XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 ESBOÇO DE UMA CARTOGRAFIA DAS AÇÕES: ANÁLISE DOS CONTEXTOS E SITUAÇÕES DE VIOLÊNCIA DAS CLASSES POPULARES DE ANGRA DOS REIS Rodrigo Torquato da Silva Doutor em Educação – UFF Professor Adjunto da Faculdade de Educação da UFF Coordenador do Grupo de Pesquisa ALFAVELA Danielle Tudes Pereira Silva Pedagoga da Rede Municipal de Angra dos Reis Aluna do curso de Pós-graduação em Diversidade Cultural e Interculturalidade: Matrizes Indígenas e Africanas na Educação Brasileira PENESB/UFF Auxiliar de Pesquisa do Grupo de Pesquisa ALFAVELA O presente texto visa a apresentar os resultados preliminares de uma pesquisa em andamento realizada pelo grupo ALFAVELA (Alfabetização, Classes Populares e o Cotidiano Escolar) do Instituto de Educação de Angra dos Reis, da Universidade Federal Fluminense. Tais resultados dialogam com um conjunto de estudos, realizados ao longo de dez anos, abrangendo a relação entre as classes populares, principalmente as oriundas de favelas e periferias, e suas interlocuções com as escolas públicas que as atendem. Pretende-se, neste trabalho, consolidar práticas de pesquisas que se fundem em metodologias qualitativas, tendo o cotidiano escolar e os espaços de conformação de sociabilidades diversas das classes populares como loci principal de investigação. Foi feito um levantamento bibliográfico das monografias produzidas a partir das primeiras turmas formadas no Curso de Pedagogia da UFF em Angra dos Reis, entre os anos de 1995 e 2007. Tal levantamento permitiu não somente estabelecer o foco da pesquisa, mas um preliminar mapeamento das populações que podem ser identificadas como as classes populares de Angra dos Reis, ramificando-se em pelo menos quatro troncos mais evidentes: os quilombolas, os índios Guarani Mbya, os caiçaras que habitam as ilhas da Baía da Ilha Grande e os trabalhadores que vieram de muitas regiões do Brasil, principalmente do Nordeste, para se empregarem nas usinas e estaleiros da cidade. A pesquisa foca, mais especificamente, as experiências cotidianas nos/com os territórios e territorialidades das Classes Populares. Iniciamos um estudo analítico, de longo prazo, acerca dos contextos e das características em que se constituem os territórios e as respectivas territorialidades em que estão inseridos os estudantes das escolas públicas que atendem predominantemente as classes populares de Angra dos Reis. Palavas-chave: Cartografia da ação, desigualdades raciais, Classes populares, delitos Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004095 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Introdução O presente texto visa a apresentar os resultados preliminares de uma pesquisa em andamento realizada pelo grupo ALFAVELA – Alfabetização, Classes Populares e o Cotidiano Escolar, do Instituto de Educação de Angra dos Reis, da Universidade Federal Fluminense. Tais resultados dialogam com um conjunto de estudos, realizados ao longo de dez anos, abrangendo a relação entre as classes populares, principalmente as oriundas de favelas e periferias, e suas interlocuções com as escolas públicas que as atendem. Pretende-se, neste trabalho, consolidar práticas de pesquisas que se fundem em metodologias qualitativas, tendo o cotidiano escolar e os espaços de conformação de sociabilidades diversas das classes populares como loci principal de investigação. Foi feito um levantamento bibliográfico das monografias produzidas a partir das primeiras turmas formadas no Curso de Pedagogia da UFF em Angra dos Reis, entre os anos de 1995 e 2007. Tal levantamento permitiu não somente estabelecer o foco da pesquisa, mas um preliminar mapeamento das populações que podem ser identificadas como as classes populares de Angra dos Reis, ramificando-se em pelo menos quatro troncos mais evidentes: os quilombolas, os índios Guarani Mbya, os caiçaras que habitam as ilhas da Baía da Ilha Grande e os trabalhadores que vieram de muitas regiões do Brasil, principalmente do Nordeste, para se empregarem nas usinas e estaleiros da cidade. À guisa de contextualização, o município de Angra dos Reis conta com uma população de aproximadamente 169.270 habitantes, de acordo com o Censo 2010 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - <http://www.ibge.gov.br. Acesso em 13 de fevereiro de 2012). Localizado no litoral fluminense, entre a serra e o mar, sua história constitui um exemplo em pequena escala do processo de colonização empreendido em terras brasileiras, caracterizado em grande medida pela exploração e os conflitos por terra. A região participou dos ciclos econômicos da cana-de-açúcar, do tráfico de africanos escravizados, do ciclo do ouro e do café. No século XX, o município tornou-se palco de grandes empreendimentos econômicos: a criação do estaleiro Verolme, a implantação do Terminal Petrolífero da Ilha Grande (TEBIG), a construção das usinas nucleares Angra 1 e 2 e a construção da rodovia BR 101. Esses grandes investimentos causaram um crescimento desordenado, resultando em uma expansão urbana sem planejamento, principalmente em direção aos Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004096 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 morros da cidade, por conta da limitação dos espaços planos e da especulação imobiliária. Nesse mesmo período, a atividade turística adquire importância, principalmente com o chamado turismo classe A, envolvendo turistas de alta renda do país e do exterior. A mídia exibe imagens de uma região paradisíaca, com suas mais de trezentas ilhas, cercada pela exuberante mata atlântica e águas cristalinas, o que se confirma para aqueles que chegam à cidade em seus helicópteros e se dirigem às suas ilhas particulares. Infelizmente, boa parte da população, que se dirige todos os dias para o trabalho, não de jet ski ou lancha, mas utilizando o transporte público (que como em boa parte do nosso país oferece um serviço insatisfatório), sabe que o desenvolvimento desigual, a precariedade dos serviços públicos, a pobreza e a corrupção constituem também o cotidiano local. Embora a população local se oponha veementemente à ideia de que existam favelas em Angra dos Reis, de acordo com a pesquisa sobre aglomerados subnormais realizada no censo 2010 do IBGE, Angra dos Reis é o décimo município do país com maior percentual de domicílios em favelas. Conforme o site do IBGE, o Manual de Delimitação dos Setores do Censo 2010 classifica como aglomerado subnormal cada conjunto constituído de, no mínimo, 51 unidades habitacionais carentes, em sua maioria, de serviços públicos essenciais, ocupando ou tendo ocupado, até período recente, terreno de propriedade alheia (pública ou particular) e estando dispostas, em geral, de forma desordenada e densa. Muitos questionamentos poderiam ser feitos em relação ao uso do termo que em si carrega as marcas do preconceito em relação a esses espaços já que subnormal significa, de acordo com o dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, o que é próximo do normal, porém abaixo ou aquém dele, ou seja, espaços fora do padrão, da lei, do aceitável, os mesmos adjetivos utilizados para qualificar suas populações. Com todas as restrições, esse é um dado que merece atenção, principalmente por se opor à imagem de Angra dos Reis como souvenir, provocando-nos com uma imagem diferente daquela exposta a partir da Ilha de Caras, por exemplo. Como já foi dito, a pesquisa foca, mais especificamente, as experiências cotidianas nos/com os territórios e territorialidades das Classes Populares. Iniciamos um estudo analítico, de longo prazo, acerca dos contextos e das características em que se constituem os territórios e as respectivas territorialidades em que estão inseridos os estudantes das escolas públicas que atendem predominantemente as classes populares de Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004097 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Angra dos Reis. Compreendemos, como Milton Santos, que não cabe tomar o território como elemento isolado de análise. Tal conceito só adquire sentido quando o pensamos nas relações com seus atores, ou seja, como “um território usado, de modo a incluir todos os atores”. (SANTOS, 2000, p. 26) Outras definições relevantes orientam nossas concepções acerca da temática, o que justifica a não tão breve citação: Entendendo território no sentido amplo, percebemos que essa “necessidade territorial” ou de controle e apropriação do espaço pode estender-se desde um nível mais físico ou biológico (enquanto seres com necessidades básicas como água, ar, alimento, abrigo para repousar), até um nível mais imaterial ou simbólico (enquanto seres dotados do poder da representação e da imaginação e que a todo instante re-significam e se apropriam simbolicamente do seu meio), incluindo todas as distinções de classe socioeconômica, gênero, grupo etário, etnia, religião etc. (COSTA, 2004) Assim, para que pudéssemos apropriarmo-nos minimamente dos contextos que podem sugerir uma interpretação do nível mais imaterial ou simbólico das classes populares em questão na pesquisa, propomos a análise dos periódicos locais mais populares para ver de que forma eles possibilitam leituras e mapeamentos dos contextos e das ações dos grupos pesquisados e a representação dessas ações, bem como o rol de infrações e delitos relatados. Metodologia Inicialmente, trabalhamos com a análise e a tabulação de um periódico popular, A CIDADE, que circula no município pesquisado. O período de análise inicia no mês de maio de 2011, até sua edição mais recente. No entanto, faz-se mister ressaltar que esses são os primeiros levantamentos de uma pesquisa de longo prazo. É de nossa pretensão expandir o trabalho com mais dados, oriundos de outras linhas de pesquisas que fazem interlocução com a temática e são desenvolvidas pelo Grupo de Pesquisa ALFAVELA. Cabe mencionar, ainda, que não interessa tratar a fonte dos dados, o periódico “A cidade”, como narrativa e/ou fonte qualificada cientificamente e neutra de intenções, até porque nosso entendimento é de que toda narrativa tem como autor um Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004098 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 sujeito dotado de intenções e de subjetividade construídas nas interações sociais e políticas. Ademais, os vínculos mantidos pelo jornal e suas fontes de recursos são relevantes ao considerarmos suas opções. Debruçamo-nos sobre o referido periódico durante um período de sete meses, analisando os sujeitos, os contextos e os lugares através das fotografias e das narrativas apresentadas. Devemos lembrar inclusive que o próprio jornal faz uma seleção dos casos que serão divulgados e que alguns não são acompanhados por fotos, logo, não sendo considerados nas nossas interpretações fenotípicas a respeito das pessoas apresentadas. Desse universo, realizamos alguns recortes entre os quais, para nossa linha de pesquisa, um dos focos é a questão racial. Cabe abrirmos um parêntese para considerar que o emprego do termo ‘raça’ é controverso, motivo de discussão em diferentes meios e que dadas as dificuldades de diferenciação entre ‘raça’ e ‘etnia’, grande parte da literatura utiliza os dois termos. O conceito de ‘raça’ opera a partir de uma classificação que toma a cor da pele como critério, constituindo uma divisão em raça branca, amarela e negra que ainda hoje persiste nas relações sociais, permeando o imaginário coletivo. Esse mesmo conceito se solidifica no século XIX com argumentos pseudocientíficos, que sustentariam as raízes do racismo baseado na hierarquização. Hoje, as ciências biológicas demonstraram que não há critérios científicos que justifiquem seu uso. Porém, enquanto construção histórica, a eliminação do vocábulo não garante que o mesmo seja banido de seu uso social e político, por isso substituir raça por etnia não garante, por si só, a extinção do racismo, embora o último tenha um significado mais abrangente, já que uma etnia “é um conjunto de indivíduos que, histórica ou mitologicamente, têm um ancestral comum, têm uma língua em comum, uma mesma religião ou cosmovisão, uma mesma cultura e moram geograficamente num mesmo território”. (MUNANGA, 2000, p. 28) A questão racial se coloca como uma preocupação central, uma vez que a busca pela democratização da sociedade e, consequentemente da escola, tem sido bandeira de luta daqueles que não se deixam enganar pelos discursos que proclamam democracia racial ou igualdade de oportunidades. Mitos que não se sustentam já que não há possibilidade de equidade e justiça em uma sociedade racista. São esses os mesmos discursos que muitas vezes justificam o silêncio frente às manifestações de discriminação racial, já que o racista nega sistematicamente esse quadro e o justifica. Pactuamos com Moore (2007) quando afirma que Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004099 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 todos os argumentos apresentados em sentido inverso, todas as estatísticas aduzidas para demonstrar a prevalência, na América Latina, de um espantoso quadro da opressão racial são insuficientes; o racista é imune a tudo quanto não sejam as razões para a manutenção dos privilégios unilaterais que desfruta na sociedade. Nesse momento, não apontamos o uso de metodologias de pesquisa antes do diálogo com os dados e das incursões pelo campo, pois compreendemos que fazer pesquisa não é subordinar a “realidade” a um arcabouço metodológico construído a priori ou mesmo por possíveis “discursos-verdades” teóricos cristalizados. Somente a partir do mergulho nos contextos pesquisados é que buscamos os melhores instrumentos metodológicos e as teorias que nos ajudem a construir as primeiras análises. Assim, estabelecemos os procedimentos e as ferramentas que podem nos auxiliar nesse mapeamento. O fato de afirmar a nossa opção de utilização dos métodos e teorias concomitante ao mergulho nos contextos não significa que buscamos o ineditismo. Ao contrário, bebemos em muitas fontes, entre as quais, nos estudos e pesquisas realizados pela professora Ana Clara Torres Ribeiro, do LASTRO-UFRJ, que nos oferece um debate metodológico sobre a teoria da ação a partir de uma metodologia denominada “cartografia da ação”. Esse movimento inicial da pesquisa tem origem em nossa necessidade de ampliar e qualificar a crítica acerca das opressões historicamente sofridas pelas classes populares, bem como as lutas e táticas subversivas resultantes das resistências, que criam possibilidades de ações políticas e pedagógicas. Concordamos com Sandra Mara Corazza ao afirmar que fazer pesquisa, constituir um problema de pesquisa é: ...começar a suspeitar de todo e qualquer sentido consensual, de toda e qualquer concepção partilhada, com os quais estamos habituadas/os; indagar se aquele elemento do mundo – da realidade, das coisas, das práticas, do real – é assim tão “natural” nas significações que lhe são próprias; duvidar dos sentidos cristalizados, dos significados que são transcendentais e que possuem estatuto de verdade (seja esta verdade científica, mágica, artística, filosófica, psicanalítica, religiosa, biológica, política, etc.); recear a eternidade, o determinismo, a ordem, a estabilidade, a segurança, a solidez, o rigor, Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004100 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 o universal, o apaziguado. Em suma, criar um problema de pesquisa é virar a própria mesa, rachando os conceitos e fazendo ranger as articulações das teorias. (CORAZZA, 1996) As análises preliminares dos periódicos referem-se a 134 casos que acompanham fotos a partir das quais realizamos uma classificação racial utilizando as categorias do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), que apresenta como opções para cor ou raça no censo 2010: preta, parda, branca, indígena ou amarela. Trabalhamos com a heteroclassificação, ou seja, a partir da observação dos traços fenotípicos, distribuímos os casos entre as categorias disponíveis. Assumimos as limitações que o método de identificação envolve, inclusive considerando a imprecisão de algumas imagens, mas consideramos esse procedimento mais adequado nesse primeiro momento. Breves considerações à guisa de resultados iniciais Observamos que o espaço do delito demonstrado pelo periódico analisado é predominantemente masculino, havendo apenas sete ocorrências envolvendo mulheres. Dentre os casos, pretos e pardos constituem maioria, sendo 49 pretos, 56 pardos e 22 brancos (sete casos sem foto). Se agregarmos as categorias pretos e pardos (como procede o Movimento Negro), tomando-os como negros, registramos 105 negros e 22 brancos. A faixa etária abrange de 18 a 58 anos, estando a maioria situada entre os 18 e os 35 anos. Os primeiros dados nos levam a algumas indagações. Inicialmente, levantamos a hipótese de que haveria um número considerável de delitos cometidos por menores, mas percebemos que esse momento inicial apresenta uma concentração maior em uma faixa etária mais elevada. Onde estariam os menores infratores? O que os mais novos estão fazendo? Nesse sentido, supomos que os programas sociais (Bolsa Escola, Bolsa Família, etc) têm mantido esse contingente no espaço da escola, configurando-se como um cercado que ameniza a criminalidade aproximadamente até os 18 anos. Também podemos alegar que a repressão policial seja fortíssima nessa faixa etária. Essas questões carecem de aprofundamento e precisamos considerar como já citado, os limites do recorte realizado para a análise. Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004101 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Os dados também evidenciam a vulnerabilidade dos jovens negros nas favelas e periferias, sendo esse contingente vítima de execuções e assassinatos, sofrendo a precariedade dos serviços públicos (transporte, saúde, educação) e as dificuldades nas “áreas duras”, conceito que Livio Sansone (1996, p. 183) define como aquelas onde as possibilidades de trânsito para os negros é mínima ou inexistente, como o mercado de trabalho, o matrimônio e os contatos com a polícia. Perguntamos-nos como pode uma sociedade democrática se configurar de maneira tão desigual. A partir do alto número de execuções/assassinatos, podemos julgar que há um extermínio da população negra em um espaço de tensão histórica que não é recente, mas nos remete ao período colonial. Poderíamos compreender as ações desses sujeitos como atos de resistência? Dentro de uma sociedade capitalista, desigual, tendo pouco acesso aos bens de consumo, que opções são oferecidas a esse grupo? Como se configurou sua trajetória pela escola? E nos perguntamos ainda, qual é a cor dos dominantes, representados como a elite que ocupa os cargos de comando, os lugares de poder (diretores de escolas, prefeito, vereadores, comerciantes)? Qual é a origem escolar daqueles que ocupam os lugares de poder? As narrativas do periódico sobre a criminalidade utilizam muitos termos próprios do universo policial. Nos textos não há pessoas, mas sim indivíduos e elementos e as palavras mais recorrentes para qualificar os acusados são: traficante, marginal, malandro, meliante, bandido, ladrão, tarado e mulherengo. As ações policiais são sempre qualificadas como positivas e nenhuma das notícias aponta outras alternativas de intervenção. Sustentamos, como Milton Santos (2000, p. 25), que o poder público não cuida dos verdadeiros problemas da população e diante dos conflitos sociais mobiliza um formidável aparelho de informação para dizer que a solução é mais polícia e não melhor política. A nação pode apodrecer, mas a discussão é a segurança pública, não é a civilização. Além desses aspectos, que nos dizem bastante sobre as representações das classes populares presentes nesse periódico e que explicitam uma determinada visão de mundo, temos que enxergar o que não é dito, as entrelinhas e sinais que nos remetem ao Paradigma Indiciário de Ginzburg, pois em alguns casos “é preciso não se basear (exclusivamente) como normalmente se faz, em características mais vistosas... Pelo Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004102 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 contrário, é necessário examinar os pormenores mais negligenciáveis”. (GINZBURG, 1989, p. 144) A partir daí apontamos que o trabalho com uma metodologia que valorize as histórias de vida e as trajetórias dos sujeitos (SILVA, 2010) pode nos permitir estabelecer nexos empíricos, sempre difíceis, entre os múltiplos contextos em que se inserem os sujeitos, suas trajetórias e as estruturas a que estão submetidos. Ao mapear as ações e os contextos das classes populares representadas nos periódicos pesquisados é possível conhecer não somente as trajetórias, mas ir ao encontro dos percursos escolares feitos por cada um deles, explicitando as opções com as quais se deparam e alguns dos conjuntos de alternativas que tiveram. Isso, acreditamos, nos possibilitará compreender melhor suas escolhas e a forma como estas foram construindo os seus perfis de comportamentos, em diálogo com os territórios-territorialidades que os constituíram enquanto sujeitos, estabelecendo, com isso, uma relação entre as biografias e o lugar. Só uma história de vida permite captar o modo como cada pessoa, permanecendo ela própria, se transforma. Só uma história de vida põe em evidência o modo como cada pessoa mobiliza os seus conhecimentos, os seus valores, as suas energias, para ir dando forma à sua identidade, num diálogo com os seus contextos. Numa história de vida podem identificar-se as continuidades e as rupturas, as coincidências no tempo e no espaço, as “transferências” de preocupações e de interesses, os quadros de referência presentes nos vários espaços do quotidiano. (GOODSON, 1992, p.75) Nos delitos noticiados nos periódicos há uma predominância de narrativas de ocorrências de tráfico de drogas. É interessante perceber que mesmo em casos em que a quantidade de entorpecentes encontrados com os supostos “meliantes” é menor do que aquela que nos autos da lei configura tráfico, o texto insinua, na maioria das vezes, que as pessoas tinham “envolvimento com o tráfico”. Observemos, abaixo, alguns números dos delitos-crimes, expressos nos periódicos, oriundos das tabulações já feitas na pesquisa. Tráfico – 46 Foram executados/assassinados – 31 Porte ilegal de armas – 14 Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004103 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Roubo – 9 Furto – 6 Homicídio - 5 Tentativa de homicídio – 4 Estupro – 4 Baleado - 4 Tentativa de suborno – 3 Extorsão – 1 Pedofilia - 1 Vítima de “Bulling” – 1 Sofreu agressão – 1 Tentativa de suicídio – 1 Não cumpriu pena alternativa – 1 Agressão – 1 Ato obsceno – 1 Os delitos em Angra dos Reis estão mais relacionados ao tráfico de drogas. Primeiramente, os dados sugerem que não há uma maciça disputa de território, a prioridade seria a circulação de drogas, mesmo porque, de acordo com os relatos, não há armamento pesado que justificasse uma “guerra do tráfico” ou a tomada de território pelo estado. Haveria um mercado mais voltado para a demanda externa, envolvendo turistas e a população local de renda mais alta. Os territórios de pertencimento da maioria estão localizados no conjunto de bairros que constituem a Grande Japuíba, sendo 51 domiciliados nessa região, 18 em morros do Centro da Cidade, 2 no Balneário, 5 na Sapinhatuba, 18 do Bracuí ao Perequê, 13 do Camorim à Garatucaia, além de 4 no Morro da Glória, 1 na Serra D’Água, 1 no Ariró, 3 em outros municípios e 18 casos não informados. A partir desses territórios, pretende-se investigar as escolas das adjacências e refletir sobre as propostas que permeiam o cotidiano dessas instituições que atendem as classes populares, que carregam esses territórios em seus corpos, em sua forma de ser e atuar. Miguel Arroyo (2011, p.10) nos fala da persistente precarização das vidas da infância, adolescência e juventude popular que chegam às escolas. Percursos humanos, por vezes inumanos, que se entrelaçam com os percursos escolares e que desestabilizam e precarizam o trabalho nas salas de aula, no ensinaraprender os conhecimentos dos currículos. Trajetórias humanas de tempos de alunos e mestres que se entrelaçam ora tornando a docência um mal-estar ora instigando-a para reinventar-se, alargar-se Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004104 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 para dar conta de que ao menos nos tempos de escola vivam e vivamos experiências mais dignas e mais humanas. A escola esperança de espaços do direito a um digno e justo viver de mestres e educandos(as). Nas últimas décadas ocorreu uma inegável expansão das vagas oferecidas, especialmente no Ensino Fundamental, promovendo a democratização do acesso à escola com a inclusão das classes populares. Todavia, nos parece que a instituição permanece excluindo em seu interior aqueles que não possuem os conhecimentos valorizados pela mesma, com uma lógica meritocrática e monocultural, ignorando as linguagens utilizadas por esse grupo. Desse modo, as crianças negras, principalmente, deparam-se com dificuldades adicionais em seu trânsito escolar, tendo que lidar com conteúdos e práticas discriminatórias e racistas. Um exemplo é a desqualificação da oralidade na cultura escolar. Embora a escola possa constituir um locus de reprodução das desigualdades e estereótipos raciais, esse mesmo espaço é também o centro de implementação de políticas que têm como objetivo eliminar as práticas racistas. Como nos esclarece Siss (2003), a educação é uma arena mestra para as iniciativas que se propõem a reduzir, senão eliminar os mecanismos que impactam fortemente e de forma negativa, as trajetórias individual e social dos membros dos grupos sociais colocados em posição de subalternização. O mesmo autor afirma que as desigualdades raciais não são criações naturais, mas tem sua gênese na lógica das relações sociais, sendo uma criação humana. São elas mecanismos iníquos e escandalosos de estratificação social. São socialmente criadas; podem e devem ser politicamente dirimidas. Nesse momento, concluímos provisoriamente com mais interrogações do que respostas. Por isso, confiamos que a trajetória da pesquisa possa nos apontar contribuições que dialoguem com o cotidiano da escola, não no sentido de promover intervenções ou “pacificações”, mas para que possamos reafirmar o direito de todos a aprender e ter suas experiências, memórias e saberes valorizados. Junqueira&Marin Editores Livro 1 - p.004105 XVI ENDIPE - Encontro Nacional de Didática e Práticas de Ensino - UNICAMP - Campinas - 2012 Bibliografia ARROYO, Miguel, G. Currículo, território em disputa. Petrópolis, RJ: Vozes, 2011. CORAZZA, Sandra Mara. Labirintos da Pesquisa, diante dos ferrolhos. 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