Moçambique O Sector da Justiça e o Estado de Direito DOCUMENTO PARA DEBATE OPEN SOCIETY FOUNDATION Direitos de Autor © 2006 pela Open Society Initiative for Southern Africa. Todos direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida, colocada à disposição para cópia num sistema de informação ou transmitida de qualquer forma, ou por quaisquer meios, sem a prévia autorização do autor. Publicado pela: Open Society Initiative for Southern Africa. 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Este relatório é produto de um projecto de pesquisa de um ano, conduzido com base num questionário, no qual se solicitaram opiniões, informação de funcionários judiciais, de membros da sociedade civil, académicos, políticos, cidadãos comuns e doadores. Ele é parte de uma série de relatórios sobre Moçambique a ser produzido pelo Africa Governance Monitoring and Advocacy Project (AfriMAP), um projecto da Open Society Foundation (OSF) implementado em conjunto com a Open Society Initiative for Southern Africa (OSISA). O AfriMAP está igualmente a produzir relatórios similares na África do Sul, Malawi, Gana e Senegal. A ideia subjacente ao AfriMAP é efectuar auditorias ao cumprimento pelos Governos africanos dos padrões internacionais e africanos dos direitos humanos e boa governação, incluindo os compromissos assumidos nas Constituições nacionais. Os relatórios destinam-se a ser um recurso para profissionais e activistas dos direitos humanos nos países seleccionados, assim como para aqueles que trabalham noutros países africanos, para com base nele melhorarem o respeito pelos direitos humanos e valores democráticos no continente. Este documento não é um resumo do relatório principal, que deve ser tomado como um documento distinto e lido separadamente. Ele visa, sim, suscitar o debate em torno de algumas informações, dos argumentos ilustrados no relatório principal e com base neles avançar algumas recomendações de políticas concretas a serem adoptadas. Estas recomendações visam encorajar um debate centrado na identificação de medidas prioritárias que podem ser consideradas pelo Governo na resolução dos problemas subjacentes no sector da justiça. Embora o sector da justiça tenha passado por transformações substanciais desde o fim da guerra civil, ainda há por ultrapassar vários obstáculos para que o sector seja capaz de satisfazer as necessidades de justiça e do respeito do Estado de Direito. D O C U M E N T O P A R A D E B AT E 1. O direito internacional, a Constituição da República e a reforma legal O sistema de justiça em Moçambique tem sofrido grandes transformações desde a independência nacional em 1975, decorrentes das revisões constitucionais que se foram registando. A Constituição de 1975 consagrava um Estado socialista monopartidário, dirigido pela FRELIMO (Frente de Libertação de Moçambique), sem separação de poderes. A Constituição de 1990, elaborada como parte integrante das negociações de paz que acabaram com a guerra civil entre a FRELIMO e a RENAMO (Resistência Nacional de Moçambique), determinava a existência de um sistema multipartidário, ampliava o reconhecimento dos direitos dos cidadãos, assim como a independência dos tribunais em relação ao Executivo e ao controlo partidário. Ao longo do mesmo período, foi adoptada nova e importante legislação que levou a subsequentes alterações no sistema judicial. Em 2004, foi adoptada uma terceira Constituição pós-independência, que viria a consagrar mais direitos individuais e reforçar a independência dos tribunais, embora as reformas introduzidas não tenham sido tão amplas como alguns esperavam. A estrutura dos tribunais moçambicanos continua a ser regulada pela Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais de 1992, que estabelece três níveis principais de tribunais judiciais: distritais, provinciais e o Tribunal Supremo, em Maputo. Esta lei carece de revisão por forma a reflectir os desenvolvimentos dos últimos quinze anos. Por exemplo, a Constituição de 2004 estabelece a possibilidade de existência de tribunais judiciais de nível intermédio, entre o provincial e o Tribunal Supremo, ao qual caberia julgar os recursos dos tribunais judiciais provinciais. A criação destes tribunais regionais de recurso poderia contribuir de forma significativa para reduzir o enorme volume de processos com que o Tribunal Supremo se debate, bem como melhorar o acesso à justiça aos cidadãos que vivem fora de Maputo. Igualmente à luz da Constituição de 2004, também seria necessário criar novos tribunais administrativos nas províncias, o que permitiria o recurso contra as decisões do Executivo ao nível provincial. Ou seja, a reforma legislativa tem que ser seguida de acção prática. Por exemplo, os tribunais do trabalho foram criados legalmente em 1992, mas ainda não se encontram a funcionar. Apesar de se terem criado secções laborais tanto nos tribunais provinciais como no Tribunal Supremo, elas não conseguem dar vazão ao enorme volume de processos que aguardam julgamento nos tribunais judiciais. D O C U M E N T O P A R A D E B AT E A ausência da menção aos tribunais comunitários talvez seja a falha mais gritante da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais. Os tribunais comunitários que foram estabelecidos após a independência, são, dentre os fóruns oficialmente reconhecidos, os mais generalizados em Moçambique, sabendo-se da existência de pelo menos 1.500. Embora juridicamente regulados pela Lei dos Tribunais Comunitários de 1992, que lhes atribui competência legal para julgar disputas cíveis e criminais de menor valor e gravidade, os tribunais comunitários não se encontram reconhecidos na Constituição de 1990 e não têm laços formais com os tribunais judiciais. Na prática, eles não têm recebido apoio financeiro nem material do Governo ou dos tribunais judiciais. Representando um importante passo em frente, a Constituição de 2004 reconheceu a sua existência, sendo agora urgente a aprovação de legislação que enquadre juridicamente este seu novo estatuto, permitindo-se o recurso das suas decisões ao resto do sistema de tribunais, de forma similar ao que ocorre com os tribunais judiciais. Há informações de que a UTREL está a trabalhar na revisão da Lei dos Tribunais Comunitários que os enquadra no sector judicial, o que permitiria a sua ligação aos tribunais judiciais através de um sistema de recurso. Em Moçambique, tem sido quase nula a prática de litigação sobre a constitucionalidade das leis aprovadas pelo Parlamento ou das acções do Executivo, embora tal situação possa vir a alterar-se com o estabelecimento do Conselho Constitucional em 2003 e com a ampliação dos seus poderes pela Constituição de 2004; até aí, as decisões finais em matéria juríco-constitucionais eram tomadas pelo Tribunal Supremo, agindo como Conselho Constitucional. Até hoje, o Presidente da República só remeteu duas leis ao Tribunal Supremo ou ao Conselho Constitucional para a sua fiscalização prévia, antes da promulgação: a Lei dos Feriados Islâmicos Idul-Fitre e Idul-Adhah em 1996 e a Lei da Família em 2004. Houve séria discussão no Tribunal acerca da admissibilidade de ambos os casos. No primeiro, o Tribunal julgou favoravelmente à sua admissibilidade, e, subsequentemente, decidiu que a lei proposta era inconstitucional e não deveria ser promulgada. No segundo caso, o pedido do Presidente não foi aceite. Em vista da disparidade das decisões, discutiu-se, durante o processo de revisão constitucional de 2004, a função do Conselho Constitucional de fiscalizar a legislação previamente à sua promulgação, e esta situação ficou clarificada na Constituição de 2004. Uma maior utilização do Conselho Constitucional levaria à criação de jurisprudência sobre assuntos constitucionais e contribuiria para a reforma de leis e práticas inconstitucionais. Todavia, tal litigação só pode obter resultados graduais, havendo grande necessidade de uma reforma legal abrangente em Moçambique, que assegure a observância dos princípios constitucionais. Nos últimos anos, a reforma legal do sector da justiça sofreu um grande impulso, devido, em particular, à criação da Comissão Interministerial da Reforma Legal (CIREL) e do seu órgão técnico de implementação, a Unidade Técnica de Revisão Legal (UTREL). Lamentavelmente, têm-se registado atrasos na elaboração e implementação de alguns diplomas importantes, como por exemplo o Código Penal e o Código de Processo Penal. Embora fosse conveniente uma abordagem mais sistemática na identificação de prioridades, o Governo está, de um modo geral, a fazer progressos no que diz respeito à reforma legal. Dentre as leis ainda pendentes, deve ser mencionada a nova Lei Orgânica do Ministério Público, proposta pela Procuradoria-Geral da República. M o ç ambi q ue : O S ector da J usti ç a e o E stado de D ireito É urgente que se reforce a capacidade dos membros do Parlamento (deputados) para que possam participem de forma substancial e positiva no processo legislativo. A falta de conhecimentos técnicos não lhes permite iniciar legislação ou contribuir para as leis propostas pelo Executivo, apesar de a supervisão do processo legislativo constituir uma das suas funções chave. Assim, corre-se o risco de o Parlamento se tornar num entrave ao processo de reforma legal; por exemplo, a Lei da Família ficou no Parlamento durante anos antes de ser promulgada. O contributo do Parlamento processo legislativo tornou-se particularmente importante com a crescente utilização de decretos-leis, um novo tipo de acto normativo introduzido pela Constituição de 2004, que permite que o Conselho de Ministros solicite ao Parlamento uma delegação da autoridade legislativa para fins determinados. Um decreto-lei adoptado pelo Conselho de Ministros entra automaticamente em vigor se o Parlamento não o contestar na sessão imediatamente a seguir à sua aprovação. Este poder tem sido utilizado pelo Governo para fazer passar legislação significativa, incluindo o recentemente revisto Código de Processo Civil. Se o Parlamento não exercer as suas responsabilidades de supervisão, haverá cada vez mais a tendência de os decretos-lei serem tacitamente aprovados, sem o devido debate. Se a reforma legal em Moçambique decorrer em ritmo mais acelerado, existe também o risco de se acentuar o fosso entre legislação promulgada e legislação aplicada. O decreto-lei de Dezembro de 2005 que aprovou o novo Código Comercial estabeleceu, pela primeira vez, uma comissão destinada a supervisionar a sua implementação. Este tipo de comissão poderia ser um mecanismo útil para se garantir a implementação de legislação chave, embora ainda não se conheça, na prática, o grau de seriedade com que a comissão estabelecida está a trabalhar. Na falta de mecanismos gerais de monitoria do impacto das leis aprovadas, uma possível solução seria a realização pela CIREL de um encontro anual para análise da legislação adoptada no ano anterior. Esta seria uma área em que a sociedade civil também poderia contribuir em termos de monitoria; a CIREL, por exemplo, poderia estabelecer uma Comissão Legal composta por membros do Judiciário, Governo, academia e sociedade civil para realizar tal papel. A produção de relatórios relativos à implementação de tratados internacionais de direitos humanos poderia ser um importante instrumento da reforma legal. Embora Moçambique tenha um historial relativamente bom quanto à ratificação, sem reserva, de instrumentos regionais e internacionais de direitos humanos, Moçambique não tem conseguido cumprir com as suas obrigações em termos da submissão de relatórios, tanto aos órgãos de monitoria de tratados das Nações Unidas, como à Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos. Tal situação poderá vir a melhorar com a recente criação de uma comissão ad hoc inter-ministerial, que terá a responsabilidade de reportar sobre a situação dos direitos humanos em Moçambique, e que provavelmente será estabelecida permanentemente no final de 2006. Muitos países vêem a apresentação obrigatória de relatórios sobre a implementação dos tratados de direitos humanos como uma distracção desnecessária; no entanto, em Moçambique como noutros países, tais relatórios podem fornecer um quadro analítico e uma oportunidade de revisão e planeamento de esforços no sentido de uma reforma legal que amplie o respeito pelos direitos humanos ao nível nacional. Além disso, Moçambique deveria ser encorajado subscrever os vários mecanismos dos tratados das Nações Unidas que permitem a apresentação de petições individuais aos D O C U M E N T O P A R A D E B AT E órgãos desses tratados. A sociedade civil moçambicana também tem claudicado no seu papel de contrapor ao Estado no sentido de pressioná-lo para cumprir com as suas obrigações para com os organismos das Nações Unidas e da União Africana. Os grupos da sociedade civil nunca submeteram um relatório “sombra” (“shadow report”) a qualquer organismo de monitoria de tratados internacionais, sendo que um processo paralelo poderia pressionar o Governo no sentido de melhorar o seu desempenho. M o ç ambi q ue : O S ector da J usti ç a e o E stado de D ireito 2. Gestão e fiscalização do sistema de justiça Em 2001, o Governo moçambicano criou o Conselho de Coordenação da Legalidade e Justiça (CCLJ), composto por representantes dos ministérios relevantes, da Procuradoria-Geral da República e dos tribunais. Em 2003, o Conselho de Ministros adoptou o primeiro plano estratégico (Plano Estratégico Integrado, PEI) do sector da justiça, com base em contributos do CCLJ e de outros actores. Mesmo assim, o sector da justiça continua a experimentar falta de coordenação entre as suas instituições chave, ao mesmo tempo que a implementação deficiente do PEI leva a crer que o empenho na planificação conjunta ainda é questionável. O primeiro PEI expira no fim de 2006. O sector sairia claramente beneficiado se o CCLJ cumprisse melhor as suas responsabilidades de coordenação e, para tal, a sua representatividade deveria ser alargada à Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM). O CCLJ não deveria, no entanto, tornar-se num ‘superministério’, cooptando poderes das diversas instituições do sector. O Ministério da Justiça deveria, acima de tudo, desempenhar um papel mais claro de liderança, sem pôr em perigo a independência dos tribunais. Este deveria agir no sentido de implementar uma série de atribuições que fazem parte do seu mandato, incluindo a provisão de assistência jurídica e de representação legal gratuitas aos nessecitados, assim como a prestação de apoio aos tribunais comunitários, como estabelecem a Constituição e os regulamentos do próprio Ministério da Justiça. Responsabilidades como a aquisição de bens e serviços, manutenção de infra-estrutura física e compilação e disseminação de dados poderiam ser executadas e lideradas pelo Ministério da Justiça, como já acontece com a formação de magistrados. É bem-vindo o recente anúncio do Ministro da Justiça quanto à realização de auscultações públicas sobre a visão do sector, pois poderão desempenhar um papel importante no desenvolvimento de um novo plano estratégico abragente e inclusivo. Nos últimos anos, o financiamento do sector da justiça tem melhorado, não constituindo já um problema crítico. Contudo, a execução orçamental continua deficiente, em particular no que se refere aos orçamentos de investimento (apesar de alguma contenção na divulgação dos respectivos números). Os orçamentos destinados aos tribunais distritais estão centralizados nos tribunais de nível provincial, que são muito lentos no seu desembolso. O Tribunal Supremo deveria melhorar a informação prestada aos tribunais distritais sobre as alocações orçamentais aos D O C U M E N T O P A R A D E B AT E tribunais provinciais, para que tivessem uma base a partir do qual pudessem pedir contas pelos fundos recebidos pelos tribunais provinciais. O Tribunal Supremo poderia igualmente orientar de forma mais clara os tribunais provinciais quanto ao desembolso de fundos. Actualmente, as alocações dos tribunais provinciais para os distritais são, muitas vezes, determinadas na base das relações individuais entre juízes, sendo necessária a existência e implementação de mecanismos institucionais de regulamentação. Além do mais, o facto de o sector da justiça ter diversas fontes de financiamento e de existirem vários – ou nenhuns – procedimentos de auditoria, também gera confusão. De acordo com informações prestadas pela Inspecção Geral das Finanças (IGF), instituição do Estado responsável pela realização de inspecções e auditorias, de um total de 357 inspecções e auditorias realizadas entre 2002 e 2005, somente um tribunal foi incluído: o Tribunal de Sofala. A Terceira Secção do Tribunal Administrativo também deveria controlar e auditar a despesa pública, mas, por falta de recursos, tem tido dificuldades em cumprir tal missão. Esta instituição não foi capaz de responder a um pedido de informação sobre as auditorias realizadas para a inclusão no relatório do AfriMAP. O financiamento proveniente de doadores externos segue, muitas vezes, um sistema diferente. O Governo está a encorajar os parceiros de desenvolvimento a canalizarem todos os fundos directamente ao Orçamento Geral do Estado, mas os projectos de financiamento externo continuam a ter um peso significativo no sector da justiça, e os doadores tendem a estipular os seus próprios requisitos de auditoria, geralmente através de auditores externos. A lei que regula o Sistema de Administração Financeira do Estado (SISTAFE) estipula a obrigação de todas as instituições reportarem e incluírem as suas fontes independentes de receita nas suas propostas orçamentais ao Ministério das Finanças. No entanto, nem as consideráveis receitas dos tribunais, provenientes seus emolumentos e que são canalisados directamente para os Cofres dos Tribunais, nem os fundos recebidos pelo Ministério da Justiça relativos à actividade dos registos e notariados, são sujeitos a quaisquer mecanismos de supervisão. A falta de transparência na utilização de tais fundos de ‘fontes próprias’ deve ser urgentemente sanada, integrando-os no SISTAFE. Ao mesmo tempo, há que reforçar os procedimentos gerais de auditoria dos tribunais, devendo este reforço fazer parte de um esforço global pelo melhoramento e extensão das auditorias financeiras a todas as instituições públicas. O reforço da administração dos tribunais contribuiria significativamente para melhorar a sua gestão financeira. A partir da altura em que a Constituição de 1990 introduziu a separação formal entre o Judiciário e o Executivo, os juízes passaram a ser responsáveis pela administração dos tribunais. Embora tal decisão tenha aumentado a independência administrativa dos tribunais, tais responsabilidades são vistas com preocupação, devido à sobrecarga que representam para os juízes, reduzindo-lhes o tempo que deveriam dedicar aos julgamentos. Embora a devolução destas obrigações ao Ministério da Justiça pudesse vir a pôr em causa o princípio de independência que sustenta o sector – o que deve ser evitado – também é necessário garantir aos juízes a possibilidade de despenderem mais tempo nas suas tarefas fundamentais de adjudicação e gestão de processos. O Presidente do Tribunal Supremo anunciou que está em curso a contratação e formação M o ç ambi q ue : O S ector da J usti ç a e o E stado de D ireito de ‘gestores de tribunais’, que serão responsáveis pela administração correntes dos tribunais. Este processo, que conta com o apoio do Banco Mundial, poderá representar um contributo muito útil, devendo a proposta, contudo, ser amplamente discutida com todos interessados. Os juízes devem beneficiar de formação em gestão e administração para a execução das tarefas que continuarem a seu cargo. Acautelando-se a independência do Judiciário, o Governo poderia encarregar-se de outras actividades de rotina administrativa sem impacto directo no julgamento de casos, como a construção de edifícios para os tribunais e a aquisição de serviços e bens. Apesar de se terem registado melhorias nos últimos anos, a falta de pessoal nos tribunais, tanto em quantidade como em qualidade, continua crítica, com salários ainda muito baixos, mesmo depois de um aumento em 2003. De um modo geral, os tribunais funcionam em más condições físicas, sobretudo ao nível distrital, em instalações muito básicas e antiquadas. A nível distrital, muitos tribunais partilham espaço com outras instituições do Estado, levando à percepção entre os cidadãos de que a independência dos tribunais está comprometida. Tanto o Governo como os parceiros de desenvolvimento deveriam canalizar mais fundos para colmatar este problema. A disponibilidade de legislação e de jurisprudência também constitui um problema nos tribunais, em particular ao nível distrital, onde a maioria não possui exemplares de diplomas legislativos essenciais; quando existem, tais diplomas pertencem, em geral, aos juízes, que os levam consigo em caso de transferência ou de aposentação. O Centro de Formação Jurídica e Judicial (CFJJ) começõu a fornecer legislação aos juízes que aí são formados, o que pode ser uma via importante para lhes garantir alguns instrumentos de trabalho para o cumprimento das suas obrigações. No entanto, estes diplomas legislativos só são atribuidos aos juízes recém-formados e não aos que se encontram em funções há mais tempo. Dado o ritmo crescente da reforma legal, há o risco real de os juízes dos tribunais distritais ficarem legalmente desactualizados a ela. Apesar dos esforços desenvolvidos, incluindo pelos doadores, no sentido de se melhorar a distribuição de legislação, tais iniciativas têm-se revelado inconsistentes, devendo ser aceleradas e mais sistemáticas por forma a atingirem todos os tribunais do país. Todos os tribunais deveriam possuir, no mínimo, um pacote annual com asleis em vigor. Para além do simples texto da lei, também há uma falta dramática de jurisprudência e de comentários especializados sobre a experiência legal em Moçambique. Muitos juízes dependem da jurisprudência dos tribunais portugueses, que é muito mais divulgada. Os que apoiam financeiramente o sector da justiça poderiam considerar, por exemplo, o patrocínio de uma publicação de direito africano lusófono, possibilitando aos juristas moçambicanos a aprendizagem não só com os seus colegas locais, mas também a partir da experiência legal de Angola, Guiné Bissau, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Poderia igualmente ser útil a divulgação de jurisprudência e comentários brasileiros, assim como a tradução e distribuição de peças seleccionadas da jurisprudência e comentário de outros países da Comunidade para o Desenvolvimento da África Austral. D O C U M E N T O P A R A D E B AT E 3. Independência e responsabilização de magistrados e advogados O Presidente da República, Armando Guebuza, tem enfatizado claramente o seu compromisso com o Estado de Direito. Apelos a um maior respeito pelo Estado de Direito marcaram a sua campanha eleitoral e, desde que assumiu o cargo em Fevereiro de 2005, não tem cessado de afirmar publicamente este seu empenho. É séria a tarefa que o Governo enfrenta: apesar de existirem códigos de conduta claros, alguns membros do Executivo parecem engajados em violação deliberada das leis, quer não respeitando decisões judiciais quer interferindo em investigações e processos judiciais. O grau de incumprimento da lei pelo Executivo foi comentado pelo Procurador-Geral da República quando, em 2001, afirmou no Parlamento que “a cultura da legalidade é ainda um sonho, mesmo entre os nossos líderes”. O famoso julgamento dos assassinos do jornalista Carlos Cardoso, morto em 2000 na sequência das suas reportagens sobre corrupção, tornou evidente a percepção de que o crime organizado tem ligações com altos funcionários do Governo e de que é capaz de ‘comprar’ a sua fuga à justiça. As repetidas fugas de Anibalzinho, condenado pelo assassinato de Carlos Cardoso, de sua prisão de alta segurança, tornaram ainda mais fortes tais percepções. A Constituição de 2004 prevê uma série de sanções criminais e cíveis, assim como mecanismos de investigação de alegações de abusos cometidos por titulares de cargos públicos. Contudo, na prática, tais mecanismos não têm sido implementados, apesar das frequentes alegações vindas a público na comunicação social de envolvimento de funcionários do Governo em actos de corrupção. O Tribunal Administrativo também informou ao Parlamento sobre ilegalidades e irregularidades detectadas nas contas do Estado, sobre as quais não se desencadeou qualquer acção, apesar de serem susceptíveis de investigação por parte da Procuradoria-Geral da República. A integridade e eficiência do trabalho da Procuradoria-Geral da República tem suscitado sérios questionamentos. O próprio Procurador-Geral tem sublinhado repetidas vezes a existência de corrupção em investigações criminais. As alegações de obstrução da justiça surgidas durante as investigações e o julgamento do chamado caso Carlos Cardoso, assim como a falta de progresso nas investigações do igualmente famoso assassinato de António Siba-Siba Macuácua em 2001, que também estava a investigar situações de corrupção oficial, serviram para destacar a existência de graves problemas na acção do Ministério Público. D O C U M E N T O P A R A D E B AT E 11 Uma maior protecção estrutural da independência no processo de nomeações tanto para o judiciário como para o Ministério Público seria uma das formas mais óbvias de reforço da independência dos tribunais relativamente ao Executivo. A Constituição de 1990 foi a primeira a introduzir em Moçambique o princípio da independência do Judiciário, que viria a ser retomado pela Constituição de 2004 com garantias reforçadas de independência administrativa e política dos tribunais. No entanto, o Presidente da República detém um controlo bastante forte sobre as nomeações para os tribunais superiores, sendo directamente responsável pela nomeação do Presidente e Vice-Presidente do Tribunal Supremo, cabendo ao Conselho Superior da Magistratura Judicial (CSMJ) um papel de aconselhamento. O CSMJ é um órgão de dezasseis membros, constituído pelo Presidente do Tribunal Supremo (presidente ex officio do CSMJ) e pelo seu Vice-Presidente, por dois membros nomeados pelo Presidente da República, cinco eleitos pelo Parlamento com base na sua representação proporcional e por sete juízes eleitos pelos seus pares. Também cabe ao CSMJ a responsabilidade de propor uma lista de juízes para nomeação ao Tribunal Supremo, assim como nomear e orientar as carreiras dos juízes e do pessoal de todos os outros tribunais judiciais (provinciais, distritais e especializados). Para contrabalançar o poder do Executivo, é extremamente importante a supervisão do processo de nomeação dos membros do judiciário. Contudo, o facto de o Presidente do Tribunal Supremo ser Presidente ex officio do Conselho Superior da Magistratura Judicial leva à percepção de que o CSMJ se encontra intimamente ligado ao Executivo. Esta duplicidade de papéis revela-se importante não só no processo de nomeações para o Judiciário, mas também quando as próprias decisões do CSMJ são submetidas ao Tribunal Supremo. Tal conflito de interesses foi reconhecido num processo de 2002 - Luís Timóteo Matsinhe v. Presidente do Tribunal Supremo de Moçambique – em que o Tribunal Administrativo decidiu que era inconstitucional recorrer das decisões do CSMJ ao Tribunal Supremo, pois um determinado processo poderia vir a ser apreciado pelos mesmos indivíduos que já o haviam julgado. Apesar desta decisão, em 2005 o Presidente do Tribunal Supremo nomeou uma comissão composta por três juízes do Tribunal Supremo para continuarem a julgar recursos relacionados com decisões do CSMJ. O reforço do papel do CSMJ no processo de nomeação e designação de juízes poderia ser uma das medidas de resposta à percepção de falta de independência dos níveis mais altos do Judiciário perante o Executivo, à semelhança do sistema existente na África do Sul e em alguns outros países da África Austral. Embora na maior parte dos países seja normal o chefe do Governo ter um papel importante nas nomeações de magistrados para os tribunais superiores, a influência do CSMJ poderia ser reforçada e a sua representatividade ampliada, em particular com a inclusão da Ordem dos Advogados de Moçambique (OAM). O CSMJ seleccionaria então os candidatos ao Judiciário, incluindo para a presidência do Tribunal Supremo, com base em critérios públicos e num processo de entrevistas igualmente públicas, os quais seriam apresentados ao Presidente da República, que poderia escolher dentre os propostos, mas não sugerir nomes alternativos. Tais requisitos deveriam ter protecção constitucional. Além disso, também deveria caber ao Tribunal Administrativo, e não ao Tribunal Supremo, o julgamento de recursos relativos a decisões de natureza disciplinar. As mesmas medidas deveriam ser estendidas à nomeação do Procurador-Geral da 12 M o ç ambi q ue : O S ector da J usti ç a e o E stado de D ireito República, considerado membro do Judiciário à luz do sistema de direito civil. Presentemente, o Procurador-Geral e o Vice Procurador-Geral são nomeados pelo Presidente da República. A Lei Orgânica da Procuradoria-Geral da República, de 1989, prevê a existência de um Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público (CSMMP), responsável pela gestão e disciplina do Ministério Público. A Constituição de 2004 estipula que o CSMMP deveria incluir membros eleitos pela Assembleia da República, assim como pelo Ministério Público. Este órgão deveria ser implementado com carácter de urgência. A nova Lei Orgânica proposta pelo Procurador-Geral da República também deveria providenciar uma maior independência na nomeação do ProcuradorGeral. Especialmente no caso do Procurador-Geral e do Vice Procurador-Geral, a escolha deveria caber ao Conselho Superior da Magistratura do Ministério Público num processo transparente, sendo o Presidente da República responsável apenas pela formalização da nomeação e pela investidura. O Procurador-Geral propôs a inclusão deste procedimento na Constituição de 2004, mas tal não aconteceu. Os problemas relativos à independência perante o Executivo também ocorrem aos níveis mais baixos do sistema judicial. Tanto os juízes como os procuradores entrevistados no decurso da pesquisa da AfriMAP referiram uma série de exemplos específicos de interferência indevida nos tribunais por membros da Administração Pública, que procuraram, directa ou indirectamente, influenciar decisões judiciais. Devido à falta de fundos e de infra-estruturas físicas, que tende a caracterizar os tribunais distritais, os juízes a este nível são mais vulneráveis a influências externas. Esta situação deve-se, em parte, ao historial de autoridade do partido FRELIMO sobre todas as áreas da governação, em especial nas zonas rurais, e à dramática falta de juízes devidamente qualificados, particularmente ao nível distrital, apesar das melhorias registadas nos últimos anos. Se os juízes e os procuradores tivessem formação superior, ser-lhes-ia mais fácil resistir a interferências por parte do Executivo ou de dirigentes partidários. O Conselho Coordenador da Legalidade e Justiça (CCLJ) tomou a iniciativa de recrutar e formar mais juízes, e os aumentos salariais efectuados têm ajudado a atrair mais candidatos; contudo, o seu número mantém-se dramaticamente insuficiente, fazendo com que esta continue a ser uma questão prioritária, embora não de resolução fácil ou rápida. Além disso, o Conselho Superior da Magistratura Judicial deveria fortalecer-se e tornar mais transparente a sua acção disciplinar contra os juízes cujo desempenho não esteja ao nível esperado. Segundo a informação geral publicada pelo Presidente do Tribunal Supremo sobre as actividades do CSMJ, este tem iniciado uma série de processos disciplinares que, no entanto, visam mais os membros do pessoal administrativo dos tribunais do que os juízes. A informação publicada deveria ser mais detalhada por forma a esclarecer o público quanto às alegações de má conduta por parte de juízes. O CSMJ poderia igualmente elaborar critérios de avaliação do desempenho judicial e divulgá-los, o que daria ao público a possibilidade de monitorar a conduta dos juízes e de conhecer melhor o grau de independência exigido no que se refere a interferências por parte do Executivo. Embora hajam medidas imediatas a serem tomadas, a melhoria da qualidade das tomadas de decisões judiciais, incluindo o combate às interferências do Executivo, implica um esforço a longo prazo pelo fortalecimento mais global da profissão jurídica em Moçambique. Apesar de D O C U M E N T O P A R A D E B AT E 13 nos últimos anos haver mais formação jurídica disponível, inclusive através da abertura de universidades fora de Maputo, a OAM tem carência de advogados qualificados que prestem serviços de representação legal, mesmo para aqueles que podem pagar pelos serviços. Além do mais, os conteúdos da formação jurídica são, muitas vezes, demasiado teóricos e insuficientemente práticos, tendo como consequência graduados pouco preparados para o exercício da profissão. Graduados em direito devem estagiar com membros da OAM para ganharem experiência profissional antes de serem admitidos como advogados, mas a Ordem já reconheceu não ter capacidade para supervisionar todos os potenciais candidatos. No tocante as medidas disciplinares dos seus membros, o papel da OAM deixa muito a desejar. A OAM deveria avançar com a elaboração já proposta de um código de conduta para os seus membros. Por outro lado, é necessário um debate mais imaginativo e inovador sobre a estrutura da formação jurídica, por forma a assegurar que os admitidos na OAM tenham alcançado um padrão mínimo de qualificação. A OAM deveria ser apoiada nos seus esforços de reforma, com vista a ser mais pro-activa no seu papel de fiscalização. 14 M o ç ambi q ue : O S ector da J usti ç a e o E stado de D ireito 4. Justiça criminal Moçambique tem um dos rácios mais baixos do mundo de agentes da polícia vs cidadãos: 1 para cada 1.089 cidadãos (em comparação com 1 para 450 na África do Sul). Não admira, pois, que uma cobertura tão fraca leve à convicção generalizada de que os índices de criminalidade são muito mais elevados do que os números divulgados. Têm-se desenvolvido esforços para melhorar o recrutamento e ministrar formação às forças policiais, em particular com a abertura da Academia de Ciências Policiais (ACIPOL). Todavia, para melhorar substancialmente a cobertura policial do país, será necessário um financiamento muito maior, que permita pagar salários mais elevados e assegurar a formação. Não existe informação disponível do Ministério do Interior (MINT) sobre as dotações orçamentais à Polícia da República de Moçambique (PRM), nem sobre a maneira como são dispendidas. Maior transparência permitiria um debate público, aberto, sobre a suficiência ou não dos fundos alocados à PRM. Com o impacto adicional do HIV/SIDA sobre as forças policiais — em 2006, um representante do MINT disse que a PRM estava a perder anualmente 1000 agentes devido ao HIV/SIDA — é cada vez mais urgente enfrentar este problema. Em 2001, o Ministro do Interior lançou a iniciativa de criação dos conselhos comunitários da polícia, sem dúvida como resposta, pelo menos em parte, à falta de uma cobertura policial adequada. No fim de 2005, já existiam mais de 1.000 em todo o país. Estas estruturas foram criadas para promover o diálogo entre a polícia e os cidadãos sobre problemas de segurança pública, e para os envolver nos esforços de prevenção do crime. Tais conselhos poderiam, em princípio, constituir um mecanismo útil no melhoramento da segurança nos bairros, mas tem havido problemas na sua implementação. Os cidadãos têm recebido armas de fogo, assim como a autoridade para usá-las na manutenção da segurança nos bairros, mas sem uma boa formação prévia. Frequentemente esses voluntários são jovens desempregados sem qualquer fonte de rendimento, havendo, por isso, mais probabilidades de virem a abusar da sua posição em benefício próprio. Estes conselhos não deveriam ser vistos como substitutos dos agentes da polícia formados e, se têm que operar, é indispensável que as suas funções e responsabilidades sejam regulamentadas. Neste momento, apesar de fornecer armas de fogo aos membros dos conselhos comunitários da polícia, a PRM não se responsabiliza pelas consequências da sua utilização. No seio da própria PRM, as alegações de abusos de direitos humanos têm vindo a diminuir de forma consistente desde os anos 1990, e estão a ser envidados esforços no sentido de se D O C U M E N T O P A R A D E B AT E 15 profissionalizar a corporação, por exemplo, com a criação da ACIPOL. Contudo, têm ocorrido incidentes graves que mostram que a despolitização das forças policiais ainda não está completa — embora fosse um princípio fundamental dos acordos de paz que puseram fim à guerra civil. Em Novembro de 2000, mais de 100 pessoas, na sua quase totalidade apoiantes da oposição, morreram asfixiadas numa cela superlotada da polícia, em Montepuez. As mortes seguiram-se a uma rusga policial levada a cabo após terem eclodido actos de violência numa manifestação realizada pela Resistência Nacional de Moçambique-União Eleitoral (RENAMO-UE), contra alegadas fraudes eleitorais. O incidente de Montepuez levou a um sério questionamento sobre o grau de imparcialidade das forças policiais. Embora tenham sido estabelecidas uma comissão parlamentar de inquérito e uma iniciativa independente, constituída por representantes da sociedade civil, para averiguar o ocorrido, não foi tornado público qualquer relatório. Às organizações da sociedade civil, como a Liga Moçambicana dos Direitos Humanos (LDH), cabe um papel essencial no registo e monitorização das alegações de abusos dos direitos humanos cometidos pela polícia. Não existe, no entanto, um mecanismo externo e independente, financiado pelo Governo e legalmente instituído, para investigar queixas contra a polícia, sendo urgente a sua criação. O sistema prisional também carece dramaticamente de um mecanismo independente de supervisão. Apesar de as comissões parlamentares visitarem, esporadicamente, as cadeias, e reportarem sobre as suas condições, tal método não substitui um mecanismo externo e permanente. Não se deve perder a oportunidade de criar um mecanismo deste género na nova estrutura unificada das prisões. Em Maio de 2006, foi aprovada legislação que possibilita a unificação da estrutura dualista das prisões em Moçambique, até aí divididas entre o Ministério do Interior e o Ministério da Justiça; e em Agosto de 2006 foi nomeado o director da nova instituição, o Serviço Nacional de Prisões (SNAPRI). O SNAPRI tem agora pela frente o desafio de formular uma estratégia transitória clara para a unificação dos dois sistemas no terreno. Seja qual for o plano, ele deve submeter-se a um calendário claro, com objectivos e indicadores, e ser do domínio público, para que as organizações da sociedade civil possam monitorizar e avaliar o andamento do processo. As condições nas cadeias moçambicanas são deveras preocupantes, com graves taxas de superlotação, más infra-estruturas físicas e, consequentemente, falta de condições sanitárias e de acesso a cuidados médicos básicos. São frequentes as doenças, entre as quais o HIV/SIDA. Muitas das prisões não funcionam na sua capacidade máxima, havendo áreas que foram abandonadas por degradação, devido, por exemplo, a danos provocados pelas recentes cheias. Há que aplicar integralmente os fundos alocados às prisões e iniciar urgentemente obras de reparação. Embora uma elevada percentagem dos reclusos seja constituída por jovens, quase que não existem instalações separadas para delinquentes juvenis, levando-os a misturar-se com criminosos mais velhos e calejados no crime. Há que dar prioridade à instalação de centros de detenção exclusivamente para jovens, com ênfase na formação e reintegração; doutro modo, será muito difícil quebrar o ciclo do crime. Sendo tão elevada a percentagem de reclusos jovens e tendo em conta que o actual quadro legal não prevê sentenças alternativas à prisão, é necessário que haja mais debate sobre tal possibilidade, envolvendo o Estado e a sociedade civil. 16 M o ç ambi q ue : O S ector da J usti ç a e o E stado de D ireito A questão da superlotação das cadeias moçambicanas também se prende com as enormes demoras processuais para levar os casos criminais a julgamento. Apesar de a situação ter melhorado consideravelmente nos últimos anos, 53% dos reclusos estavam a cumprir prisão preventiva em 2005. O actual quadro legal estabelecido pelo Código de Processo Penal permite que um suspeito permaneça detido até seis meses sem ter sido formalmente acusado. Com a grande acumulação de processos nos tribunais judiciais, é provável que leve anos até ser ouvido. Tratase de uma grave violação dos princípios do julgamento justo adoptados pela Comissão Africana dos Direitos do Homem e dos Povos, à luz da Carta Africana. Neste momento, o Código do Processo Penal está a ser revisto, e os que estão à frente deste processo deveriam reconsiderar radicalmente o actual quadro legal de detenção e acusação, que permite longos períodos de detenção sem que acusação tenha sido formulada. Qualquer novo quadro deverá reduzir consideravelmente os prazos de detenção de um suspeito sem acusação. Isto obrigaria a polícia e o Ministério Público a fazer mais investigações antes de procederem a uma detenção. Raramente se cumprem as disposições já em vigor, segundo as quais um suspeito de delito menor tem que ser julgado no prazo máximo de 5 dias após a detenção. Se fossem aplicadas, aliviar-se-ia consideravelmente a pressão tanto sobre as cadeias superlotadas, onde muitos reclusos aguardam julgamento por delitos menores, como sobre os tribunais judiciais, com grande acumulação de processos à aguardar julgamento. Com um novo quadro legal a guiar o processo desde a detenção até ao julgamento e, crucialmente, com a aplicação de tal quadro legal, haveria mais probabilidades de evitar demoras indevidas na realização dos julgamentos. A sua aplicação dependeria da eficiência da polícia, do Ministério Público e dos tribunais no cumprimento atempado das suas responsabilidades. O Ministério Público tem enfrentado sérios problemas no cumprimento efectivo da sua responsabilidade de supervisão das investigações criminais, tanto por carência de pessoal como pela sua dependência da Polícia de Investigação Criminal (PIC). Apesar de ser responsável pelas investigações criminais sob supervisão do Ministério Público, a PIC encontra-se, em última análise, sob o comando do Ministério do Interior. Este modelo institucional criou ambiguidades na linha de controlo das investigações criminais e é uma questão que carece de resolução. Parece que o Ministério Público e o Ministério do Interior chegaram a consenso quanto à permanência da PIC no MINT, mas com maior autonomia administrativa e melhores recursos, para poder melhorar o processo de investigação criminal. Se algum consenso foi alcançado sobre a PIC, este deve ser completamente clarificado e confirmado para que a atenção se possa virar para a concretização das melhorias no processo de investigação. Consagrado constitucionalmente em Moçambique, o direito à representação jurídica é outra componente chave do direito a um julgamento justo. O Instituto de Assistência e Patrocínio Judicial (IPAJ), criado em 1994 e sob tutela do Ministério da Justiça, é o responsável pela satisfação deste comando constitucional. Os estatutos da OAM dispõem que seus membros devem oferecer patrocínio jurídico gratuito como uma das suas obrigações durante o estágio. Como último recurso, a lei prevê que os tribunais, o Ministério Público ou o juiz possam designar um advogado ad hoc para representar o acusado, caso não haja outra possibilidade de representação. Contudo, na prática, há muitas falhas na prestação deste serviço em casos criminais pela OAM D O C U M E N T O P A R A D E B AT E 17 e pelo IPAJ. Muitas vezes, os suspeitos são defendidos por um representante designado pelo tribunal no próprio dia do julgamento e sem qualquer formação jurídica. O facto de, num contexto de pobreza generalizada, a maioria dos réus depender de assistência jurídica tem consideráveis implicações num julgamento justo, sendo necessário proceder a uma profunda revisão do sistema. Tanto a OAM como o IPAJ deveriam beneficiar de mais fundos; no caso da OAM, para cobrir despesas relacionadas com a assistência jurídica e, no caso do IPAJ, para pagar os salários dos seus membros. Também é necessário adoptar medidas inovadoras, utilizando, por exemplo, estudantes de direito ou os que se encontram em estágio para admissão na OAM, assim como apoiando a crescente rede de paralegais de organizações da sociedade civil que dão assistência jurídica. 18 M o ç ambi q ue : O S ector da J usti ç a e o E stado de D ireito 5. Acesso à justiça e protecção dos direitos Como em outros países subdesenvolvidos, constitui um desafio para Moçambique garantir a todos os cidadãos a protecção dos seus direitos consagrados na Constituição. Para a maioria dos moçambicanos, os tribunais judiciais são inacessíveis, bloqueados por uma série de impedimentos, nomeadamente: custas judiciais demasiado elevadas relativamente aos seus rendimentos, localização a grandes distâncias e redes de transporte deficientes. Mesmo com isenção do pagamento de custas judiciais e assistência jurídica gratuita, as despesas de transporte para os tribunais e de alojamento fora de casa podem tornar-se obstáculos enormes e insuperáveis. Embora medidas de pormenor, como a introdução de uma escala de custas judiciais mais reduzida e simplificada, pudessem ajudar, são necessários passos mais radicais para que a maioria dos moçambicanos tenha acesso a um fórum reconhecido oficialmente onde os conflitos possam ser resolvidos perante um tribunal imparcial. A Constituição de 2004 abre várias oportunidades interessantes de resposta a este desafio. A primeira é o reconhecimento do direito de ‘acção popular’, à luz do qual indivíduos e grupos podem levar a tribunal casos relacionados com questões de saúde pública, direitos dos consumidores, conservação ambiental, herança cultural e propriedade pública. Como não existe legislação que faça vigorar esta disposição, não é clara a forma de obtenção deste direito. A UTREL deveria ser mandatada e financiada para proceder a consultas amplas e preparar legislação que fornecesse o quadro legal necessário ao cumprimento desta disposição. Em segundo lugar, como acima se referiu, a Constituição de 2004 também trouxe um novo e importante reconhecimento dos tribunais comunitários, que talvez constituam o fórum mais acessível e rápido de resolução de disputas formalmente reconhecido pelo Estado. Contudo, tais tribunais jamais receberam apoio financeiro, material e de recursos humanos (embora, em alguns casos, eles sejam apoiados esporadicamente pelos tribunais distritais), estando sem nenhum controle formal, incluindo no tocante à legislação aplicada e a nomeações. A nova legislação proposta pela UTREL restabelece a anterior ligação dos tribunais comunitários com o Ministério da Justiça, mas, desta vez, com um vínculo formal aos tribunais judiciais. Embora seja importante o apoio financeiro e a integração dos tribunais comunitários no sistema de justiça, o seu financiamento e administração deveriam ser estruturados com as mesmas garantias de D O C U M E N T O P A R A D E B AT E 19 independência asseguradas aos tribunais judiciais no que se refere a interferências do Executivo. Tendo em conta, no entanto, os actuais problemas de distribuição de fundos do nível central (nacional) do sistema judicial para o distrital, o CCLJ ou o CSMJ deveriam, com carácter de urgência, considerar a criação de um sistema através do qual os tribunais nos escalões inferiores da hierarquia pudessem ser financiados com maior rapidez. O Ministério da Justiça poderia provar ser mais efectivo na provisão de fundos a estes tribunais que a actual estrutura. Seja qual for a relação institucional, ela não deveria comprometer a eficácia e a relativa velocidade de funcionamento dos tribunais comunitários. Por último, a Constituição de 2004 reconhece pela primeira vez o pluralismo jurídico em Moçambique, o que representa um importante passo no sentido de integrar os vários sistemas normativos e de resolução de conflitos que coexistem no país na estrutura judicial formal. Não há, no entanto, um entendimento claro, mesmo em termos de princípio, sobre o que este reconhecimento poderá significar na prática. A Constituição não reconhece expressamente os fóruns tradicionais de resolução de conflitos orientados por líderes tradicionais (régulos) e por líderes locais nomeados pelo Governo (secretários de bairro ou secretários de aldeia), embora para a maioria dos moçambicanos estes continuem a ser o seu principal mecanismo de acesso à justiça. A questão da operacionalização do princípio do pluralismo jurídico e, especificamente, da incorporação ou não destes fóruns tradicionais de resolução de conflitos no sistema formal, carece de um amplo debate, com auscultação pública. Ao mesmo tempo, é necessário considerar a possibilidade de criar um mecanismo que assegure o respeito pelos princípios constitucionais quando os fóruns tradicionais aplicam o direito costumeiro. Ao decidir sobre o processo Presidente da República de Moçambique v. Bernardo Sacarolha Ngomacha, o Tribunal Supremo referiu claramente que o direito costumeiro tem que ser aplicado em conformidade com os princípios constitucionais e com os instrumentos de protecção dos direitos humanos acordados internacionalmente. Moçambique não possui uma Comissão dos Direitos Humanos, embora discussões internas no Governo para o estabelecimento deste órgão já tenham iniciado. Uma tal Comissão poderia desempenhar um papel importante, por exemplo, em garantir um grau maior de independência na supervisão da polícia e das prisões. O Parlamento aprovou recentemente legislação que cria a figura do Provedor de Justiça, mas este ainda não foi eleito. O Provedor constituirá um mecanismo adicional na defesa extra-judicial dos direitos e deveria ser implementado rapidamente, para que este trabalho se inicie. A sociedade civil deveria exercer a sua influência de advocacia neste sentido e ser envolvida no processo de eleição do Provedor pelo Parlamento. 20 M o ç ambi q ue : O S ector da J usti ç a e o E stado de D ireito 6. Assistência ao desenvolvimento do sector da justiça Moçambique irá, por necessidade, continuar a depender da assistência de doadores para implementar muitas das reformas identificadas neste documento. Em geral, é bem-vinda a tendência de passar do financiamento de projectos individuais para um apoio directo ao Orçamento do Estado, dirigido a prioridades identificadas pelo Governo e associadas a um plano estratégico. Nos últimos anos, a coordenação entre os parceiros de desenvolvimento de Moçambique também melhorou, mas deveria ser mais transparente, para que a sociedade civil possa determinar e fiscalizar mais facilmente a assistência canalizada para o sector. O Governo deve tomar a dianteira na apresentação de um plano sectorial que congregue a assistência da comunidade doadora. Algumas iniciativas específicas poderiam, no entanto, receber apoio individual directo de doadores, incluindo, por exemplo, a publicação de revistas jurídicas e a realização e patrocínio de colóquios sobre matérias jurídicas, assim como o desenvolvimento de uma troca de experiência entre os países africanos lusófonos. D O C U M E N T O P A R A D E B AT E 21 Conclusão Desde o fim da guerra civil e da assinatura dos acordos de paz, o sector da justiça em Moçambique tem sofrido transformações que reflectem as mudanças políticas e sócio-económicas que estão a ser implementadas pelo Governo. Moçambique passou de Estado monopartidário para uma democracia constitucional, multipartidária, e o sector da justiça deixou de ser uma ramificação do partido FRELIMO. A Constituição de 1990 consagrou o princípio da separação de poderes entre os Tribunais, o Executivo e o Legislativo, que viria a ser reforçado na Constituição de 2004. Contudo, apesar de melhorias substanciais que foram introduzidas, a independência dos tribunais e do Judiciário ainda não está garantida. A todos os níveis do Governo, os membros do Executivo deveriam submeter-se às decisões dos tribunais, cooperar com os processos de investigação e respeitar a independência dos tribunais e dos seus juízes, mas tal nem sempre se verifica. Se tais princípios não forem estritamente respeitados, a confiança do público nos tribunais corre o risco de ficar ainda mais enfraquecida. Para que a independência judicial seja verdadeiramente assegurada, é preciso que os órgãos de supervisão também vejam reforçado o seu papel no processo de nomeação do Presidente do Tribunal Supremo e também do Procurador-Geral da República. Os tribunais judiciais não são uma realidade para a grande maioria dos cidadãos moçambicanos. Há que implementar as disposições da Constituição de 2004 para a introdução de um novo escalão de tribunais de recurso ao nível provincial e de tribunais administrativos nas províncias, como forma de melhorar a acessibilidade dos tribunais. A maioria dos cidadãos continua, no entanto, a depender do sector informal: de tribunais comunitários ou de outros mecanismos tradicionais de resolução de conflitos. É urgente a clarificação do estatuto dos tribunais comunitários, assim como é a prestação de apoio financeiro para sua operação. A formação dos juízes dos tribunais comunitários e dos líderes tradicionais locais aumentaria a possibilidade de os princípios constitucionais e padrões de direitos humanos serem observados nestes fóruns de resolução de conflitos. Há um grande debate nas instituições do sector da justiça quanto ao seu futuro, um processo de auto-reflexão e de discussão interna que é de saudar. Agora, é essencial que o sector seja capaz de trabalhar como um todo na implementação de novas estratégias e políticas. No entanto, o crucial no processo da reforma do sector da justiça é garantir que haja vontade política para a concretização das medidas resultantes da reflexão pública e das novas políticas e estratégias adoptadas. D O C U M E N T O P A R A D E B AT E 23