XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012
ESBOÇO DE UMA CARTOGRAFIA DAS AÇÕES: ANÁLISE DOS
CONTEXTOS E SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA
DAS CLASSES POPULARES DE ANGRA DOS REIS
Rodrigo Torquato da Silva
Doutor em Educação – UFF
Professor Adjunto da Faculdade de Educação da UFF
Coordenador do Grupo de Pesquisa ALFAVELA
Danielle Tudes Pereira Silva
Pedagoga da Rede Municipal de Angra dos Reis
Aluna do curso de Pós-graduação em Diversidade Cultural e Interculturalidade:
Matrizes Indígenas e Africanas na Educação Brasileira PENESB/UFF
Auxiliar de Pesquisa do Grupo de Pesquisa ALFAVELA
O presente texto visa a apresentar os resultados preliminares de uma pesquisa
em andamento realizada pelo grupo ALFAVELA (Alfabetização, Classes Populares e o
Cotidiano Escolar) do Instituto de Educação de Angra dos Reis, da Universidade
Federal Fluminense. Tais resultados dialogam com um conjunto de estudos, realizados
ao longo de dez anos, abrangendo a relação entre as classes populares, principalmente
as oriundas de favelas e periferias, e suas interlocuções com as escolas públicas que as
atendem. Pretende-se, neste trabalho, consolidar práticas de pesquisas que se fundem
em metodologias qualitativas, tendo o cotidiano escolar e os espaços de conformação de
sociabilidades diversas das classes populares como loci principal de investigação.
Foi feito um levantamento bibliográfico das monografias produzidas a partir
das primeiras turmas formadas no Curso de Pedagogia da UFF em Angra dos Reis,
entre os anos de 1995 e 2007. Tal levantamento permitiu não somente estabelecer o
foco da pesquisa, mas um preliminar mapeamento das populações que podem ser
identificadas como as classes populares de Angra dos Reis, ramificando-se em pelo
menos quatro troncos mais evidentes: os quilombolas, os índios Guarani Mbya, os
caiçaras que habitam as ilhas da Baía da Ilha Grande e os trabalhadores que vieram de
muitas regiões do Brasil, principalmente do Nordeste, para se empregarem nas usinas e
estaleiros da cidade.
A pesquisa foca, mais especificamente, as experiências cotidianas nos/com os
territórios e territorialidades das Classes Populares. Iniciamos um estudo analítico, de
longo prazo, acerca dos contextos e das características em que se constituem os
territórios e as respectivas territorialidades em que estão inseridos os estudantes das
escolas públicas que atendem predominantemente as classes populares de Angra dos
Reis.
Palavas-chave: Cartografia da ação, desigualdades raciais, Classes populares, delitos
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Introdução
O presente texto visa a apresentar os resultados preliminares de uma pesquisa
em andamento realizada pelo grupo ALFAVELA – Alfabetização, Classes Populares e
o Cotidiano Escolar, do Instituto de Educação de Angra dos Reis, da Universidade
Federal Fluminense. Tais resultados dialogam com um conjunto de estudos, realizados
ao longo de dez anos, abrangendo a relação entre as classes populares, principalmente
as oriundas de favelas e periferias, e suas interlocuções com as escolas públicas que as
atendem. Pretende-se, neste trabalho, consolidar práticas de pesquisas que se fundem
em metodologias qualitativas, tendo o cotidiano escolar e os espaços de conformação de
sociabilidades diversas das classes populares como loci principal de investigação.
Foi feito um levantamento bibliográfico das monografias produzidas a partir
das primeiras turmas formadas no Curso de Pedagogia da UFF em Angra dos Reis,
entre os anos de 1995 e 2007. Tal levantamento permitiu não somente estabelecer o
foco da pesquisa, mas um preliminar mapeamento das populações que podem ser
identificadas como as classes populares de Angra dos Reis, ramificando-se em pelo
menos quatro troncos mais evidentes: os quilombolas, os índios Guarani Mbya, os
caiçaras que habitam as ilhas da Baía da Ilha Grande e os trabalhadores que vieram de
muitas regiões do Brasil, principalmente do Nordeste, para se empregarem nas usinas e
estaleiros da cidade.
À guisa de contextualização, o município de Angra dos Reis conta com uma
população de aproximadamente 169.270 habitantes, de acordo com o Censo 2010 do
IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - <http://www.ibge.gov.br. Acesso
em 13 de fevereiro de 2012). Localizado no litoral fluminense, entre a serra e o mar, sua
história constitui um exemplo em pequena escala do processo de colonização
empreendido em terras brasileiras, caracterizado em grande medida pela exploração e os
conflitos por terra. A região participou dos ciclos econômicos da cana-de-açúcar, do
tráfico de africanos escravizados, do ciclo do ouro e do café.
No século XX, o município tornou-se palco de grandes empreendimentos
econômicos: a criação do estaleiro Verolme, a implantação do Terminal Petrolífero da
Ilha Grande (TEBIG), a construção das usinas nucleares Angra 1 e 2 e a construção da
rodovia BR 101. Esses grandes investimentos causaram um crescimento desordenado,
resultando em uma expansão urbana sem planejamento, principalmente em direção aos
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morros da cidade, por conta da limitação dos espaços planos e da especulação
imobiliária.
Nesse mesmo período, a atividade turística adquire importância,
principalmente com o chamado turismo classe A, envolvendo turistas de alta renda do
país e do exterior. A mídia exibe imagens de uma região paradisíaca, com suas mais de
trezentas ilhas, cercada pela exuberante mata atlântica e águas cristalinas, o que se
confirma para aqueles que chegam à cidade em seus helicópteros e se dirigem às suas
ilhas particulares. Infelizmente, boa parte da população, que se dirige todos os dias para
o trabalho, não de jet ski ou lancha, mas utilizando o transporte público (que como em
boa parte do nosso país oferece um serviço insatisfatório), sabe que o desenvolvimento
desigual, a precariedade dos serviços públicos, a pobreza e a corrupção constituem
também o cotidiano local.
Embora a população local se oponha veementemente à ideia de que existam
favelas em Angra dos Reis, de acordo com a pesquisa sobre aglomerados subnormais
realizada no censo 2010 do IBGE, Angra dos Reis é o décimo município do país com
maior percentual de domicílios em favelas. Conforme o site do IBGE, o Manual de
Delimitação dos Setores do Censo 2010 classifica como aglomerado subnormal cada
conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais carentes, em sua
maioria, de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período
recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em
geral, de forma desordenada e densa.
Muitos questionamentos poderiam ser feitos em relação ao uso do termo que
em si carrega as marcas do preconceito em relação a esses espaços já que subnormal
significa, de acordo com o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o que é próximo
do normal, porém abaixo ou aquém dele, ou seja, espaços fora do padrão, da lei, do
aceitável, os mesmos adjetivos utilizados para qualificar suas populações. Com todas as
restrições, esse é um dado que merece atenção, principalmente por se opor à imagem de
Angra dos Reis como souvenir, provocando-nos com uma imagem diferente daquela
exposta a partir da Ilha de Caras, por exemplo.
Como já foi dito, a pesquisa foca, mais especificamente, as experiências
cotidianas nos/com os territórios e territorialidades das Classes Populares. Iniciamos um
estudo analítico, de longo prazo, acerca dos contextos e das características em que se
constituem os territórios e as respectivas territorialidades em que estão inseridos os
estudantes das escolas públicas que atendem predominantemente as classes populares de
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Angra dos Reis. Compreendemos, como Milton Santos, que não cabe tomar o território
como elemento isolado de análise. Tal conceito só adquire sentido quando o pensamos
nas relações com seus atores, ou seja, como “um território usado, de modo a incluir
todos os atores”. (SANTOS, 2000, p. 26)
Outras definições relevantes orientam nossas concepções acerca da temática, o
que justifica a não tão breve citação:
Entendendo território no sentido amplo, percebemos que essa
“necessidade territorial” ou de controle e apropriação do espaço pode
estender-se desde um nível mais físico ou biológico (enquanto seres
com necessidades básicas como água, ar, alimento, abrigo para
repousar), até um nível mais imaterial ou simbólico (enquanto seres
dotados do poder da representação e da imaginação e que a todo
instante re-significam e se apropriam simbolicamente do seu meio),
incluindo todas as distinções de classe socioeconômica, gênero,
grupo etário, etnia, religião etc. (COSTA, 2004)
Assim, para que pudéssemos apropriarmo-nos minimamente dos contextos que
podem sugerir uma interpretação do nível mais imaterial ou simbólico das classes
populares em questão na pesquisa, propomos a análise dos periódicos locais mais
populares para ver de que forma eles possibilitam leituras e mapeamentos dos contextos
e das ações dos grupos pesquisados e a representação dessas ações, bem como o rol de
infrações e delitos relatados.
Metodologia
Inicialmente, trabalhamos com a análise e a tabulação de um periódico popular,
A CIDADE, que circula no município pesquisado. O período de análise inicia no mês
de maio de 2011, até sua edição mais recente. No entanto, faz-se mister ressaltar que
esses são os primeiros levantamentos de uma pesquisa de longo prazo. É de nossa
pretensão expandir o trabalho com mais dados, oriundos de outras linhas de pesquisas
que fazem interlocução com a temática e são desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa
ALFAVELA. Cabe mencionar, ainda, que não interessa tratar a fonte dos dados, o
periódico “A cidade”, como narrativa e/ou fonte qualificada cientificamente e neutra de
intenções, até porque nosso entendimento é de que toda narrativa tem como autor um
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sujeito dotado de intenções e de subjetividade construídas nas interações sociais e
políticas. Ademais, os vínculos mantidos pelo jornal e suas fontes de recursos são
relevantes ao considerarmos suas opções.
Debruçamo-nos sobre o referido periódico durante um período de sete meses,
analisando os sujeitos, os contextos e os lugares através das fotografias e das narrativas
apresentadas. Devemos lembrar inclusive que o próprio jornal faz uma seleção dos
casos que serão divulgados e que alguns não são acompanhados por fotos, logo, não
sendo considerados nas nossas interpretações fenotípicas a respeito das pessoas
apresentadas.
Desse universo, realizamos alguns recortes entre os quais, para nossa linha de
pesquisa, um dos focos é a questão racial. Cabe abrirmos um parêntese para considerar
que o emprego do termo ‘raça’ é controverso, motivo de discussão em diferentes meios
e que dadas as dificuldades de diferenciação entre ‘raça’ e ‘etnia’, grande parte da
literatura utiliza os dois termos.
O conceito de ‘raça’ opera a partir de uma classificação que toma a cor da pele
como critério, constituindo uma divisão em raça branca, amarela e negra que ainda hoje
persiste nas relações sociais, permeando o imaginário coletivo. Esse mesmo conceito se
solidifica no século XIX com argumentos pseudocientíficos, que sustentariam as raízes
do racismo baseado na hierarquização. Hoje, as ciências biológicas demonstraram que
não há critérios científicos que justifiquem seu uso. Porém, enquanto construção
histórica, a eliminação do vocábulo não garante que o mesmo seja banido de seu uso
social e político, por isso substituir raça por etnia não garante, por si só, a extinção do
racismo, embora o último tenha um significado mais abrangente, já que uma etnia “é um
conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral comum,
têm uma língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão, uma mesma cultura e
moram geograficamente num mesmo território”. (MUNANGA, 2000, p. 28)
A questão racial se coloca como uma preocupação central, uma vez que a busca
pela democratização da sociedade e, consequentemente da escola, tem sido bandeira de
luta daqueles que não se deixam enganar pelos discursos que proclamam democracia
racial ou igualdade de oportunidades. Mitos que não se sustentam já que não há
possibilidade de equidade e justiça em uma sociedade racista. São esses os mesmos
discursos que muitas vezes justificam o silêncio frente às manifestações de
discriminação racial, já que o racista nega sistematicamente esse quadro e o justifica.
Pactuamos com Moore (2007) quando afirma que
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todos os argumentos apresentados em sentido inverso, todas as
estatísticas aduzidas para demonstrar a prevalência, na América
Latina, de um espantoso quadro da opressão racial são insuficientes;
o racista é imune a tudo quanto não sejam as razões para a
manutenção dos privilégios unilaterais que desfruta na sociedade.
Nesse momento, não apontamos o uso de metodologias de pesquisa antes do
diálogo com os dados e das incursões pelo campo, pois compreendemos que fazer
pesquisa não é subordinar a “realidade” a um arcabouço metodológico construído a
priori ou mesmo por possíveis “discursos-verdades” teóricos cristalizados. Somente a
partir do mergulho nos contextos pesquisados é que buscamos os melhores instrumentos
metodológicos e as teorias que nos ajudem a construir as primeiras análises. Assim,
estabelecemos os procedimentos e as ferramentas que podem nos auxiliar nesse
mapeamento. O fato de afirmar a nossa opção de utilização dos métodos e teorias
concomitante ao mergulho nos contextos não significa que buscamos o ineditismo. Ao
contrário, bebemos em muitas fontes, entre as quais, nos estudos e pesquisas realizados
pela professora Ana Clara Torres Ribeiro, do LASTRO-UFRJ, que nos oferece um
debate metodológico sobre a teoria da ação a partir de uma metodologia denominada
“cartografia da ação”.
Esse movimento inicial da pesquisa tem origem em nossa necessidade de
ampliar e qualificar a crítica acerca das opressões historicamente sofridas pelas classes
populares, bem como as lutas e táticas subversivas resultantes das resistências, que
criam possibilidades de ações políticas e pedagógicas. Concordamos com Sandra Mara
Corazza ao afirmar que fazer pesquisa, constituir um problema de pesquisa é:
...começar a suspeitar de todo e qualquer sentido consensual, de toda
e
qualquer
concepção
partilhada,
com
os
quais
estamos
habituadas/os; indagar se aquele elemento do mundo – da realidade,
das coisas, das práticas, do real – é assim tão “natural” nas
significações que lhe são próprias; duvidar dos sentidos cristalizados,
dos significados que são transcendentais e que possuem estatuto de
verdade (seja esta verdade científica, mágica, artística, filosófica,
psicanalítica, religiosa, biológica, política, etc.); recear a eternidade, o
determinismo, a ordem, a estabilidade, a segurança, a solidez, o rigor,
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o universal, o apaziguado. Em suma, criar um problema de pesquisa é
virar a própria mesa, rachando os conceitos e fazendo ranger as
articulações das teorias. (CORAZZA, 1996)
As análises preliminares dos periódicos referem-se a 134 casos que
acompanham fotos a partir das quais realizamos uma classificação racial utilizando as
categorias do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que apresenta como
opções para cor ou raça no censo 2010: preta, parda, branca, indígena ou amarela.
Trabalhamos com a heteroclassificação, ou seja, a partir da observação dos traços
fenotípicos, distribuímos os casos entre as categorias disponíveis. Assumimos as
limitações que o método de identificação envolve, inclusive considerando a imprecisão
de algumas imagens, mas consideramos esse procedimento mais adequado nesse
primeiro momento.
Breves considerações à guisa de resultados iniciais
Observamos que o espaço do delito demonstrado pelo periódico analisado é
predominantemente masculino, havendo apenas sete ocorrências envolvendo mulheres.
Dentre os casos, pretos e pardos constituem maioria, sendo 49 pretos, 56 pardos e 22
brancos (sete casos sem foto). Se agregarmos as categorias pretos e pardos (como
procede o Movimento Negro), tomando-os como negros, registramos 105 negros e 22
brancos. A faixa etária abrange de 18 a 58 anos, estando a maioria situada entre os 18 e
os 35 anos.
Os primeiros dados nos levam a algumas indagações. Inicialmente, levantamos
a hipótese de que haveria um número considerável de delitos cometidos por menores,
mas percebemos que esse momento inicial apresenta uma concentração maior em uma
faixa etária mais elevada. Onde estariam os menores infratores? O que os mais novos
estão fazendo? Nesse sentido, supomos que os programas sociais (Bolsa Escola, Bolsa
Família, etc) têm mantido esse contingente no espaço da escola, configurando-se como
um cercado que ameniza a criminalidade aproximadamente até os 18 anos. Também
podemos alegar que a repressão policial seja fortíssima nessa faixa etária. Essas
questões carecem de aprofundamento e precisamos considerar como já citado, os limites
do recorte realizado para a análise.
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Os dados também evidenciam a vulnerabilidade dos jovens negros nas favelas
e periferias, sendo esse contingente vítima de execuções e assassinatos, sofrendo a
precariedade dos serviços públicos (transporte, saúde, educação) e as dificuldades nas
“áreas duras”, conceito que Livio Sansone (1996, p. 183) define como aquelas onde as
possibilidades de trânsito para os negros é mínima ou inexistente, como o mercado de
trabalho, o matrimônio e os contatos com a polícia. Perguntamos-nos como pode uma
sociedade democrática se configurar de maneira tão desigual.
A partir do alto número de execuções/assassinatos, podemos julgar que há um
extermínio da população negra em um espaço de tensão histórica que não é recente, mas
nos remete ao período colonial. Poderíamos compreender as ações desses sujeitos como
atos de resistência? Dentro de uma sociedade capitalista, desigual, tendo pouco acesso
aos bens de consumo, que opções são oferecidas a esse grupo? Como se configurou sua
trajetória pela escola? E nos perguntamos ainda, qual é a cor dos dominantes,
representados como a elite que ocupa os cargos de comando, os lugares de poder
(diretores de escolas, prefeito, vereadores, comerciantes)? Qual é a origem escolar
daqueles que ocupam os lugares de poder?
As narrativas do periódico sobre a criminalidade utilizam muitos termos
próprios do universo policial. Nos textos não há pessoas, mas sim indivíduos e
elementos e as palavras mais recorrentes para qualificar os acusados são: traficante,
marginal, malandro, meliante, bandido, ladrão, tarado e mulherengo. As ações policiais
são sempre qualificadas como positivas e nenhuma das notícias aponta outras
alternativas de intervenção. Sustentamos, como Milton Santos (2000, p. 25), que o
poder público
não cuida dos verdadeiros problemas da população e diante dos
conflitos sociais mobiliza um formidável aparelho de informação
para dizer que a solução é mais polícia e não melhor política. A nação
pode apodrecer, mas a discussão é a segurança pública, não é a
civilização.
Além desses aspectos, que nos dizem bastante sobre as representações das
classes populares presentes nesse periódico e que explicitam uma determinada visão de
mundo, temos que enxergar o que não é dito, as entrelinhas e sinais que nos remetem ao
Paradigma Indiciário de Ginzburg, pois em alguns casos “é preciso não se basear
(exclusivamente) como normalmente se faz, em características mais vistosas... Pelo
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contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis”. (GINZBURG,
1989, p. 144)
A partir daí apontamos que o trabalho com uma metodologia que valorize as
histórias de vida e as trajetórias dos sujeitos (SILVA, 2010) pode nos permitir
estabelecer nexos empíricos, sempre difíceis, entre os múltiplos contextos em que se
inserem os sujeitos, suas trajetórias e as estruturas a que estão submetidos. Ao mapear
as ações e os contextos das classes populares representadas nos periódicos pesquisados
é possível conhecer não somente as trajetórias, mas ir ao encontro dos percursos
escolares feitos por cada um deles, explicitando as opções com as quais se deparam e
alguns dos conjuntos de alternativas que tiveram. Isso, acreditamos, nos possibilitará
compreender melhor suas escolhas e a forma como estas foram construindo os seus
perfis de comportamentos, em diálogo com os territórios-territorialidades que os
constituíram enquanto sujeitos, estabelecendo, com isso, uma relação entre as biografias
e o lugar.
Só uma história de vida permite captar o modo como cada pessoa,
permanecendo ela própria, se transforma. Só uma história de vida põe
em evidência o modo como cada pessoa mobiliza os seus
conhecimentos, os seus valores, as suas energias, para ir dando forma
à sua identidade, num diálogo com os seus contextos. Numa história
de vida podem identificar-se as continuidades e as rupturas, as
coincidências no tempo e no espaço, as “transferências” de
preocupações e de interesses, os quadros de referência presentes nos
vários espaços do quotidiano. (GOODSON, 1992, p.75)
Nos delitos noticiados nos periódicos há uma predominância de narrativas de
ocorrências de tráfico de drogas. É interessante perceber que mesmo em casos em que a
quantidade de entorpecentes encontrados com os supostos “meliantes” é menor do que
aquela que nos autos da lei configura tráfico, o texto insinua, na maioria das vezes, que
as pessoas tinham “envolvimento com o tráfico”. Observemos, abaixo, alguns números
dos delitos-crimes, expressos nos periódicos, oriundos das tabulações já feitas na
pesquisa.
Tráfico – 46
Foram executados/assassinados – 31
Porte ilegal de armas – 14
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Roubo – 9
Furto – 6
Homicídio - 5
Tentativa de homicídio – 4
Estupro – 4
Baleado - 4
Tentativa de suborno – 3
Extorsão – 1
Pedofilia - 1
Vítima de “Bulling” – 1
Sofreu agressão – 1
Tentativa de suicídio – 1
Não cumpriu pena alternativa – 1
Agressão – 1
Ato obsceno – 1
Os delitos em Angra dos Reis estão mais relacionados ao tráfico de drogas.
Primeiramente, os dados sugerem que não há uma maciça disputa de território, a
prioridade seria a circulação de drogas, mesmo porque, de acordo com os relatos, não há
armamento pesado que justificasse uma “guerra do tráfico” ou a tomada de território
pelo estado. Haveria um mercado mais voltado para a demanda externa, envolvendo
turistas e a população local de renda mais alta.
Os territórios de pertencimento da maioria estão localizados no conjunto de
bairros que constituem a Grande Japuíba, sendo 51 domiciliados nessa região, 18 em
morros do Centro da Cidade, 2 no Balneário, 5 na Sapinhatuba, 18 do Bracuí ao
Perequê, 13 do Camorim à Garatucaia, além de 4 no Morro da Glória, 1 na Serra
D’Água, 1 no Ariró, 3 em outros municípios e 18 casos não informados.
A partir desses territórios, pretende-se investigar as escolas das adjacências e
refletir sobre as propostas que permeiam o cotidiano dessas instituições que atendem as
classes populares, que carregam esses territórios em seus corpos, em sua forma de ser e
atuar. Miguel Arroyo (2011, p.10) nos fala da
persistente precarização das vidas da infância, adolescência e
juventude popular que chegam às escolas. Percursos humanos, por
vezes inumanos, que se entrelaçam com os percursos escolares e que
desestabilizam e precarizam o trabalho nas salas de aula, no ensinaraprender os conhecimentos dos currículos. Trajetórias humanas de
tempos de alunos e mestres que se entrelaçam ora tornando a
docência um mal-estar ora instigando-a para reinventar-se, alargar-se
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para dar conta de que ao menos nos tempos de escola vivam e
vivamos experiências mais dignas e mais humanas. A escola
esperança de espaços do direito a um digno e justo viver de mestres e
educandos(as).
Nas últimas décadas ocorreu uma inegável expansão das vagas oferecidas,
especialmente no Ensino Fundamental, promovendo a democratização do acesso à
escola com a inclusão das classes populares. Todavia, nos parece que a instituição
permanece excluindo em seu interior aqueles que não possuem os conhecimentos
valorizados pela mesma, com uma lógica meritocrática e monocultural, ignorando as
linguagens utilizadas por esse grupo. Desse modo, as crianças negras, principalmente,
deparam-se com dificuldades adicionais em seu trânsito escolar, tendo que lidar com
conteúdos e práticas discriminatórias e racistas. Um exemplo é a desqualificação da
oralidade na cultura escolar.
Embora a escola possa constituir um locus de reprodução das desigualdades e
estereótipos raciais, esse mesmo espaço é também o centro de implementação de
políticas que têm como objetivo eliminar as práticas racistas. Como nos esclarece Siss
(2003),
a educação é uma arena mestra para as iniciativas que se propõem a
reduzir, senão eliminar os mecanismos que impactam fortemente e de
forma negativa, as trajetórias individual e social dos membros dos
grupos sociais colocados em posição de subalternização.
O mesmo autor afirma que as desigualdades raciais não são criações naturais, mas tem
sua gênese na lógica das relações sociais, sendo uma criação humana. São elas
mecanismos iníquos e escandalosos de estratificação social. São socialmente criadas;
podem e devem ser politicamente dirimidas.
Nesse momento, concluímos provisoriamente com mais interrogações do que
respostas. Por isso, confiamos que a trajetória da pesquisa possa nos apontar
contribuições que dialoguem com o cotidiano da escola, não no sentido de promover
intervenções ou “pacificações”, mas para que possamos reafirmar o direito de todos a
aprender e ter suas experiências, memórias e saberes valorizados.
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Livro 1 - p.004106
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esboço de uma cartografia das ações: análise dos