Revista Espaço Acadêmico, nº 88, setembro de 2008
http://www.espacoacademico.com.br/088/88praxedes.pdf
Ensaio sobre a cegueira: a cegueira como metáfora no livro de José
Saramago
Walter Praxedes*
No romance Ensaio sobre a cegueira (1995), de José Saramago, a cegueira descrita é
representada através de inúmeras metáforas. Já no início da narrativa as personagens são
acometidas pelo chamado "mal branco", impossível de ser diagnosticado como um dos tipos
já conhecidos de cegueira. Considerando a cegueira como metáfora, ao longo deste romance
Saramago tenta explicar como as pessoas vão se tornando cegas no mundo contemporâneo,
como inexplicavelmente ocorreu com o primeiro cego, primeira personagem apresentada na
narrativa, que cegou quando conduzia o seu automóvel: de repente a realidade tornou-se
indiferenciada à sua volta.
Quando o "primeiro cego" chegou ao consultório do oftalmologista para tentar descobrir uma
solução para o seu problema de visão, o médico considerou o caso urgente e passou-o à frente
dos demais pacientes que aguardavam pela consulta. Porém, a mãe de um menino que
aguardava sua vez não se sensibilizou diante da urgência do paciente inesperado e
"...protestou que o direito é o direito, e que ela estava em primeiro lugar, e à espera a mais de
uma hora. Os outros doentes apoiaram- na em voz baixa, mas nenhum deles, nem ela própria,
acharam prud ente insistir na reclamação, não fosse o médico ficar ressentido e depois pagarse da impertinência fazendo-os esperar ainda mais" (EC: 22).
A pressa e insensibilidade desses pacientes diante de um indivíduo com um problema
considerado mais urgente pelo médico talvez seja um primeiro indício apresentado pelo
narrador de que a cegueira pode ser provocada pelo distanciamento existente entre os
indivíduos nas sociedades modernas. Um distanciamento que leva cada um a observar apenas
os seus próprios interesses, interesses tais que só serão limitados pelo cálculo da
conveniência: "...na verdade, sentencia o narrador deste romance, ainda está por nascer o
primeiro ser humano desprovido daquela segunda pele a que chamamos egoísmo, bem mais
dura que a outra, que por qualquer coisa sangra" (EC: 169).
O egoísmo como cegueira é novamente mencionado quando o transeunte que ajuda o primeiro
cego a voltar para casa aproveita-se da ocasião para roubar-lhe o automóvel. Mas o narrador
não realiza um julgamento apressado da atitude do ladrão, e considera-o um "...simples
ladrãozeco de automóveis sem esperança de avanço na carreira, explorado pelos verdadeiros
donos do negócio, que esses é que se vão aproveitando das necessidades de quem é pobre"
(EC: 25). Pelo visto, o narrador relativiza a importância do crime do roubo para colocar em
evidência o seu julgamento sobre os motivos que levam os indivíduos a buscarem os seus
interesses por meios escusos: "...No fim das contas, estas ou outras, não é assim tão grande a
diferença entre ajudar um cego para depois o roubar e cuidar de uma velhice caduca e
tatibitate com o olho posto na herança" (EC: 25).
*
Docente na Universidade Estadual de Maringá, Departamento de Ciências Sociais; Doutor em Educação pela
USP e co-autor de O Mercosul e a sociedade global (São Paulo, Ática, 1998) e Dom Hélder Câmara: Entre o
poder e a profecia, publicada no Brasil pela Editora Ática (1997) e na Itália pela Editrice Queriniana (1999).
Diante das necessidades animais os humanos deixam em segundo plano os seus vínculos
afetivos e princípios morais, como o faz o rapazito estrábico que diante da fome deixa de
chorar a ausência da mãe, e como fazem os cegos que preferem seguir as "razões do
estômago" a se preocuparem com o destino dos colegas de infortúnio que são mortos quando
tentavam alcançar as caixas de alimentos deixadas pelos soldados no pátio do manicômio, e
"...ninguém parecia interessado em saber quem tinha morrido" (EC: 92).
A personagem "rapariga dos óculos escuros" também será apresentada na narrativa com a
mesma generosidade com que, a princípio, o narrador tentou relativizar a atitude do "ladrão de
automóvel". Considerada prostituta, a moça é defendida dos julgamentos preconceituosos,
peremptórios e definitivos: "Ela tem, como a gente normal, uma profissão, e também como a
gente normal, aproveita as horas que lhe ficam para dar algumas alegrias ao corpo e
suficientes satisfações às necessidades, as particulares e as gerais. Se não se pretender reduzila a uma definição primária, o que finalmente se deverá dizer dela, em lato sentido, é que vive
como lhe apetece e ainda por cima tira daí o prazer que pode." (EC: 31)
A simpatia do narrador para com a personagem "rapariga dos óculos escuros" provoca uma
nova absolvição da moça, desta vez no episódio em que ela reage ao assédio sexual do "ladrão
de automóveis", causando- lhe um ferimento na perna, mesmo se depois tal ferimento levará o
ladrão a procurar a ajuda de um soldado, recebendo por isso uma inesperada rajada de tiros.
Numa digressão, o narrador menciona, então, um tipo de cegueira impossível de ser superada
pelos humanos, que é a cegueira provocada pela impossibilidade de previsão de todas as
conseqüências, desejadas ou não, do seus atos:
"... se antes de cada acto nosso nos puséssemos a prever todas as consequências dele, a pensar
nelas a sério, primeiro as imediatas, depois as prováveis, depois as possíveis, depois as
imagináveis, não chegaríamos sequer a mover-nos de onde o primeiro pensamento nos tivesse
feito parar. Os bons e os maus resultados dos nossos ditos e obras vão-se distribuindo, supõese que de uma forma bastante uniforme e equilibrada, por todos os dias do futuro, incluindo
aqueles, infindáveis, em que já cá não estaremos para poder comprová-lo, para congratular-nos
ou pedir perdão, aliás, há quem diga que isso é que é a imortalidade de que tanto se fala" (EC:
84).
Cegueira é também a insensibilidade e a indiferença diante do infortúnio do outro, como as
sofre o próprio médico ao tentar avisar o Ministério da Saúde sobre a epidemia de cegueira. O
médico, então, conclui: "É desta massa que nós somos feitos, metade de indiferença e metade
de ruindade" (EC: 40). Para se livrarem rapidamente de suas responsabilidades, enquanto o
Ministro da Saúde e seu assessor acreditavam que o problema atingiria apenas uma minoria,
trataram de isolar os cegos contagiados em um manicômio de modo a que estivessem longe da
vista dos demais e não pudessem incomodar, analogamente à maneira como as sociedades
modernas tratam os indivíduos considerados loucos. Ao chegarem ao local em que ficariam
reclusos, o médico e sua esposa percebem o significado do tratamento que estão recebendo:
"Isto é uma loucura", constata o médico, e sua esposa concorda: "Deve ser, estamos num
manicômio" (EC: 48).
Para isolar os cegos do restante da sociedade ainda sã, o governo dirige aos cegos um
tratamento disciplinar impessoal, hierarquizado e autoritário, transformando o manicômio em
um campo de concentração, como se pode constatar no comunicado divulgado aos internos
através de um alto falante:
"O Governo está perfeitamente consciente das suas responsabilidades e espera que aqueles a
quem esta mensagem se dirige assumam também, como cumpridores cidadãos que devem de
ser, as responsabilidades que lhes competem, pensando que o isolamento em que agora se
encontram representará, acima de quaisquer outras considerações pessoais, um acto de
solidariedade para com o resto da comunidade nacional. Dito isto, pedimos a atenção de todos
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para as instruções que se seguem, primeiro, as luzes manter-se-ão sempre acesas, será inútil
qualquer tentativa de manipular os interruptores, não funcionam, segundo, abandonar o
edifício sem autorização significará morte imediata... décimo quinto, esta comunicação será
repetida todos os dias, a esta mesma hora, para conhecimento dos novos ingressados. O
Governo e a Nação esperam que cada um cumpra o seu dever. Boas noites" (EC: 50-51).
De fato, logo que um dos cegos necessitou de medicamentos para um ferimento ocorrido em
um conflito com a rapariga dos óculos escuros, a quem tentara molestar, e se dirigiu para o
portão para falar com os soldados que guardavam o manicômio, recebeu uma rajada de tiros a
queima-roupa e morreu. A atitude do soldado revela tanto o seu medo de cegar quanto a
cegueira representada pelo cumprimento estrito da ordem recebida por ele para não tolerar as
indisciplinas dos cegos. O narrador demonstra com isso que tanto o medo de cegar quanto o
cumprimento cego às normas tornam os indivíduos cegos diante das necessidades dos outros.
Comentando a ação do seu subordinado o sargento responsável pela guarda do manicômio
não se mostrou menos insensível: "Deste- lhe cabo do canastro, disse. Depois, lembrando-se
das rigorosas ordens que lhe haviam sido dadas, gritou, Cheguem-se para trás, isto pega-se"
(EC: 81). Mais adiante na narrativa, o sargento e os soldados também ficam cegos, numa
indicação de que medo, insensibilidade e crueldade também compõem o rol dos males do
espírito que levam à cegueira descrita por Saramago.
Um grupo de cegos denominados pelo narrador como "cegos malvados" percebeu que se
usasse da violência poderia extorquir os poucos objetos de importância financeira que
porventura ainda estivessem em poder dos demais cegos, seqüestrando a comida que era
depositada no pátio pelos soldados. E então, "...onde deveria ter sido um por todos e todos por
um, pudemos ver como cruelmente tiraram os fortes o pão da boca aos débeis... (EC: 205). Na
busca do lucro, mesmo que ilusório, os cegos malvados decidem exigir um pagamento pela
entrega da comida antes destinada a todos, mas por eles saqueada. Por isso o narrador vai
considerar essa disputa pela vantagem na distribuição dos alimentos como uma forma de
cegueira. Diante do horror provocado pelas disputas por comida, a mulher do médico sente o
desconforto de continuar a ver e a testemunhar a degradação humana e se sente
momentaneamente incapaz de lutar contra a opressão exercida pelos cegos malvados. Além
do testemunho da mulher do médico o narrador especula com a hipótese da presença de um
escritor, um "cego contabilista", registrando a opressão e a exploração de uns cegos por outros
cegos. Sua conclusão é que o escritor acaba optando pelo lado mais conveniente aos seus
interesses imediatos e egoístas:
"Chegando a este ponto, o cego contabilista, cansado de descrever tanta miséria e dor, deixaria
cair sobre a mesa o punção metálico, buscaria com mão trêmula o bocado de pão duro que
havia deixado a um lado enquanto cumpria a sua obrigação de cronista do fim dos tempos,
mas não o encontraria, porque outro cego, de tanto lhe pôde valer o olfato nesta necessidade, o
tinha roubado. Então, renegando o gesto fraterno, obnegado impulso que o tinha feito acudir a
este lado, decidiu o cego contabilista que o melhor, se ainda ia a tempo, seria regressar à
terceira camarata lado esquerdo, ao menos, lá, por muito que se lhe esteja revolvendo o
espírito de honesta indignação contra as injustiças dos malvados, não passará fome." (EC:
161)
Logo depois, os cegos malvados decidiram novamente chantagear os demais, oferecendo- lhes
a comida que estava em seu poder somente se as mulheres se submetessem aos seus desejos.
O narrador parece demonstrar, assim, que pode não haver limite para a degradação humana.
Entre os cegos passa a ocorrer, então, um debate moral em torno da possibilidade de
atenderem ou não a exigência dos cegos malvados: "O primeiro cego começara por declarar
que mulher sua não se sujeitaria à vergonha de entregar o corpo a desconhecidos em troca do
que fosse, que nem ele o quereria nem ele o permitiria, que a dignidade não tem preço, que
uma pessoa começa por ceder nas pequenas coisas e acaba por perder todo o sentido da vida"
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(EC: 167). O discurso do marido pareceu desproposital à esposa que contestou-o: "Sou tanto
como as outras, faço o que elas fizerem". O marido resistiu: "Só fazes o que eu mandar...", E a
esposa retorquiu: "Deixa-te de autoridades, aqui não te servem de nada, estás tão cego como
eu". O marido ainda tentou uma admoestação moral contra a esposa: "É uma indecência".
Mas a esposa se revela consciente de sua condição de igualdade em relação ao marido e às
outras mulheres: "Está na tua mão não seres indecente, a partir de agora não comas..." E o
narrador concluiu o debate: "...foi esta a cruel resposta, inesperada em pessoa que até hoje se
mostrara dócil e respeitadora do seu marido". (EC: 168). A decisão do grupo será atender à
exigência dos cegos malvados, submetendo o corpo das mulheres à violência do outro grupo
em troca dos alimentos. Em meio à degradação de suas vidas os cegos se apegarão ao que lhes
parecerá como essencial. Mesmo as convenções morais mais arraigadas no imaginário
individual e coletivo cedem diante da necessidade de alimentos e do medo da opressão
exercida pelos malvados. A decisão de acatar a exigência dos cegos malvados será assimilada
pelo grupo com um verdadeiro ritual sexual assim descrito pelo narrador:
"Há que dizer, ainda, que duplamente estão estas mulheres folgando, assim são os mistérios da
alma humana, pois a ameaça, de todos os modos próxima, da humilhação a que irão ser
sujeitas, acordou e exacerbou, dentro de cada camarata, apetites sensuais que a continuação da
convivência havia debilitado, era como se os homens estivessem pondo nas mulheres
desesperadamente a sua marca antes que lhas levassem, era como se as mulheres quisessem
encher a memória de sensações experimentadas voluntariamente para melhor se poderem
defender da agressão daquelas que, podendo ser, recusariam." (EC: 169)
Aos poucos os humanos vão retornando, assim, à sua condição animal, suspensas muitas das
suas aquisições culturais. Inúmeras são as situações em que o comportamento dos cegos no
manicômio é descrito como próprio de animais: Desconfiados os cegos ficavam "...tensos, de
pescoço estendido como se farejassem algo..." (EC: 49); eram "trazidos em rebanho" e
"esbarravam uns nos outros" (EC: 72); se movimentavam "...de gatas, de cara rente ao chão
como suínos" e os soldados os viam como "...imbecis que se moviam diante dos seus olhos
como caranguejos coxos, agitando as pinças trôpegas à procura da perna que lhes faltava"
(EC: 105). Os relaciona mentos sexuais entre os cegos eram recriminados por eles mesmos
como próprios de porcos. Quando as mulheres chegam à camarata dos malvados para atender
suas exigências, o comportamento deles é descrito como se fosse de animais: "De dentro
saíram gritos, relinchos, risadas... Depressa, meninas, entrem, entrem, estamos todos aqui
como uns cavalos, vão levar o papo cheio, dizia um deles... Os cegos relincharam, deram
patadas no chão...".
O líder dos cegos malvados, portador de uma arma que lhe garantia a submissão dos demais,
comportava-se como um gorila que escolhe para si as fêmeas do grupo: "...Excitado, enquanto
continuava a apalpar a rapariga, passou à mulher do médico, assobiou outra vez, esta é das
maduras, mas tem jeito de ser também rica fêmea. Puxou para si as duas mulheres, quase se
babava quando disse, Fico com estas, depois de as despachar passo-as a vocês". (EC: 176)
Quando terminava o ato sexual com a rapariga dos óculos escuros, o líder dos cegos malvados
"...sacudiu-se todo, deu três sacões vio lentos como se cravasse três espeques, resfolegou como
um cerdo engasgado, acabara" (EC: 177).
Uma das mulheres não resiste aos maus tratos recebidos e morre. A violência sofrida pela
morta, agride psicologicamente às demais mulheres e a mulher do médico conclui, ao retornar
à sua camarata e ao seu esposo: "...já não somos as mesmas mulheres que daqui saímos... o
inominável existe, é esse o seu nome, nada mais" (EC: 179).
O narrador também dá a voz a um cego que, como um animal domesticado que a tudo se
adapta, aceita cômoda e fatalisticamente a situação em que viviam os cegos reclusos:
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"Que isto, meus senhores, é comer e dormir. Bem vistas as coisas, nem se está mal de todo.
Desde que a comida não venha a faltar, sem ela é que não se pode viver, é como estar num
hotel. Ao contrário, que calvário seria o de um cego lá fora, na cidade, sim, que calvário.
Andar aos tombos pelas ruas, todos a fugirem dele, a família apavorada, com medo de se
aproximar, amor de mãe, amor de filho, histórias, se calhar faziam-me o mesmo que me fazem
aqui, fechavam-me num quarto e punham-me o prato à porta por muito favor. Olhando a
situação a frio, sem preconceitos nem ressentimentos que sempre obscurecem o raciocínio,
havia que reconhecer que as autoridades tiveram visão quando decidiram juntar cegos com
cegos, cada qual com seu igual, que é a boa regra da vizinhança, como os leprosos..." (EC:
109).
O medo, o comodismo e o fatalismo levam uma pessoa a se habituar a tudo, "...sobretudo se
deixou de ser pessoa..." (EC: 218). Para o narrador e suas personagens, a tolerância às
situações de opressão são também sintomas de cegueira: "O medo cega, disse a rapariga dos
óculos escuros, São palavras certas, já éramos cegos no momento em que cegamos, o medo
nos cegou, o medo nos fará continuar cegos..." (EC: 131)
Numa próxima noite de horror e violência contra as mulheres, será a mulher do médico,
armada pela visão e uma tesoura, que superará o medo e irá lutar pela libertação de todos os
cegos do domínio dos malvados matando o seu líder:
"A cama do chefe dos malvados continuava a ser a do fundo da camarata, onde se
amontoavam as caixas de comida. Os catres ao lado do seu tinham sido retirados, o homem
gostava de mexer-se à vontade, não ter de tropeçar nos vizinhos. Ia ser simples matá-lo.
Enquanto lentamente avançava pela estreita coxia, a mulher do médico observava os
movimentos daquele que não tardaria a matar, como o gozo o fazia inclinar a cabeça para trás,
como já parecia estar a oferecer-lhe o pescoço. Devagar, a mulher do médico aproximou-se,
rodeou a cama e foi colocar-se por trás dele. A cega continuava no seu trabalho. A mão
levantou lentamente a tesoura, as lâminas um pouco separadas para penetrarem como dois
punhais. Nesse momento, o último, o cego pareceu dar por uma presença, mas o orgasmo
retirara-o do mundo das sensações comuns, privara-o de reflexos, Não chegarás a gozar,
pensou a mulher do médico, e fez descer violentamente o braço. A tesoura enterrou-se com
toda a força na garganta do cego, girando sobre si mesma lutou contra as cartilagens e os
tecidos membranosos, depois furiosamente continuou até ser detida pelas vértebras cervicais."
EC: 185)
Uma cega que até então não aparecera no relato, a "mulher do isqueiro", também irá resistir à
opressão sofrida, arriscando a própria vida para atear fogo na barricada de camas construída
pelos cegos malvados para proteger a sua camarata da invasão dos seus inimigos. A mulher
morre queimada, mas com o incêndio muitos cegos conseguem fugir para fora do manicômio.
A cidade que será encontrada pelos cegos libertos estará praticamente destruída pela barbárie
provocada pela cegueira dos seus habitantes, já que "toda a gente está cega... a cidade toda, o
país, Se alguém ainda vê, não o diz, cala-se..." (EC: 215). "As ruas estão desertas, por ser
ainda cedo, ou por causa da chuva, que cai cada vez mais forte. Há lixo por toda a parte,
algumas lojas têm as portas abertas, mas a maioria delas estão fechadas, não parece que haja
gente dentro, nem luz" (EC: 214); "... não há água, não há electricidade, não há
abastecimentos de nenhuma espécie, encontramo-nos no caos, o caos autêntico deve de ser
isto..." (EC: 244) Os cegos que não resistem e morrem em razão da fome e do cansaço são
devorados pelos cães famintos que perambulam pelas ruas. Horácio Costa sugere um paralelo
entre a situação da cidade resultante da cegueira dos seus habitantes descrita no Ensaio sobre
a cegueira e a vida nas grandes cidades modernas:
"Tornada selva pela falta de visão de seus habitantes (asseveração que pode ser entendida
tanto literalmente, dado o contexto do romance, tanto figuradamente, dada a situação urbana, e
especialmente metropolitana, da contemporaneidade), estabelece-se ao longo do relato uma
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correspondência entre o labirinto da cegueira e o da cidade, na qual os habitantes, uma vez
começado o seu necessário processo de deambulação para encontrarem as suas novas formas
de subsistência, constantemente se perdem. A cidade torna-se, portanto, o outro do malbranco, seu equivalente ou espelho metafórico, uma vez que ao longo da narração o leitor
"vê", devido a técnica narrativa de Saramago, na qual o espaço da descrição é amplo, o que os
cegos deambuladores não vêem: a si próprios e à cidade que os vitima e é por eles vitimada."
(COSTA, 1999: 144)
Em uma situação de crise como essa as identidades se desintegram provocando a situação de
incerteza que inviabiliza a convivência, uma vez que as concepções e valores humanos
perdem o seu poder de sedimentar os relacionamentos. Isolados do mundo, reclusos no
manicômio transformado em campo de concentração, se já não o era antes, a mulher do
médico percebe o perigo da perda da própria identidade: "...tão longe estamos do mundo que
não tarda que comecemos a não saber quem somos, nem nos lembramos sequer de dizer- nos
como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir- nos os nomes, nenhum cão reconhece
outro cão, ou se lhe dá a conhecer, pelos nomes que lhes foram postos, é pelo cheiro que
identifica e se dá a identificar, nós aqui somos como uma outra raça de cães, conhecemo- nos
pelo ladrar, pelo falar, o resto, feições, cor dos olhos, da pele, do cabelo, não conta, é como se
não existisse... (EC: 64).
Esta constatação da mulher do médico pode ser assimilada à opção do próprio narrador, que
não utiliza de nomes próprios, mas de sinais exteriores ou dos papéis sociais desempenhados
pelos indivíduos, para designar as personagens, tornando homóloga a história que conta à
sociedade contemporânea, na qual a impessoalidade dos relacionamentos no mercado ou nas
organizações burocráticas tornam dispensável o conhecimento sobre o nome e a verdadeira
identidade de cada ser individual.
A personagem "mulher do médico", a única a não cegar em toda a narrativa, permite
interpretarmos que são os seus valores e ações que a tornam imunizada contra o contágio.
Quando o marido, já contagiado, solicita- lhe que não se envolva com o seu problema: "Deixame, deixa- me". Ela discorda: "Não deixo, gritou a mulher, que queres fazer, andar aí aos
tombos, a chocar contra os móveis, à procura do telefone, sem olhos para encontrar na lista os
números de que precisas, enquanto eu assisto tranquilamente ao espectáculo, metida numa
redoma de cristal à prova de contaminações. Agarrou-o pelo braço como firmeza e disse,
Vamos, meu querido" (EC: 39). Logo depois, a mulher simula estar cega para ser levada na
ambulância que recolheria o marido contagiado. Durante todo o relato a mulher do médico
tentará manter a lucidez, se esforçando para resistir à degradação e tentando colaborar para
que os cegos se não pudessem viver inteiramente como pessoas, que ao menos não vivessem
inteiramente como animais.
Com o caos da civilização provocado pela generalização da cegueira, os habitantes passam a
vagar pela cidade em busca de comida e abrigo. Será a mulher do médico que vis lumbrará
uma saída para o grupo de cegos sob os seus cuidados: "...se nos separarmos seremos
engolidos pela massa, destroçados... por isso o que proponho é que, em lugar de nos
dispersarmos, ela nesta casa, vocês na vossa, tu na tua, continuemos a viver juntos..." (EC:
245). O médico logo entende o alcance destas palavras: "Disseste que há grupos organizados
de cegos..., isso significa que estão a ser inventadas maneiras novas de viver, não é forçoso
que acabemos destroçados como prevês" (EC: 245). O mais experiente do grupo conclui:
"Regressamos à horda primitiva, disse o velho da venda preta, com a diferença de que não
somos uns quantos milhares de homens e mulheres numa natureza imensa e intacta, mas
milhares de milhões num mundo descarnado e exaurido" (EC: 245). O olhar da mulher do
médico além de desvelar o mundo para os outros cegos permite que ela enxergue a
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necessidade de união do grupo, pois para ela "...organizar-se já é começar a ter olhos" (EC:
282).
O autor expressa dessa forma tanto os valores sociais que quer condenar como a crueldade, o
egoísmo, a indiferença, o consumismo e a competição, que fazem com que os cegos estejam
"sempre em guerra" (EC: 189), quanto os valores que pretende que prevaleçam como o
respeito ao outro, a dignidade, a coragem, a solidariedade, e a convivência. Se, por um lado,
Saramago dá a entender que a racionalidade capitalista das sociedades modernas centrada no
individualismo egoísta pode levar ao caos, com a degradação da convivência humana e do
meio ambiente, a união do grupo proposta pela mulher do médico pode fazer com que
prevaleçam entre os humanos os vínculos afetivos e os valores éticos.
Neste livro, portanto, o autor expõe a cegueira para evidenciar a importância do olhar, como
nos explica a professora Teresa Cristina Cerdeira da Silva:
"... esse Ensaio sobre a cegueira pode ser lido inversamente como um ensaio sobre a visão.
Esses cegos chegaram ao fundo do poço de onde puderam ver surgir suas fraquezas, sua
arrogância, sua intolerância, sua impaciência, sua violência, a monstruosidade dos universos
concentracionários. Mas assistiram também à sua própria força, à sua solidariedade, à sua
generosidade, ao seu espírito revolucionário e à revisão de seus próprios preconceitos. Este,
repito, é um ensaio sobre a visão: do outro, das relações humanas, das linguagens e seus
clichês, da verdade, do poder e até dos gêneros literários nesse romance que, como se sabe, se
quer ensaio. Porque este não é tão-somente um romance cujo assunto é a cegueira, mas
também um ensaio entendido como experiência, experimentação que revele a possibilidade de
enxergar para além das aparências, para além dos seus próprios limites convencionais."
(SILVA, 1999: 294)
A cegueira pode ser encarada, assim, como um conjunto de representações fa lsas que embora
surjam na própria vivência, nas relações sociais cotidianas, podem se autonomizar e passar a
dominar o vivido, bloqueando a apreensão da realidade e a práxis, e impedindo a busca do
novo. Tais representações dissimulam a realidade, uma vez que alguns cegos "...não o são
apenas dos olhos, também o são do entendimento" (EC: 213) e assim difundem o seu mal
como ocorre quando um "...olho que está cego transmite a cegueira ao olho que vê..." (EC:
111).
A cegueira que se alastra sobre as sociedades modernas no mundo contemporâneo, na forma
como é descrita por Saramago é tanto mais surpreendente porque, como escreveu Lefebvre
"...el projecto subyacente a la modernidad de una absoluta primacia del saber, de la razón,
de la ciencia y de la técnica, suscitó la contrapartida: el antisaber, la antirrazón (sinrazón e
irracionalismo), la antiteoría... Se puede considerar la hipótesis de una descomposición de la
sociedade en Occidente. No es la peor hipótesis. Los síntomas de disolución de la cultura, de
la vida social no son ni escasos ni difíciles de descubrir; (LEFEBVRE, 1983: 213).
Esse tipo de cegueira impede que os riscos produzidos pelo desenvolvimento da sociedade
industrial sejam antevistos e equacionados através de um redirecionamento ou da limitação
deste próprio desenvolvimento. Como o autor expressa pela voz da mulher do médico "...o
tempo está-se a acabar, a podridão alastra, as doenças encontram as portas abertas, a água
esgota-se, a comida tornou-se veneno" (EC: 283), e é preciso pressa para que identifiquemos
as causas destes problemas gerados pelos próprios humanos em nossa época, e consigamos
superá- los. O escritor-cidadão quer, assim, utilizar-se de sua expressão para trabalhar contra a
degradação do homem e da sociedade, contra o sofrimento e a exploração. A epidemia de
cegueira descrita é a alegoria sobre o horror vivenciado mas não visto; o olhar é a capacidade
de ver e de reparar os males da convivência humana nas sociedades contemporâneas: "Se
podes olhar, vê. Se podes ver, repara" (EC : 7).
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Referências
COSTA, Horácio (1997). José Saramago - O período formativo. Lisboa, Editorial Caminho, 389 p.
______ (1999). "Alegorias da desconstrução urbana: The memoirs of a survivor, de Doris Lesing, e Ensaio sobre
a cegueira, de José Saramago". In: BERRINI, Beatriz (org.). José Saramago: uma homenagem. São Paulo,
EDUC, pp. 127-148.
GOLDMANN, Lucien (1967). Sociologia do romance. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 223 p.
LEFEBVRE, Henri (1983a). La presencia y la ausencia - contibucion a la teoria de las representaciones.
México, D.F., Fondo de Cultura Economica, pp. 277.
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da (1989). José Saramago – Entre a história e a ficção: uma saga de
portugueses. Lisboa, Publicações Dom Quixote, 278 p.
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira (1996). São Paulo: Cia. das Letras, 310 p. (EC)
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Ensaio sobre a cegueira - Revista Espaço Acadêmico