sim descrevê-los, o que deve orientar o aplicador. Assim, falar-se em
tipicidade cerrada é contrariar o próprio conceito de tipo, que é aberto.234
Tomando-se por base os desdobramentos do princípio da legalidade da tributação
expostos por Gerd Willi Rothmann, citado alhures, e cotejando-o com estas considerações de
Luís Eduardo Schoueri e André Elali, conclui-se que eles vislumbram a possibilidade de se
relativizar a perspectiva da legalidade da administração como a conformidade da tributação
com o fato gerador (tipicidade). Ou seja, não propalam a dispensa pura e simples da
observância à legalidade, apenas visualizam a possibilidade de, em certas circunstâncias e em
determinadas condições, haver certa discricionariedade do aplicador da lei tributária.
Entretanto, consigne-se que, a despeito da força dos argumentos expendidos e da
reconhecida qualidade dos autores, isto deve ser ponderado e equilibrado, em especial com
soluções caso a caso, pois, lembrando a antiga, mas precisa, lição de Geraldo de Ataliba, de
que se bastasse ao Estado alardear um fim a ser realizado, já estaria legitimado o arbítrio.235
Duas últimas considerações: no capítulo seguinte, discorrer-se-á a respeito dos
convênios interestaduais em matéria de incentivos fiscais de ICMS. Por conta disto, é
importante antecipar a vinculação existente entre o tema ora desenvolvido – princípio da
estrita legalidade tributária – e aquele a se efetivar adiante, na medida em que o processo
legislativo de concessão ou revogação dos incentivos fiscais em matéria de ICMS, por parte
dos Estados-membros e do Distrito Federal, é complexo, isto é, depende da integração de
vontade dos órgãos executivo e legislativo da entidade federativa que respectivamente
pretenda dispensar o incentivo fiscal e também deve observância à formalidade relativa aos
convênios, nos termos da própria Constituição.
Neste passo, avulta-se o princípio da estrita legalidade na perspectiva da “reserva da
lei”, porquanto a válida concessão dos incentivos fiscais de ICMS, no que concerne à
legalidade tributária, depende da estrita obediência aos ditames constitucionais e legais que
traçam a formalidade necessária, o especial processo legislativo para tanto.
234
ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica – um exame da tributação como instrumento de
regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora. 2007, p. 156.
235
ATALIBA, Geraldo. República e Constituição. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 28.
121
Afirma-se o mesmo em relação ao Simples Nacional, o outro instrumento tributário
extrafiscal analisado no capítulo subseqüente, no que se refere ao liame entre este e o
princípio ora em estudo. Ou seja, a legalidade tributária quanto à edição do Simples Nacional
passa desde a veiculação pelo procedimento formal adequado – edição via lei complementar –
até alcançar a problemática dos limites do poder regulamentar deferido ao Comitê Gestor.
3.2.3.2 Irretroatividade e normas tributárias extrafiscais
O Art. 5º, XXXVI, da Constituição de 1988 prescreve que “a lei não prejudicará o
direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada”. Este enunciado normativoprescritivo fixa positivamente o conhecido princípio da irretroatividade. Sinteticamente,
significa que todas as relações jurídicas já estabilizadas, consumadas e atingidas pela certeza
do direito e pela segurança jurídica jamais poderão receber efeitos jurídicos fixados por
legislação lhe seja superveniente. Em termos objetivos: a nenhuma norma é dado regular os
fatos pretéritos, até porque as normas jurídicas são criadas para disciplinar as questões que
ainda estão por surgir, isto é, sua eficácia projeta-se para o porvir, ressalvado, evidentemente,
a exceção constitucionalmente prevista – Art. 5º, XL, da Constituição Federal de 1988.
Em página inspirada, Vicente Ráo foi preciso:
A inviolabilidade do passado é princípio que encontra fundamento na
própria natureza do ser humano, pois, segundo as sábias palavras de Portalis,
o homem, que não ocupa senão um ponto no tempo e no espaço, seria o mais
infeliz dos seres, se não se pudesse julgar seguro nem sequer quanto a sua
vida passada. Por essa parte de sua existência, já não carregou todo o peso de
seu destino ? O passado pode deixar dissabores, mas põe termo a todas as
incertezas. Na ordem do universo e da natureza, só o futuro é incerto e esta
própria incerteza é suavizada pela esperança, a fiel companheira da nossa
fraqueza. Seria agravar a triste condição da humanidade querer mudar,
através do sistema da legislação, o sistema da natureza, procurando, para o
tempo que já se foi, fazer reviver as nossas dores, sem nos restituir as nossas
esperanças.236
Contudo, adverte-se que a lei pode, em princípio, fixar as datas de início e fim de sua
própria vigência. Ou seja, não há restrição a leis fixem seu período de vigência, quando
destinada a vigorar temporariamente. O limite que elas encontram, entretanto, diz respeito à
possibilidade de ditar sua vigência e, por conseguinte, sua aplicabilidade à data anterior a da
sua criação, vale dizer, para momento situado, no tempo, antes ao seu surgimento no universo
236
RÁO, Vicente. O direito e a vida dos direitos. 5. ed. São Paulo: RT, 1999, p. 730.
122
jurídico. Se assim fosse possível, estaria instalado o caos e a insegurança jurídica entre os
cidadãos; o Direito, ao contrário de promover os fins para os quais foi instituído, basicamente
de levar a paz social e resolver definitivamente os conflitos, promoveria o inverso.
Por isto, chega-se a afirmar que a previsão do Art. 150, III, “a”, da Constituição
Federal, que prescreve, ser vedado às entidades políticas “cobrar tributos em relação a fatos
geradores ocorridos antes do início da vigência da lei que os houver instituído ou aumentado”,
é desnecessária. Ou seja, a irretroatividade como norma geral de direito, irradia seus efeitos
sobre todos os campos do sistema jurídico-normativo. Entretanto, o Constituinte de 1988
entendeu por bem positivá-la expressamente no âmbito do direito tributário.
Referida previsão constitucional prevê um importante limite à atividade estatal
tributária, na medida em que proíbe que a norma tributária que tenha inovado a ordem
jurídica, criando ou aumentando – e, segundo se entende, que também extinga ou diminua –
tributo incida sobre fato pretérito, ou seja, sobre fato ocorrido antes de sua entrada em vigor.
Segundo Luciano Amaro, este preceito dirige-se não só ao aplicador do direito, mas também
ao próprio legislador infraconstitucional, “[...] a quem fica vedado ditar regra para tributar
fato passado ou para majorar o tributo que, segundo a lei da época, gravou esse fato”.237
Infere-se desta asserção a nítida característica de norma excludente da competência tributária.
Humberto Ávila, a seu turno, compreende a irretroatividade como uma norma
jurídica bidimensional subjacente ao princípio do Estado de Direito. Segundo ele,
irretroatividade detém dimensão normativa preponderante de regra, ou seja, nada tem de
princípio uma vez que descreve objetivamente a conduta que deve ser adotada pelo Poder
Legislativo. Apesar disso, de modo mediato, a irretroatividade constitui-se em princípio, já
que indiretamente fixa o dever de buscar um ideal de previsibilidade, estabilidade,
cognoscibilidade, confiabilidade e lealdade.238
Mais do que isto, este mesmo autor classifica a irretroatividade como limitação de
eficácia das normas de competência. Neste aspecto, assiste-lhe razão, em primeiro lugar em
virtude da determinação expressa da Constituição de 1988 que veda a “cobrança” do tributo
em relação a fato gerador ocorrido antes da vigência da lei nova. Ou seja, cobrança é ato de
aplicação do comando normativo já instituído, de modo que, é cediço, se está tratando do
âmbito eficacial e não de validade da norma.
237
238
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 116.
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 143.
123
Apesar da aparente singeleza da norma jurídica da irretroatividade, em verdade há
problemas sérios, em especial na matéria tributária. Exemplo de discussão recorrente sobre
ser ou não retroativa uma norma tributária está na questão da revogação de incentivo fiscal
concedido por prazo certo e em função de determinadas condições. Sempre que se alude a
este fenômeno, se está tocando o campo da extrafiscalidade tributária.
De toda sorte, importa apenas saber que as normas tributárias com fins extrafiscais
também devem observância à irretroatividade da lei tributária. Neste contexto, deixa-se aqui
evidente a discordância em relação à doutrina que entende ser possível a lei tributária nova
que fixe isenções tributárias, por exemplo, possa ter efeitos retroativos.239 A retroação
normativa somente é permitida em uma única e exclusiva situação: no caso da norma penal
mais benéfica. E não se confunda “norma penal” com “norma criminal”. A terminologia
constitucional é ampla, ou seja, alude às normas que veiculem conteúdo normativo penal, vale
dizer, que trate de infrações e sanções, e não apenas refere-se ao âmbito daquele ilícitos
tipificados pela legislação como crimes.
Em fechamento, averbe-se uma proposta teórica nova e interessante sobre a retroação
e o princípio da irretroatividade, extraída da doutrina alemã. Com base nos ensinamentos de
Klaus Vogel e Christian Waldhoff, Humberto Ávila assevera haver cinco hipóteses em que
uma norma pode abranger fatos passados. São elas: (i) modificação retroativa das
conseqüências jurídicas; (ii) ligação retroativa da hipótese de incidência I; (iii) ligação
retroativa da hipótese de incidência II; (iv) fatos pré-causados I; e (v) fatos pré-causados II.240
Por esta razão, afirma ele, estudar a irretroatividade como imposição de que a lei seja
anterior ao fato jurídico é extremamente limitada, pois toma como premissa a idéia de que os
fatos ocorrem, por inteiro, antes ou depois da lei, desconsiderando que “Na verdade, os fatos
podem ser iniciados antes da lei para se completarem após sua edição, bem como podem
ocorrer somente após a edição da lei, mas em decorrência de uma causa surgida antes dela”.241
De toda sorte, se assente que a irretroatividade tem estreita ligação com os temas
desenvolvidos no próximo capítulo – convênios interestaduais em matéria de concessão de
incentivos fiscais de ICMS e o Simples Nacional –, na medida em que envolve problemas
concretos relativos, principalmente, aos efeitos jurídico-tributários da revogação ou anulação
239
Neste sentido, Cf. CARRAZZA, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo:
Malheiros, 2005, p. 329-330.
240
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 146-149.
241
Idem, ibidem, p. 149.
124
dos incentivos porventura concedidos ou com a exclusão de empresas do sistema nacional
simplificado de arrecadação e pagamento de tributos.
3.2.3.3 Anterioridade tributária e extrafiscalidade
Outra importante limitação ao exercício da competência tributária é conhecida como
“princípio da anterioridade tributária”. Ele está previsto no Art. 150, III, “b”, da Constituição
de 1988, e veda a exigência de tributo “no mesmo exercício financeiro da lei que os houver
instituído ou aumentado”. Em termos simples, estabelece regra de previsibilidade na ação
estatal. Ou, como quer alguns autores, veda a surpresa tributária, de modo que assegura ao
contribuinte a garantia de ter tempo para se preparar para sofrer o encargo da tributação nova
ou mais elevada, além, por óbvio, da ciência prévia a respeito da cobrança a se realizar.
Misabel Derzi, por sua vez, diz que o princípio da anterioridade “limita-se a adiar a
eficácia e a aplicação da lei, que institui tributo novo, ou majora um já existente, para o
exercício financeiro subseqüente ao de sua publicação”.242 Para a autora, em conclusão, este
princípio consiste em uma limitação de eficácia, como também o classifica Humberto Ávila.
Significa que é norma voltada ao aplicador do direito e não, propriamente, ao legislador, que
veicula as normas gerais, abstratas e isonômicas.
Não obstante sua colocação no inciso III do Art. 150, da Constituição de 1988, o qual
alude à vedação de “cobrança”, o entendimento dominante na doutrina é de que o sentido
veiculado na anterioridade não veda apenas que a cobrança – expediente administrativo de
aplicação da lei tributária – se realize no mesmo exercício financeiro da publicação da lei
instituidora ou majoradora, mas impede, inclusive, que a novel lei tributária seja aplicada
sobre os fatos ocorridos no mesmo exercício financeiro em que publicada, sob pena de se
contornar, por via oblíqua, a proteção constitucional.
Roque Carrazza registra detalhadamente este entendimento, quando assevera:
[...] o princípio da anterioridade não é respeitado quando se considera
imponível o fato ocorrido no mesmo exercício financeiro em que entrou em
vigor a lei instituidora do tributo, ainda que sua cobrança administrativa se
dê no exercício seguinte. O mesmo vale para a lei que aumenta – inclusive
de modo indireto (v.g., antecipando o prazo de vencimento) – tributo já
existente: ela só incidirá no exercício seguinte à sua entrada em vigor. Em
242
DERZI, Misabel Abreu Machado. Notas. In: BALEEIRO, Aliomar. Limitações Constitucionais ao Poder de
Tributar. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001, p. 48.
125
síntese, pelo princípio da anterioridade não é suficiente que a lei que cria ou
aumenta o tributo esteja em vigor no exercício anterior ao de sua cobrança
administrativa. É preciso, ainda, que esteja em vigor no exercício anterior ao
da ocorrência do fato imponível.
Não basta, pois, que o ato administrativo de lançamento e arrecadação se dê
no exercício seguinte ao da instituição ou majoração do tributo para que se
considere obedecido o princípio da anterioridade. Para que isso aconteça, é
mister, ainda, que o tributo só nasça (ou só nasça majorado) no exercício
seguinte ao de sua instituição (ou de seu aumento).243
Em complementação, é bom que se diga que a anterioridade significa a vedação de
onerar, de surpresa, o contribuinte. Ou seja, quando a nova tributação acarrete ao contribuinte
ônus tributário dantes inexistente ou que maior do que o pré-existente, vale-se da garantia da
anterioridade como limitação à exigência tributária. Porém, sempre que as novas regras
tributárias importem em minoração ou extinção do ônus tributário a aplicação é imediata, não
havendo que se falar na necessidade de respeitar o exercício financeiro. Recorde-se, sobre
isto, que o “princípio da anterioridade” é regra de garantia dos direitos dos contribuintes
direcionadas ao legislador das entidades federativas, de modo que se aplica o seu comando
com vetor que resulte em maior favorecimento ao contribuinte.
A colocação da expressão “princípio da anterioridade” entre aspas tem significado
para este trabalho, pois conforme assentado na doutrina de Humberto Ávila – que parece estar
com a razão – esta espécie normativa é bidimensional, na medida em que preponderantemente
consiste em uma regra que descreve o comportamento a ser adotado pelo Poder Legislativo
como também pelo Órgão Executivo, quando proíbe a instituição ou o aumento de tributo no
mesmo exercício financeiro de publicação da lei que o institui ou majorou. Mediatamente, a
anterioridade se expressa como princípio quando estabelece o dever de busca do ideal de
previsibilidade, de controlabilidade, de inteligibilidade e de mensurabilidade.244
No que tange às normas tributárias extrafiscais, a anterioridade tributária, conquanto
encerre norma garantidora de segurança jurídica, deve ser respeitada, principalmente nos
casos de revogação dos incentivos fiscais. A revogação de um incentivo fiscal, como uma
isenção, por exemplo, importa, da perspectiva eficacial, nos mesmos efeitos jurídicos da
instituição do tributo, porquanto se ao criá-lo nada havia a pagar, passando a existir essa
obrigação com a instituição, na revogação do benefício, a tributação, que antes inexistia,
243
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 179.
244
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 154.
126
torna-se evidente, impondo ônus tributário dantes inexistente. Isto permite, em resultado, a
aplicação da regra protetiva da anterioridade, como, ademais, expressamente prevê o Art. 178
do Código Tributário Nacional em combinação com o Art. 104, III, do mesmo Codex.245
Em virtude disto, evidencia-se o perfeito enquadramento e aplicação destas idéias e
dos aludidos comandos legais ao caso dos convênios interestaduais em matéria de revogação
de incentivos fiscais de ICMS, abordados no capítulo a seguir, desde que, obviamente, a
questão produza como resultado a oneração de situação que antes não era sujeita à imposição
tributária concreta ou que era reduzida. Explica-se: se revogado um incentivo fiscal246
qualquer, e isto resulte em criação ou aumento da imposição tributária, incide a regra do
referido dispositivo, cuja interpretação, a toda evidência, alcança qualquer espécie de
incentivo fiscal, onde a “isenção” é apenas uma das diversas existentes.
É neste sentido que a tributação extrafiscal vincula-se ao referido princípio. Por outro
lado, a eventual majoração de tributo com vistas a regular o comportamento econômico
indesejado, também se sujeitará à regra geral da anterioridade tributária, desde que,
obviamente, não se esteja tratando daqueles tributos previstos nas exceções contidas no Art.
150, §1º, primeira parte; no Art. 177, §4º, I, “b”; e no Art. 195, §6º, todos da Constituição.
Por fim, no que se refere ao Simples Nacional, há dúvida imensa na questão relativa
a sua observância à proteção da anterioridade nos casos de exclusão da empresa do regime
tributário unificado. Tudo está a depender, ao que parece, da natureza jurídica que se
adjudique ao Simples Nacional, pois se ele se caracterizar como espécie contida dentro do
gênero “incentivo fiscal”, todo e qualquer ato que exclua o contribuinte do sistema
simplificado deverá observância a anterioridade tributária, porquanto o efeito jurídico
concreto é exatamente o mesmo daquele protegido pela norma constitucional em questão.
Esta discussão, isoladamente, já viabiliza um trabalho como este que ora se realiza.
Entretanto, como o objetivo neste momento é apenas o de expor as considerações que
envolvam o “princípio” em discussão em correlação com os instrumentos tributários
extrafiscais adiante analisados, não se passará desta provocação. A resposta a este problema
245
Art. 178, CTN. A isenção, salvo se concedida por prazo certo e em função de determinadas condições, pode
ser revogada ou modificada por lei, a qualquer tempo, observado o disposto no inciso III do art. 104.
Art. 104, III, CTN. Entram em vigor no primeiro dia do exercício seguinte àquele em que ocorra a sua
publicação os dispositivos de lei, referentes a impostos sobre o patrimônio ou a renda: [...] III – que extinguem
ou reduzem isenções, salvo se a lei dispuser de maneira mais favorável ao contribuinte, e observado o disposto
no artigo 178.
246
Incentivo Fiscal é gênero, cf. item 3.4, infra.
127
fica para uma outra hora, em outro estudo. De toda sorte, demonstra a importância do regime
jurídico-constitucional tributário em relação às normas tributárias extrafiscais.
3.2.3.4 Extrafiscalidade e o princípio da igualdade tributária
De antemão, diga-se que este tópico tem o objetivo de expor as linhas mais gerais
sobre o princípio da igualdade tributária e fixar sua correlação com o problema das normas
tributárias extrafiscais. Nada além disso. Esta afirmação é relevante em virtude da
importância e amplitude que o tema acarreta no debate jurídico brasileiro e estrangeiro, e da
quantidade de obras de mão e sobremão que já se produziu aqui e alhures a este respeito.247
No sistema jurídico-político brasileiro em vigor, a igualdade constitui traço
fundamental, “[...] é o princípio nuclear de todo o nosso sistema constitucional. É o princípio
básico do regime democrático. (...). Sem ele não há República, não há Federação, não há
Democracia, não há Justiça. É a cláusula pétrea por excelência. [...]”.248
Quando se tenta explicá-lo, é comum a referência à frase de Aristóteles, celebrizada
por Ruy Barbosa na sua “Oração aos Moços”, de que igualdade importa tratar igualmente os
iguais, desigualmente os desiguais, na exata medida da sua desigualdade. Em essência,
igualdade determina que seja dispensado tratamento isonômico entre todos os cidadãos, bem
como importa na inexistência de privilégios.
Dentre os autores brasileiros que discorreram sobre o tema, a lição de Francisco
Campos é um das mais destacadas. Assinalou o autor, magistralmente, que:
A cláusula relativa à igualdade diante da lei vem em primeiro lugar, na lista
dos direitos e garantias que a Constituição assegura aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no país. Não foi por acaso ou arbitrariamente que o
legislador constituinte iniciou com o direito à igualdade a enumeração dos
direitos individuais. Dando-lhes o primeiro lugar na enumeração, quis
significar expressivamente, embora de maneira tácita, que o princípio de
igualdade rege todos os direitos em seguida enumerados.
Quando, efetivamente, a Constituição assegura a liberdade, a propriedade e
os demais direitos individuais, ela os assegura não só indiscriminadamente
ou a todos, mas a todos na mesma medida e mediante as mesmas condições.
Enunciando o direito à igualdade em primeiro lugar, o seu propósito foi,
precisamente, o de significar a sua intenção de proscrever, evitar ou proibir
247
Sobre o princípio da igualdade, na doutrina brasileira, leia-se, por todos, BANDEIRA DE MELLO, Celso
Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997.
248
LACOMBE, Américo. Princípios Constitucionais Tributários. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 09.
128
que, em relação a cada indivíduo, pudesse variar o tratamento quanto aos
demais direitos que ela assegura e garante. O direito à igualdade rege os
demais direitos individuais, devendo ser subentendida, em cada um dos
parágrafos seguintes ao em que ele vem enunciado, a cláusula relativa à
igualdade diante da lei.
Em relação à igualdade, porém, a Constituição não admite, em caso algum,
qualquer derrogação legal ao princípio por ela estabelecido. Esse princípio
ela o enuncia em termos absolutos ou plenários, com isto manifestando a
intenção de que ele se torne efetivo em toda a latitude do seu sentido e em
qualquer circunstância, seja qual for a situação ou a condição da pessoa, a
natureza da coisa, a espécie da relação, o estado de fato que a lei pretenda
reger. Não haverá condições à igualdade perante a lei. A lei será igual para
todos e a todos se aplicará com igualdade. É um direito incondicional e
absoluto. Não tolera limitações, não admite exceção, seja qual for o motivo
invocado; lei alguma, nenhum poder, nenhuma autoridade poderá, direta ou
indiretamente, de modo manifesto ou sub-reptício, mediante ação ou
omissão, derrogar o princípio da igualdade”.249
Segundo José Souto Maior Borges, a igualdade implica, por necessário, em produção
de norma geral e abstrata, de modo que, essencialmente, há unidade entre a igualdade e a
legalidade, o que o levou a afirmar a legalidade isonômica.250
Normalmente, este princípio veio previsto em quase todas as todas as constituições
brasileiras.251 Na Constituição de 1988, a igualdade vem assegurada expressamente no Art. 5º,
caput e inciso I; na seara tributária, por sua vez, o Art. 145, §1º e o Art. 150, II, prescrevem:
Art. 145, § 1º. Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão
graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à
administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses
objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei,
o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte.
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é
vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: [...] II –
instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em
situação equivalente, proibida qualquer distinção em razão de ocupação
profissional ou função por eles exercida, independentemente da
denominação jurídica dos rendimentos, títulos ou direitos.
Vale dizer, portanto, que o “princípio da igualdade tributária” é a conseqüência, no
âmbito da tributação, da adoção do princípio geral de igualdade. Ele expressa, em matéria
249
CAMPOS, Francisco. Igualdade de todos perante a lei. In Revista de Direito Administrativo, v. 10, 1947, pp.
376-378.
250
BORGES, José Souto Maior. A isonomia tributária na Constituição Federal de 1988, in Revista de Direito
Tributário, n. 64, p. 13.
251
Cf. OLIVEIRA, José Marcos Domingues. Direito Tributário: capacidade contributiva. 2. ed. Rio de Janeiro:
Renovar, 1998, p. 46.
129
tributária, que à lei que instituir determinado tributo é defeso selecionar esta ou aquela pessoa,
para submetê-la a regras peculiares que não atinjam outras que estejam em situações
idênticas. Isto é, a lei tributária deve conferir, a todos, igualdade de tratamento.
Nestas sendas, a igualdade pode ser entendida em dois aspectos, quais sejam, no
sentido econômico ou no sentido jurídico. No primeiro aspecto, a igualdade deve ser
compreendida como igualdade de sacrifícios, isto é, o dever de contribuição tributária de
acordo com a capacidade contributiva de cada indivíduo.
Devem ser tratados com igualdade aqueles que tiverem igual capacidade
contributiva, e com desigualdade os que revelem riquezas diferentes e, portanto, diferentes
capacidades de contribuir. Daí porque a alusão, acima, ao Art. 145, §1º da Constituição de
1988, o qual consiste no fundamento positivo do princípio da capacidade contributiva.
Assim também concluiu Giuliani Fonrouge, ao advertir que:
O princípio da igualação não se refere à igualdade numérica – que daria
lugar às maiores injustiças – mas à necessidade de assegurar o mesmo
tratamento aos que se encontrem em análogas situações, de modo que não
constitui regra férrea, porque permite a formação de distinções ou categorias
sempre que estas sejam razoáveis, com exclusão de toda discriminação
arbitrária, injusta ou hostil contra determinadas pessoas ou categorias de
pessoas.252
No sentido jurídico, por sua vez, a igualdade deve ser tomada como paridade de
posições sem quaisquer privilégios, seja de raça, classe social, religião ou sexo, de forma a
submeter ao regime tributário todos os contribuintes que se encontrem em idêntica situação
fática. Por isto que Victor Uckmar averba que “[...] a igualdade jurídica coincide com o
princípio da ‘generalidade’ da imposição” [...],253 ou seja, a igualdade jurídica em matéria
tributária quer dizer que é expressamente proibido a concessão de qualquer privilégio que
sirva para desonerar esta ou aquela pessoa de pagar tributos, sem que exista justificação
própria que possibilite o discrímen.
Ora, por óbvio que as pessoas não são todas iguais. Muito pelo contrário, as pessoas
são desiguais. E reside aí a finalidade deste princípio: estabelecer a diferenciação de
252
FONROUGE, C. M. Giuliani. Conceitos de Direito Tributário. Tradução de Geraldo Ataliba e Marco Aurélio
Greco. São Paulo: Livraria dos Advogados, 1973, p. 56.
253
UCKMAR, Victor. Princípios Comuns de Direito Constitucional Tributário, 2. ed. Tradução de Marco
Aurélio Greco. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 67.
130
tratamento a ser dispensado àqueles que não estejam em idênticas situações. Entretanto, a
exata medida da discriminação que é o grande obstáculo a ser ultrapassado.
Com efeito, há diversas teses que objetivam, senão desvendar, ao menos jogar luzes
sobre o tema. Celso Antonio Bandeira de Mello, por exemplo, formula proposta
extremamente útil a respeito, in verbis:
As discriminações são recebidas como compatíveis com a cláusula
igualitária apenas e tão-somente quando existe um vínculo de correlação
lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida por residente no objeto, e a
desigualdade de tratamento em função dela conferida, desde que tal
correlação não seja incompatível com interesses prestigiados na
Constituição. 254 (grifos do autor).
Para ele, determinados traços não podem ser gratuita e isoladamente tomados como
razão fundante do discrímen, tais como a raça, o sexo, as convicções políticas ou religiosas,
pois, só por só, tais qualidades incorrem em discriminações odiosas.
José Artur Lima Gonçalves utilizou-se desta formulação teórica, ajustando-a a
matéria tributária, para servir de instrumento de aferição de consonância da norma tributária
ao magno princípio da isonomia. Segundo sustenta o autor, a norma tributária, para estar em
consonância com o princípio da igualdade, deve atentar para a seguinte sistemática:
1. Dissecar a norma jurídica tributária, a regra matriz de incidência, em seus
cinco critérios, que, repita-se, são o material, o temporal, o pessoal, o
espacial e o quantitativo; 2. Detectar a existência de discriminação
implementada pela regra matriz de incidência analisada; 3. Identificar qual é
o elemento de discriminação utilizado pela norma analisada; 4. Uma vez
identificado o discrímen, analisar se a norma onera ou beneficia
singularmente um indivíduo ou categoria ou atividade desde já determinadas
e se o elemento de discriminação reside na própria pessoa ou situação
discriminada; 5. Aferir a existência de correlação lógica entre o elemento de
discriminação e o tratamento diferenciado; e 6. Perquirir a efetiva ocorrência
da relação de subordinação e pertinência lógica entre a discriminação
procedida e os valores positivados no texto constitucional.255
É importante esclarecer, ainda, que a igualdade é uma garantia do indivíduo e não do
Estado, “[...] é norma voltada quer para o aplicador da lei quer para o próprio legislador.
Deveras, não só perante a norma posta se nivelam os indivíduos, mas, a própria edição dela se
254
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 1999, p. 17.
255
GONÇALVES, José Artur Lima. Isonomia da Horma Tributária. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 69.
131
sujeita ao dever de dispensar tratamento equânime às pessoas”.256 Destina-se ao legislador e
ao aplicador da lei, não cabendo a estes diferenciar, mesmo que por meio de lei (lato sensu),
quem deve e quem não deve recolher os tributos instituídos.
Muito embora a quase totalidade da doutrina compreenda a igualdade como
princípio, Humberto Ávila lembra, conforme as suas sempre precisas colocações, que, em
verdade, no que se refere à espécie normativa, esta norma é tridimensional, consistindo em
princípio, preponderantemente, mas também se exteriorizando como regra ou como
postulado, dependendo da circunstância e da perspectiva de análise. Deste modo, referindo-se
à matéria tributária, ele assinala que a igualdade dimensiona-se normativamente como
princípio porque estabelece o dever de buscar um ideal de igualdade, equidade, generalidade,
impessoalidade, objetividade, legitimidade, pluralidade e representatividade no exercício,
pelos entes políticos, da competência tributária. A igualdade também pode ser dimensionada
como regra porque fixa o comportamento – determinação de igualdade de tratamento – a ser
adotado pelos órgãos legislativo e executivo; e como postulado, na medida em que exige do
aplicador do direito a consideração e avaliação dos sujeitos envolvidos, dos critérios de
diferenciação e das finalidades justificadoras da diferenciação.257
Infere-se destas idéias, em primeiro lugar, que a igualdade somente pode ser aferida
concretamente, pois que a correta aplicação e mesmo compreensão do primado depende do
critério-medida objetivo de diferenciação e de um fim a ser alcançado258, isto é, fins distintos
resultam no emprego de diferentes critérios. Daí porque a necessidade desta verificação
empírica relativa aos fins e ao critério de discrímen.
A menção aos “fins” a serem alcançados pela tributação é relevante, pois as normas
tributárias, como visto no item 3.1 supra, direcionam-se à realização de objetivos diversos –
fiscais ou extrafiscais. Então, tomando-se a ótica deste estudo, concernente à tributação
extrafiscal com fim interventivo econômico, a conseqüência é que a análise terá como medida
de distinção o postulado da proporcionalidade, que significa exatamente o exame da relação
meio-fim. Significa dizer que no âmbito deste estudo, a realização concreta da igualdade
centra-se no exame de proporcionalidade entre o fim econômico extrafiscal que a norma
256
BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo:
Malheiros, 1999, p. 09.
257
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 342.
258
ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v. I, n. 3.
Salvador: CAJ – Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 13-14. Disponível em:
http://www.direitopublico.com.br.
132
tributária busca atingir e o meio jurídico-normativo empregado para tanto. Sobre esta questão,
melhor se a desenvolverá no item a seguir ao tratar da proporcionalidade e a extrafiscalidade.
Enfim, ressalte-se que como mecanismos tributários extrafiscais, os convênios
interestaduais em matéria de concessão de incentivos fiscais de ICMS e o Simples Nacional, a
serem estudados no próximo capítulo, em relação à igualdade não devem levar em
consideração a capacidade contributiva dos contribuintes, mas, sim, o dever de
proporcionalidade entre o fim que se pretende realizar ou proteger e o meio (ou meios)
empregado pelo legislador.
3.2.3.5 Extrafiscalidade e o dever de proporcionalidade
A proporcionalidade tem sido estudada no Brasil como princípio jurídico. Mais do
que isto, a maioria das análises que se efetua coliga-a com a razoabilidade, quando não as
confundem uma com a outra, como se exercessem a mesma função dentro do sistema jurídico
ou tivessem um mesmo sentido, finalidade ou conteúdo jurídico. Não têm, consoante proposta
de Humberto Ávila ao tratar da teoria dos princípios.259 Segundo ele, também não é possível
agrupá-la no rol dos princípios jurídicos, tendo em vista consistir em postulado normativo
aplicativo, ou seja, norma jurídica de segundo grau que se presta a estruturar o modo de
aplicação das demais normas – princípios e regras.260
O postulado da proporcionalidade significa, nestes termos, o exame jurídico que se
realiza sobre uma relação meio-fim, vale dizer, aplica-se sempre que houver uma medida
concreta que se destine a realizar uma determinada finalidade. Por esta razão, o postulado da
proporcionalidade implica em exame de adequação, necessidade e proporcionalidade em
sentido estrito, isto é, respectivamente se a medida empregada tem possibilidade de levar ao
fim que se pretende realizar; se dentre os meios possíveis de realizar aquele fim, a medida
utilizada é a menos restritiva dos direitos envolvidos; e se a finalidade a ser alcançada é de tal
forma valiosa que se justifique a restrição.261
Deste modo, a proporcionalidade, ao contrário de ser um princípio propriamente dito,
estrutura o modo de aplicação das normas com vistas à promoção dos fins envolvidos.
259
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São Paulo:
Malheiros, 2006, p. 146-148.
260
Idem, ibidem, p. 148 e ss.
261
Idem, ibidem, p. 150.
133
Lembre-se que princípios desvelam o dever que se tem de se promover certos fins; e estes
significam um estado de coisas.
Estas considerações são importantes porque, como ficou assentado anteriormente –
item 3.1 – a tributação tem fins diversos a se realizar: ora fiscais – abastecimentos dos cofres
públicos –, ora extrafiscais – proteção e fomento econômico, por exemplo. Assim, afirma-se
que os fins são internos (fiscalidade) ou externos (extrafiscalidade).262
No caso das normas tributárias extrafiscais, que tem como escopo o alcance de fins
econômicos ou sociais, percebe-se que estes são fins externos, pois o emprego da norma
tributária ambiciona um resultado concreto no campo do comportamento das pessoas –
eficácia social, por assim dizer – de modo que pode ser empiricamente dimensionado. Como
este resultado tenciona a promoção de finalidades econômicas ou sociais atribuídas ao Estado
e não propriedades ou características do sujeito atingido pela norma, então, evidente que o
exame de proporcionalidade consiste no mecanismo jurídico adequado para se determinar o
dever de igualdade nas normas tributárias desta natureza.
Assim, no tema da tributação extrafiscal, além de tudo quanto foi dito nos itens
anteriores, deve-se efetivar o exame de adequação, necessidade e proporcionalidade em
sentido estrito a fim de se definir a correta validade e aplicação da norma. Vale dizer, o
controle da norma tributária extrafiscal deve se realizar segundo parâmetros de adequação, ou
seja, saber se a medida empregada levará ao fim que se pretende alcançar; de necessidade, no
sentido de se perquirir se há outros meios que também sejam capazes de promover o fim que
se pretende realizar, mas cujos efeitos sejam menos restritivos dos direitos fundamentais
envolvidos; de proporcionalidade em sentido estrito, a fim de comparar a importância jurídica
que a realização daquele fim possui em relação à restrição aos direitos fundamentais
envolvidos, isto é, se as vantagens resultantes da promoção daquele fim são proporcionais às
desvantagens que se verifica pelo emprego do meio.263
Em resumo, na extrafiscalidade a determinação da igualdade e, em conseqüência, a
definição de sua validade e, ao depois, da sua correta aplicação deve obediência aos
parâmetros de proporcionalidade. Daí a importância destas considerações. Concretamente em
relação aos instrumentos tributários analisados no capítulo adiante, é dizer: as normas que
262
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 6. ed. São Paulo:
Malheiros, 2006, p. 151-152.
263
Idem, ibidem, p. 152-161.
134
disciplinam e estruturam toda a questão dos convênios interestaduais em matéria de concessão
de ICMS e do Simples Nacional são proporcionais? Como mecanismos de manifestação da
extrafiscalidade, portanto, eles devem se sujeitar a este exame.
3.2.3.6 Tributação extrafiscal e o princípio da capacidade contributiva
Enumera o Art. 145, §1º, da Constituição de 1988 que “Sempre que possível, os
impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do
contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a
esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o
patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”. Esta previsão
constitucional positiva o que se conhece como o princípio da capacidade contributiva.
Costuma-se afirmar que o primado da capacidade contributiva é corolário lógico do
princípio da igualdade tributária, na medida em que consiste na sua redução concreta.
Ele encerra a idéia de tributação justa, de modo a realizar o valor igualdade perante a
tributação. Ao afirmar que a gradação dos “impostos” deverá tomar em consideração a
capacidade econômica de cada contribuinte, afirmou o constituinte de 1988 que é
imprescindível que se imponha igual sacrifício econômico aos contribuintes, tratando-os de
modos distintos quando concretamente situados em situações desiguais.
Aliás, a percepção de Alfredo Augusto Becker sobre a exata medida jurídica da
capacidade contributiva permitiu que ele formulasse célebre pensamento, onde afirmou que
são os “fatos-signo presuntivo de renda ou capital” que, a priori, fazem se presumir que o
contribuinte é pessoa economicamente capaz de arcar com os encargos dos impostos, ou seja,
possui riqueza suficiente para suportar o imposto específico.264
Importante consideração acerca do princípio da capacidade contributiva, inclusive
com reflexos sobre a tributação extrafiscal, diz quanto à expressão “sempre que possível”,
constante no dispositivo constitucional ora discutido. Há autores que sustentam a idéia de que
este termo quer significar a possibilidade fática de se medir a capacidade econômica. Sem
razão efetiva, pois, em verdade, tanto as normas tributárias definidoras dos impostos como
qualquer outra norma jurídica sempre dependerão de condições ontológicas de aplicabilidade,
264
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 4. ed. São Paulo: Noeses, 2007, p. 497.
135
porquanto as normas jurídicas prescritivas de comportamentos pressupõem aplicação fática
concreta265, vale dizer, são normas tecnicamente eficazes.266
A posição mais aceita na doutrina e que parece correta é aquela que toma a expressão
“sempre que possível” em referência ao caráter pessoal dos impostos. Ou seja, a gradação dos
impostos deve, obrigatoriamente, levar em considerações as condições econômicas pessoais
externadas pelos contribuintes. Não significa, ao contrário, uma opção do legislador ordinário,
porque resultaria em afronta direta à isonomia pela dispensa de mesmo tratamento jurídicotributário a pessoas que revelem concretamente condições econômicas distintas.
Nestes termos, está com a razão Regina Helena Costa, ao afirmar que se deve tomar
o termo “sempre que possível” como significante de “[...] sempre que a hipótese material de
incidência permitir a consideração de elementos pessoais”.267
Vale lembrar, também, que Luciano Amaro percebeu, com perspicácia, a
possibilidade concreta de instituição de tributos extrafiscais com base na abertura que a
expressão “sempre possível” encerra268, na medida em que poderia o legislador optar em criar
um mecanismo de extrafiscalidade, em detrimento da capacidade econômica do contribuinte,
de acordo com critérios de facilidade ou praticabilidade administrativa.
Outra discussão a respeito deste princípio refere-se ao alcance semântico do
vocábulo “impostos”, pois há os que pretendem ler ali “tributos”, significando que o princípio
orienta a concreta aplicação também das outras espécies tributárias. E, de outro lado,
encontrar-se-á corrente doutrinária que alega ser o princípio em tela instrumento de aplicação
concreta apenas da espécie tributária a que se refere, como se infere, por exemplo, das
considerações de Geraldo Ataliba quando diz que os impostos são informados pela
capacidade contributiva, ao passo que as taxas e as contribuições de melhorias tem como
princípio informador a retributividade pela atividade estatal realizada.269
Em relação às finalidades da norma tributária, comumente se toma a capacidade
contributiva como critério de aplicação e análise dos imposto quando estes tenham finalidade
fiscal, ou seja, objetivem precipuamente o abastecimento dos cofres públicos, porquanto
265
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 366.
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 189.
267
COSTA, Regina Helena. Princípio da Capacidade Contributiva. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996, p. 88.
268
AMARO, Luciano. Direito Tributário Brasileiro. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 134.
269
ATALIBA, Geraldo. Hipótese de Incidência Tributária. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 14.
266
136
nestes casos, como o fim é arrecadar receitas tributárias, é a condição econômica do
contribuinte que deve ser tomada em conta. Por outro lado, se porventura a norma jurídica
tiver finalidade extrafiscal, ou seja, visar a realização de um fim concreto, econômico ou
social, então, ao invés do exame de capacidade contributiva, deve-se realizar uma análise de
proporcionalidade, determinando a adequação, necessidade e correspondência entre o meio
empregado (extrafiscalidade) e a finalidade que se pretenda atingir.270
Enfim, embora pareça certa esta última tese elencada, não se pode olvidar da
compreensão sistemática das normas constitucionais, resultado do postulado da unidade da
Constituição. Ou seja, mesmo que seja possível desconsiderar a capacidade contributiva em
favor de razões extrafiscais, ainda assim, concretamente, não se pode extinguir totalmente a
eficácia mínima daquele princípio, já que fundamental.271
3.3 A COMPETÊNCIA REGULADORA E A TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL
Ao tratar das normas tributárias extrafiscais, indispensável que se distinga a
competência legislativa tributária da competência reguladora econômica, em razão da
característica interventiva econômica que as normas tributárias extrafiscais assumem. Ou seja,
faz-se mister analisar, em separado, a competência tributária da competência para regular, de
modo a diferençá-las e para que fique claro o âmbito de atuação de cada uma.
Os sistemas federativos conhecidos utilizam-se de diferentes técnicas de repartição
de competências, a depender do modo como cada Federação se estrutura e também das
determinações constitucionais respectivas. Em essência, é possível dizer a existência de
repartição de competências legislativas mediante as técnicas do poderes enumerados, dos
remanescentes e dos concorrentes. O método das competências enumeradas e remanescentes é
típico do federalismo clássico ou dual, onde a área de atuação das entidades federativas é
privativamente enumerada a cada uma delas, sendo bem delimitados seus espectros de
atuação legislativa. A doutrina convencionou denominá-la de repartição horizontal de
competências.272
270
Sobre isto cf. ÁVILA, Humberto. Estatuto do Contribuinte: conteúdo e alcance. Revista Diálogo Jurídico. v.
I, n. 3. Salvador: CAJ – Centro de Atualização Jurídica, junho, 2001, p. 7. Disponível em:
http://www.direitopublico.com.br.
271
Cf. ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 368-369.
272
Sobre o assunto cf. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Competências na Constituição de 1988. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2007, p. 32 e ss.
137
Outro sistema de repartição de competências existente é aquele que utiliza a técnica
da competência concorrente, característica de um federalismo cooperativo, onde as
competências são distribuídas de modo vertical, ou seja, a mesma matéria é dividida entre os
diferentes níveis de poder político.273 É o caso da Federação Brasileira.
Quando se trata de analisar a questão relativa às competências legislativas tributárias
e econômicas, ingressa-se nas sendas da chamada competência concorrente prevista pelo
Texto Constitucional de 1988. Especificamente, isto vem previsto no Art. 24, I, da
Constituição Federal, que expressamente enuncia: “Art. 24. Compete à União, aos Estados e
ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre: I - direito tributário, financeiro,
penitenciário, econômico e urbanístico”.
Justamente por esta razão a necessidade desta abordagem. A edição de normas
tributárias extrafiscais com vistas à intervenção econômica, conquanto se realize dentro do
âmbito de competência tributária das entidades federativas, também deve, por sua natureza,
observância às normas definidoras da competência reguladora econômica. Em outros termos,
uma vez que a tributação extrafiscal situa-se tanto no campo da tributação como da
intervenção econômica, sua veiculação deve tomar em conta ambas as competências.
Entretanto, viu-se anteriormente que o âmbito de atuação das entidades federativas
em matéria tributária foi pormenorizadamente tratado pela Constituição de 1988 no seu Título
VI, quando enumera as normas relativas ao Sistema Tributário Nacional. De outro lado, o
legislador constituinte não teve esta mesma preocupação detalhista e minuciosa com o direito
econômico. Apenas tratou de definir as competências com viés econômico pela indicação de
atribuição concorrente entre as entidades federativas, nos termos dos incisos V, VI e VIII do
Art. 24, além do citado inciso I, os quais prevêem, textualmente:
Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar
concorrentemente sobre: [...] V - produção e consumo; VI - florestas, caça,
pesca, fauna, conservação da natureza, defesa do solo e dos recursos
naturais, proteção do meio ambiente e controle da poluição; [...] VIII responsabilidade por dano ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e
direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico; [...]
Isto significa que cada uma das entidades políticas pode legislar livremente sobre os
temas referidos, desde que observadas as regras fixadas nos §§1º a 4º do Art. 24. Estes
273
Sobre o assunto cf. ALMEIDA, Fernanda Dias Menezes. Competências na Constituição de 1988. 4. ed. São
Paulo: Atlas, 2007, p. 32 e ss.
138
dispositivos constitucionais prevêem a disciplina geral de interpretação e solução dos
problemas relativos ao exercício das competências concorrentes. Expressamente, os preceitos
constitucionais referidos enumeram:
Art. 24. [...] §1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da
União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
§2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a
competência suplementar dos Estados.
§3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a
competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
§ 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia
da lei estadual, no que lhe for contrário.
Infere-se destes dispositivos que a atribuição da União, em matéria de legislação
concorrente, cinge-se apenas à edição das normas gerais. Entretanto, em razão das disposições
contidas nos arts. 145, 148, 149, 153 e 154, da Constituição Federal, este comando não tem
alcance sobre a matéria tributária, pois a própria Constituição enumerou de forma expressa a
competência tributária da União para instituir tributos. Ressalvado o caso tributário, nas
demais matérias no âmbito da competência concorrente a atribuição legislativa da União
limita-se à fixação das normas gerais.
Aos Estados-membros, ao Distrito Federal e aos Municípios, por sua vez, restou a
competência suplementar, quando a União tiver exercido sua atribuição de estabelecer normas
gerais. As entidades federativas referidas podem ainda, na circunstância de inexistir norma
geral da União sobre o tema, exercer a competência legislativa plena, ou seja, estabelecer as
regras conforme suas peculiaridades. Afirma-se, assim, que a atribuição da União para
estabelecer as normas gerais a respeito das matérias de competência concorrente não implica
na supressão da competência para regular cometida aos Estados-membros, ao Distrito Federal
e aos Municípios.
Ressalte-se sobre este ponto que os Municípios, a despeito de não terem sido
arrolados expressamente no rol do Art. 24, da Constituição de 1988, receberam atribuição
legislativa concorrente a teor do Art. 30, incisos I e II, da Constituição Federal, incluída aí a
competência reguladora econômica, desde que o tema seja de interesse local ou para
suplementar a legislação federal e estadual no que couber.
139
Assim, cada entidade federativa tem a atribuição de, no seu respectivo âmbito de
interesse e competência, regular a matéria econômica, desde que não contrarie eventual
normatização geral produzida pela União, nem reflita sobre o âmbito legislativo de outra. Há
que se separar, portanto, a competência tributária da competência reguladora econômica.
Sobre este tema, André Elali registra que: “Em sendo assim, o que se conclui é a
existência de competência de todos os entes federativos para promoverem a harmonização das
relações sociais e econômicas. Todavia, algumas matérias são afetas apenas à esfera de
competência da União”.274 Fechando a idéia, o autor lembra, com sustentação na advertência
de Roque Carrazza, que inexiste hierarquia entre as entidades federativas, porquanto estas se
diferenciam de acordo com o âmbito de competência definido pela Constituição.275
Luís Eduardo Schoueri registra, em conclusão, as idéias que permeiam a questão
relativa à competência concorrente, com especial atenção à intervenção sobre o domínio
econômico. Diz ele:
Conclui-se, daí, que a intervenção sobre o Domínio Econômico dar-se-á pela
União, quando em caráter geral, sem atender a peculiaridades locais. Se a
intervenção poderia, de igual modo, ser exercida pelos Estados, então
entende-se [sic], pela aplicação dos [sic] princípio da subsidiariedade, que já
se está no campo da competência suplementar, encerrando-se, assim, o
caráter “geral” da norma. Do mesmo modo, se norma municipal seria
suficiente, descabida a lei estadual sobre o tema. A intervenção sobre o
Domínio Econômico pelos “entes menores” deverá, entretanto, sempre ser
tomada com a devida cautela, tendo em vista a possibilidade de a legislação,
conquanto local, produzir efeitos que se espraiam além das fronteiras do ente
legislante.276
Em razão disto, e considerando a posição das normas tributárias extrafiscais dentro
do ordenamento jurídico, sujeita à dualidade de regimes jurídicos – econômico e tributário –,
deve-se tomar o cuidado quanto à edição de normas desta natureza, pois, a despeito de editar
as normas de acordo com sua respectiva atribuição de competência legislativa tributária, pode
ocorrer que concretamente isto reflita no campo de competência reguladora de outra entidade
política, causando instabilidade no sistema federativo. Afirma-se, desta forma, a possibilidade
de conflitos de competência entre os entes da Federação quando veiculam normas tributárias
de natureza extrafiscal com vistas à intervenção econômica.
274
ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica – um exame da tributação como instrumento de
regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora, 2007, p. 113.
275
Idem, ibidem, p. 113.
276
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 341.
140
Exemplo concreto está no caso dos convênios interestaduais em matéria de
concessão de incentivos fiscais de ICMS. Conquanto seja parcela de seu poder tributário, em
virtude da natureza nacional deste imposto, e dos reflexos daí decorrentes, o deferimento de
incentivos fiscais de ICMS sem a anuência dos demais entes federados estaduais e distrital
acabará por restringir o âmbito de competência daqueles, ainda que indiretamente. Daí a
necessidade de observância da Lei Complementar, editada pelo Congresso Nacional fazendo a
vez de órgão legislativo nacional, estabelecendo justamente as “normas gerais” a respeito do
tema, as quais regulam o modus como deverá ocorrer a deliberação dos Estados-membros e
do Distrito Federal para que se possa exercer livremente e em todos os seus termos a
competência tributária que lhes fora outorgada constitucionalmente.
3.4 INCENTIVOS FISCAIS: MECANISMOS JURÍDICOS DE MANIFESTAÇÃO DA
TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL
Quando se fala em tributação extrafiscal, correlaciona-se tal expressão aos incentivos
fiscais, que, na lição de Clélio Chiesa, “[...] são instrumentos manejados pelo legislador para,
por meio da tributação, alcançar outros fins que não os meramente arrecadatórios, configuram
o fenômeno conhecido como extrafiscalidade”.277
Contudo, deve-se lembrar que a extrafiscalidade não se materializa apenas por meio
dos incentivos fiscais, pois também desempenha função extrafiscal o tributo utilizado como
instrumento para desestimular certas práticas ou certos atos promovidos pelos particulares.
Assim, estar-se-á diante de uma tributação com função extrafiscal quando a tributação servir
de mecanismo de efetivação de políticas públicas governamentais, seja para estimular ou
mesmo para desestimular condutas dos particulares.
A extrafiscalidade da tributação, neste sentido, efetiva-se tanto pela concessão de
incentivos fiscais (chamados de benefícios ou estímulos fiscais) ou ainda por meio dos
desestímulos fiscais.278 No primeiro caso, o fim, como se denota, é a incitação à prática de
certos atos; na segunda hipótese, por outro lado, ocorre o contrário, pois o que se objetiva é
277
CHIESA, Clélio. A Competência Tributária do Estado Brasileiro – desonerações nacionais e imunidades
condicionadas. São Paulo: Max Limonad, 2002, p. 282.
278
Luís Eduardo Schoueri trata dos incentivos e dos desestímulos fiscais como agravamentos e vantagens, in
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense,
2005, p. 203-209.
141
justamente a abstenção da prática de determinadas condutas. Porém, em ambas as situações, a
natureza da tributação é a mesma: extrafiscal, ou seja, um objetivo alheio ao arrecadatório.
De toda sorte, a extrafiscalidade se manifesta pelos mais diferentes meios. São
conhecidos instrumentos de manifestação da natureza extrafiscal da norma tributária: os
incentivos fiscais, as imunidades, as isenções e mais recentemente os regimes simplificados
de arrecadação de tributos.
Em geral costuma-se confundir os incentivos fiscais com as isenções tributárias e
mesmo com as imunidades. Contudo, com certeza, estes institutos e conceitos jurídicos não se
confundem, pois o termo incentivo fiscal é gênero do qual a isenção e a imunidade tributária
são espécies. Ultimamente, o surgimento do regime simplificado de pagamento de tributos
trouxe uma nova forma de incentivo fiscal, resultante da concessão a certos e determinados
contribuintes da possibilidade de optar por um regime de tratamento tributário privilegiado e
favorecido, conforme previsão constitucional.
Neste sentido, adverte Roque Carrazza:
Não devemos confundir os incentivos fiscais (também chamados benefícios
fiscais ou estímulos fiscais) com as isenções tributarias. Estas são, apenas,
um dos meios de concedê-los. Os incentivos fiscais estão no campo da
extrafiscalidade, que, como ensina Geraldo Ataliba, é o emprego dos
instrumentos tributários para fins não- fiscais mas ordinários ( isto é, para
condicionar comportamentos de virtuais contribuintes, e não, propriamente,
para abastecer de dinheiro os cofres públicos).279
Por meio de incentivos fiscais, a pessoa política tributante estimula os contribuintes a
fazer algo que a ordem jurídica considera conveniente, interessante ou oportuno (p.ex.,
instalar indústrias em regiões carentes do País). Rachel Benchaya registra, assim:
Pode-se dizer, então, que a concessão de incentivos fiscais, no seu intuito
maior, busca, através da intervenção econômica e social, regular o
comportamento das entidades produtivas. Assim, entendendo o Estado que a
concessão de favores fiscais beneficiaria regiões menos desenvolvidas, pode
ele dispor sobre regalias para que empresas lá se estabeleçam [...].280
279
CARRAZZA, Roque Antônio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros,
2004, nota de rodapé n. 6, p. 783.
280
BENCHAYA, Rachel. ZFM: Incentivos Fiscais e a Repercussão nos Estados Federados. In: MARTINS, Ives
Gandra da Silva, RAMOS FILHO, Carlos Alberto de Moraes, PEIXOTO, Marcelo Magalhães [coord.].
Tributação na Zona Franca de Manaus: (Comemoração aos 40 anos da ZFM). São Paulo: MP Editora, 2008, p.
231.
142
Este objetivo é alcançado por intermédio da diminuição ou, até, da supressão da
carga tributária. Os incentivos fiscais manifestam-se sob a forma quer de imunidade (v.g.,
imunidade de ICMS ás exportações de produtos industrializados), quer de isenção tributária
(p.ex., isenção de IPI sobre as vendas de óculos), quer, enfim, do regime simplificado de
arrecadação tributária.
Incentivos fiscais são, neste sentido, instrumentos de que dispõe as entidades
tributantes para, através da manipulação, intervir na economia privada, de forma a estimular
os particulares, virtuais contribuintes, a praticar condutas consideradas convenientes,
interessantes ou oportunas pela ordem jurídica, realizando as finalidades socioeconômicas
constitucionalmente previstas ou aquelas definidas pelas políticas governamentais.
Já isenção tributaria é causa excludente do crédito tributário, a teor do Art. 175, I, do
Código Tributário Nacional. A doutrina mais moderna conceitua este instituto jurídico como
uma norma que “[...] investe contra um ou mais das normas dos critérios da norma-padrão de
incidência, mutilando-os parcialmente [...]”.281
Por imunidade tributária entende-se a norma jurídica constitucional que fixa a
incompetência das entidades federativas para instituírem tributos que alcancem certas
situações, bens ou pessoas. Em outros termos, a imunidade tributária consiste em regra
constitucional que delimita a competência tributária dos entes federativos. Mas mais do que
isto, ela caracteriza-se como uma norma atributiva que confere ao seu destinatário um direito
subjetivo público, oponível ao Estado. A este respeito, José Wilson Ferreira Sobrinho assinala
com propriedade:
A norma imunizante não tem apenas a função de delinear a competência
tributária, senão que também outorga ao imune o direito público subjetivo de
não sofrer a ação tributária do Estado. A norma imunizante, portanto, tem o
duplo papel de fixar a competência tributária e de conferir ao seu
destinatário um direito público subjetivo, razão que permite sua
caracterização, no que diz com a outorga de um direito subjetivo, como
norma jurídica atributiva, por conferir ao imune o direito referido.282
A seu turno, o regime simplificado de arrecadação de tributos caracteriza-se como
um benefício fiscal, na medida em que importa em redução de obrigações acessórias, além de,
em certos caso, significar também a redução dos tributos efetivamente pagos – obrigação
281
282
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 17. ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 490.
SOBRINHO, José Wilson Ferreira. Imunidade Tributária. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1996, p. 102.
143
tributária principal. Aliás, as conseqüências extrafiscais desta modalidade de estímulo fiscal
se fazem sentir no âmbito econômico-financeiro das empresas que dele usufruem,
preservando, assim, valores constitucionais como a livre iniciativa, a liberdade de
concorrência, o pleno emprego e o desenvolvimento econômico, entre outros.
Inclusive, a dimensão extrafiscal dos regimes simplificados de recolhimento de
tributos foi percebida pelo Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI n. 1.643-1, onde
se discutia a constitucionalidade do Art. 9º da Lei n. 9.317/96, que instituiu o Simples
Federal. Na oportunidade, entendeu-se pela constitucionalidade do citado dispositivo legal,
porque este não ofenderia o primado da isonomia – argumento levantado na ação – porque a
distinção levava em conta motivos extrafiscais, quais sejam, o tratamento favorecido e
diferenciado nos termos da lei, consoante a previsão do Art. 179 da Constituição Federal. Para
melhor visualizar os fundamentos da Suprema Corte, oportuno registrar a ementa do acórdão
citado:
EMENTA: ACÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE.
SISTEMA INTEGRADO DE PAGAMENTO DE IMPOSTOS E
CONTRIBUIÇÕES DAS MICROEMPRESAS E EMPRESAS DE
PEQUENO PORTE. CONFEDERAÇÃO NACIONAL DAS PROFISSÕES
LIBERAIS. PERTINÊNCIA TEMÁTICA. LEGITIMIDADE ATIVA.
PESSOAS JURÍDICAS IMPEDIDAS DE OPTAR PELO REGIME.
CONSTITUCIONALIDADE. 1. Há pertinência temática entre os objetivos
institucionais da requerente e o inciso XIII do artigo 9º da Lei 9317/96, uma
vez que o pedido visa a defesa dos interesses de profissionais liberais, nada
obstante a referência a pessoas jurídicas prestadoras de serviços. 2.
Legitimidade ativa da Confederação. O Decreto de 27/05/54 reconhece-a
como entidade sindical de grau superior, coordenadora dos interesses das
profissões liberais em todo o território nacional. Precedente. 3. Por
disposição constitucional (CF, artigo 179), as microempresas e as empresas
de pequeno porte devem ser beneficiadas, nos termos da lei , pela
"simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias,
previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas" (CF,
artigo 179). 4. Não há ofensa ao princípio da isonomia tributária se a lei, por
motivos extrafiscais, imprime tratamento desigual a microempresas e
empresas de pequeno porte de capacidade contributiva distinta, afastando do
regime do SIMPLES aquelas cujos sócios têm condição de disputar o
mercado de trabalho sem assistência do Estado. Ação direta de
inconstitucionalidade julgada improcedente.283
Há quem entenda diferente. Segundo James Marins e Marcelo Bertoldi, em alusão já
ao Simples Nacional, há equívoco insuperável nas teses que tentam reduzir a natureza jurídica
dos regimes simplificados, porquanto este é um instituto polifacetado que abarca variadas e
283
STF. ADI n. 1643/UF. Pleno. Rel. Min. Maurício Corrêa. DJ 14.03.2003., p. 27.
144
diversas características, as quais devem ser tomadas em conta para a definição de sua natureza
jurídica e para a construção de seu conceito.284
Enfim, a despeito da discussão doutrinária, percebe que, seja através da concessão de
isenções, seja por força das imunidades constitucionalmente previstas, ou ainda, mediante a
fixação dos regimes simplificados de pagamento de tributos, em todos estes casos estar-se-á
conferindo um incentivo fiscal. Em conseqüência, a norma tributária terá natureza extrafiscal,
pois o que importa, basicamente, é que, por meio de manipulação de vários e possíveis
instrumentos tributários, condiciona-se os virtuais contribuintes em prol de um objetivo
estatal específico, e não, propriamente, para abastecimento dos cofres públicos.
284
MARINS, James; BERTOLDI, Marcelo Marco. Simples Hacional – Estatuto da Microempresa e da Empresa
de Pequeno Porte Comentado (LC 123, de 14 de dezembro de 2006 e LC 127, de 14.08.2007). São Paulo: RT,
2007, p. 66.
145
4 TRIBUTAÇÃO EXTRAFISCAL: UMA AÁLISE COCORRECIAL DOS
COVÊIOS ITERESTADUAIS DE ICMS E DO SIMPLES ACIOAL
Fixadas as premissas iniciais ao longo dos três primeiros capítulos, surge o momento
de enfrentar o cerne deste trabalho e responder aos problemas relativos à influência recíproca
entre tributação e concorrência, especialmente quanto aos reflexos concorrenciais de alguns
conhecidos instrumentos tributários extrafiscais.
A partir da adoção do modelo democrático de direito e da previsão expressa e
objetiva dos fins fundamentais a serem alcançados pelo Estado Brasileiro, bem assim da
determinação da função estatal de intervenção econômica, tal como fixados pela Constituição
de 1988, tem-se o pano de fundo a influenciar a discussão do tema em questão. É neste
contexto que a intersecção jurídico-normativa entre a tributação e a concorrência se evidencia.
Com vistas à modificação do status quo e a busca pela efetiva realização do
desenvolvimento econômico com justiça social, o Texto Constitucional de 1988 redefine o
papel do Estado, notadamente no âmbito econômico. Fixam-se objetivos fundamentais a
serem alcançados, estabelece o papel a ser desempenhado pelo Estado e, concomitantemente,
definem-se os instrumentos para se atingir aqueles escopos constitucionais. Dentre os meios
possíveis de intervenção econômica, as normas tributárias assumem papel de destaque a partir
de então, em especial por conta dos efeitos imediatos que sua adequada manipulação causam.
Por isto, não é exagero afirmar que a influência que as normas tributárias causam
sobre o domínio econômico, em geral, e sobre o âmbito da concorrência, em especial, é
conseqüência da intervenção econômica adotada pela Constituição de 1988, que atribuiu ao
Estado a função normativa e regulatória das atividades econômicas com vistas à promoção do
desenvolvimento socioeconômico brasileiro.
Esta percepção não escapou aos teóricos das ciências econômicas, aos estudiosos do
direito econômico e à doutrina tributária. Contudo, a formulação das políticas tributárias e a
conseqüente criação dos diversos mecanismos tributários não tem tido o cuidado de levar em
conta esta perspectiva, de modo que positivadas as normas tributárias, pela observância
apenas dos requisitos meramente formais de sua produção, o resultado, como se vê,
146
descompassa das prescrições das normas constitucionais econômicas, especialmente no que
tange à livre concorrência e a livre iniciativa. Ao mesmo tempo, isto tem refletido sobre o
direito de propriedade e sobre o direito do consumidor que, além de primados da ordem
econômica, também se caracterizam como direitos fundamentais.
Assim, no anseio de exercer as determinações constitucionais no âmbito tributário,
como, verbi gratia, conferir tratamento tributário diferenciado às micro e pequenas empresas;
ou prevenir a guerra fiscal entre os Estados-membros, em geral descuida-se da questão
econômica, principalmente em relação à livre concorrência, que se constitui em princípio da
ordem econômica – Art. 170, IV, da Constituição Federal de 1988 – e, como desdobramento
da livre iniciativa, também em fundamento da República – Art. 1º, IV, da Constituição
Federal de 1988.
Contudo, uma vez que o sistema tributário deve ser relacionado com todo o
ordenamento constitucional285, imprescindível que se conformem normas tributárias e
limitações impostas pelos princípios constitucionais que informam a Ordem Econômica, a fim
de se manter a coerência e a unidade do ordenamento constitucional. Ora, como restou
afirmado alhures, por mais específicas que sejam as normas jurídicas estudadas, isto é,
independentemente do setor social ao qual elas estão destinadas a disciplinar as condutas, elas
somente assumem foro sistemático e, em conseqüência, estão de acordo com o ordenamento
se consideradas e analisadas com uma percepção do todo e não apenas parcial e isoladamente.
Em outros termos, a análise da tributação (e suas normas) deve, sim, tomar como
ponto de partida as disposições constitucionais que fixam o Sistema Tributário Nacional.
Porém, apenas como ponto de partida. A ordem jurídica é um sistema, e, como tal, detém
unidade e coerência, de modo que as normas jurídicas tributárias estão inseridas em um
contexto mais amplo, o que permite sua análise, também, sob outras perspectivas. No caso
desta dissertação, isso se realiza no panorama jurídico-econômico, sobretudo quanto aos
reflexos de algumas normas tributárias sobre a livre concorrência e a liberdade de iniciativa.
Ou seja, na tentativa de promover alguns princípios ou valores constitucionais, por
vezes, acaba-se restringindo excessivamente outros, notadamente no setor da Ordem
Econômica, o que é perfeitamente normal em um sistema constitucional aberto e permeado
por inúmeras normas de cunho programático. Porém, ainda que inexista direito e princípio
285
ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 06.
147
absoluto, porquanto mesmo aqueles fundamentais são restringíveis, o que não se aceita é que
a restrição imposta alcance o seu núcleo essencial, assim entendido como “[...] aquela parte
do conteúdo de um direito sem a qual ele perde a sua mínima eficácia e, por isso, deixa de ser
reconhecível como um direito fundamental”.286 Daí a necessidade de uma visão ampla do
sistema jurídico como um todo, idéia que, aliás, resulta da própria noção de sistema.287
Neste contexto, propriamente a análise recairá sobre dois dos mais conhecidos
instrumentos utilizados hodiernamente na sistemática tributária brasileira. São eles: (i) os
convênios de ICMS firmados entre os Estados Federados, os quais objetivam prevenir a
chamada “guerra fiscal”; (ii) o Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e
Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte, instituído pela Lei
Complementar n. 123, de 14 de dezembro de 2006 – Simples Nacional.
4.1 A PERSPECTIVA DA CONCORRÊNCIA NOS CONVÊNIOS DE ICMS FIRMADOS
ENTRE OS ESTADOS FEDERADOS
O domínio econômico é um dos pontos com o qual mais se preocupou o Texto
Constitucional de 1988. Esta constatação é de fácil percepção, porquanto já no Preâmbulo o
Legislador Constituinte mencionou, expressamente, que dentre outras finalidades a serem
asseguradas pelo Estado Democrático que se criava naquele momento, faziam parte do rol de
proteção os direitos individuais, a liberdade e o desenvolvimento. Ao lado disso, por óbvio,
também cuidou de apontar todos os valores relativos à questão social: os direitos sociais, o
bem-estar, a igualdade, a justiça e a harmonia sociais.
Esta dualidade foi tratada e repetida ao longo de todo o texto da Constituição,
inclusive já no Art. 1º, inciso IV, quando afirmou que são fundamentos da República, “o valor
social do trabalho e da livre iniciativa”. Também, ao depois, quando previu dentre os
objetivos fundamentais a construção de uma sociedade livre e solidária (Art. 3º, inciso I), a
garantia do desenvolvimento nacional (Art. 3º, inciso II) e a erradicação da pobreza e a
redução das desigualdades sociais (Art. 3º, inciso III). E ainda nos arts. 5º e 6º, fixando,
respectivamente, os direitos individuais e os sociais. Mas, principalmente, quando conferiu
especial atenção à Ordem Econômica e à Ordem Social (respectivamente, Títulos VII e VIII).
286
ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios e o Direito Tributário, in Revista Dialética de Direito Tributário, n.
125, fev.-2006. São Paulo: Dialética, 2006, p. 45.
287
Sobre a noção de sistema, remete-se ao item 1.1.1.
148
Enfim, esta dupla preocupação externada a partir do Preâmbulo da Constituição de
1988 é conseqüência da influência recebida de outras constituições editadas anteriormente,
em especial as européias, muitas das quais adotaram o modelo Democrático de Direito, isto é,
nem social, nem liberal, mas uma terceira via, como referido por Miguel Reale, como
resultado de uma convergência de ideologias, decorrente de recíprocas influências entre as
diretrizes liberais e as sociais288.
Fica, assim, evidente o dualismo constitucional entre o econômico e o social. Porém,
como influxo da concepção democrática de direito, diferente dos modelos anteriores que, em
certa medida, se excluíam, a Lei Constitucional Brasileira conjugou-os como valores
complementares, de modo que o social acabou por predicar o econômico, o qual, no entanto,
não perdeu sua índole fundamental.
Neste contexto, olhando-se para a preocupação da Constituição Federal com o
domínio econômico, vislumbra-se que ela tratou de ressaltar, por mais de uma vez, sua
preeminência; também cuidou de garanti-lo e protegê-lo, como a seus valores e princípios.
Para tanto, distribuiu rigidamente as competências e traçou os limites ao seu exercício; criou
os instrumentos jurídicos necessários a sua promoção e proteção. Em suma, positivou aquilo
que se convencionou chamar de intervenção econômica.
Dentre os diversos mecanismos de intervenção do Estado sobre o domínio
econômico289, as normas tributárias está entre os mais relevantes. Nota-se isto quando se tem
em conta alguns expressos dispositivos constitucionais, a saber: o Art. 146, III, “d”, e
parágrafo único (acrescentado pela Emenda Constitucional n. 42/2003); o Art. 146-A
(acrescentado pela Emenda Constitucional n. 42/2003); o Art. 149, caput, e §2º; o Art. 150,
§6º; o Art. 151, I; o Art. 155, §2º, XII, “g”; Art. 165, §6º; e Art. 177, §4º.
Dentre os precitados preceitos constitucionais, Luís Eduardo Schoueri, ao firmar a
importância do tema sobre as normas tributárias e a intervenção econômica e justificá-lo,
destaca as disposições contidas no Art. 150, §6º, no Art. 155, §2º, XII, “g”, no Art. 165, §6º e
no Art. 146-A. Segundo ele, por conta desta expressa preocupação do constituinte com o uso
das normas tributárias com finalidade interventiva sobre o domínio econômico incuti a análise
dos princípios de Direito Econômico – tanto aqueles limitadores da intervenção estatal como
288
REALE, Miguel. O Estado Democrático de Direito e o Conflito das Ideologias. 2. ed. São Paulo: Saraiva,
1999, prólogo. p. XII.
289
Sobre as modalidades de intervenção econômica, ver item 2.3, supra.
149
os que a promovem – em conjunto com os primados que informam a tributação, definindo-se
assim o campo de intersecção entre o tributário e o econômico de modo que o regime jurídico
aplicável resulte da somatória entre ambos.290
Contudo, é certo que as demais prescrições constitucionais supracitadas relacionamse imediatamente ao tema em análise, pois tratam sobre três temas tributários que possuem
evidente finalidade interventiva sobre o domínio econômico: o Art. 149, caput, e §2º
combinado com o Art. 177, §4º, traçam o perfil da contribuição de intervenção no domínio
econômico, espécie tributária cuja finalidade o próprio nome já denota, isto é, serve de
instrumento de intervenção econômica; o Art. 146, III, “d”, que fixa a atribuição de lei
complementar para definir o tratamento tributário diferenciado e favorecido para as
microempresas e empresas de pequeno porte, ou seja, finalidade extrafiscal com vistas a
promover a igualdade econômica, de liberdade de iniciativa e de livre concorrência daquelas
empresas; e o Art. 151, I, que permite à União conferir tratamento desigual entre as diferentes
regiões do país a fim de promover-lhes o equilíbrio do desenvolvimento socioeconômico.
De toda sorte, interessa neste momento apenas as prescrições contidas no Art. 155,
§2º, XII, “g”, da Constituição de 1988, em razão da disciplina que fixa acerca da concessão
das isenções, incentivos e benefícios fiscais em matéria de ICMS.
4.1.1 As disposições normativas relativas à concessão de incentivos fiscais em matéria de
ICMS: o Art. 155, §2º, XII, “g” da Constituição Federal de 1988, a Lei Complementar n.
24/75 e a necessidade dos convênios interestaduais
Primeiramente, é relevante fixar uma questão semântica para centrar o tema e
prevenir eventuais deslizes ao longo do texto. Apesar da Constituição Federal Brasileira
referir-se, no Art. 155, §2º, XII, “g”, à “concessão ou revogação de isenções, incentivos e
benefícios fiscais”, a partir deste ponto, como método científico adotado, utilizar-se-á apenas
o termo “incentivos fiscais” para significar as três situações aludidas. E também se referirá
somente à questão da concessão, ficando evidente, por conseqüência, que as considerações
feitas aplicar-se-ão igualmente à questão da revogação, mas deixando-a implícita no texto, a
fim de torná-lo mais objetivo.
290
Sobre esta relação, Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica.
Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 37.
150
Evidente que, a depender do tema tratado e dos argumentos expostos, poderá haver
conseqüências jurídicas distintas para os casos de concessão ou revogação, como também as
conseqüências jurídicas relativas à compreensão de isenção, incentivo ou benefício fiscal.
Quando isto ocorrer, expressamente consignar-se-á a distinção, utilizando-se expressamente o
termo adequado.
Por outro lado, afirma-se, desde logo, que não se desconhecem as discussões
doutrinárias sobre a terminologia empregada, isto é, se há ou não diferença entre isenção,
incentivo e benefício fiscal; e se esta ou aquela expressão pode ser usada para significar as
demais. Para esclarecimentos a respeito, remete-se ao capítulo anterior, onde, no item 3.4,
abordou-se a questão, expondo, ainda que brevemente, a contenda conceitual.
Sendo assim, sobre o tema a respeito dos Convênios de ICMS na perspectiva da
concorrência, valer-se-á da expressão “concessão de incentivos fiscais” para significar a
amplitude e as situações traçadas pelo Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição de 1988.
Prosseguindo na exposição, importa conhecer a previsão contida no precitado
dispositivo constitucional, que prescreve, in verbis:
Art. 155, §2º. O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte: [...] XII –
cabe à lei complementar: [...] g) regular a forma como, mediante deliberação
dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais
serão concedidos e revogados.
Este dispositivo disciplina o tema acerca da concessão (e também a revogação), pelos
Estados e pelo Distrito Federal, de incentivos fiscais em matéria de ICMS. Extrai-se da
redação do texto constitucional que a disciplina do tema foi cometida à lei complementar, a
quem coube estabelecer a forma da deliberação entre as entidades federativas estaduais e
distrital para os fins referidos.
Ressai daí a necessidade da legislação infraconstitucional para conferir a completude
de sentido e aplicabilidade ao comando contido no Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição
Federal. No caso, o tema é disciplinado pela Lei Complementar n. 24, de 07 de janeiro de
1975. Referida legislação foi editada antes da Constituição Federal de 1988, porém, na
ausência de outra lei complementar que trate do tema, há concordância quanto a sua recepção
pelo novo ordenamento constitucional, ressalvada a discussão acerca da evidente
inconstitucionalidade de alguns de seus dispositivos – arts. 4º e 8º.
151
Fundamentalmente, a Lei Complementar n. 24/75 prevê a obrigatoriedade de
celebração e ratificação de convênios entre os Estados e o Distrito Federal como formalidade
necessária para a concessão de incentivos fiscais em matéria de ICMS. A necessidade deste
expediente é conseqüência da característica nacional que o imposto detém, apesar de sua
competência ter sido atribuída aos Estados e ao Distrito Federal – Art. 155, II, da Constituição
Federal de 1988. De toda sorte, este é o ponto crucial da legislação complementar, na medida
em que a concretiza a competência atribuída pela Constituição Federal, fixando positivamente
a forma como os incentivos fiscais em matéria de ICMS devem ser concedidos.
Ressalte-se que o Art. 1º da Lei Complementar n. 24/75 é claro em determinar que
“As isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão
concedidas ou revogadas nos termos de convênios celebrados e ratificados pelos Estados e
pelo Distrito Federal, segundo esta Lei” (destaque nosso). Portanto, além da celebração do
convênio interestadual, eles devem ser ratificados pelos convenentes, a fim de se efetivar a
concessão dos incentivos fiscais autorizados em seus respectivos territórios.
Vê-se, assim, que a concessão dos incentivos fiscais de ICMS pelos Estados e o
Distrito Federal é um ato complexo, porque resulta de operações de vontade de vários órgãos,
que se completam para a sua criação, como lembra Aroldo Gomes de Mattos referindo-se à
lição de Oswaldo Aranha Bandeira de Mello.291 Pode-se dizer que a veiculação desta matéria
demanda um processo legislativo bifásico: a celebração do convênio e sua ratificação.
Para melhor compreender esta assertiva, subdividir-se-á o tema em dois tópicos
distintos, a fim de abordá-los individualmente.
4.1.1.1 A primeira fase no processo legislativo de concessão de incentivos fiscais – a
celebração dos convênios interestaduais: sua definição, natureza jurídica e finalidade
Consoante previsão do Art. 1º da Lei Complementar n. 24/75, a concessão dos
incentivos fiscais em matéria de ICMS, por parte dos Estados e do Distrito Federal depende,
primeiramnete, da celebração de convênio. Mas o que são os convênios? Qual sua natureza
jurídica? A que fim prestam-se na sistemática tributária?
291
MATTOS, Aroldo Gomes. A natureza e o alcance dos convênios em matéria de ICMS, in Revista Dialética
de Direito Tributário, n. 79. São Paulo: Dialética, 2002, p. 10.
152
Em vernáculo, convênio significa “acordo, convenção, pacto”.292 Na seara tributária,
a ordem jurídico-positiva nacional confere duas atribuições aos convênios: (i) uma genérica,
prevista no Art. 199 do Código Tributário Nacional293, para fins de troca de informações
tributárias entre as entidades federativas; (ii) a segunda, específica, para autorizar a concessão
de incentivos fiscais de ICMS, consoante Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição de 1988
combinado com o Art. 1º e seguintes da Lei Complementa n. 24/75.
Sobre ICMS, os convênios são, portanto, os instrumentos normativos aptos a
veicular, de modo genérico e abstrato, a autorização para concessão de incentivos fiscais. São,
nas palavras do Ministro Celso de Mello, “[...] instrumentos de exteriorização formal do
prévio consenso institucional entre as unidades federadas investidas de competência tributária
em matéria de ICMS”.294 É o primeiro passo no processo legislativo necessário para tanto.
Originam-se da reunião, em assembléia – denominada de Conselho Nacional de Política
Fazendária (CONFAZ) –, dos Estados-membros e do Distrito Federal. Estes se fazem
representar no CONFAZ por servidor público indicado pelo Chefe do Poder Executivo; em
regra, os Secretários de Fazenda, Finanças ou Tributação.
Segundo Sacha Calmon Navarro Coelho, os convênios são
[...] atos formalmente administrativos e materialmente legislativos. Sob o
ponto de vista formal, são atos administrativos porque dimanam de órgão
administrativo colegiado (assembléia de funcionários representantes do
Poder Executivo dos estados). Sob o ponto de vista material, são atos
legislativos porque têm conteúdo de preceituação genérica e
normativa.[...].295
Enfim, os convênios não são leis no sentido próprio da palavra; são, pois, veículos
normativos sem força vinculante que integram o processo legislativo de concessão de
incentivos fiscais de ICMS, resultando em uma fase peculiar deste processo legislativo,
limitativa da competência das Assembléias Legislativas.296
292
Aulete Digital – Dicionário Contemporâneo da Língua Portuguesa.
Art. 199, CTN. A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestarse-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de informações, na forma
estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio.
294
ADI-MC n. 1.247/PA. Pleno. Relator Min. Celso de Mello. DJ 08.09.1995.
295
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2006, p. 224.
296
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 408.
293
153
Como instrumento de veiculação normativa sem força vinculante, seu conteúdo
somente assume juridicidade após a edição de ato legislativo editado pelos Estados
convenentes. Daí porque assentou Roque Carrazza que os convênios somente passam a ser
válidos na ordem jurídica interna dos Estados-membros e do Distrito Federal após sua
ratificação pelo Poder Legislativo Estadual.297
Destarte, "[...] o convênio não dá nem tira direito a nenhuma Fazenda e a nenhum
contribuinte. Não cria direito de natureza tributária nem em benefício, nem em detrimento de
ninguém. É mero pressuposto de exercício eficaz da competência isentadora dos legisladores
ordinários estaduais"298, como lembra Roque Carrazza em alusão a lição de Geraldo Ataliba.
Portanto, é pressuposto básico essencial para a concessão de incentivos fiscais de
ICMS, por parte dos Estados e do Distrito Federal, que estes deliberem a respeito, reunidos
em assembléia, e, pactuada a proposta concedente, celebrem o respectivo convênio
interestadual. Contudo, não é este quem concede o incentivo fiscal; o convênio apenas
autoriza a concessão, porquanto ausente força normativa para impor qualquer obrigação ou
abstenção no âmbito territorial das entidades federativas convenentes, sendo necessário, como
referido alhures, ato de ratificação por parte do Poder Legislativo.
4.1.1.2 A segunda fase no processo legislativo de concessão de incentivos fiscais de ICMS – a
ratificação dos convênios celebrados: órgão competente e meio legítimo
Celebrado o convênio e tendo sido publicado no Diário Oficial da União, encerra-se
a nomeada “primeira fase” no processo legislativo de concessão de incentivos fiscais de
ICMS e abre-se a necessidade integrativa de um segundo procedimento: a ratificação pelos
Estados e o Distrito Federal convenentes.
Surge, então, um segundo problema: qual o órgão competente para ratificar os
convênios interestaduais firmados em matéria de concessão de ICMS? E o meio legítimo para
introduzir nas ordens jurídicas parciais estaduais a matéria por eles (os convênios) pactuada?
Neste ponto, há dissenso na jurisprudência e na doutrina em virtude da interpretação
dos dispositivos constitucionais e legais envolvidos. Em súmula, existem três vertentes sobre
297
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 409.
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros,
2004, p. 208.
298
154
o tema: (i) a corrente que entende ser atribuição do Poder Executivo a ratificação dos
convênios celebrados, o que se dá mediante a expedição do respectivo decreto, consoante
expressa previsão do Art. 4º da Lei Complementar n. 24/75; (ii) a vertente que defende ser de
atribuição do Poder Legislativo a expedição do ato ratificador, o que se dá mediante a edição
do decreto legislativo, consoante Art. 49, I, da Constituição, aplicado por simetria; e (iii) a
linha de entendimento que atribui ao Poder Legislativo a competência ratificante, porém via
edição de lei estadual específica, nos termos do Art. 150, §6º, da Constituição de 1988, na
redação dada pela Emenda Constitucional n. 03/93.
A primeira linha de entendimento baseia-se na expressa disposição da Lei
Complementar n. 24/75, que prevê no seu Art. 4º:
Art. 4º - Dentro do prazo de 15 (quinze) dias contados da publicação dos
convênios no Diário Oficial da União, e independentemente de qualquer
outra comunicação, o Poder Executivo de cada Unidade da Federação
publicará decreto ratificando ou não os convênios celebrados,
considerando-se ratificação tácita dos convênios a falta de manifestação no
prazo assinalado neste artigo.
A partir da leitura isolada deste dispositivo se tem afirmado que a competência para
ratificar os convênios interestaduais em matéria de incentivos fiscais de ICMS é do Poder
Executivo da entidade federativa, mediante a edição do respectivo decreto.
Entretanto, a doutrina é unânime sobre a inconstitucionalidade do citado Art. 4º da
Lei Complementar n. 24/75, por afronta aos Princípios da Legalidade e da Separação de
Poderes. Ora, consoante a Constituição Federal vigente, somente aqueles instrumentos
previstos nos incisos I a VII do Art. 59 são aptos a inovar a ordem jurídica, isto é, a introduzir
validamente nas respectivas ordens jurídicas – total e parciais – as matérias autorizadas pela
Lei Maior. Em sede tributária, tanto a oneração como a desoneração de tributos são temas sob
reserva de lei formal. Deste modo, não apenas a instituição e o aumento de tributos
obrigatoriamente devem ser veiculados por lei, como também a desoneração tributária – seja
pela diminuição ou extinção do tributo, seja mediante a concessão dos incentivos fiscais.
Não poderia ser diferente, na medida em que o Art. 150, I, da Constituição Federal
prevê ser vedado exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça, realizar o processo
inverso – de desoneração – também demanda a mesma formalidade, por obra do que se
convencionou denominar de “paralelismo das formas”. Até porque, prescrever condutas para
obrigar ou desobrigar depende de estrita previsão legal. Tanto mais em matéria tributária.
155
Logo, como poderia uma reunião de representantes dos Poderes Executivos
Estaduais, mediante instrumento sem normatividade (os convênios) exercer a competência
impositiva ou a exonerativa – que são como o verso e o reverso da mesma medalha, na
precisa lição de José Souto Maior Borges299 – e, ao depois, ver seus atos – que são meramente
administrativos – ratificados pelo próprio órgão que integram? A resposta quem dá é Sacha
Calmon Navarro Coelho: “Ora, é rematada sandice admitir possa um mesmo Poder praticar
um ato e, depois, ele próprio, homologá-lo... Ratificar ato na entrosagem da Teoria da
Tripartição dos Poderes significa técnica de harmonização. A homologação, na espécie, só
faria senso se declinada ao Legislativo”.300
Neste sentido, André Mendes Moreira anda bem ao reafirmar lição por todos
conhecida, mas que, vez por outra, parece ser esquecida:
No Estado Democrático, compete ao Legislativo veicular normas
prescritivas de conduta (editando leis), ao Executivo dar-lhes cumprimento
(executando as leis) e ao Judiciário dirimir os conflitos (aplicando a lei no
caso concreto). A partir do momento em que o Poder Executivo reveste-se
do papel de criador de leis, usurpa a competência do Legislativo e fere a
tripartição dos Poderes, cláusula pétrea da Constituição e pilar do Estado de
Direito.301
Em remate, a observação de Geraldo Ataliba:
À semelhança dos tratados internacionais que se convertem em direito
interno pela ratificação do Congresso, os convênios – sinônimo absoluto de
tratado, segundo o acatado internacionalista Marotta Rangel – só podem
preencher as exigências do princípio da legalidade se ratificados pelo Poder
Legislativo Estadual. Isto é, aliás, imediata decorrência do princípio da
relação de administração – magistralmente exposto por Cirne Lima – que
não consente que o Executivo possa deliberar não realizar receita tributária,
imperativamente criada por lei.302
Contudo, afirma Aroldo Gomes de Mattos que a jurisprudência do Supremo Tribunal
Federal encamparia esta idéia, no sentindo de que os convênios devem ser ratificados por ato
do Poder Executivo, supostamente em deferência ao princípio da independência e harmonia
299
BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2001, p. 08.
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2006, p. 224.
301
MOREIRA, André Mendes. O Convênio ICMS nº 64/06 e a Ilegitimidade da Exigência do Imposto Estadual
na Alienação de Veículos Usados por Locadoras de Automóveis, in Revista Dialética de Direito Tributário, n.
147. São Paulo: Dialética, 2007, p. 24.
302
ATALIBA, Geraldo. Convênios Interestaduais e imposto sobre circulação de mercadorias, in Revista dos
Tribunais, n. 422, agosto de 1972. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 310-311.
300
156
dos poderes.303 Para fundamentar sua exposição, o autor alude ao acórdão proferido na ADIn
672-2/RJ (sic), de relatoria do Ministro Carlos Velloso, publicada no Diário da Justiça, Seção
I, em 29 de novembro de 1996, p. 47155-47156.304
Deve-se consignar, no entanto, que a despeito da decisão proferida, que julgou
procedente a referida ação direta de inconstitucionalidade e, com isto, declarou
inconstitucionais dispositivos da Constituição do Estado do Rio de Janeiro os quais previam a
competência privativa da Assembléia Legislativa Estadual em apreciar e aprovar convênios e
outros atos celebrados pelo Poder Executivo que resultassem para o Estado quaisquer
encargos não estabelecidos em lei orçamentária, o pano de fundo da discussão não envolvia a
questão dos convênios de ICMS, mas abstrata e genericamente o controle do Poder Executivo
pelo Órgão Legislativo Estadual.
Após a edição da Emenda Constitucional n. 03, de 17 de Março de 1993, a doutrina
tributária, que até então compreendia ser atribuição do Poder Legislativo Estadual ou Distrital
editar o ato legislativo necessário a ratificar os convênios interestaduais firmados, rachou em
duas vertentes: (i) aquela que entende ser o decreto legislativo o meio adequado para a
ratificação dos convênios celebrados; e (ii) outra que alude à necessidade da edição de lei
específica, a teor da disposição contida na novel redação do Art. 150, §6º, da Constituição de
1988, dada pela precitada emenda a Constituição.
No sentido de que cabe ao Poder Legislativo Estadual ou Distrital, mediante edição
de decreto legislativo, a ratificação dos convênios interestaduais em matéria de concessão de
incentivos fiscais de ICMS, Paulo de Barros Carvalho, por exemplo, lembra que os convênios
não têm força vinculante, e daí a imprescindibilidade do decreto legislativo, que se perfaz no
instrumento primário de introdução de normas apto a introduzir nas respectivas ordens
jurídicas estaduais e distrital o conteúdo dos convênios interestaduais celebrados, conferindo
àquela matéria validade jurídica.305
303
MATTOS, Aroldo Gomes. A natureza e o alcance dos convênios em matéria de ICMS, in Revista Dialética
de Direito Tributário, n. 79. São Paulo: Dialética, 2002, p. 14.
304
Apenas para corrigir a afirmação do autor e, assim, transmitir a informação correta, a ADI em questão é a de
número 676-2/RJ e não “672-2/RJ”, como afirmado. De resto, as informações relativas ao acórdão estão corretas.
305
CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 74.
157
Roque Carrazza trilha esta mesma linha de raciocínio306, embasando-se nas sempre
precisas lições de Geraldo Ataliba, para quem:
Exige o texto constitucional que os convênios sejam 'celebrados' pelos
Estados (e pelo Distrito Federal) e, depois, 'ratificados'. A celebração cabe ao
Executivo. A ratificação, ao Poder Legislativo. 'Estado' (ou 'Distrito
Federal') não é Executivo. O Estado (ou o Distrito Federal) se representa
pelo Executivo, mas delibera mediante harmônica atuação deste com o
Legislativo. (...) Por isso, só pode ser válido e eficaz o convênio 'ratificado' como quer o Texto Magno - pelos Legislativos estaduais (e distrital).
Convênio é contrato. Executivo não pode 'contratar' sem pronunciamento
parlamentar prévio ou ratificatório. O Executivo não é o Estado (ou o
Distrito Federal). É órgão do Estado (ou do Distrito Federal). Só a
conjugação das expressões volitivas do Legislativo ou do Executivo é
'vontade' do Estado (ou do Distrito Federal).307
Enfim, para esta doutrina é o Poder Legislativo o órgão competente para ratificar os
convênios interestaduais que tratem da autorização para concessão de incentivos fiscais de
ICMS, realizando este mister por meio do decreto legislativo, que é o meio legítimo para
tanto, substanciado, por simetria, na disposição do Art. 49, I, da Constituição vigente.
De outro lado, há uma segunda corrente que entende haver a necessidade de “lei
específica” para a efetiva concessão dos incentivos fiscais de ICMS após a autorização
emanada por convênio interestadual firmado. Para ela, é o Poder Legislativo Estadual o órgão
competente para ratificar os convênios interestaduais sobre ICMS firmados pelos Estados e o
Distrito Federal. Contudo, segundo sua compreensão, o meio legítimo para validar
juridicamente a matéria veiculada via convênio é a lei estadual ou distrital específica, assim
entendida no sentido estrito e formal da acepção.
Esta doutrina apóia sua interpretação no Art. 150, §6º, da Constituição de 1988, na
redação dada pela Emenda Constitucional n. 03/93, que prevê:
Art. 150, § 6º Qualquer subsídio ou isenção, redução de base de cálculo,
concessão de crédito presumido, anistia ou remissão, relativos a impostos,
taxas ou contribuições, só poderá ser concedido mediante lei específica,
federal, estadual ou municipal, que regule exclusivamente as matérias acima
enumeradas ou o correspondente tributo ou contribuição, sem prejuízo do
disposto no art. 155, § 2º, XII, g.
306
CARRAZZA, Roque Antonio. ICMS. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 408-409.
ATALIBA, Geraldo. Convênios Interestaduais e imposto sobre circulação de mercadorias, in Revista dos
Tribunais, n. 422, agosto de 1972. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 311.
307
158
Sacha Calmon Navarro Coelho, conquanto não assevere expressamente sobre o meio
legítimo para a ratificação dos convênios interestaduais, tende a considerar a necessidade de
lei específica estadual para tanto. Isto se infere das seguintes passagens:
Evidentemente, a lei complementar não poderá deferir a um colegiado
interestadual de funcionários públicos poderes para dar e tirar tributação
(isenção e reduções e suas revogações) sem lei, contra o princípio da
legalidade.308
[...]
Após a Emenda nº 3, de 17.03.1993, o §6º do art. 150 projetou, por sobre o
conteúdo do art. 155, XII, “g” (sic), da Constituição, cuja interpretação é
sistêmica, sérias restrições. É que isenções, anistias, remissões, reduções de
base de cálculo, concessões de créditos presumidos etc., só podem ser
permitidas por LEI ESPECÍFICA (federal, estadual ou municipal).309
Robson Maia Lins, por sua vez, vai direto ao tema e expõe sua posição sobre a
imprescindibilidade da edição de lei estadual específica para a concessão ou a revogação dos
incentivos fiscais de ICMS autorizados via convênio interestadual. Afirma o autor:
O art. 150, §6º, CF, condiciona a concessão de qualquer subsídio, isenção,
redução de base de cálculo, concessão de crédito presumido, anistia ou
remissão, relativos a impostos, taxas ou contribuições, à existência de lei
específica da pessoa política competente (sem prejuízo do disposto no art.
155, §2º, XII, “g”, da Carta Magna, que trata exatamente do Convênio). No
nosso entender, esse dispositivo soma forças aos argumentos já expostos nos
tópicos precedentes no sentido de que lei específica estadual, sobre ser
imprescindível para a criação da isenção prevista no Convênio/Confaz, pode
revogar a isenção, entendida esta como benefício fiscal efetivado pela
legislação estadual da pessoa política.310
Ressalte-se, por fim, que em outra oportunidade o Supremo Tribunal Federal
manifestou-se de forma diversa daquela externada na ADI n. 676-2. A discussão tinha como
questão de fundo, justamente, a problemática da concessão de incentivos fiscais de ICMS, a
necessidade de convênios e a questão da ratificação. Na oportunidade, ao julgar a ADI-MC n.
1.247-9/PA, de relatoria do Ministro Celso de Mello, a Colenda Suprema Corte entendeu,
com base no voto do relator e por unanimidade, que a concessão de incentivos fiscais em
matéria de ICMS somente pode ser deferida mediante lei específica, em observância ao
princípio da reserva constitucional de competência legislativa e da separação dos poderes,
308
COELHO, Sacha Calmon Navarro. Curso de Direito Tributário Brasileiro. 9. ed. Rio de Janeiro: Forense,
2006, p. 223. (grifos do autor)
309
Idem, ibidem, p. 227. (grifos do autor)
310
LINS, Robson Maia. A Revogação de Isenção de ICMS e a Desnecessidade de Convênio/Confaz, in Revista
Dialética de Direito Tributário, n. 106. São Paulo: Dialética, 2004, p. 86-87. (grifos do autor).
159
razão pela qual seria vedado até mesmo ao Poder Legislativo Estadual conferir ao Chefe do
Poder Executivo a prerrogativa de dispor normativamente sobre o tema. Registre-se, por
oportuno, passagem do voto condutor no referido aresto, que consigna:
Com efeito, a norma legal em questão, ao autorizar o Poder Executivo
estadual a conceder, em caráter provisório, mediante decreto específico, e
independentemente de deliberação do COFAZ, benefícios fiscais ou
financeiros que importem em redução ou em exclusão do ICMS, nos casos
em que se identifique, a juízo exclusivo do Governador, “notória
necessidade de defender a Economia do Estado e a capacidade competitiva
de empreendimentos locais”, parece transgredir as cláusulas inscritas no
art. 150, §6º, e no art. 155, §2º, XII, g, da Constituição.
A norma inscrita no caput do art. 12 da Lei n. 5.780/93 do Estado do Pará,
ao permitir a livre concessão, pelo Poder Executivo, de benefícios fiscais ou
financeiros de que decorram redução ou exclusão do ICMS, parece veicular
uma inaceitável delegação legislativa externa, pois torna possível, naquela
unidade da Federação, a inadmissível atuação normativa do Poder
Executivo em tema de liberalidade estatal em matéria tributária.
[...]
O preceito legal em questão deslocou, para instância juridicamente
inadequada, o poder de regulação estatal incidente sobre determinadas
categorias temáticas – a outorga de benefício fiscal, com a conseqüente
redução ou exclusão da exigibilidade do ICMS – que se acham submetidas,
em razão de sua própria matéria, ao postulado constitucional da reserva
absoluta de lei em sentido formal.
[...]
O Poder Público está rigidamente sujeito, no regramento de matérias que
exijam disciplinação mediante atos normativos primários – como ocorre na
veiculação de temas de direito tributário que concernem às relações entre o
Estado e o contribuinte – ao princípio constitucional da reserva de lei. Este
postulado, enquanto valor subordinante da atuação governamental,
extrai a sua autoridade da matriz jurídica de que se origina, qualificando-se
como fator condicionante da própria validade e eficácia das deliberações
estatais que versem questões como aquelas pertinentes às matérias referidas
nos preceitos legais impugnados nesta sede de controle normativo abstrato.
É preciso enfatizar que a essência do direito tributário reside na integral
submissão do poder estatal à rule of law, de tal modo que, respeitados os
postulados fixados pela própria Constituição, a eficácia da atividade
governamental em matéria tributária resulte sempre condicionada por tudo
quanto haja sido fixado pelo legislador em sede jurídica adequada, vale
dizer, por tudo quanto tenha sido ditado pelo Poder Público em lei.
Não basta, portanto, que o Poder Público tenha promulgado um ato
legislativo para que se legitime, desde logo, a atividade estatal. Impõe-se,
antes de mais nada, que o legislador, abstendo-se de agir ultra vires, não
haja excedido os limites que condicionam, no plano constitucional, o
exercício de sua indisponível prerrogativa de fazer instaurar, em caráter
160
inaugural, a ordem jurídico-normativa. Isso significa dizer que o legislador
não pode abdicar de sua competência institucional para permitir que outros
órgãos do Estado – como o Poder Executivo – produzam a norma que, por
efeito de expressa reserva constitucional, só pode derivar de fonte
parlamentar.
[...]
O preceito legal em questão – extravazando [sic] os limites, exorbitando
das hipóteses e inobservando o procedimento e a forma previstos no art. 68
da Carta Política – deferiu ao Executivo estadual uma competência
normativa primária que se revela absolutamente estranha às atribuições desse
Poder, facultando-lhe a prática, mediante ato próprio, da excepcional
prerrogativa de inovar, com a nota da inicialidade, a própria ordem
jurídica, dispondo, sem maiores restrições de caráter normativo, sobre
questões postas expressamente pelo legislador constituinte sob a égide do
postulado fundamental da reserva absoluta de lei em sentido formal (CF, art.
150, §6º). (grifos do autor).311
Frente aos argumentos, com absoluta certeza pode-se concluir que não é o convênio
interestadual em si o meio de introdução, nas respectivas ordens jurídicas parciais estaduais,
dos
incentivos
fiscais
pactuados.
A
toda
evidência,
também,
indisputável
a
inconstitucionalidade do Art. 4º da Lei Complementar n. 24/75, na medida que confere ao
Órgão Executivo poderes ratificatórios, os quais, bem de ver da Constituição Federal, cabe
sempre e privativamente ao Poder Legislativo.
Em termos distintos, somente seriam válidas as regras concessivas de incentivos
fiscais em matéria de ICMS se estas vierem contidas nos convênios e, após isto, ratificadas
pelas respectivas Assembléias Legislativas dos Estados convenentes. Via de conseqüência, a
contrario sensu, sobressai-se que é vedado às citadas pessoas políticas concedê-los (os
incentivos fiscais de ICMS) sem observância da limitação constitucional e das determinações
da aludida lei complementar.
4.1.1.3 Considerações finais sobre a concessão dos incentivos fiscais de ICMS – alguns
pontos da Lei Complementar n. 24/75
Antes ainda de encerrar a exposição sobre a necessidade dos convênios interestaduais
em matéria de concessão de incentivos fiscais de ICMS, faz-se relevante mais algumas
considerações, as quais estão aqui apartadas do tópico anterior em virtude de seu conteúdo
diverso, apesar de dentro do mesmo tema.
311
Cf. STF. ADI-MC 1.247-9/PA. Pleno. Rel. Min. Celso de Mello. DJU 08.09.1995.
161
É preciso ser ressaltado que a disposição contida no parágrafo único do Art. 1º da Lei
Complementar n. 24/75 traz mais alguns esclarecimentos sobre o alcance da forma
deliberativa relativa aos incentivos fiscais de ICMS. Em outros termos, o citado dispositivo
alude a algumas outras situações que seriam alcançadas pela limitação constitucional e,
portanto, sujeitas à observância das regras complementares. Basicamente, prescreve que:
Art. 1º [...] Parágrafo único. O disposto neste artigo também se aplica: I – à
redução da base de cálculo; II – à devolução total ou parcial, direta ou
indireta, condicionada ou não, do tributo, ao contribuinte, a responsável ou a
terceiros; III – à concessão de créditos presumidos; IV – à quaisquer outros
incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais, concedidos com base no
Imposto de Circulação de Mercadorias, dos quais resulte redução ou
eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus; V - às prorrogações e das
extensões das isenções vigentes nesta data.
Este dispositivo legal confere às situações elencadas nos incisos I a V referidos o
mesmo tratamento justributário dispensado à concessão dos incentivos fiscais (relembrando
apenas que o termo refere-se, genericamente e por opção metodológica, à concessão e
revogação de isenção, incentivo e benefício fiscal). Ou seja, também nestas circunstâncias, os
Estados e o Distrito Federal deverão observar as prescrições da Constituição e da Lei
Complementar, porquanto, como cediço, são formas distintas de incentivos fiscais (que é
gênero, do qual todas estas situações são espécies).
Assim, a autorização via convênio interestadual e também a ratificação por parte do
Poder Legislativo Estadual ou Distrital revela-se estritamente necessária.
Saliente-se, ainda, que o âmbito material de regulação normativa por parte da Lei
Complementar é claramente delimitado pelo respectivo dispositivo constitucional que lhe
outorga esta atribuição – Art. 155, §2º, XII, “g”. Esta previsão constitucional expressamente
determina que a atribuição da lei complementar é, pura e simplesmente, regular a forma como
os Estados e o Distrito Federal deliberarão sobre a concessão dos incentivos fiscais de ICMS.
Portanto, a legislação complementar somente está autorizada, pela competência
legislativa concedida, a traçar as formalidades que deverão ser observadas, pelas entidades
federativas estaduais e distrital, no processo de deliberação autorizadora dos incentivos fiscais
de ICMS que se pretenda outorgar. Ficando evidente, por conseguinte, que não é a lei
complementar quem autoriza ou desautoriza os Estados e o Distrito Federal a conceder ou não
162
os incentivos fiscais, mas, sua “limitação conteudística” é meramente definidora dos meios
para estas entidades federativas desempenhar adequadamente sua competência exoneratória.
Perceptível quão restrito é o âmbito de atuação da Lei Complementar que trate deste
tema. Conseqüência: não está no seu âmbito de competência material, v.g., autorizar estorno
de créditos fiscais; definir sujeitos passivos; modificar bases de cálculo ou alíquotas; impor
penalidades, etc. De igual modo, tais matérias não foram deferidas, pela Constituição, aos
convênios
interestaduais.
Contrariamente,
cabe
a
estes
instrumentos
normativos
intergovernamentais – e depois os respectivos atos de ratificação – traçar apenas os lindes dos
incentivos fiscais a serem concedidos. E nada além disto.
Em conclusão, disposições da supracitada lei complementar e de eventuais convênios
interestaduais – e, via de conseqüência, dos atos ratificatórios – que desbordem da autorização
constitucional, trazendo previsões estranhas à concessão dos incentivos fiscais, implicará na
sua inconstitucionalidade, por alteração da competência constitucionalmente discriminada,
isto é, pela ausência de atribuição constitucional para tratar daquele tema.
Ao mesmo tempo, a concessão, por parte dos Estados e do Distrito Federal, dos
incentivos fiscais relativos ao ICMS depende do cumprimento de certas regras constitucionais
e infraconstitucionais. A prática de atos normativos deste jaez, em contrariedade às
determinações do Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição de 1988, e também da Lei
Complementar n. 24/75, importará, sempre, na sua invalidade, seja pelo vício da
inconstitucionalidade ou pelo timbre da ilegalidade.
Outro aspecto que precisa ser abordado: o quorum de aprovação para a concessão
dos incentivos fiscais, assim também a aquele relativo à sua revogação. Sobre isto, importa a
previsão do Art. 2º da Lei Complementar n. 24/75, o qual prescreve, in verbis:
Art. 2º - Os convênios a que alude o art. 1º, serão celebrados em reuniões
para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e
do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do Governo federal.
§ 1º - As reuniões se realizarão com a presença de representantes da maioria
das Unidades da Federação.
§ 2º - A concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos
Estados representados; a sua revogação total ou parcial dependerá de
aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes.
163
Percebe-se que as reuniões para celebrar os convênios interestaduais somente serão
válidas se antes tiverem sido convocados os representantes de todos os Estados e do Distrito
Federal, sendo que o encontro será sempre presidido por um representante do Governo
Federal. Além disso, é condição para a efetiva realização das assembléias interestaduais: a
presença obrigatória de representantes da maioria das unidades federativas. Logo, não há a
necessidade de todas as entidades federativas se fazerem presentes; apenas a maioria delas.
A despeito disso, o dispositivo normativo faz distinção, quanto ao quorum de
aprovação, entre a concessão e a revogação dos incentivos fiscais. Em síntese, a teor dos
parágrafos 1º e 2º precitados, têm-se duas situações: (i) para autorizar a concessão dos
incentivos fiscais deve haver unanimidade entre os representados presentes à sessão. Ou seja,
se para se realizar validamente a reunião depende da presença de 50% (cinqüenta por cento)
mais uma unidade federada; para que seja autorizada a concessão do incentivo fiscal, todos os
representantes presentes devem anuir ao convênio. (ii) Para que sejam revogados os
incentivos já concedidos, quatro quintos dos presentes à reunião devem anuir com o convênio
revogatório; mas ainda assim a reunião somente se realizará validamente com a presença
daquela mesma maioria.
Portanto, o processo concessivo dos incentivos fiscais é mais rígido do que o
processo revogatório, como se depreende dos dispositivos legais precitados.
Concluindo esta parte, pode-se afirmar que a concessão dos incentivos fiscais de
ICMS, por parte dos Estados e do Distrito Federal, é válida se observados os ditames da
precitada Lei Complementar, desde que em consonância com o respectivo fundamento
constitucional que lhe confere validade. Em outros termos, observados os limites materiais e
formais tributários postos pela Constituição e pela Lei Complementar, ter-se-ia por legítima a
concessão dos incentivos fiscais.
Contudo, quer parecer e isso se pretende apontar adiante, ainda que válida a
concessão destes incentivos fiscais nos termos da disciplina tributária, formal ou
materialmente falando, a utilização dos convênios de ICMS, em verdade e obrigatoriamente,
deve levar em conta o todo sistêmico, a fim de garantir sua unidade, ou seja, outros princípios,
valores, limites e matérias constitucionais devem ser levados em conta. É caso das normas de
direito econômico, notadamente a concorrência, a livre iniciativa e a proteção ao consumidor,
cujos argumentos serão desenvolvidos adiante.
164
Esta observância decorre do pressuposto, assentado anteriormente no capítulo
primeiro, de que o sistema jurídico-normativo é uno e, como tal, sua interpretação deve ter
este pressuposto como parâmetro.
Antes, porém, de ingressar na discussão jurídico-econômica sobre o caso, faz-se
mister algumas correlações iniciais, notadamente quanto ao princípio federativo e a
competência tributária, os quais devem ser considerados na elucidação do tema.
4.1.2 Os convênios interestaduais em matéria de ICMS e o princípio federativo
Discorrer sobre os convênios interestaduais em matéria de concessão de incentivos
fiscais de ICMS primordialmente demanda, afora a compreensão interpretativa mínima sobre
o processo de sua elaboração, considerações sobre o princípio federativo, o qual, porque
estrutural do sistema jurídico-político brasileiro, serve de vetor de interpretação para justificar
a opção do Constituinte pelo sistema de deliberação interestadual. Objetivamente pode-se
dizer que a escolha deste sistema pelo constituinte de 1988 teve por escopo sua proteção.
Deste modo, longe de ser desvinculado ao tema, o Federalismo é inerente à contenda
jurídico-tributária e econômica que ora se põe sob análise. Mas antes, algumas considerações
históricas.
A Federação surgiu, inicialmente, nos Estados Unidos da América, por obra da
Constituição de 1787, que, segundo sua percepção, é a forma de Estado fruto da reunião das
unidades políticas autônomas.312 Vê-se, com isto, que o Estado Federal é expressão e
conseqüência do constitucionalismo.
No Brasil, a forma federativa de Estados surgiu com a Proclamação da República,
em 1889, e foi mantida pelas demais Constituições. A Federação é, assim, de irresistível
tradição republicana, fundada, sempre, nas determinações constitucionais. Com sua adoção,
pela Constituição de 1891, portanto, inovou-se mesmo a ordem jurídica nacional, na medida
em que “[...] rompeu com a forma monárquica de Governo, a forma unitária de Estado e o
sistema parlamentar de Governo, para instaurar a República, o Federalismo e o
Presidencialismo, formas políticas sob as quais vivemos”.313
312
313
SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 29. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 99.
HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 56-57.
165
Desde então, afirma-se que todas as constituições brasileiras do período republicano
estabeleceram no Brasil um Estado Federal.314 Entretanto, em interessante consideração, Ana
Cláudia Silva Scalquette, José Luiz Toro da Silva e Tatiana Penharrubia Fagundes pontuam
que a Constituição de 1937, outorgada por Getúlio Vargas e resultante do Estado Novo,
modificou a forma federativa de Estado, levando a um Estado Unitário. Segundo eles, denotase esta característica por duas circunstâncias: (i) o Art. 1° da Constituição de 1937 mencionou
apenas que “O Brasil é uma República”, sem afirmar o federalismo; (ii) concretamente foi
implantada uma estrutura altamente centralizadora, o que acabou por extinguir a relação de
poderes, a representação e os partidos políticos, bem como o próprio federalismo.315
Logo, não há Federação sem Constituição. Sendo assim, por evidente que esta
investigação científica situa-se, no espaço e no tempo, na perspectiva do Brasil pós-1988. Em
conseqüência, é a Federação Brasileira instalada pela Constituição Federal de 1988, com
todas as suas características e peculiaridades, que interessa ao deslinde do tema ora tratado. O
federalismo, portanto, caracteriza-se como princípio jurídico, além de político, conforme
previsão da Constituição Federal, que lhe confere o timbre de estrutura do Estado Brasileiro.
Positivamente, o princípio federativo está previsto já no Art. 1º, caput, da
Constituição de 1988. O dispositivo prescreve que a República Federativa do Brasil é formada
pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal. Entretanto, a leitura
isolada deste dispositivo constitucional não dá a completa caracterização do Estado Federal
Brasileiro. Complementando-a, o Art. 18, caput, do Texto Constitucional, é preclaro em
afirmar que “a República Federativa do Brasil compreende a União, os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios, todos autônomos, nos termos desta Constituição”.
Ainda, não se olvide de que a forma federativa de Estado, como se vê da disposição
contida no Art. 60, §4º, I, da Constituição Federal, caracteriza-se pela sua intangibilidade, isto
é, foi elevada à condição de cláusula pétrea, consistindo, assim, em limitação material ao
exercício do Poder Instituído.316
314
Cf. CARRAZZA, Roque. ICMS. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, , nota de rodapé n. 1, p. 429.
SCALQUETTE, Ana Cláudia Silva; SILVA, José Luiz Toro da; FAGUNDES, Tatiana Penharrubia.
Representatividade dos Estados e Pacto Federativo, in Revista Direito Mackenzie, ano 3, n. 1. São Paulo: Editora
Mackenzie, 2002, p. 284.
316
Sinônimo de Poder Constituinte Derivado. Adota-se porque, terminologicamente, não se pode falar em Poder
Constituinte Derivado, pois o termo “constituinte” dá idéia de início, e, no caso, o Congresso Nacional, ao editar
Emendas Constitucionais, apenas exerce a atribuição já prevista e delimitada pelo Poder Constituinte Originário.
315
166
Da soma destas disposições, inicialmente, tem-se o conteúdo mínimo de significação
e de aplicação do princípio federativo. É, pois, a partir delas que se deve iniciar o processo
exegético para definir o sentido e o alcance da Federação. Em razão disto, com tranqüilidade
pode-se dizer que não há ente federado ou autonomia antes da Constituição; há, sim,
autonomia das entidades federativas nos termos da Constituição.317
Entre outros dados da conformação constitucional conferida ao princípio federativo
pela Constituição Federal de 1988, chama a atenção sua relatividade. Melhor dizendo, a
conformação do Estado Federal é estritamente brasileira, na exata medida fixada pelo
Legislador Constituinte. Humberto Ávila, sobre isto, escreveu recentemente: “O Brasil é uma
República Federativa. Não, porém, uma república federativa qualquer, mas uma réplica
federativa da forma como estabelecida pela CF/88”.318
Corroborando seu pensamento, ele ainda alude às considerações do Supremo
Tribunal Federal sobre o caso, exposta no julgamento da Medida Cautelar em Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 2.024, de relatoria do Ministro Sepúlveda Pertence:
A ‘forma federativa de Estado’ – elevado a princípio intangível por todas
Constituições da República – não pode ser conceituada a partir de um
modelo ideal e apriorístico de Federação, mas, sim, daquele que o
constituinte originário concretamente adotou e, como o adotou, erigiu em
limite material imposto às futuras emendas à Constituição...319 (grifos do
autor).
Esta consideração da Suprema Corte, em tudo se coaduna com a informação
transmitida por Roque Carrazza e à luz da lição de Osvaldo Aranha Bandeira de Mello, de que
inexiste dois Estados Federais absolutamente idênticos, in verbis:
Nenhum Estado se assemelha a outro, de tal forma que se possa dizer que os
seus respectivos regimes sejam idênticos. Eles, quando muito, podem ser
análogos. Para classificar um organismo estático nos quadros da noção
Estado Federal, subsiste a mesma dificuldade. Os Estados que iniciaram o
regime federativo, e que serviriam, portanto, de base para a elaboração das
diversas teorias sobre a natureza jurídica do Estado Federal, são os únicos
317
ÁVILA, Humberto. ICMS. Tratamento diferenciado para produtos oriundos da Zona Franca de Manaus.
Restrições ao crédito por ausência de convênio interestadual. Alíquotas e créditos diferenciados para
mercadorias produzidas no Estado de São Paulo. Exame de Constitucionalidade das restrições, in Revista
Dialética de Direito Tributário, n. 144. São Paulo: Dialética, 2007, p. 66 e ss.
318
ÁVILA, Humberto. ICMS. Tratamento Diferenciado para Produtos Oriundos da Zona Franca de Manaus.
Restrições ao Crédito por Ausência de Convênio Interestadual. Alíquotas e Créditos Diferenciados para
Mercadorias Produzidas no Estado de São Paulo. Exame de Constitucionalidade das Restrições, in Revista
Dialética de Direito Tributário, n. 144. São Paulo: Dialética, 2007, p. 67.
319
Idem, ibidem.
167
que nunca têm contestada a sua estrutura federal. O mesmo não se dá com os
outros países, pois os seus regimes, embora modelados sobre os dos
primeiros, deles sempre se afastam e, muitas vezes, de maneira
importante.320
Tanto isto é verdade que no Brasil convivem a ordem jurídica total (global) e as
ordens jurídicas parciais central e periféricas (estadual, distrital e municipal), diferentemente
de outros países organizados na forma federativa de Estado.
Sobre isto, confira-se a lição de Geraldo Ataliba, sempre acertada:
[...] Na federação compreendem-se três ordens jurídicas distintas: a
coletividade central, as coletividades membros e a comunidade total. As
duas primeiras, no ensinamento de Kelsen, estão, na mesma medida,
subordinadas à ordem jurídica superior, a da comunidade total. São, pois,
juridicamente iguais e parificadas. São ordens jurídicas especiais, pois suas
competências circunscrevem às matérias que lhe são deferidas pela ordem
jurídica total. A ordem jurídica total está na constituição do estado federal.
Sua complementação, na legislação nacional.321
Logo, o princípio federativo caracteriza-se exatamente como delineado pela
Constituição. Mas, enfim, o que é o princípio federativo? Entender seu sentido e alcance,
especialmente neste caso, é deveras imprescindível.
Federação significa a possibilidade de se autogovernar, através das leis e de
autoridade própria.322 Em última análise, federação se confunde com autonomia, que, nos
dizeres de Raul Machado Horta, “é a revelação de capacidade para expedir as normas que
organizam, preenchem e desenvolvem o ordenamento jurídico dos entes públicos”.323
Segundo Geraldo Ataliba, “Federação implica igualdade jurídica entre a União e os Estados,
traduzida num documento (constitucional) rígido, cuja principal função é discriminar
competências de cada qual, de modo a não ensejar violação da autonomia recíproca por
qualquer das partes”.324
320
CARRAZZA, Roque. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros, 2004, p.
116.
321
ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 96-97.
322
CARRAZZA, Roque. ICMS. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 429.
323
HORTA, Raul Machado. Estudos de Direito Constitucional. Belo Horizonte: Del Rey, 1995, p. 426.
324
ATALIBA, Geraldo. Princípio Federal – Rigidez constitucional e Poder Judiciário, in Estudos e Pareceres de
Direito Tributário, v. 3. São Paulo: RT, 1980, p. 9-10.
168
Para além da autonomia, Federação implica também em não-interferência de uma
entidade política em outra, de modo que cada qual detém livre disposição para exercer suas
competências, em todos os âmbitos designados pela Lei Maior.
Em regra, pode-se perceber que as elucubrações acerca do princípio federativo
sempre recaem sobre o mesmo aspecto, sobre a mesma afirmação: autonomia. Que esta é uma
característica inerente ao conceito de federação, não se tem dúvida. Até porque, é a própria
Constituição Federal quem expressamente fixa a autonomia, consoante previsão do Art. 18.
No entanto, esta mesma previsão constitucional faz alusão a algo que tem sido pouco
percebido: a autonomia que impregna a atuação das entidades federativas se dá “nos termos
desta Constituição” (Art. 18, caput, última parte, da Constituição de 1988). Isto corrobora a
asserção anteriormente exposta de que não existe federação e autonomia das entidades
federativas antes ou fora da Constituição, mas, tão-somente, conforme sua disposição.
A conseqüência desta percepção tem influência direta sobre o problema da definição
do sentido e do alcance do princípio federativo, pois na medida em que se o confunde com
uma das suas formas de exteriorização que é a autonomia, isto implica na idéia de que ela
seria ampla e irrestrita, haja vista a primazia e relevância jurídica do primado federativo.
Entretanto, o princípio federativo não se caracteriza apenas pela autonomia. Mas,
mais do que isto, o princípio federativo busca o equilíbrio entre o todo (Estado Federal) e as
partes (as unidades federativas); equilíbrio entre autonomia e uniformidade. O princípio
federativo é o resultado do equilíbrio entre a uniformidade da federação e a diversidade dos
entes federados.325
Traduz-se esta idéia no modelo objetivado pelo Constituinte de 1988, no sentido de
conferir a cada uma das entidades federativas liberdade para se autogovernar, exercendo, cada
uma delas, autonomamente, as competências atribuídas. Porém, de outro lado, esta autonomia
será exercida, como lembrado alhures, nos exatos termos da Constituição, o que importa em
dizer que ainda que sejam autônomas as pessoas federativas, o exercício desta faculdade
jamais poderia resultar em cisão da federação, isto é, deve ser mantida sua unidade.
325
ÁVILA, Humberto. ICMS. Tratamento diferenciado para produtos oriundos da Zona Franca de Manaus.
Restrições ao crédito por ausência de convênio interestadual. Alíquotas e créditos diferenciados para
mercadorias produzidas no Estado de São Paulo. Exame de Constitucionalidade das restrições, in Revista
Dialética de Direito Tributário, n. 144. São Paulo: Dialética, 2007, p. 66.
169
Ora, a unidade nacional decorre da soberania do Estado Federal. A soberania
apresenta-se indivisível e, por isso, do ponto de vista global, somente o Estado federal é
soberano, os entes da federação não são soberanos e sim autônomos.
A respeito, ensina Michel Temer:
Ela (soberania) faz com que, no plano jurídico, inexistam Estados maiores
ou menores, fortes ou fracos, mais ou menos importantes. Iguala-os a todos,
pois, em nível externo, não reconhece nenhum poder superior ao seu.
Reconhece-os iguais. Admite, pois, os demais Estados. Ou seja, entrevê
neles a soberania.326
Além da unidade, outra conseqüência que advém da Federação é a igualdade jurídica
entre os entes federativos, do que decorre a vedação de conflito ou mesmo qualquer tipo de
preferência entre eles.
Portanto, reafirmando o que já se consignou, é a Constituição quem dita os lindes e a
estrutura do princípio federativo. É ela quem traça os meios de garanti-lo; de preservar suas
características e também as entidades que compõem a Federação. E isto ela o faz, dentre
outras maneiras, através da outorga de competências, em especial na seara tributária e
econômica, o pano de fundo desta investigação.
Mas em que sentido o princípio federativo e seus reflexos na sistemática tributária
relacionam-se ao tema da concessão de incentivos fiscais por parte do Estados-membros? Esta
pergunta perde, em certa medida, seu mistério pela exposição pura e simples de uma
expressão: Federalismo Fiscal. O princípio federativo assume tamanha relevância para a
questão tributária no Brasil que se cunhou, inclusive, um termo próprio para designar o
aspecto da contenda, isto é, ainda que se trate de análise federativa, esta tem como pano de
fundo as normas tributárias, principalmente no que tange ao exercício da competência
tributária e seu reverso, a competência exoneratória – cuja correlação com o tema será
abordada no item subseqüente.
Entretanto, deve-se ter em mente que
[...] O significado do princípio federativo surge, primeiramente, quando as
outras normas que com ele mantém conexão semântica já tiverem sido
analisadas. (...) Não há, pois, princípio federativo, de um lado, e regras de
competência, de outro, como se fossem entidades separadas e pudessem ser
326
TEMER, Michel. Elementos de Direito Constitucional. 9. ed. São Paulo: Malheiros, 1993, p. 56.
170
interpretadas em momentos distintos. O que há é um princípio federativo
resultante da conexão com as regras de competência, e regras de
competência devidamente interpretadas de acordo com princípio
federativo.327
Ou seja, não se pode afirmar que as entidades federativas são livres, absolutas e
plenamente autônomas, sem antes se consignar os termos e limites desta significação. Além
disso, não se olvide de que a autonomia das entidades federativas encontra delimitação fixada
de forma expressa e clara pelo próprio Texto Constitucional – originário, obviamente, porque
as disposições fixadas via poder reformador são, nos termos do citado Art. 60, §4º, I, da
Constituição 1988, inconstitucionais –, em casos onde o constituinte, objetivando proteger o
princípio federativo, porém nas suas vertentes de igualdade jurídica entre as entidades
federativas e vedação de conflito entre ambas, valeu-se de expedientes a ela limitativos.
Exemplo disto é o caso ora em análise: a previsão do Art. 155, §2º, XII, “g”, da
Constituição Federal, da necessidade da edição de Lei Complementar para regular a forma
como os Estados-membros e o Distrito Federal deliberarão a respeito da concessão de
incentivos fiscais de ICMS. Ora, se estas entidades federativas são autônomas e, nestes
termos, recebeu da própria Constituição a competência tributária para legislar sobre o ICMS,
incluso neste comando também a disciplina da exoneração do imposto, então, porque a
necessidade de lei complementar nacional estabelecer a forma como estas pessoas políticas
exercerão um das parcelas de sua competência constitucional?
A resposta é muito simples: promover e assegurar o princípio federativo, pelo
equilíbrio entre a autonomia das entidades federativas e a igualdade jurídica entre elas,
mantendo-se a uniformidade federativa.
Esta necessidade imprescindível de equilíbrio entre autonomia e uniformidade
prestigiada e protegida pelo legislador constituinte tem na Lei Complementar um de seus
mecanismos principais, notadamente em virtude da evidente existência de “guerra fiscal”
entre os Estados da federação. O princípio federativo é, portanto, fundamental neste tema,
pois é o valor que justifica a eleição, pelo Constituinte, do mecanismo de edição da lei
complementar nacional como meio necessário ao legítimo exercício da competência tributária
pelas entidades federativas regionais.
327
ÁVILA, Humberto. Sistema Constitucional Tributário... 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 137.
171
Não que as pessoas políticas tenham sua competência tributária perdida ou
diminuída. Elas são autônomas e, por isto, pode exercer livremente esta autonomia, desde que
observadas as regras constitucionais. Porém, inolvidável que não pode causar desarmonia
federativa, ou seja, Federação supõe harmonia e unidade entre o todo e as partes; e entre estas.
Logo, a autonomia que as entidades federativas possuem encontra limitação da
uniformidade da federação e também na igualdade jurídica entre elas. Da autonomia jamais
poderá resultar em desarmonia ou preferência entre as unidades federativas.
A autonomia não pode ser interpretada como um preceito individual e isolado dentro
do sistema jurídico. Neste ponto, a velha máxima, truística hoje em dia, da interpretação
sistemática é de extrema relevância. Ou seja, na perfeita metáfora de Geraldo Ataliba, “[...] A
contemplação da árvore, não pode toldar a visão da floresta [...]”, isto é, não se pode
interpretar este ou aquele dispositivo constitucional isoladamente, como se não estivesse
inserido em um sistema, o qual exige uma interpretação harmônica de todas as suas normas,
em consonância com seus princípios.328 O mesmo ocorre com a compreensão do sentido do
princípio federativo e seus reflexos sobre a competência tributária.
Como em uma Federação todas as unidades federativas são iguais, isto é, recebem o
mesmo tratamento jurídico; e todas elas detêm competência legislativa para disciplinar os
temas cometidos pela Constituição, então, do exercício desta faculdade constitucional não
pode influir sobre a liberdade legislativa de outra, instaurando o conflito entre as entidades,
sob pena de quebra da uniformidade federativa e ofensa à igualdade entre elas, soçobrando
um dos alicerces do sistema: o princípio federativo.
É bem verdade que aos Estados e ao Distrito Federal foi atribuída competência
tributária sobre o ICMS, incluídos os poderes tanto para instituição do imposto como sua
exoneração. Contudo, por ser imposto de conformação nacional, a conseqüência é que a
disciplina deste tributo reflete em todo o território nacional, interessando individualmente a
cada uma das demais entidades federativas.
Neste sentido, revela-se evidente: a concessão de incentivos fiscais de ICMS, por
parte das entidades tributantes detentoras desta competência, para que efetivamente observe o
328
ATALIBA, Geraldo. Convênios Interestaduais e imposto sobre circulação de mercadorias, in Revista dos
Tribunais, n. 422, agosto de 1972. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 309.
172
princípio federativo deve resultar do equilíbrio entre a autonomia que cada qual possui e a
uniformidade federativa.
Isto acontece porque, concretamente, do exercício da competência tributária por
parte de uma entidade federativa, outra pode ter sua autonomia tolhida, instaurando, assim, a
desarmonia federativa. Daí a necessidade de uma especial manifestação de vontade das outras
unidades da federação para que uma delas (ou algumas) possa efetivamente exercer sua
autonomia legislativa.
Ou seja, a disciplina constitucional do Art. 155, §2º, XII, “g”, objetiva garantir
uniformidade à federação pela atribuição de igualdade jurídica entre as entidades federativas.
Para tanto, o preceito confere à Lei Complementar – de caráter nacional – a atribuição de
disciplinar a forma como os incentivos fiscais em matéria de ICMS serão autorizados através
de deliberação conjunta dos entes federados interessados.
Repita-se: por este meio, garante-se a unidade federativa, pelo igual tratamento
jurídico dispensado a cada uma delas, sem que isto importe em vedação de sua autonomia
legislativa. Em suma, proteção ao princípio federativo.
Mas que fique claro: não é a lei complementar em si o mecanismo criado pelo
sistema jurídico para garantir o princípio federativo em casos como os tratados neste tópico
do trabalho. O instrumento de substancial relevância para que os Estados e o Distrito Federal
possam conceder incentivos fiscais de ICMS é o convênio interestadual. Esta a forma
encontrada pela Lei Complementar para fazer valer o comando do Art. 155, §2º, XII, “g”.
É ele, portanto, quem desempenha, diretamente, a função de equilibrar a autonomia
das entidades federativas com a uniformidade da federação; manter o equilíbrio entre todo e
parte. Enfim, assegura a manutenção da Federação.
A celebração dos convênios interestaduais autorizando que os Estados e o Distrito
Federal concedam incentivos fiscais de ICMS atende, enfim, à necessidade de equilíbrio entre
autonomia e uniformidade; entre os interesses do todo e da parte. Assegura, assim, que as
pessoas políticas detentoras da mesma atribuição legislativa, a exerça livremente (autonomia),
nos termos da Constituição, mas sem afrontá-la e ao interesse do Estado, promovendo a
harmonia e a unidade da Federação. Enfim, os convênios interestaduais são necessários para
garantir que todas as entidades federativas mantenham a igualdade jurídica entre si.
173
4.1.3 Os convênios interestaduais em matéria de ICMS e a competência tributária
A Constituição Federal de 1988 delineou de modo rígido e pormenorizado as
competências legislativas tributárias conferidas a cada uma das entidades federativas. Esta
minuciosa atribuição, distribuída entre a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
permite afirmar, com tranqüilidade, que a completude do Sistema Tributário Brasileiro passa
pelo altiplano constitucional.
A definição da competência tributária, no entanto, não se forma apenas pela
prescrição de normas positivas de atribuição, isto é, que fixam quais os conteúdos facultados
às entidades federativas. Mas às normas constitucionais com esta característica somam-se
aquelas com timbre negativo, isto é, as que limitam o alcance das primeiras.
Significa, por outros termos, que competência é o resultado da ligação entre
autorização e limitação, como já afirmara José Souto Maior Borges. Disse ele:
[...] Sem esse consórcio, nenhuma competência. Só a autorização não pode explicá-la,
porque não há norma positiva com âmbito de validade ilimitado. Só a proibição deixa
igualmente incompleta a norma, porque não saberá o seu destinatário como conduzir-se
diante dela. Só estar proibido é ser a rigor incompetente.329
Por isto, quando Roque Carrazza afirma que a competência tributária “é a aptidão
para criar, in abstracto, tributos, descrevendo, legislativamente, suas hipóteses de incidência,
seus sujeitos ativos, seus sujeitos passivos, suas bases de cálculo e suas alíquotas”,330 há
referência ao resultado da autorização e da limitação de que fala José Souto Maior Borges.
Neste sentido, competência tributária é faculdade legislativa atribuída às pessoas políticas.
Dentre outras características, a privatividade e a indelegabilidade são inerentes à
competência tributária, como observa Roque Antonio Carrazza. Elas significam,
sinteticamente, que as pessoas políticas que somente e tão-somente a pessoa política que
tenha recebido a outorga constitucional pode legislar a respeito, além de lhe ser vedado
qualquer transferência ou delegação a outras pessoas para tratar do tema.331
329
SOUTO MAIOR BORGES, José. Incentivos Fiscais e Financeiros, in Revista Trimestral de Direito Público,
n. 08. São Paulo: Malheiros, 1986, p. 91.
330
CARRAZZA, Roque Antonio. Curso de Direito Constitucional Tributário. 20. ed. São Paulo: Malheiros,
2005, p. 449.
331
Idem, ibidem, p. 463 e ss.
174
Os Estados e o Distrito Federal, por obra do Art. 155, II, da Constituição Federal, são
as entidades federativas aptas a legislar acerca do imposto incidente sobre operações relativas
à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e
intermunicipal e de comunicações, ainda que as operações e as prestações iniciem no exterior,
conhecido como ICMS.
Conjugando esta previsão constitucional com as idéias expostas inicialmente sobre a
competência tributária, conclui-se que são estas entidades federativas quem detêm
competência tributária para legislar sobre o ICMS.
Esta outorga de ‘poder tributário’ deferida aos Estados e ao Distrito Federal, por
parte da Constituição, pressupõe a existência de duas parcelas de poder: a de onerar, via
instituição do tributo, e a de desonerar, via concessão de incentivos fiscais. Isto é, a
competência tributária subentende a existência concomitante da competência exoneratória.
Pensar diferente seria um sem sentido jurídico, na medida em que não seria possível imaginar
que os Estados e o Distrito Federal detenham a atribuição para instituir o tributo, mas, de
outro lado, não possui condições para diminuí-lo ou extingui-lo.
Em matéria de ICMS, o constituinte se preocupou largamente com a disciplina
jurídico-constitucional do imposto, tamanha sua importância para os Estados e o Distrito
Federal e também para a República. Isto se revela pela extensão e minudência com que foi
redigido o Art. 155, §2º, da Constituição de 1988.
4.1.4 Os convênios interestaduais em matéria de ICMS e o princípio da livre concorrência
Ficou assentado anteriormente que a Constituição Federal de 1988 conferiu ao
Estado Brasileiro atribuição interventiva econômica sob duas perspectivas: direta e indireta.332
Na ótica da intervenção indireta do Estado sobre o domínio econômico, o Estado, como
agente normativo e regulador da atividade econômica, exercerá, na forma da lei, as funções de
fiscalização, incentivo e planejamento, a teor do Art. 174, caput, da Constituição de 1988.
Quer dizer que cabe a ele instituir as políticas públicas necessárias à promoção do
desenvolvimento socioeconômico nacional, conforme os objetivos fundamentais previstos no
Art. 3º da Constituição de 1988.
332
Cf. item 2.3, supra.
175
A instauração das políticas de intervenção sobre o domínio econômico editadas pelo
Estado ainda que visem a realizar as funções previstas no precitado dispositivo constitucional,
devem fundar-se na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, com o objetivo de
assegurar a todos existência digna, conforme os ditames de justiça social, e observar, dentre
outros, o princípio da livre da concorrência, consoante Art. 170, IV, da Constituição Federal.
Sendo assim, em que sentido deve-se compreender o termo “Estado” como o agente
propulsor do desenvolvimento socioeconômico? Os Estados-membros e o Distrito Federal
estão autorizados, pela Constituição a intervir sobre o domínio econômico? Onde figuram,
neste contexto, os convênios interestaduais de ICMS? Qual a correlação entre os convênios
interestaduais de ICMS e o princípio da livre concorrência, um dos vetores da Ordem
Econômica? Estes problemas serão respondidos adiante.
De início, deve-se evidenciar que a intervenção sobre as atividades econômicas não é
competência privativa cometida ao Estado Brasileiro unicamente, isto é, no sentido de que
somente a ordem jurídica total detém competência para tanto. Quando a Constituição dita que
ao Estado cabe exercer, na forma da lei, a atribuição de agente normativo e regulador,
funcionando como incentivador, fiscalizador e planejador das atividades econômicas, quis ela
significar que estas prerrogativas são de competência do Poder Público em geral, de todas as
esferas políticas, mediantes todos os órgãos e mecanismos de que disponham. Em suma, o
termo “Estado” foi utilizado em sentido lato.
Em conseqüência, para melhor definir o alcance e o sentido do Art. 174 da
Constituição, quanto ao delineamento da competência para as atribuições ali definidas, ele
deve ser interpretado de forma conjunta com a previsão do Art. 24, I, da Constituição Federal,
que prescreve ser competência concorrente da União, dos Estados e do Distrito Federal
legislar sobre direito econômico. Ou seja, a disciplina da intervenção do Estado sobre o
domínio econômico compete às entidades federativas em geral, de acordo com o seu âmbito
de interesse: nacional, regional ou local.
A partir destes enunciados prescritivos tem-se por evidente que os Estados-membros
e o Distrito Federal, como entidades federativas competentes para tratar do direito econômico,
deverão exercer as funções de incentivo, fiscalização e planejamento das atividades
econômicas em seus respectivos territórios já que agentes normativos e reguladores, a fim de,
em
última
análise, atuar
com
vistas
à
realização
dos
objetivos
fundamentais
176
constitucionalmente previstos. Por isto o alerta: a promoção dos objetivos fundamentais não é
um dever cometido exclusivamente ao ente político central, a União, porquanto esta é uma
preocupação e mesmo um dever da República Federativa do Brasil, isto é, da ordem jurídica
global e das ordens jurídicas parciais, vale dizer, do todo e das partes.
Entretanto, considerando toda a gama de mecanismos jurídicos-políticos de que
dispõem os Estados e o Distrito Federal para realizar o seu dever constitucional de fomentar
os objetivos fundamentais da República, a figura dos incentivos fiscais e financeiro-fiscais
assume extrema relevância. São eles, pois, que consistem nos instrumentos mais eficazes de
que estas entidades federativas dispõem para incrementar as atividades econômicas no seu
âmbito territorial e, assim, promover o desenvolvimento socioeconômico regional.
Neste sentido, concorda Maria de Fátima Ribeiro: “Com as funções econômicas do
Estado intervencionista, alguns tributos ganham cada vez mais conteúdos de extrafiscalidade,
regulando o mercado conforme as políticas monetárias, industriais, comerciais e
redistributivas”.333 Ou seja, pela utilização destes expedientes os Estados e o Distrito Federal
atraem novas empresas, estimulam e fomentam as atividades econômicas já existentes,
diversificam a matriz econômica pela orientação da alocação dos investimentos privados, tudo
no intuito de promover seu desenvolvimento socioeconômico.
Evidencia-se, portanto, que a concessão dos incentivos fiscais de ICMS é
instrumento de grande importância e de máxima eficácia para tais fins. Ou seja, percebe-se
que as normas jurídicas tributárias – como, ademais, todo o Direito – são meios de
modificação do status quo; servem de mecanismo de que dispõem as entidades federativas
estaduais e distrital para incentivar o desenvolvimento social e econômico em sua região.
Neste contexto, tem-se o ponto de intersecção entre a Constituição Tributária e Constituição
Econômica, o que permite a análise ora pretendida.
Assim, os Estados e o Distrito Federal quando legislam para conceder incentivos
fiscais relativos ao ICMS, mais do que exercício de competência tributária com vistas à
realização de fim meramente arrecadatório, esta atuação tem finalidade extrafiscal, ou seja,
pela redução do encargo tributário pretende-se a realização de um objetivo constitucional que
naquele momento revela-se mais importante do que apenas arrecadar receitas públicas.
333
RIBEIRO, Maria de Fátima. Os 40 Anos da Zona Franca de Manaus e a Importância dos Incentivos Fiscais
para o Desenvolvimento Econômico e Social da Região. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, RAMOS FILHO,
Carlos Alberto de Moraes, PEIXOTO, Marcelo Magalhães [coord.]. Tributação na Zona Franca de Manaus:
(Comemoração aos 40 anos da ZFM). São Paulo: MP Editora, 2008, p. 334.
177
Contudo, inolvidável que estas considerações devem ser vistas contextualmente
dentro sistema jurídico, pois a legitimidade jurídica deste expediente depende da observância
da ordem jurídica como um todo sistemático e unitário, isto é,
Disso decorre a necessidade de consideração coordenada dos diversos
mandamentos, necessariamente conciliáveis, em suas exigências. Sabe o
jurista que não deve obedecer a um só comando jurídico de cada vez, mas
que inúmeros comandos devem ser atendidos concomitante e
conjugadamente.334
A previsão do Art. 155, §2º, XII, “g” da atual Constituição revela, de plano, a sua
finalidade: evitar a “guerra fiscal” e manter a unidade federativa do Estado Brasileiro. Esta é a
percepção usual, o lugar comum.
Entretanto, a pretensão desta investigação é dar um enfoque distinto do que
geralmente ocorre. O objetivo é analisar a figura dos convênios interestaduais em matéria de
concessão de incentivos fiscais de ICMS a partir do subsistema normativo que é a Ordem
Econômica, especialmente quanto ao princípio da livre concorrência. Ou seja, mais do que
uma visão meramente tributária, a análise sob a ótica do direito econômico é necessária e
imprescindível, haja vista a lição já consignada de unidade do sistema jurídico.
Os convênios interestaduais firmados nos termos da Constituição Federal são claras
normas tributárias indutoras. Funcionam, assim, como medida de intervenção indireta do
Estado sobre o domínio econômico, segundo lição de Luís Eduardo Schoueri. Como
conseqüência, é de bom alvitre que eles sejam analisados sob os auspícios dos princípios de
Direito Econômico em conjunto com os primados tributários a eles relacionados. Diz o autor:
[...] a inclusão das normas tributárias indutoras como medida de intervenção
indireta do Estado sobre o Domínio Econômico impõe a investigação de
princípios de Direito Econômico, sejam eles limitadores da intervenção
estatal, sejam eles seus propulsores. Tais princípios devem ser aplicados em
conjunto com aqueles classicamente identificados com as normas tributárias,
qual feixes que interceptam na norma tributária indutora, cujo regime
jurídico apenas se pode definir a partir da somatória de seus efeitos.335
Estas idéias decorrem, em larga medida, da concepção plural e sistemática que se
tem do ordenamento jurídico, onde há uma especial e íntima relação entre a Constituição
334
ATALIBA, Geraldo. Convênios Interestaduais e imposto sobre circulação de mercadorias, in Revista dos
Tribunais, n. 422, agosto de 1972. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1972, p. 309-310.
335
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 37.
178
Econômica e o Sistema Constitucional Tributário336, os quais se influenciam reciprocamente.
Neste aspecto que se evidencia o timbre interventor sobre o domínio econômico assumido
pelos convênios interestaduais celebrados nos termos da Lei Complementar n. 24/75 e da
previsão do Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição Federal.
Como mecanismo de manifestação conjunta dos Estados e do Distrito Federal em
matéria de concessão de incentivos fiscais de ICMS, seu objetivo típico é evitar a guerra fiscal
entre as unidades federativas. Porém, entrevê-se neste expediente o viés de regulação jurídica
do mercado, principalmente com vistas à proteção da livre concorrência.
Tércio Sampaio Ferraz Jr. teve a percepção – correta, diga-se de passagem – de
considerar o mecanismo criado pelo Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição Federal um
instrumento que para além de impedir a “guerra fiscal”, tem conseqüências claras e diretas
para a concorrência. Para ele, a concessão de incentivos fiscais distorcidos, deferido
unilateralmente pelos Estados ou pelo Distrito Federal, em regra
[...] engendra uma distorção na concorrência que, presumidamente, o ICMS
evita. Ou seja, os concorrentes de outros Estados-membros estariam
obrigados, em face dos incentivos desnaturados, a enfrentar uma situação de
competitividade desequilibrada pela quebra de uma estrutura comum. As
piores vítimas de incentivos distorcidos por medidas que reduzem ou
eliminam o ônus dos impostos são os agentes econômicos eficientes.337
Luís Eduardo Schoueri, ao comentar o tema, traz informação relevante a corroborar a
idéia. Segundo ele, há uma pesquisa feita por Sérgio Prado e Carlos Eduardo G. Cavalcanti,
com enfoque da perspectiva econômica ontológica, onde se conclui que:
[...] nas condições hoje vigentes em termos de arranjo federativo, a guerra
fiscal como mecanismo de orientação da alocação dos grandes blocos de
investimento é um processo perverso, controlado integralmente pelas
empresas privadas e que leva à maximização do custo fiscal associado à
implementação de cada projeto.338
Deve-se lembrar que os princípios norteadores da Ordem Econômica, previstos no
Art. 170, da Constituição, orientam, em matéria econômica, tanto a atuação do particular
336
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 38.
337
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Guerra Fiscal, Fomento e Incentivo na Constituição Federal. In: SCHOUERI,
Luís Eduardo e ZILVETTI, Fernando Aurélio [coord.]. Direito Tributário: Estudos em Homenagem a Brandão
Machado.São Paulo: Dialética, 1998, p. 281.
338
Apud SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 95.
179
como do próprio Estado. Assim, por estes magnos princípios, o Estado, quando explorador
das atividades econômicas, e o particular submetem-se a sua disciplina. Estão, pois,
condicionando a intervenção do Estado no domínio econômico – dita intervenção direta do
Estado nas atividades econômicas.
O outro viés de atuação dos princípios da Ordem Econômica recai sobre o
direcionamento da atuação do Estado como agente normativo e regulador. Esta atribuição lhe
foi cometida pela Constituição justamente para interferir sobre o mercado e o livre processo
econômico-produtivo quando necessário a corrigir suas distorções.339 Em regra, esta
intervenção se dá via edição de normas jurídicas, as quais condicionam o comportamento dos
agentes do mercado. É a intervenção estatal indireta sobre a economia.
Logo, é neste último segmento que atuam as normas jurídicas tributárias com fins
extrafiscais, as quais direcionam-se a regular o mercado econômico. Nesta senda, o Estado
deve observar as prescrições advindas dos princípios da Ordem Econômica, sendo
inescapável a este regramento, portanto, a concessão dos incentivos fiscais de ICMS por parte
das entidades federativas estaduais, pois, via desoneração tributária, eles têm a precípua
finalidade de estimular e atrair investimentos econômicos, ou seja, seu propósito será sempre
fomentar o surgimento de relações jurídicas de cunho econômico.340
Deste modo, implica em afirmar que os Estados-membros e o Distrito Federal, ao
conceder incentivos fiscais de ICMS via regramento jurídico-tributário, não pode resultar em
afronta
àqueles
magnos
princípios
jurídico-econômicos.
Ao
contrário,
deve-lhes
subserviência. Nesta perspectiva, os princípios constitucionais econômicos conferem
limitação de conteúdo ao exercício da competência exoneratória – cuja limitação formal é
imposta pelo Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição de 1988.341
Por conseguinte, conclui-se que a inobservância, por parte dos Estados e do Distrito
Federal, quanto à prévia e necessária deliberação conjunta e conseqüente celebração de
convênios interestaduais que autorizem a concessão de benefícios fiscais, além de ser
formalmente inconstitucional, na medida em que ofende ao preceito contido no Art. 155, §2º,
339
Sobre a correção das falhas dos mecanismos de mercado, Cf. SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias
Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro: Forense, 2005, p. 72-78.
340
Cf. definição proposta por CATÃO, Marcos André Vinhas. Regime Jurídico dos Incentivos Fiscais. Rio de
Janeiro: Renovar, 2004, p. 13.
341
Sobre o caráter meramente formal da disciplina contida no Art. 155, §2º, XII, “g”, da Constituição Federal de
1988, Cf. CHIESA, Clélio. ICMS – Sistema Constitucional Tributário: algumas inconstitucionalidades da LC
87/96. São Paulo: LTr, 1997, p. 168.
180
XII, “g”, da Constituição, ainda implica em inconstitucionalidade material, por ofensa direta
ao princípio da livre concorrência, além, obviamente, da clara afronta ao Pacto Federativo.
Livre concorrência, como visto, significa livre competição entre as empresas;
liberdade de forças do mercado na disputa pela clientela.342 Sendo assim, cada agente
econômico alcança sua parcela do mercado por conta de sua eficiência, seus méritos próprios.
A concessão dos incentivos fiscais de ICMS cria uma facilidade aos agentes econômicos, pois
suprime o imposto, influenciando diretamente na formação do preço.
Ocorre que, este expediente, veiculado de forma unilateral por uma entidade
federativa, isto é, sem a anuência dos demais entes políticos, ofende o princípio da livre
concorrência na medida em que interfere indevidamente nos mecanismos do mercado, criando
uma distorção no custo das operações de circulação de mercadorias ou na prestação dos
serviços, pela supressão indevida de impostos, favorecendo, assim, os agentes econômicos
menos eficazes pela quebra de uma estrutura que lhes é comum. Vale dizer, confere distinção
jurídica entre aqueles que estão na mesma condição jurídico-formal, resultando no vício de
inconstitucionalidade material.
Neste sentido, deve-se lembrar que a livre concorrência é o mecanismo
constitucional de proteção do mercado; e este, por sua vez, recebeu especial atenção da
Constituição de 1988, seja porque a Lei Maior adotou expressamente, da perspectiva
econômica, o modelo de economia de mercado, isto é, de livre iniciativa, consoante Art. 1º,
IV; seja porque, sabendo de sua importância e cônscio de que o bem-estar geral da população
dele depende, na medida em que viabiliza o desenvolvimento cultural e socioeconômico, o
constituinte se preocupou em conferir-lhe o status de patrimônio nacional, a teor do Art. 219,
da Constituição de 1988.
Assim, como princípio fundamental da Ordem Econômica, a livre concorrência atua
em duas frentes: ora serve de padrão a ser estimulado, tendo em vista a opção constitucional
pela economia de mercado; ora limita a atuação do Estado e dos particulares, haja vista
garantir a liberdade que encerra.
É neste último aspecto que a livre concorrência serve de limitação à concessão de
incentivos fiscais de ICMS pelas entidades federativas sem a anuência das demais. Ou seja, os
342
Cf. PETTER, Lafayette Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica – O significado e o alcance
do art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 221 e ss.
181
Estados e o Distrito Federal, mediante o mecanismo dos incentivos fiscais concedidos sem a
celebração dos convênios interestaduais, cria favorecimento desmedido às empresas que
atuam em seu território, o que gera distorção no mercado e cria um desequilíbrio na
concorrência. E isto, como se vê, é inconstitucional por ofensa à livre concorrência.
Veja-se, por fim, que aos Estados e ao Distrito Federal cabe exercer as funções de
incentivo, fiscalização e planejamento das atividades econômicas, como acima externado.
Entretanto, não se pode esquecer que no contexto do sistema jurídico-normativo, ainda que
objetive incentivar o incremento das atividades econômicas e dos investimentos em suas
regiões, isto deve se dar conforme as regras do ordenamento. Enfim, a pretexto de cumprir um
comando constitucional, de forma alguma deve descumprir outros. É justamente a
observância das regras constitucionais que confere unidade ao sistema jurídico e, no caso em
tela, fundamenta-lhe a validade.
4.2 O SIMPLES NACIONAL NA PERSPECTIVA DA ORDEM ECONÔMICA E A
GARANTIA DA LIVRE CONCORRÊNCIA
Como se sabe, recentemente o Congresso Nacional editou a Lei Complementar n.
123, de 14 de dezembro de 2006, cuja ementa oficial enuncia a instituição do “Estatuto
Nacional da Microempresa e Empresa de Pequeno Porte”, além de dar outras providências.
Referida legislação ficou popularmente conhecida como a lei do “Simples Nacional” ou
“Super Simples”, em virtude do especial e favorecido tratamento tributário dispensado às
microempresas e empresas de pequeno porte.
Entretanto, uma análise mais detida sobre o texto da lei complementar em questão
permite a verificação de que seu conteúdo é muito maior do que a mera instituição de um
regime tributário diferenciado e favorecido concedido às empresas que se caracterizem como
de micro ou pequeno porte. Em verdade, o tratamento jurídico favorecido e diferenciado
conferido pela Lei Complementar n. 123/2006 alcança, além da tributação, questões de ordem
civil, comercial, trabalhista, previdenciária, processual e administrativa.
Pelo tratamento que foi dispensado às empresas de menor porte econômico de modo
intenso pelo Legislador Constituinte como pelo infraconstitucional; pela legislação atual
como pela anterior; tanto em nível federal como no âmbito dos Estados e Municípios
182
brasileiros, fica evidente a pretensão do Estado Brasileiro: fomentar e proteger as
microempresas e as empresas de pequeno de porte.
Obviamente que tudo isto não é algo destituído de um fim constitucional que
permita, de modo puro e simples, o tratamento privilegiado destas empresas em detrimento
das demais. Ou seja, o tratamento diferenciado recebido pelas microempresas e empresas de
pequeno porte não é o fim em si, mas, diversamente, constitui-se em meio para a realização e
o alcance de objetivos maiores, fundamentais para o Estado Brasileiro.
Por isto, é possível dizer que existem fins imediatos e mediatos a justificar o
tratamento diferenciado e favorecido dispensado às microempresas e às empresas de pequeno
porte. Imediatamente, pela intervenção indireta do Estado sobre o domínio econômico no
exercício da função de incentivo, via extrafiscalidade tributária, o fim é o favorecimento e o
fortalecimento das micro e pequenas empresas, porquanto pilares, princípios primordiais da
Ordem Econômica, consoante Art. 170, IX, da Constituição de 1988.
Indiretamente, por outro lado, pelo incentivo às empresas de menor poder econômico
que se realiza os objetivos fundamentais e também os próprios fundamentos da República. A
idéia que permeia a edição da Lei Complementar n. 123/2006 é muito simples: via tratamento
jurídico diferenciado concedido às microempresas e empresas de pequeno porte, com a
concessão benefícios de toda ordem e a simplificação da burocracia visando o lícito
desenvolvimento de atividades econômicas deste porte, consegue-se a formalização de
negócios econômicos de pequena monta que, em virtude dos excessos burocráticos da
legislação brasileira não se desenvolveria, ou se desenvolveria informalmente, e, ao mesmo
tempo, labora de modo direto no fomento do desenvolvimento nacional (Art. 3º, II, da
Constituição Federal), na erradicação da pobreza e redução das desigualdades (Art. 3º, III, da
Constituição Federal); e promove a dignidade da pessoa humana pela valorização do seu
trabalho (Art. 1º, incisos III e IV; e Art. 170, caput¸ da Constituição de 1988), porque gera um
maior número de empregos formais.
Em síntese, o surgimento da Lei Complementar n. 123/2006 é conseqüência da
implementação de políticas públicas no intuito de promover o desenvolvimento
socioeconômico nacional. Para tanto, incentivam-se as microempresas e as empresas de
pequeno porte, que consistem em uma das forças motrizes do mercado econômico, cuja
importância fora detectada pelo Constituinte de 1988.
183
A intenção trazida por detrás das normas jurídicas veiculadas pela lei complementar
em tela é inquestionável e legítima, do ponto de vista jurídico e mesmo econômico.
Entrementes, em razão do novel arcabouço jurídico trazido a lume, ela já surge cercada de
muitas polêmicas. Algumas delas, obviamente, advêm desde outros tempos, notadamente por
conta da legislação anterior – Lei n. 9.317/96; outras, no entanto, ainda precisam ser debatidas
e aprofundadas frente às inovações ora positivadas.
São discussões de cunho jurídico que se devem a diversos fatores: desde problemas
relativos à competência legislativa, às formalidades legislativo-constitucionais, mas,
principalmente, de definição de sentido, de conteúdo, de alcance e de aplicabilidade, tendo em
vista a amplitude considerável do novo regramento. Neste sentido, Leonardo Loubet destacou
com perspicácia a necessidade de prudência do intérprete do direito no enfrentamento das
questões que surgirem com base na novel legislação, razão pela qual, diz ele, “[...] é de
importância sobranceira contextualizar a nova lei ao sistema posto, indo à raiz dos
fundamentos do ordenamento jurídico, pois, sendo lei, por óbvio, que esse veículo normativo
deve se harmonizar à Carta Constitucional”.343
É justamente em razão deste alerta que se desenvolve este estudo nos termos como
elaborado. Considerando as modificações promovidas pela Lei Complementar 123/2006 e a
diversidade das normas jurídicas com os mais diversos conteúdos por ela veiculada, abordarse-á apenas alguns dos pontos normativamente tratados, os quais são arbitrariamente eleitos
com vistas ao tema desenvolvido nesta investigação científica.
Isto só é possível em virtude da evidente natureza interventiva assumida pela Lei
Complementar n. 123/2006, cuja característica é claramente extrafiscal, indutora de
comportamentos por parte dos agentes econômicos sujeitos a sua disciplina jurídica.
4.2.1 O Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte e o Simples
Nacional: há diferença?
Para responder ao problema que nomeia esta seção, obrigatoriamente deve-se tomar
por ponto de partida uma outra pergunta, relacionada à Lei n. 9.317/96 e à Lei n. 9.841/99:
qual a diferença entre a Lei Complementar n. 123/2006 e as citadas leis ordinárias federais?
343
LOUBET, Leonardo Furtado. Comentários aos artigos 1º e 2º da LC 123/2006. In: HENARES NETO, Halley
(coord.). Comentários à Lei do Supersimples – LC 123/2006. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 21.
184
Em princípio, seria suficiente dizer que a lei complementar traz em seu bojo a
disciplina jurídica que antes estava espalhada, dentre outras, nas Leis n. 9.317/96 e 9.841/99.
Ocorre, entretanto, que ela criou um novo regime jurídico para as micro e pequenas empresas,
fixando um cenário de novidades jurídicas com reflexos sobre diversos “ramos” do direito,
dentre outros: o trabalhista, o comercial, o administrativo e o tributário. Enfim, criou o
chamado “Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte”, que nada
mais é do que o universo jurídico criado pelos enunciados prescritivos que fixam o tratamento
favorecido e diferenciado a estas empresas nas mais diferentes áreas do Direito.
Assim, verifica-se a diferença existente entre o “Estatuto Nacional das
Microempresas e Empresas de Pequeno Porte” e o “Simples Nacional”: este é apenas parte
daquele. O primeiro é a disciplina completa e integral das empresas de menor potencial
econômico, que abarca todas as normas jurídicas veiculadas pela lei, refletindo nos mais
diversos “ramos” do direito. O segundo é a parte que fixa o “Regime Especial Unificado de
Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de
Pequeno Porte”, isto é, disciplina a tributação desta categoria empresarial.
Portanto, há entre eles uma relação entre todo e parte. O tratamento jurídico
favorecido e diferenciado decorre justamente da instauração da Lei Complementar 123/2006 e
da entrada em vigor do “Estatuto Nacional das Micro e Pequenas Empresas”, em razão da
simplificação de diversas obrigações das empresas de micro e pequeno porte econômico.
Dentre as obrigações simplificadas, são as relações jurídicas tributárias que receberam maior
atenção do legislador, tendo em vista o grande número de dispositivos que tratam do tema, os
quais determinam os limites de aplicação do “Simples Nacional”.
A verificação da distinção entre o Estatuto Nacional das Microempresas e das
Empresas de Pequeno Porte e o Simples Nacional permite afirmar a existência de
fundamentos jurídico-constitucionais diversos para cada um deles. Em verdade, os preceitos
contidos no Art. 170, IX e no Art. 179, ambos da Constituição de 1988, conferem amplo
fundamento de validade à lei complementar em questão, possibilitando desde o
estabelecimento do regime tributário simplificado até a concessão de certos benefícios no
âmbito das licitações públicas. Enfim, são previsões econômico-normativas de amplo alcance.
Por outro lado, dentro deste contexto, o Simples Nacional, isto é, todo o regime
jurídico-tributário instalado pela Lei Complementar n. 123/2006 a partir do Art. 12, não retira
185
seu fundamento de validade diretamente das disposições fixadas constitucionalmente no
capítulo da Ordem Econômica, mas, sim, em essência, dos arts. 146, III, “d” e 37, XXII, da
Constituição, os quais foram acrescentados pela Emenda Constitucional n. 42/2003.
Isto ocorre porque a disciplina tributária instaurada pelo Simples Nacional é muito
mais do que mera simplificação das obrigações tributárias; traçou-se um regime unificado de
arrecadação de tributos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos
Municípios. Quer dizer: em razão do âmbito nacional desta idéia, os preceitos constitucionais
do Art. 170, IX e do Art. 179 não se revelam suficientes a fundamentá-lo, daí porque somente
possível este modelo de tratamento justributário diferenciado a partir da inserção daqueles
dispositivos positivados pela Emenda Constitucional n. 42/2003.
Esta percepção não escapou à análise que Leonardo Loubet fez sobre os primeiros
dois artigos da Lei Complementar n. 123/2006. Segundo ele:
Pelo que se vê, a previsão constitucional anterior era, apenas, para que se
desse um tratamento diferenciado às microempresas e às empresas de
pequeno porte. Não havia previsão de unificação de tributos ou atuação
integrada entre os Fiscos Federal, Estaduais e Municipais. Assim, cada
entidade federativa, dentro do seu plexo de competências, era responsável
por dispensar um regramento jurídico benéfico às pequenas empresas,
especialmente em relação aos seus tributos.
Contudo, com a EC 42/03 descortinou-se um novo horizonte, na medida em
que o constituinte reformador permitiu uma atuação conjugada entre as
administrações tributárias dos entes federados, admitindo, inclusive, um
regime unificado de arrecadação e recolhimento das suas respectivas
exações, o que cria, inegavelmente, um novo paradigma a ser enfrentado.344
Enfim, sem os dispositivos constitucionais inseridos pela Emenda Constitucional
42/2003, e apenas com base nas disposições originais dos arts. 170, IX e 179 seria
inconstitucional, por exemplo, a unificação de apuração e arrecadação tributária, por afronta
às competências das entidades federativas.345 Como a Lei Complementar estabeleceu uma
atuação conjunta entre elas, criou-se, parafraseando o precitado autor, inegavelmente um novo
paradigma a ser enfrentado.
344
LOUBET, Leonardo Furtado. Comentários aos artigos 1º e 2º da LC 123/2006. In: HENARES NETO, Halley
(coord.). Comentários à Lei do Supersimples – LC 123/2006. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 22.
345
Entretanto, a constitucionalidade do Art. 146, III, “d”, acrescido pela Emenda Constitucional 42/2003 é, em
certa medida, duvidosa. Apesar do necessário e constitucionalmente determinado favorecimento dispensado às
micro e pequenas empresas, a fixação do sistema “Simples Nacional” não ofende a competência tributária das
entidades políticas, o que importaria em afronta ao princípio federativo, na medida que se tem um outro padrão
de arrecadação de tributos, baseado inclusive em fatos jurídicos distintos? Esta pergunta precisa ser analisada e
respondida, porém, não aqui, por conta do enfoque desta investigação.
186
Forte nestas considerações, conclui-se que a Lei Complementar n. 123/2006 pode ser
dividida entre a disciplina tributária (mais extensa) e as normas de conteúdo não-tributário,
isto é, cível, comercial, trabalhista, administrativo e processual.
Deste modo, considerando a existência de distintos dispositivos constitucionais
suficientes a validar juridicamente o conteúdo da lei complementar em questão, então é
prudente expor algumas considerações sobre cada um deles em separado.
4.2.2 Os fundamentos constitucionais da Lei Complementar n. 123/2006
Para melhor visualizar os fundamentos constitucionais que sustentam a validade da
Lei Complementar n. 123/2006 e, por conseqüência, do Estatuto Nacional das Microempresas
e Empresas de Pequeno Porte, entendeu-se por bem separá-los a fim de fazer as considerações
individualizadas sobre eles.
Demais disto, há uma questão temporal e outra de conteúdo que os envolve.
Temporal, porque há dispositivos – como é o caso dos arts. 170, IX e 179 – que vieram no
bojo do texto original da Constituição de 1988, ao passo que aqueles preceitos que
fundamentam o regime tributário unificado – os arts. 37, XXII e 146, III, “d” – foram
inseridos através do constituinte reformador, via Emenda Constitucional n. 42/2003. De
conteúdo, porque, em verdade, as disposições originais são amplas e abertas, de cunho
principiológico, servindo de vetor para a atuação geral do legislador infraconstitucional; já as
previsões dos dispositivos acrescentados pela emenda constitucional direcionam-se
especificamente ao ramo da tributação, fixando regras com conteúdo tributário.
4.2.2.1 As previsões do Texto Constitucional Original: o Art. 170, IX e o Art. 179
De antemão, os preceitos constitucionais ora em exame estão positivados no Texto
Constitucional exatamente no mesmo ponto: Título VII – Da Ordem Econômica e Financeira;
Capítulo I – Princípios Gerais da Atividade Econômica. Assim, sua transcrição é relevante:
Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e
na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme
os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: [...] IX –
tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as
leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
187
Art. 179. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios
dispensarão às microempresas e às empresas de pequeno porte, assim
definidas em lei, tratamento jurídico diferenciado, visando a incentivá-las
pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias,
previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio
de lei.
A previsão constitucional é evidente: a concessão de tratamento jurídico diferenciado
às microempresas e empresas de pequeno porte constitui-se em princípio vetor da Ordem
Econômica. Junto com os demais princípios que orientam o domínio econômico, o tratamento
favorecido dispensado às empresas de menor porte trabalha em favor da garantia da livre
iniciativa e da valorização do trabalho humano, fins da Ordem Econômica e fundamentos da
República Federativa do Brasil. Ou seja, como todos os demais princípios que regem a Ordem
Econômica, este não é um fim em si, mas, como já aventado, é meio para a consecução de
outros fins. Está, portanto, em consonância com o telos constitucional.
Portanto, a correlação entre este princípio da ordem econômica e os fundamentos e
objetivos fundamentais da República é evidente.
De igual maneira, ele também serve à máxima realização da Ordem Econômica, de
modo que não pode ser interpretado e compreendido isoladamente. Por detrás desta outorga
constitucional privilegiando-o, há, minimamente, dois escopos muito evidentes a serem
assegurados: garantia de igualdade e de livre iniciativa, via proteção da concorrência,
enquanto objetivos da Ordem Jurídico-Econômica. Neste sentido, destaca André Elali:
O que visa o princípio em tela é à própria manutenção do equilíbrio
concorrencial, como objetivo da ordem econômica. Num mercado em que
grandes e pequenos concorrentes se sujeitam à mesma regra, a concorrência
nunca será aquela proposta pela Constituição, isto é, os pequenos serão
sempre prejudicados. E isso é contrário à própria noção de livre
concorrência, isonomia, pois o tratamento igual se dá entre iguais.346
Luís Eduardo Schoueri, a sua vez, anota que mais do que a concretização da livre
concorrência e garantia de livre iniciativa, este princípio ventila a idéia de igualdade vertical,
na medida em que resulta em um tratamento diferenciado para aqueles que se encontram em
situação distinta. Entretanto, ele faz um alerta, na conclusão da idéia: “Por óbvio que o
favorecimento encontra limite na própria diferenciação, não podendo ir além do necessário
346
ELALI, André. Tributação e Regulação Econômica – um exame da tributação como instrumento de
regulação econômica na busca da redução das desigualdades regionais. São Paulo: MP Editora. 2007, p. 92.
188
para o delicado equilíbrio entre os agentes do mercado, sob pena de não se atender o
desiderato constitucional da livre concorrência”.347
Para Lafayette Josué Petter, por outro lado, este é um “[...] princípio constitucional
impositivo, de caráter conformador, não se configurando, entretanto, uma diretriz ou normaobjetivo. Ele fundamenta a reivindicação de políticas públicas pelas empresas de pequeno
porte”.348 A afirmação se concretiza na Lei Complementar n. 123/2006 ora em análise.
Antes de prosseguir, um breve parêntese para expor duas observações pertinentes: (i)
o Art. 170, IX, da Constituição alude apenas ao tratamento favorecido conferido às empresas
de pequeno porte, sem se referir às microempresas e nem detalhar como – via normas
jurídicas - isso se materializaria; (ii) o Art. 179, da Constituição, por sua vez, é mais
detalhista, na medida em que pormenoriza os entes federativos competentes para legislar
sobre o tratamento jurídico diferenciado, alude às micro e pequenas empresas, delimita a
função incentivadora a ser exercida pelo Estado e fixa que a diferenciação jurídica se efetivará
via simplificação das obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias.
No entanto, posto que a disposição do Art. 170, IX seja mais restrita do que a do Art.
179, em verdade, a interpretação entre os dispositivos deve ser conjugada e sistemática,
complementando uma à outra, até porque integrantes e indissociáveis, no fim das contas, da
mesma Constituição, vista em sua completude. Além disto, ambos os dispositivos estão
contidos no mesmo capítulo constitucional – dos Princípios Gerais da Atividade Econômica e, portanto, detém o mesmo objetivo.
Esta, portanto, a ratio legis dos preceptivos constitucionais analisados, que, enfim,
devem ser entendidos como “tratamento favorecido e diferenciado às microempresas e
empresas de pequeno porte” que se realizará por meio da simplificação das obrigações
administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias com o objetivo de incentivá-las.
Compreensão distinta seria contrária ao espírito da Constituição.
Aliás, a percepção da busca da ratio legis é sempre relevante, como, ademais, ensina
Miguel Reale, com a argúcia de sempre:
347
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 101.
348
PETTER, Lafayette Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica – O significado e o alcance do
art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 263.
189
O princípio diretor do jurista, segundo os romanos, é a ratio juris, cabendolhe indagar de cada circunstância a sua ratio, a fim de estabelecer sua
medida, sua regula – a ratio juris determina a regula juris.
Em sentido inverso, quando a regula juris já é dada, a interpretação não pode
se fixar apenas nos elementos literais ou gramaticais, porque deverá procurar
atingir o espírito, a ratio legis. Foram estes elementos que habilitaram o
povo romano a constituir as categorias da Ciência Jurídica.349
Em conclusão, estas disposições constitucionais econômicas justificam o tratamento
diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte.
Este discrímen determinado constitucionalmente decorre da condição fática desigual na qual
se encontram estas empresas no seio do domínio econômico, por conta do seu pequeno porte
econômico, o que, per se, é fortemente restritivo da garantia de liberdade de iniciativa e de
concorrência, isto é, de acesso e de manutenção no mercado, que a Constituição tanto protege.
Logo, é por esta situação fática diferenciada que se autoriza a discriminação em
favor das micro e pequenas empresas, via tratamento jurídico favorecido e menos burocrático.
4.2.2.2 A Emenda Constitucional n. 42 de 2003 e a inserção do Art. 37, XXII e do Art. 146,
III, “d”, à Constituição de 1988
Originariamente, a Constituição Federal referia-se ao tratamento jurídico favorecido
a ser dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte através dos artigos
comentados no item anterior. Entretanto, com a promulgação da Emenda Constitucional n. 42,
de 19 de dezembro de 2003, outros dispositivos foram inseridos ao Texto Constitucional: o
Art. 37, XXII e o Art. 146, III, “d” e parágrafo único. Ambas disposições com reflexos diretos
sobre o Sistema Tributário Brasileiro.
Em síntese, o Art. 37, inciso XXII positivou em sede constitucional a dignidade das
administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, bem
como previu a possibilidade de atuação integrada e o compartilhamento de cadastros e
informações fiscais entre as unidades da Federação, como se vê do preceito, in verbis:
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência e, também, ao seguinte: [...] XXII – as administrações tributárias
da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades
349
REALE, Miguel. Filosofia do Direito. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 508.
190
essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras
específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e
atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros
e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio.
Em verdade, este dispositivo não trouxe nenhuma novidade ao sistema jurídicotributário brasileiro, na medida em que a troca de informações fiscais e a assistência mútua
entre as administrações tributárias das entidades federativas já possuíam previsão normativa
desde a edição do Código Tributário Nacional, em 1966, conforme Art. 199, o qual prescreve:
“A Fazenda Pública da União e as dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios prestarse-ão mutuamente assistência para a fiscalização dos tributos respectivos e permuta de
informações, na forma estabelecida, em caráter geral ou específico, por lei ou convênio”.
Tem importância para o tema o acréscimo da alínea “d” e do parágrafo único, ao
inciso III do Art. 146 da Constituição de 1988. Referido dispositivo prevê que:
Art. 146. Cabe à lei complementar: [...] III – estabelecer normas gerais em
matéria de legislação tributária, especialmente sobre: [...] d) definição de
tratamento diferenciado e favorecido para as microempresas e para as
empresas de pequeno porte, inclusive regimes especiais ou simplificados no
caso do imposto previsto no art. 155, II, das contribuições previstas no art.
195, I e §§ 12 e 13, e da contribuição a que se refere o art. 239.
Parágrafo único. A lei complementar de que trata o inciso III, d, também
poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e
contribuições da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios,
observado que: I – será opcional para o contribuinte; II – poderão ser
estabelecidas condições de enquadramento diferenciadas por Estado; III – o
recolhimento será unificado e centralizado e a distribuição da parcela de
recursos pertencentes aos respectivos entes federados será imediata, vedada
qualquer retenção ou condicionamento; IV – a arrecadação, a fiscalização e a
cobrança poderão ser compartilhadas pelos entes federados, adotado cadastro
nacional único de contribuintes.
Colhe-se do dispositivo algumas reflexões. Primeiro, se antes da Emenda
Constitucional n. 42/2003 o tratamento favorecido e diferenciado dispensado às
microempresas e às empresas de pequeno porte haviam recebido a insígnia de princípio
constitucional da Ordem Econômica, nos termos dos artigos anteriormente analisados, com o
acréscimo do Art. 146, III, “d”, elas passaram diretamente ao centro das atenções do Sistema
Constitucional Tributário Brasileiro.
Pelo comando do Art. 179 da Constituição de 1988, cada unidade federativa deveria
incentivar as empresas de menor porte econômico mediante a simplificação das obrigações de
191
natureza administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, concedendo-lhes tratamento
jurídico favorecido e diferenciado. Com a inserção do Art. 146, III, “d” e do parágrafo único,
fixou-se dentro do Sistema Constitucional Tributário Brasileiro que a definição do sistema
simplificado de apuração e recolhimento de tributos dos três âmbitos de poder político seria
regulado via lei complementar, pela edição de normas gerais em matéria tributária. Em outras
palavras, concedeu-se ao Estado Brasileiro, pela edição de lei nacional, a disciplina do tema
na seara tributária.
Em segundo lugar, o parágrafo único do Art. 146 também permitiu a instituição de
regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da União, dos Estados, do Distrito
Federal e dos Municípios no cerne da lei complementar definidora do tratamento jurídicotributário favorecido e diferenciado dispensado às micro e pequenas empresas, desde que
observadas algumas condições previstas nos incisos I a IV do citado parágrafo único. Pode-se
dizer que o citado dispositivo assentou um regime nacional de arrecadação de tributos, haja
vista a atribuição cometida ao Estado Federal Brasileiro.
As condições impostas pelo constituinte à instituição do regime tributário unificado,
veiculadas nos incisos I a IV do parágrafo único do Art. 146 da Constituição de 1988, são ,
em súmula: (i) a faculdade de o contribuinte optar pela novel sistemática de arrecadação; (ii) a
possibilidade de cada Estado da federação fixar condições diferenciadas de enquadramento ao
regime único; (iii) unificação, centralização e distribuição dos recursos arrecadados
pertencentes aos respectivos entes federados sem qualquer tipo de restrição ou condição; e
(iv) a possibilidade de adoção de cadastro nacional único de contribuintes e o
compartilhamento da arrecadação, da fiscalização e da cobrança do tributo pelos entes
federados.
Dentre as condições fixadas nos dispositivos ora referidos, chama atenção a questão
do compartilhamento, entre as entidades federativas, da arrecadação, fiscalização e cobrança
dos tributos, pois podem recair em novos conflitos federativos, alterando mesmo a
organicidade do sistema. Neste ponto, lembra Leonardo Loubet que:
[...] a competência administrativa de arrecadação e fiscalização de tributos
da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, muito embora delegável,
por força da Lei Complementar nº 123/2006 acabou por ser fundida,
tornando-se uma só, por intermédio da propalada unificação, ao menos em
relação à sistemática do Simples Nacional.
192
Esse aspecto é relevantíssimo, pois, agora, poderá ocorrer não só conflitos de
competência legislativa, como também conflitos de competência
administrativa. [...].350
Portanto, estas são as disposições constitucionais que fundamentam a instalação do
novel Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas
Microempresas e Empresas de Pequeno Porte – Simples Nacional.
4.2.3 As inovações jurídicas promovidas pela Lei Complementar n. 123 de 2006: alguns
pontos relevantes
A entrada em vigor da Lei Complementar n. 123, de 14 de dezembro de 2006,
estabeleceu um marco jurídico importante no cenário tributário e econômico brasileiro. Do
ponto de vista tributário, implementou o regime único de arrecadação de tributos federais,
estaduais e municipais, simplificando, assim, as obrigações tributárias principal e acessórias
cometidas às microempresas e empresas de pequeno porte. Na seara econômico-normativa,
ela positivou concretamente o princípio constitucional que determina a concessão de
tratamento favorecido às empresas de menor potencial econômico, mediante a simplificação
das obrigações tributárias, administrativas, previdenciárias e creditícias.
Se, por um lado, a reforma realizada pela Lei Complementar n. 123/2006 trouxe
benefícios concretos ao setor empresarial de micro e pequeno porte, de outra mão, esta
sistemática tocou em diversos conceitos já consolidados, notadamente no âmbito tributário, o
que impõe uma análise comedida e detalhada. Entretanto, não se pode olvidar que, conquanto
rígido o sistema tributário brasileiro, porque exaustivamente disciplinado pela Constituição de
1988, também é certo que se deve coadunar as interpretações sobre seus dispositivos com as
evoluções e necessidades sociais, sem descuidar, por óbvio, da observância das regras básicas
do sistema jurídico, em especial da hierarquia constitucional.
Em razão disto, os estudos devem ser realizados com atenção redobrada,
considerando a rigidez e exaustividade com que o sistema jurídico-tributário brasileiro restou
plasmado pela Constituição de 1988.
350
LOUBET, Leonardo Furtado. Comentários aos artigos 1º e 2º da LC 123/2006. In: HENARES NETO, Halley
(coord.). Comentários à Lei do Supersimples – LC 123/2006. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 24.
193
Por óbvio que a Lei Complementar n. 123/2006 não cuidou apenas da questão
tributária, senão também de regras de natureza civil, administrativa, processual, trabalhista,
comercial e outras mais. Estas inovações todas objetivam, enfim, facilitar e promover o
desenvolvimento econômico das microempresas e empresas de pequeno porte no Brasil. É
pelo tratamento jurídico diferenciado e favorecido a elas dispensado que se as incentiva e
protege. Isto reflete a dignidade constitucional que lhes foi deferida, e consagra a importância
que estas categorias empresariais tem no seio econômico e social. Ou seja, desvelam sua
relevância no cenário socioeconômico nacional.
Demais disto, é a Lei Complementar n. 123/2006 lei de caráter nacional, isto é,
legislação editada pelo Estado Federal, cuja normatização transcende as circunscrições
políticas internas, obrigando a todos quantos estejam no território nacional.351
Por tudo isto, as inovações – ao menos as que se tem por relevantes – trazidas pela
lei complementar serão discutidas adiante, para, ao depois, tentar situá-las no contexto da
análise concorrencial, como resultado de uma análise a partir do regime jurídico resultante do
entrelaçamento entre normas jurídicas tributárias e as econômicas; ou seja, a partir daquele
feixe de regras jurídicas posicionadas na intersecção do Sistema Constitucional Tributário
com a Ordem Econômica.
4.2.3.1 O alcance do Art. 1º da Lei Complementar n. 123 de 2006
Registradas as considerações propedêuticas, cumpre discorrer sobre alguns pontos da
Lei Complementar n. 123/2006. De começo, deveras relevante conhecer o sentido e alcance
do seu Art. 1º, que consiste, basicamente, no preceito definidor de toda a disciplina do
Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, revelando de antemão o
que se encontrará ao longo do seu texto.
Prescreve o dispositivo que:
Art. 1º Esta Lei Complementar estabelece normas gerais relativas ao
tratamento diferenciado e favorecido a ser dispensado às microempresas e
empresas de pequeno porte no âmbito dos Poderes da União, dos Estados, do
Distrito Federal e dos Municípios, especialmente no que se refere: I – à
apuração e recolhimento dos impostos e contribuições da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, mediante regime único de
arrecadação, inclusive obrigações acessórias; II – ao cumprimento de
351
Cf. ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 94-95.
194
obrigações trabalhistas e previdenciárias, inclusive obrigações acessórias; III
– ao acesso a crédito e ao mercado, inclusive quanto à preferência nas
aquisições de bens e serviços pelos Poderes Públicos, à tecnologia, ao
associativismo e às regras de inclusão.
Ab initio, é necessário o desenvolvimento de uma questão de ordem semântica.
Segundo o Art. 1º da Lei Complementar n. 123/2006, o tratamento a ser dispensado às
empresas de micro e pequeno porte será “diferenciado” e “favorecido”. No âmbito jurídico,
este discurso não é novo. Lembre-se apenas que a Lei n. 9.317/96 já previa o tratamento
diferenciado e favorecido às empresas de menor potencial econômico.
Embora tenham na linguagem coloquial sentidos diversos, juridicamente, e no
contexto do Estatuto Nacional da Microempresa e da Empresa de Pequeno Porte, o tratamento
“diferenciado” é sinônimo de tratamento “favorecido”. Vale dizer, há uma redundância no
termo, pois sempre que a lei dispensa um regime jurídico favorecido a um sujeito de direito,
ela está conferindo-lhe um tratamento diferenciado, na medida em que não fixa as mesmas
regras de direito para sujeitos com as mesmas características e atribuições. Isto decorre, em
verdade, das condições fáticas e subjetivas que cada qual detém. Mas, principalmente, é
conseqüência do princípio da igualdade, que, segundo Rui Barbosa, reeditando as lições de
Aristóteles, significa tratar os iguais, na medida de suas igualdades, e os desiguais, na medida
de suas diferenças.352
Afirma-se, nestes termos, que utilização seqüencial das expressões “diferenciado” e
“favorecido”, em verdade, encerra um pleonasmo, considerando que, da perspectiva jurídica,
sempre que se conceder a distinção do favorecimento a algum sujeito, haverá, obviamente, a
dispensa de um tratamento favorecido.353
No caso das microempresas e empresas de pequeno porte, o recebimento da distinção
quanto ao tratamento jurídico que lhes confira um favorecimento decorre justamente da
posição de inferioridade econômica e da menor condição fático-econômica que elas detêm
frente às empresas ditas comuns, com maior poderio econômico. Por isto a distinção jurídica.
Prosseguindo na análise do Art. 1º, destaca-se o fato de seu caput referir-se ao
estabelecimento de “normas gerais” a respeito do tratamento diferenciado e favorecido a ser
352
BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. São Paulo: Martin Claret, 2003, p. 20.
Cf. LOUBET, Leonardo Furtado. Comentários aos artigos 1º e 2º da LC 123/2006. In: HENARES NETO,
Halley (coord.). Comentários à Lei do Supersimples – LC 123/2006. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 28-29.
353
195
dispensado às microempresas e empresas de pequeno porte. Segundo o Art. 146, III, “d”, da
Constituição de 1988, carece de lei complementar as normas gerais tributárias que fixem o
tratamento jurídico favorecido e diferenciado às micro e pequenas empresas.
Entretanto, a Lei Complementar n. 123/2006 não trata apenas de matéria tributária,
senão também de regras com conteúdos de naturezas jurídicas diversas: civil, comercial,
trabalhista, administrativa, processual, etc., as quais retiram seu fundamento de validade das
previsões do Art. 170, IX e do Art. 179, e não daquele preceito insculpido no Art. 146, III,
“d”, todos da Constituição de 1988, haja vista este preceito tratar apenas de matéria tributária.
Logo, tomando-se por base os fundamentos constitucionais, tem-se por evidente que
somente as regras jurídicas com timbre tributário podem ser tidas por “normas gerais” e, bem
por isto, é a lei complementar o veículo legislativo adequado para sua edição, nos termos do
artigo constitucional recém-referido. Por conseguinte, as demais disposições normativas, de
natureza não-tributária, porque não assume a característica de “normas gerais”, prescindiriam
de veiculação pela via da lei complementar. Em outros termos, tem-se no bojo da Lei
Complementar n. 123/2006 regras jurídicas dos mais diversos matizes, algumas de reserva
constitucional desta forma legislativa, e outras, não.
Neste ponto, lúcida e esclarecedora a previsão do Art. 86, o qual afirma que “As
matérias tratadas nesta Lei Complementar que não sejam reservadas constitucionalmente a lei
complementar poderão ser objeto de alteração por lei ordinária”.
Leonardo Loubet, percebendo esta distinção, anotou que:
Isto só acontece porque a competência para legislar sobre direito tributário é
concorrente, como se infere do artigo 24, I, da CF, enquanto que todos os
outros “ramos” do direito (civil, comercial, trabalhista, penal, processual)
são de competência exclusiva da União, tal qual previsto no artigo 22, I, da
Carta da República. Além disso, a maioria das hipóteses em que é necessária
a edição de lei complementar está ligada à tributação, algo que também não
acontece com outros segmentos jurídicos.
Daí a confusão: enquanto no direito civil, no direito comercial, no direito do
trabalho, no penal ou no direito processual tudo é resolvido através de lei
ordinária federal, no direito tributário a competência é concorrente,
exigindo-se, também, lei complementar em uma série de circunstâncias.354
354
LOUBET, Leonardo Furtado. Comentários aos artigos 1º e 2º da LC 123/2006. In: HENARES NETO, Halley
(coord.). Comentários à Lei do Supersimples – LC 123/2006. São Paulo: Quartier Latin, 2007, p. 27.
196
Conclui-se, ademais, que não poderiam as regras de natureza não-tributária serem
compreendidas como “normas gerais”, porquanto inaceitável e juridicamente impossível que
seja veiculada tal espécie normativa para quem detém a competência privativa para legislar
sobre o tema. É o caso das normas de cunho civil, comercial, trabalhista e processual, de
competência privativa da União, que, ao legislar sobre estes temas, disciplina o
comportamento tanto dos particulares como das demais entidades federativas, razão pela qual
não lhe caberia editar “normas gerais” a serem observadas pelas demais pessoas políticas,
pois a observância da disciplina de suas regras é ínsita a privatividade de sua competência.
Porém, contrariando parcialmente a colocação do precitado autor, quando diz que as
regras de feição civil, comercial, trabalhista e processual são resolvidas via lei ordinária
“federal”, entende-se que todas elas são regras de âmbito nacional e não federal, ainda que
prescindam da forma complementar e não se caracterizem como normas gerais. Em verdade,
não é isto que lhe confere o timbre do alcance nacional, mas, sim, a circunstância de dirigir-se
a todos quantos estejam no território nacional, independentemente de quaisquer vinculações a
esta ou àquela pessoa política, regulando seus comportamentos, inclusive das próprias pessoas
federativas.355 Está-se seguindo, neste ponto, a precisa lição de Geraldo Ataliba, que afirma:
É, com efeito, nítido o campo das leis nacionais: as civis, comerciais, penais,
etc. são leis brasileiras, ordenatórias do comportamento de todos no território
nacional, abstração feita da circunstância – para este efeito – irrelevante de
vincularem-se a esta ou àquela pessoa política, residirem aqui ou ali, serem
administrados desta ou daquela entidade. Os códigos civil e penal obrigam o
presidente da República ou qualquer lavrador, o amazonense ou o
campineiro, o militar e o estrangeiro. Tudo isto não importa, como nem nada
se altera a questão se o destinatário da norma for munícipe desta ou daquela
cidade, ou cidadão de um outro Estado.356
Ou seja, as obrigações civis, comerciais, trabalhistas, etc. simplificadas por esta lei
complementar, conquanto não consistam em normas gerais, nem sejam matérias reservadas à
lei complementar, são previsões de cunho nacional, devendo ser assim tratadas.
Afora estas observações, percebe-se, essencialmente, a existência de três distintos
universos normativos tratados no Art. 1º, conforme seus incisos I a III. Estes, no entanto,
devem ser compreendidos em conjunto com os demais dispositivos da lei, pois, ao longo da
legislação, estabelece-se o regime jurídico próprio e correlacionado a cada um de seus
conteúdos normativos. Evidentemente que também deverá estar em consonância com o
355
356
Cf. ATALIBA, Geraldo. Sistema Constitucional Tributário Brasileiro. São Paulo: RT, 1968, p. 94-95.
Idem, ibidem, p. 94-95.
197
sistema constitucional, pois, por ser lei, seus comandos necessariamente devem respeito às
normas do altiplano constitucional.
No primeiro inciso, faz-se referência direta ao “Simples Nacional”, isto é, ao regime
tributário único de arrecadação e recolhimento de impostos e contribuições da União, dos
Estados, do Distrito Federal e dos Municípios. Por sua vez, são as previsões dos arts. 12 a 41
da lei em tela que fixam todo o regime jurídico do “Simples Nacional”.
Aludidos dispositivo tratam exaustivamente da sistemática do Simples Nacional, isto
é, desde os tributos que são abrangidos pelo regime único de arrecadação (Art. 13); as
vedações de ingresso ao sistema simplificado (Art. 17); a forma de cálculo do tributo a ser
recolhido, pela fixação de bases de cálculo e das alíquotas (Art. 18); outras formalidades, tais
como a forma de recolhimento (Art. 21), o repasse das receitas decorrentes da arrecadação
(Art. 22), créditos fiscais (arts. 23 e 24) e as obrigações acessórias (arts. 25 a 27); e ainda as
situações excludentes do “Simples Nacional” (arts. 28 a 32). Além disso, por óbvio, veicula
normas relativas à fiscalização (Art. 33), omissão de receitas (Art. 34), acréscimos legais
(arts. 35 a 38), o processo administrativo fiscal (Art. 39) e o processo judicial (arts. 40 e 41).
Já no inciso II do Art. 1º da Lei Complementar n. 123/2006, por outro lado, há a
previsão de simplificação no cumprimento das obrigações trabalhistas e previdenciárias,
inclusive quanto aos deveres formais que a elas se relacionam. Os pormenores relativos a este
universo normativo estão regulados nos arts. 50 a 54, sendo que os arts. 51 e 52 trazem
especificamente os contornos dos procedimentos relativos às obrigações trabalhistas que são e
que não são dispensados de adimplemento por parte da categoria empresarial de menor porte.
Interessante notar, por sua vez, que o Art. 53 da Lei Complementar n. 123/2006
trazia o tratamento especial concedido em sede de obrigações previdenciárias, concedendo-se
às microempresas e empresas de pequeno porte alguns benefícios. Porém, com a edição da
Lei Complementar n. 127/2007 referida disposição foi revogada, de modo que inexiste,
atualmente, tratamento favorecido relativo às obrigações previdenciárias.
Por fim, o inciso terceiro estabelece o tratamento jurídico favorecido que viabilize
para as microempresas e empresas de pequeno porte o acesso ao crédito e ao mercado, em
especial no que se refere à preferência nas aquisições de bens e serviços pelos Poderes
Públicos, à tecnologia, ao associativismo e às regras de inclusão. O regramento jurídico
relativo ao acesso ao mercado vem integralmente previsto nos arts. 44 a 49, os quais tratam de
198
fixar as preferências e privilégios que as empresas situadas nesta categoria econômica
possuem em detrimento das demais no âmbito das contratações com o poder público em geral.
Apesar da amplitude desta previsão legal, quanto à diversidade normativa, a seara
que parece deter maior importância e, como espécie, tem se confundido com o gênero, é
justamente a questão tributária, ou seja, o Simples Nacional, que é apenas parte do Estatuto
Nacional das Micro e Pequenas Empresas, como outrora referido.
Por esta razão, e considerando sua importância também para a Ordem Econômica, o
Simples Nacional merece atenção e análise individualizada. Entretanto, antes de abordá-lo, é
relevante consignar alguma palavras sobre a definição de microempresa e empresa de
pequeno porte, conforme o Art. 3º da Lei Complementar n. 123/2006.
4.2.3.2 Breve exame acerca da definição de microempresa e empresa de pequeno porte
A Constituição Federal de 1988, desde sua promulgação, sempre conferiu especial
atenção às microempresas e empresas de pequeno porte. Contudo, o constituinte de 1988 teve
o cuidado – acertado – de atribuir ao legislador infraconstitucional a missão de definir, para os
fins jurídicos, o que vem a ser uma microempresa ou uma empresa de pequeno porte.
Neste sentido, o Art. 179 da Constituição Federal de 1988 sempre foi claro: a
definição desta categoria empresarial é atribuição da lei, entendida como o veículo primário
de introdução de normas editado pelo Poder Legislativo via procedimento legislativo
ordinário – ou seja, a lei ordinária.
Por conta da outorga constitucional, desde a edição da Lei n. 9.317/96, que instituiu
o Simples Federal, tem optado o legislador infraconstitucional por definir uma microempresa
ou uma empresa de pequeno porte tomando por base o valor da receita bruta auferida ao longo
do ano-calendário – o exercício financeiro que vai de 1º de janeiro a 31 de dezembro.
Neste aspecto, a Lei Complementar n. 123/2006 não foi diferente, segundo
enunciado do Art. 3º, que estabelece, in verbis:
Art. 3º Para os efeitos desta Lei Complementar, consideram-se
microempresas ou empresas de pequeno porte a sociedade empresária, a
sociedade simples e o empresário a que se refere o art. 966 da Lei no 10.406,
de 10 de janeiro de 2002, devidamente registrados no Registro de Empresas
Mercantis ou no Registro Civil de Pessoas Jurídicas, conforme o caso, desde
199
que: I – no caso das microempresas, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela
equiparada, aufira, em cada ano-calendário, receita bruta igual ou inferior a
R$ 240.000,00 (duzentos e quarenta mil reais); II – no caso das empresas de
pequeno porte, o empresário, a pessoa jurídica, ou a ela equiparada, aufira,
em cada ano-calendário, receita bruta superior a R$ 240.000,00 (duzentos e
quarenta mil reais) e igual ou inferior a R$ 2.400.000,00 (dois milhões e
quatrocentos mil reais).
A empresa que auferir receita bruta dentro dos limites dos incisos I e II do Art. 3º
serão consideradas micro ou pequenas empresas para os efeitos desta lei complementar, com
vistas ao enquadramento ao Simples Nacional, à simplificação quanto ao cumprimento de
obrigações trabalhistas e previdenciárias ou mesmo para o acesso a crédito e ao mercado,
inclusive quanto à preferência nas aquisições de bens ou serviços pelo poder público.
Portanto, deve-se ficar claro que o acesso ao tratamento favorecido dispensado pela
Lei Complementar n. 123/2006 tem como base primária o enquadramento aos limites de
obtenção de receita bruta ao longo do ano-calendário, nos termos do comentado artigo.
Entretanto, cada um dos diferentes subsistemas normativos específicos que a aludida lei
complementar veicula, fixa – ou pode fixar – outras condições de inclusão. Exemplo disto são
as limitações positivadas pelos arts. 17 e 28 a 32 da referida lei complementar no âmbito do
sistema unificado de recolhimento de tributos – Simples Nacional.
Aqui reside o dissenso, pois há muito se tem questionado se poderia a lei discriminar
dentre as microempresas e empresas de pequeno porte, ou seja, aquelas que tem receita bruta
anual nos limites máximos da lei, quem receberia o tratamento jurídico favorecido ou não. A
discussão é longa; vem desde a edição da Lei n. 9.317/96, que criou o Simples Federal.
Essencialmente, a jurisprudência brasileira, de forma geral, sustenta a possibilidade
de vedações ao ingresso ao sistema simplificado de pagamento de tributos com base no
entendimento firmado pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade n. 1.643-1357, proposta pela Confederação Nacional das Profissões
Liberais (CNPL) contra o Presidente da República e o Congresso Nacional, cujo objetivo era
a declaração de inconstitucionalidade do inciso XIII do Art. 9º da Lei n. 9.317/96. Acontece
que o desfecho foi pela improcedência da ação, o que levou à compreensão generalizada
quanto à possibilidade de discriminação entre as microempresas e empresas de pequeno porte
no que tange ao ingresso no sistema simplificado.
357
Cf. item 3.4, supra.
200
A contenda ainda hoje permeia o tema, pois boa parte da doutrina sempre entendeu
que algumas atividades e certas regras vedatórias – como, por exemplo, aquela que impede o
ingresso no sistema simplificado de empresas que tenham débitos tributários – de acesso ao
Simples Federal – e, agora, Simples Nacional – seriam ilegítimas, porque o fator de discrímen
não teria qualquer correlação lógica com sua finalidade objetiva – ou o próprio fim elegido
seria ilegítimo –, razão pela qual seria inconstitucional a disposição normativa com esta
característica, por afronta ao princípio da isonomia.358
De modo geral, não se discute que promove o princípio da igualdade a concessão de
tratamento jurídico favorecido em favor das microempresas e empresas de pequeno porte, em
contraposição às empresas de maior potencial econômico, por conta da situação fática
diferenciada na qual se encontram. Entretanto, deve ser bem elegido o critério que servirá de
finalidade a concessão de tratamento jurídico desigual a sujeitos que estejam em situação
equivalente. Não que a lei não possa fixar o discrímen entre aqueles que estão na mesma
situação fática, mas isto deve ter objetivo bem definido e, em regra, resultar em maiores
ganhos de interesse geral para a coletividade.
De toda sorte, é intuitivo afirmar que a definição de ser uma empresa de micro ou
pequeno porte, nos termos legais, depende da análise pura e simples da receita bruta auferida
ao longo do ano-calendário. Por outro lado, assim caracterizada a empresa, seu ingresso neste
ou naquele sistema simplificado depende, ainda, da observância de certas condições. Isto
significa que eventuais condições fixadas para o acesso ao regime único de arrecadação e
recolhimento de tributos, por exemplo, não podem ser “importadas” por outro subsistema
normativo para condicionar a empresa à fruição dos benefícios que fixe.
Tomando a Lei Complementar n. 123/2006 como exemplo, não poderia o sistema de
simplificação de acesso ao mercado e de preferência nas contratações de bens e serviços pelo
poder público tomar por empréstimo os requisitos fixados pela lei para condicionar o acesso
ao Simples Nacional, salvo, obviamente, se houver disposição expressa neste sentido.
Ou seja, quando o Art. 44 da Lei Complementar n. 123/2006 assegura que nas
licitações a preferência de contratação para as microempresas e empresas de pequeno porte
servirá de critério de desempate, quis significar que fruirá do benefício toda e qualquer
358
Sobre o princípio da igualdade, veja-se, por todos, BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. Conteúdo
Jurídico do Princípio da Igualdade. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 1997, p. 37.
201
empresa que se molde, pura e simplesmente, à definição legal do Art. 3º, sendo irrelevante,
para tanto, estar ou não inscrito no Simples Nacional, por exemplo.
Esta afirmação, conquanto desnecessária, serve de alerta aos menos avisados: ainda
que a Lei Complementar n. 123/2006 seja conhecida como o “Supersimples” ou “Simples
Nacional”, estas considerações são verdadeiras apenas em parte, pois tomam o regime
tributário diferenciado e favorecido como conteúdo integral da lei, quando, em verdade, isto
não ocorre, uma vez que há toda uma disciplina normativa de natureza civil, comercial,
trabalhista, processual e etc. naquele corpo legislativo.
4.2.4 O Simples Nacional visto a partir da Ordem Econômica: intervenção indireta do Estado
sobre o domínio econômico, extrafiscalidade e equilíbrio da concorrência
Anotadas estas observações que servem a fixar parâmetros sistêmicos ao evolver do
tema – sempre relevantes para uma adequada exposição científica –, compete agora ir ao
cerne da questão, isto é, deve-se realizar a análise do Simples Nacional como mecanismo de
intervenção econômica.
O Simples Nacional consiste em um regime especial unificado de arrecadação de
tributos e contribuições devidos pelas microempresas e empresas de pequeno porte,
englobando os tributos federais, estaduais e municipais, consoante Art. 13 da Lei
Complementar n. 123/2006. A adoção deste sistema simplificado, segundo o citado
dispositivo legal, implica no pagamento dos seguintes impostos e contribuições: (i) imposto
sobre a renda da pessoa jurídica; (ii) imposto sobre produtos industrializados; (iii)
contribuição social sobre o lucro líquido; (iv) contribuição para o financiamento da
seguridade social; (v) contribuição para o Pis/Pasep; (vi) contribuição para a seguridade
social, a cargo da pessoa jurídica; (vii) imposto sobre operações relativas à circulação de
mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de
comunicação; (viii) imposto sobre serviços de qualquer natureza. Ou seja, abrange tributos
devidos nas três esferas políticas de poder: federal, estadual e municipal.
James Marins e Marcelo Bertoldi conceituam o Simples Nacional como um
[...] regime especial de tributação por estimação objetiva, constituindo em
microssistema tributário, material, formal e processual, que unifica a
fiscalização, o lançamento e a arrecadação de determinados impostos e
contribuições de competência da União, Estados, Municípios e Distrito
202
Federal, aplicável opcionalmente às Microempresas e Empresas de Pequeno
Porte, com o escopo de atribuir a estes contribuintes tratamento fiscal
diferenciado e favorecido, em caráter parcialmente substitutivo ao regime
geral e compulsório.359
Esta sistemática simplificada de arrecadação e recolhimento de tributos de todos os
âmbitos de poder político assume clara conotação extrafiscal, ou seja, a concessão deste
tratamento diferenciado e favorecido dispensado às microempresas e empresas de pequeno
porte presta-se à intervenção estatal sobre o domínio econômico com claros objetivos
econômicos e sociais. Muito embora se arrecade valores tributários consideráveis, esta não é
sua finalidade primária, senão secundária. A função principal do Simples Nacional é de
fomento e proteção às micro e pequenas empresas, isto é, exerce típica finalidade extrafiscal.
Lafayete Josué Petter lembra que o princípio do tratamento jurídico diferenciado e
favorecido para a micro e pequenas empresas tem o objetivo de incentivá-las, pois fomenta o
crescimento do número de empresas de pequeno porte, cujo efeito benéfico produz vetor
contrário à tendência concentracionista que o mercado apresenta, “[...] com benefícios para
toda a coletividade, pois a maior dispersão do poder econômico diminui a possibilidade de
ocorrência de situações de abuso de poder”.360
Ora, precisa a lição acima exposta, pois via incentivo às microempresas e empresas
de pequeno porte – concedido mediante tratamento jurídico favorecido e diferenciado no que
tange às obrigações administrativa, tributária, trabalhista, comercial, etc. – o Estado realiza
seu mister interventor sobre o domínio econômico, ao mesmo tempo em que previne o abuso
do poder econômico e a eliminação da concorrência, nos termos do Art. 173, §3º, da
Constituição Federal de 1988.
Como instrumento de política tributária com finalidade extrafiscal, o Simples
Nacional é eficiente, pois mediante a simplificação do recolhimento dos tributos, diminuição
do ônus tributário – principalmente para os menores – e redução dos deveres instrumentais
(obrigações acessórias, na linguagem do Código Tributário Nacional), tem-se forte estímulo
para a formalização da atividade empresária. Some-se a estas facilidades tributárias a
desburocratização, pela redução ou supressão das obrigações civis, comerciais e trabalhistas –
359
MARINS, James; BERTOLDI, Marcelo Marco. Simples Hacional – Estatuto da Microempresa e da Empresa
de Pequeno Porte Comentado (LC 123, de 14 de dezembro de 2006 e LC 127, de 14.08.2007). São Paulo: RT,
2007, p. 68.
360
PETTER, Lafayette Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica – O significado e o alcance do
art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 266.
203
outras disciplinas da Lei Complementar n. 123/2006 – e mais do que o fomento ao ingresso
no mercado formal de novas empresas, viabiliza-se, também, a sobrevivência daqueles que já
atuam na economia de modo legal, porém com dificuldades.
Tudo isto possibilita uma maior participação de agentes econômicos no mercado, o
que é salutar tanto da perspectiva jurídica como da econômica, pois implica diretamente em
benefícios à própria economia, pelo estímulo à concorrência, e também aos consumidores,
pela maior quantidade de opções de produtos e preços. Neste sentido, novamente, anda bem
Lafayete Josué Petter, quando afirma que:
A economia, deixada a agir tão-somente segundo as livres forças do
mercado, tende a situações monopolísticas e oligopolísticas: empresas de
grande vulto controlam parcela significativa do mercado, impondo aos
concorrentes a dura realidade através do poder econômico que representam.
São naturais, então, as dificuldades de criação e desenvolvimento a que
pequenas e micro ficam expostas. Neste sentido, a adoção de um tratamento
favorecido pode fomentar a sobrevivência dos pequenos, provocando maior
presença de agentes econômicos na economia, o que invariavelmente se
traduz em benefícios a consumidores e ao próprio mercado em face do
estímulo da concorrência.361
Portanto, o mecanismo tributário simplificado instaurado pelo Simples Nacional
consiste claramente em meio de intervenção indireta do Estado sobre o domínio econômico.
Como tal, ele se caracteriza como norma indutora de comportamentos, uma vez que a
intervenção se dá pela indução dos agentes econômicos, que, em virtude da outorga do
tratamento jurídico favorecido, são tentados a ingressar no mercado formal ou, para aqueles
que já estão, conferem-lhe novo fôlego para continuar atuando, permitindo inclusive melhores
condições de concorrência, o que se traduz em condições de expansão dos negócios.
Destaque-se, neste ponto, a característica indutora do Simples Nacional. Segundo
Luís Eduardo Schoueri, as normas indutoras – e o Simples Nacional é, claramente, norma
tributária que positiva a intervenção estatal por indução – caracterizam-se por serem
dispositivas, ou seja, “[...] O agente econômico não se vê sem alternativas; ao contrário,
recebe ele estímulos ou desestímulos que, atuando no campo de sua formação de vontade,
levam-no a se decidir pelo caminho proposto pelo legislador”.362
361
PETTER, Lafayette Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica – O significado e o alcance do
art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 266.
362
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 43-44.
204
Quando se diz que as normas indutoras são sempre dispositivas, significa o autor que
na intervenção por indução, não há um comando imperativo por parte do Estado, isto é, o
destinatário da norma – em regra, os agentes econômicos – não está obrigado a cumpri-la; o
Estado abre mão deste poder de obrigar em favor do seu poder econômico. Por esta razão, o
ator econômico detém alternativas de atuação, sendo-lhe possível agir de modo diverso
daquele que a norma jurídica tenha previsto sem que isto resvale para a ilicitude.
Em razão da disponibilidade inerente às normas indutoras, Luís Eduardo Schoueri
assevera como conseqüência a possibilidade de as normas de incentivo ou de desestímulo não
serem suficientes para “coagir” o agente econômico a tomar a decisão nos termos da previsão
normativa. Deste modo, porque pode adotar comportamento diverso, conclui Luís Eduardo
Schoueri, com base em lições de Semiótica, que sintaticamente a norma indutora vincula duas
conseqüências à hipótese normativa, ligadas pela conjunção alternativa.363
Apoiado nestas idéias, verifica-se o traço indutor do Simples Nacional já na norma
constitucional que autoriza a criação do regime único de arrecadação tributária. Prescreve o
Art. 146, parágrafo único, da Constituição que “A lei complementar de que trata o inciso III,
d, também poderá instituir um regime único de arrecadação dos impostos e contribuições da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, observado que: I - será opcional
para o contribuinte”.
A Constituição foi clara ao legislador infraconstitucional, destinatário direto desta
regra de estrutura364: não é permitido legislar instituindo o Simples Nacional com finalidade
impor a obrigatoriedade de opção pelo regime simplificado ao micro e pequenos empresários.
Ou seja, quis dizer que a norma tributária é indutora, serve de incentivo para que estes agentes
econômicos migrem do mercado econômico informal para o formal, ao mesmo tempo em que
estimula aqueles que já estejam atuando no mercado, que se mantenham.
É óbvio, entretanto, que haverá sempre o modal deôntico obrigatório após a opção
pelo Simples Nacional. Neste ponto, Luís Eduardo Schoueri encerra seu pensamento
consignando que “a norma de intervenção por indução também traz o funtor ‘obrigatório’; sua
363
SCHOUERI, Luís Eduardo. Hormas Tributárias Indutoras e Intervenção Econômica. Rio de Janeiro:
Forense, 2005, p. 44.
364
Sobre as regras de estrutura, v. CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 19. ed. São
Paulo: Saraiva, 2007, p. 154-155.
205
peculiaridade é a possibilidade de seu destinatário escolher adotar, ou não, um
comportamento. Conforme sua escolha, o ordenamento lhe imputará uma conseqüência”.365
Que o Simples Nacional é uma norma tributária indutora haja vista as lições de Luís
Eduardo Schoueri, não resta dúvida. Porém, como tal, a norma indutora tem uma finalidade,
pois o estímulo (ou desestímulo) concedido visa induzir o agente econômico a se comportar
de uma dada maneira. Assim, o que visa o Simples Nacional? Porque induzir os agentes
econômicos a optarem por um regime simplificado de arrecadação de tributos?
A resposta é evidente, e extrai-se objetivamente da própria Constituição de 1988:
harmonia da Ordem Econômica pela proteção à livre concorrência, garantia de isonomia,
formalização da economia, valorização do trabalho, enfim, desenvolvimento socioeconômico.
Melhor explicando. O Simples Nacional, como instrumento de intervenção do Estado
para incentivar as microempresas e empresas de pequeno porte não é o fim de per si, mas
apenas meio. De fato o tratamento jurídico diferenciado e favorecido das microempresas e
empresas de pequeno porte se caracteriza como princípio da ordem constitucional econômica.
Porém, o incentivo puro e simples às micro e pequenas empresas não é o desiderato
constitucional propriamente dito, senão meio de harmonização da Ordem Econômica, na
medida em que mantém o equilíbrio da concorrência, garante isonomia de tratamento no
mercado econômico, induz à formalização das atividades econômicas, valoriza o trabalho
humano, protege o consumidor, enfim, promove o que se conhece como desenvolvimento
socioeconômico, que “[...] não é apenas crescimento econômico nem tampouco distribuição
de riqueza. Pressupõe a distribuição da riqueza em favor do bem-estar social e a participação
da sociedade [...]”.366
Afirma-se que o Simples Nacional mantém o equilíbrio concorrencial porque ao
facilitar e simplificar o cumprimento das obrigações tributárias – principal e acessória – a
norma em questão permite a expansão na quantidade de agentes econômicos atuando no
mercado. Com isto, repele o abuso do poder econômico e assegura a todos liberdade
iniciativa, pois serve de garante de que aqueles que estão fora do mercado, nele poderão
ingressar, e aqueles que ali já se encontram, nele poderão se manter.
365
SCHOUERI, Luís Eduardo. ob. cit., nota de rodapé n. 11, p. 44.
RIBEIRO, Maria de Fátima. Os 40 Anos da Zona Franca de Manaus e a Importância dos Incentivos Fiscais
para o Desenvolvimento Econômico e Social da Região. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva, RAMOS FILHO,
Carlos Alberto de Moraes, PEIXOTO, Marcelo Magalhães [coord.]. Tributação na Zona Franca de Manaus:
(Comemoração aos 40 anos da ZFM). São Paulo: MP Editora, 2008, p. 336.
366
206
Além disto, possibilita uma competição mais justa e igual, pois na medida em que
confere tratamento jurídico diferenciado àqueles que se encontram em situação fática distinta,
isto é, empresa de maior ou de menor porte, valoriza e protege o mercado econômico, como
também o Princípio da Isonomia, base democrática do Estado Brasileiro.
A simplificação da tributação ainda reflete na questão concorrencial o problema do
custo de produção, o que permite melhorias na questão do preço. Demais disto, cria-se um
ambiente de maior competitividade, aproximando-se do modelo de “concorrência perfeita”,
“[...] onde são muitos os vendedores e muitos os compradores e, isoladamente, nenhum deles
tem poder suficiente para dominar o mercado”.367
Outra importante conseqüência da instituição do Simples Nacional é a indução à
formalização das atividades econômicas. Ao incentivar as micro e pequenas empresas, o
Estado está induzindo à migração da informalidade para o setor formal da economia,
harmonizando, assim, as relações econômicas. Neste aspecto, a formalização do mercado é
extremamente relevante para o equilíbrio concorrencial, pois coloca os competidores do
mercado em uma mesma posição de igualdade jurídico-formal, qual seja, possuem as mesmas
obrigações tributárias, trabalhistas, civis e comerciais, por exemplo, ainda que simplificadas.
De igual maneira, valoriza o trabalho humano pela observância e cumprimento dos
encargos trabalhistas, pagamento de salários de acordo com os valores do mercado,
sujeitando-se, enfim, à observância da legislação em geral, o que encerra, em última instância,
realização da dignidade da pessoa humana (Art. 1º, III, da Constituição de 1988).
Por outro lado, também reflete na proteção ao consumidor, pois empresas formais
obedecem às regrar jurídicas e econômicas do mercado, sujeitando-se, por exemplo, à
fiscalização pelo poder público. Ademais, a questão do preço, da qualidade dos produtos e do
acesso aos mecanismos de defesa do consumidor depende, em larga medida, da existência
formal das empresas, sem o que se cria grandes dificuldades e restrições.
Enfim, é o Simples Nacional um mecanismo de intervenção indireta na economia,
resultante do desiderato constitucional que atribui ao Estado dever-poder de estabelecer
políticas públicas com o objetivo de dispensar às microempresas e empresas de pequeno porte
367
PETTER, Lafayette Josué. Princípios Constitucionais da Ordem Econômica – O significado e o alcance do
art. 170 da Constituição Federal. São Paulo: RT, 2005, p. 222.
207
tratamento jurídico favorecido e diferenciado em matéria tributária, com o objetivo de
incentivá-las e, com isto, promover a Ordem Econômica e Social, harmonizando-as.
Portanto, revela-se a importância da tributação para a Ordem Econômica – e o
desenvolvimento socioeconômico como um todo –, em especial como mecanismo de
regulação concorrencial.
208
SÍTESE COCLUSIVA
Sistema jurídico é expressão plurívoca, pois empregada para significar distintos
objetos. Porém, esta não é uma característica que lhe é exclusiva, haja vista que a
ambigüidade é algo ínsito a maioria das palavras. Em regra, a vaguidade das palavras decorre
da indefinição do ponto de referência a partir do qual elas serão compreendidas. Assim, a
superação da incerteza no sentido das expressões depende da pré-definição de um ponto de
referência.
O vocábulo “sistema” revela um objeto que se constitui pela reunião ordenada e
harmônica das diversas partes de um todo formando uma unidade. Isto demonstra que a
compreensão geral de “sistema” identifica duas características que lhe é peculiar: unidade e
ordenação. Em relação ao sistema jurídico, não é diferente. Uma vez que todo sistema é
formado por elementos que se relacionam de modo ordenado e formam um conjunto unitário,
define-se sistema jurídico, entendido como o sistema do direito positivo, como um complexo
ordenado de normas jurídicas orientado por princípio unificador, ou seja, ele não é formado
pela pura e simples ligação entre as normas jurídicas que o compõe, senão pela harmonia e
unidade entre elas, cuja relação ocorre pelos vínculos de subordinação e de coordenação.
Não são todas as normas jurídicas que integram o sistema jurídico-positivo, mas
apenas as normas jurídicas válidas, independentemente do degrau hierárquico em que se
encontrem. Esta percepção permite visualizar o sistema jurídico como uma pirâmide
escalonada de maneira hierárquica, onde as normas de hierarquia superior conferem
fundamento de validade para aquelas localizadas nos degraus inferiores.
As normas jurídicas, por sua vez, distinguem-se dos textos do direito positivo, na
medida em que estes são apenas os pontos de partidas para a construção daquelas. Deste
modo não se confundem uns com os outros. Afirma-se que as normas jurídicas são os
significados que se extraem a partir dos textos do direito positivo; são, por assim dizer,
construções de sentido realizadas pelo intérprete do direito a partir de uma análise sistemática
dos textos normativos. Significa que há uma desvinculação entre normas jurídicas e textos do
direito positivo.
209
Por conta desta desvinculação, não se pode afirmar que a norma jurídica dependa
exclusivamente do texto pré-existente; nem que este ou aquele enunciado textual normativo
tenha condições de definir, por si, o sentido da norma; ou mesmo que este texto normativo
contenha esta ou aquela norma jurídica. Em verdade, a norma jurídica é o produto, o resultado
da interpretação dos textos do direito positivo, de modo que ela não está a ele incorporada.
Norma jurídica, no entanto, é expressão que revela um gênero. O gênero normativo é
formado por duas ou três espécies normativas, de acordo com a doutrina que se adote: regras,
princípios e postulados normativos aplicativos. Há, na doutrina de modo geral, concordância
quanto à existência das duas primeiras espécies. No que se refere aos postulados, esta se
caracteriza como uma nova espécie normativa cunhada por recentes estudos doutrinários.
O papel do intérprete no processo de construção das normas jurídicas é de extrema
relevância para a caracterização destas como regra, princípio ou postulado, especialmente
porque dependente da situação concreta, dos fatos jurídicos envolvidos e os valores que lhes
são sobrejacentes.
Independentemente disto, inegável que o sistema jurídico-positivo é formado por
normas jurídicas de diversas espécies, e também com os mais diversos conteúdos. Como um
sistema, a ordem jurídica tem na unidade sua característica central, razão pela qual não se
pode afastar ou mesmo dissociar definitivamente as normas tributárias das normas
econômicas; elas não se afastam, mas, diversamente, se atraem. Sempre haverá um ponto de
intersecção entre o direito tributário e o direito econômico, causando a necessidade de análise
articulada entre eles.
Este ponto de intersecção revela-se na questão relativa à intervenção econômica do
Estado, notadamente quando se trata do emprego das normas tributárias extrafiscais, as quais
têm consistido no mecanismo de que mais se tem valido o Estado para intervir na economia.
Desta forma, mesmo que na perspectiva do enunciado do Texto Constitucional o
direito tributário e o direito econômico estejam enumerados em títulos distintos, isto não
significa que as normas que os compõem estejam totalmente divorciadas umas das outras;
nem que não se influenciam reciprocamente. Ao contrário, significa apenas uma opção do
legislador constituinte em tratar cada tema conforme as especialidades e propriedades que
lhes são características.
210
Ao enumerar o capítulo do Sistema Tributário Nacional, o legislador constituinte não
previu ali a integralidade das normas jurídicas tributárias, mas definiu um referencial inicial, o
ponto de partida no qual se constitui o texto do direito positivo. Por isto que “Sistema
Constitucional Tributário” é expressão que melhor significa o conjunto das normas
constitucionais que disciplinam as limitações formais e materiais ao poder tributar.
Compreendida como a ordem jurídica da economia, a Ordem Econômica significa o
conjunto de todas as normas jurídicas que objetivam regular as atividades econômicas. E a
Constituição Econômica é a parte fundamental e mais importante da ordem jurídica
econômica, na medida em que esta consiste no subsistema normativo constitucional daquela,
caracterizando uma relação entre todo e parte.
As
ferramentas
necessárias
à
compreensão
e
melhor
visualização
da
interdisciplinaridade existente entre as normas tributárias e as normas jurídicas econômicas
são os princípios instrumentais de interpretação constitucional. Os princípios da supremacia
da Constituição, da unidade da Constituição e da interpretação conforme a Constituição são os
mecanismos que possibilitam uma melhor visualização da interligação entre tributação e
intervenção econômica, pois serve a instrumentalizar a análise de sujeição das normas
tributárias tanto ao regime jurídico tributário como ao regime econômico.
É a Constituição Econômica o principal subconjunto normativo a formar a Ordem
Jurídico-Econômica. Em sua grande maioria, as normas jurídicas que formam a Constituição
Econômica são de cunho programático e têm por finalidade o desenvolvimento
socioeconômico nacional, conforme se depreende da interpretação sistemática entre a
previsão do Art. 3º, II e III, Art. 1º, IV, e Art. 170, todos da Constituição Federal de 1988.
Este último dispositivo positiva em sede constitucional os princípios fundamentais regentes
das atividades econômicas, direcionando tanto a atuação dos particulares no bojo do domínio
econômico como servindo de limitação às atividades do Estado nesta área.
Dentre os princípios que informam as atividades econômicas, o princípio da livre
concorrência, previsto no Art. 170, IV, da Constituição de 1988, é um dos mais importantes,
possuindo função instrumental no sistema jurídico econômico, porquanto serve de meio à
promoção da liberdade de iniciativa. A enumeração da livre concorrência como princípio
constitucional econômico reflete, ainda, o modo capitalista de produção adotado pelo sistema
jurídico-político para a vida econômica nacional. A livre concorrência, assim, objetiva
211
garantir o livre jogo das forças do mercado no intuito da manutenção do justo equilíbrio entre
a oferta e a procura, garantindo a liberdade de ação que lhe é inerente.
Porém, o princípio da livre concorrência, como todos os demais princípios
informadores das atividades econômicas, deve servir de vetor para direcionar a economia no
sentido da realização dos fins da ordem econômica, segundo os ditames de justiça social, nos
termos do Art. 170, caput, da Constituição de 1988, e ainda tem por escopo evitar a
concentração econômica ilegítima. Como é inerente ao próprio conceito de economia de
mercado a noção de concentração econômica, e nem sempre os mecanismos livres do
mercado têm condições de corrigir as falhas surgidas, então há a necessidade do Estado
intervir sobre o domínio econômico para corrigir estas falhas. Por isto se diz que o princípio
da liberdade de concorrência direciona a atuação estatal sobre o domínio econômico.
A intervenção econômica do Estado se realiza de modo direto, quando o Estado atua
no mercado como agente econômico, com intuito lucrativo, conforme autorização do Art.
173, da Constituição Federal. O Estado também pode atuar no mercado de forma indireta, ou
seja, agindo sobre o domínio econômico, como agente normativo e regulador da atividade
econômica, mediante as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, nos termos do Art.
174 da Constituição de 1988.
Na intervenção indireta, o Estado tem a possibilidade de editar normas de direção ou
normas de indução, conforme o caso e nos termos em que pretenda. No caso das normas
tributárias, tendo em vista suas características, elas agem por indução, ou seja, seu objetivo é
influir diretamente no comportamento dos agentes econômicos, induzindo-os a optar pelo
caminho que lhe parece mais adequado para realizar os objetivos socioeconômicos prédefinidos constitucionalmente.
A norma tributária indutora, por sua natureza, tem caráter extrafiscal, o que significa
que o objetivo precípuo da norma não é arrecadar dinheiro aos cofres públicos, mas tem
objetivo diverso: no caso, o fim é econômico. A afirmação de que a norma tributária é uma
norma de intervenção do Estado sobre o domínio econômico a posiciona como norma jurídica
de natureza econômica, na perspectiva pragmática. Mas ela também não deixa de se
caracterizar como norma de direito tributário, porquanto encerra sempre uma relação jurídica
tributária entre Estado e contribuinte.
212
Portanto, a norma tributária extrafiscal com finalidade indutora se sujeita a dois
regimes jurídicos – o econômico e o tributário. Mas não são todas as normas tributárias que se
sujeitam a este regime dúplice, mas apenas aquelas que assumam finalidade extrafiscal
indutora econômica. Deste modo, não basta observar as regras jurídicas que disciplinam o
domínio econômico, mas também deve observância ao regime jurídico tributário.
Por isto, além dos limites ao exercício da competência reguladora econômica, a
norma tributária extrafiscal tem que observar as delimitações impostas pelas normas que
disciplinam a competência tributária, sejam as regras atributivas de competências como as
limitativas do exercício da atividade tributária. Contudo, o conteúdo interventivo econômico
que a norma tributária indutora possui, isto é, sua finalidade extrafiscal, pode influir na
aplicação de alguns princípios tributários, pois, em regra, o estudo dos princípios
constitucionais tributários se realiza sob a premissa da finalidade fiscal do tributo. Partindo do
pressuposto da extrafiscalidade, que revela fim diverso daquele, poderá haver uma
diferenciação quanto à aplicação dos princípios tributários.
Ressaltando ainda que a extrafiscalidade das normas tributárias manifesta-se
mediante os mais diversos mecanismos: incentivos fiscais, imunidades, isenções, regimes
simplificados de recolhimento de tributos.
Como conseqüência da natureza extrafiscal que os convênios interestaduais de ICMS
e o Simples Nacional assumem, a sujeição ao regime jurídico econômico, além da disciplina
tributária, é irremediável. Neste ponto, dentre os princípios constitucionais econômicos, os
estes mecanismos extrafiscais devem especial atenção ao princípio da livre concorrência,
tendo em vista os concretos reflexos que sua aplicação produz sobre o mercado econômico.
No que se refere aos convênios interestaduais de ICMS, além de mecanismo criado
pelo sistema jurídico para evitar a guerra fiscal entre as entidades federativas e assim
assegurar a unidade da Federação. Eles revelam claro viés de regulação jurídica do mercado,
em especial quanto à proteção da livre concorrência, tendo em vista que a concessão unilateral
– sem a prévia celebração dos convênios – dos incentivos fiscais de ICMS pelos Estadosmembros ou pelo Distrito Federal, provoca séria distorção concorrencial.
Em casos como tais, a competitividade entre os agentes econômicos fica
desequilibrada pela quebra de uma estrutura comum. O princípio da livre concorrência soma à
formalidade constitucionalmente definida para a concessão dos incentivos fiscais de ICMS,
213
pois estabelece uma limitação de conteúdo ao exercício da competência exoneratória,
implicando, por conseqüência, em vício por inconstitucionalidade material sua concessão sem
a anuência dos demais Estados-membros da Federação.
Por outro lado, a previsão, no plano constitucional, do tratamento favorecido a ser
dispensado às microempresas e às empresas de pequeno porte pela simplificação de suas
obrigações tributárias já revela a finalidade extrafiscal das normas tributárias com esta
qualidade. É a intervenção estatal indireta com claros objetivos econômicos e sociais.
Embora arrecade valores tributários, o escopo precípuo do Simples Nacional é o
fomento e a proteção às micro e pequenas empresas, pois ao incentivá-las, induz o
crescimento desta categoria empresarial e, como conseqüência, reduz a concentração do
mercado, dispersando o poder econômico entre o maior número de agentes econômicos,
diminuindo, assim, a ocorrência de abusos.
Por meio do Simples Nacional, utilizado como ferramenta de estímulo à
formalização da atividade empresarial de pequeno porte econômico, possibilita-se uma maior
participação de agentes econômicos no mercado, redundando em benefícios ao consumidor e
incentivando a concorrência de modo a equilibrá-la.
Em suma, a redução das obrigações tributárias, principais e acessórias, decorrentes
do Simples Nacional cria condições de competição mais justa e igual entre as empresas, pois
na medida em que confere tratamento jurídico diferenciado àquelss que se encontram em
situação fática distinta, isto é, empresa de maior ou de menor porte, valoriza e protege o
mercado econômico, como também o Princípio da Isonomia, base democrática do Estado
Brasileiro. Cria, enfim, um ambiente de maior competitividade.
214
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