2 Comédias Petrobras apresenta Comédias do bumba meu boi do Maranhão Santarém, Pará Cumbuca Norte 2014 Comédias do bumba meu boi do Maranhão 3 Projeto Palhaceiros da Graça de Deus Realização Cumbuca Ficha técnica Coordenação Alexandre Nazareth da Rocha Apoio Superintendência de Cultura Popular/ Secretaria de Estado da Cultura do Maranhão Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular Superintendência do Iphan no Maranhão Patrocínio Petrobras Pesquisa e edição de textos Wilmara Figueiredo Luciana Gonçalves de Carvalho Revisão Fernanda Silveira Fotografias Gavin Andrews, com exceção de: capa, contracapa e páginas 10, 47, 133, 143, 144 – Fotos: Zeqroz Neto. Páginas 148, 170 – Fotos: Éder Blues Ilustração Estúdio Primeiro Pedaço Design gráfico Claudia Duarte (Avellar & Duarte) Realização Apoio Cumbuca Patrocínio Superintendência no Maranhão Comédias do bumba meu boi do Maranhão 5 C732 Comédias do bumba meu boi do Maranhão / Coordenação de Alexandre Nazareth da Rocha, pesquisa e edição de Wilmara Figueiredo e Luciana Gonçalves de Carvalho, ilustração de Estúdio Primeiro Pedaço. – Santarém: Cumbuca, 2014. 182 p.; il. color. ISBN 978-85-68239-01-8 1. Bumba meu boi – Maranhão. 2. Cultura popular – Maranhão. 3. Narrativas. I. Rocha, Alexandre Nazareth, coord. II. Figueiredo, Wilmara. III. Carvalho, Luciana Gonçalves. IV. Título. CDD – 398.098121 Página 5 Detalhe de couro de boi. Capa e contracapa Página 10 Detalhe de couro de boi. Detalhe de chapéu de fitas. Segunda capa Página 128 Miçangas e canutilhos para bordados. Lourenço “Pinto” encarnando o “papagaio”. Terceira capa Página 176 Detalhe de couro de boi. Armação de boi. Página 1 Página 184 Detalhe de couro de boi. Detalhe de couro de boi. Sumário Apresentação................................................................................................................................. 11 Palhaçadas para São João............................................................................................................. 15 Comédias ...................................................................................................................................... 49 O macaco ................................................................................................................................ 51 Carneiro ou jumento ............................................................................................................. 53 O baile da bicharada .............................................................................................................. 54 O burro do fazendeiro ........................................................................................................... 56 Veado comedor de roça ......................................................................................................... 58 A onça ..................................................................................................................................... 61 A cobra .................................................................................................................................... 62 Criação de jabuti .................................................................................................................... 64 Troíra ....................................................................................................................................... 65 O jacaré macho ....................................................................................................................... 66 A jia encantada ....................................................................................................................... 68 O boi visagento ...................................................................................................................... 70 O feiticeiro montador ............................................................................................................ 73 A alma na fazenda .................................................................................................................. 74 Medroso metido a corajoso ................................................................................................... 75 O vigia do morto.................................................................................................................... 78 O defunto e o besouro ........................................................................................................... 80 Nós-Tudo ................................................................................................................................ 81 A velha jumenta ..................................................................................................................... 82 O sequestro da velha .............................................................................................................. 86 A mulher na festa ................................................................................................................... 88 O casamento ........................................................................................................................... 89 A troca de mulheres ............................................................................................................... 91 Panada de facão ...................................................................................................................... 93 Santo amante .......................................................................................................................... 94 Olhinhos acesos ..................................................................................................................... 96 O vendedor de caranguejo .................................................................................................. 100 O menino órfão .................................................................................................................... 103 Miruíra .................................................................................................................................. 105 Abi ......................................................................................................................................... 108 Cururuca ............................................................................................................................... 110 O negociante ladrão ............................................................................................................. 112 O bêbado e o dentista .......................................................................................................... 115 O caçador .............................................................................................................................. 116 Vendedora boa ...................................................................................................................... 117 Culhote .................................................................................................................................. 119 Médico do mato ................................................................................................................... 121 O retrato da velha ................................................................................................................ 122 Lição para o senador ........................................................................................................... 124 Palhaços do boi .......................................................................................................................... 129 Antônio Vieira ...................................................................................................................... 130 Arcângelo Reis ..................................................................................................................... 132 Arlindo Trindade ................................................................................................................. 136 Carlos Augusto dos Santos ................................................................................................. 138 Clemente Felício Martins ................................................................................................... 140 Diomedes Rodrigues dos Santos ....................................................................................... 142 Eleutério Silva ...................................................................................................................... 144 Herbert Mafra Reis............................................................................................................... 147 João Vieira............................................................................................................................. 151 José Augusto Araújo ............................................................................................................ 153 Lourenço Soares .................................................................................................................. 155 Raimundo Leal .................................................................................................................... 158 Roberval Silva ...................................................................................................................... 162 Rogério Fernandes .............................................................................................................. 166 Valdemar Piedade Pereira ................................................................................................... 169 Valter Silva ............................................................................................................................ 172 Glossário ..................................................................................................................................... 177 10 Comédias U m dos aspectos que mais valorizamos nos projetos que patrocinamos é a oportunidade de fazer com que cada vez mais brasileiros de regiões distantes dos grandes centros possam conhecer a arte produzida em todo o país. No caso dos Palhaceiros da Graça de Deus, o resultado de todo o trabalho será valorizado na própria região e poderá ser conhecido por moradores de outras regiões do Brasil. É exatamente o que buscamos atingir nos nossos patrocínios. O resgate das tradições, a sua manutenção e a possibilidade de levar o conhecimento e a arte à frente, atraindo o público e fortalecendo a cadeia produtiva. O valor cultural e de patrimônio tão caros aos participantes poderá ser percebido por quem tiver em mãos o material que receber ao fim deste projeto. Pesquisadores, estudantes e qualquer apreciador de arte poderão conhecer as atividades do bumba meu boi com registros que dão visibilidade a criações tão importantes para a tradição maranhense. Patrocinando projetos assim, almejamos alcançar a mais ampla diversidade étnica, regional e cultural. Prezamos as atividades que incentivem o debate, a discussão, o estudo em busca do resgate de tudo o que já foi feito de positivo e do que pode ser criado, do que pode surgir de novo em toda forma de arte. Articulado com as políticas públicas para o setor e focado na afirmação da identidade brasileira, acreditamos que o Petrobras Cultural contribui para a ampliação das oportunidades de criação, circulação e fruição dos bens culturais. Em nove edições da nossa seleção pública – este projeto foi contemplado na edição 2012 – já destinamos mais de R$ 380 milhões para 1.448 projetos em todas as regiões do país. Pretendemos, dessa forma, abordar a cultura brasileira em suas diferentes manifestações. Palhaçadas para São João Luciana Gonçalves de Carvalho O projeto Palhaceiros da Graça de Deus está voltado para a salvaguarda das tradições cômicas do bumba meu boi do Maranhão, celebração que, em 2012, foi reconheci- da como patrimônio cultural do Brasil pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Realizado junto a brincantes e ex-brincantes de grupos de bumba-boi do sotaque de zabumba1 na região de Guimarães e em São Luís, o projeto vem documentando narrativas designadas como matanças, comédias ou palhaçadas, que são, recorrentemente, associadas ao chamado “auto do boi”. Esse auto, que aparece como um único ciclo mítico disseminado sob diversas rubricas da tradição oral e escrita no Brasil (CAVALCANTI, 2006), relata o drama vivido pelo casal Pai Francisco e Mãe Catirina a partir do momento que ela, grávida, passa a desejar comer a língua ou o fígado do boi mais precioso e querido do dono da fazenda onde ambos trabalham. O casal, normalmente representado como negros escravizados ou lavradores, atravessa uma série de contratempos provocados pelo insensato desejo da mulher, que acaba resultando na morte ou no roubo do boi e, em consequência, na prisão e punição de Pai Francisco. Obrigado a pagar ou a ressuscitar o boi do fazendeiro, o homem se desespera e pede socorro 1 O bumba meu boi maranhense apresenta-se em diferentes modalidades, sugestivamente designadas sotaques, às quais correspondem estilos rítmicos e musicais, assim como personagens, indumentárias, formas de organização social, padrões coreográficos e territórios específicos. Convencionalmente, os bois classificam-se nos sotaques de zabumba ou de Guimarães, de matraca ou da Ilha, de pandeirões ou de Pindaré ou da Baixada, de costa-de-mão ou de Cururupu, e, finalmente, de orquestra. Embora essas classificações sejam acionadas efetiva e recorrentemente como sinais diacríticos pelos grupos, orientando inclusive políticas públicas diferenciadas conforme o sotaque, ainda assim não podem cobrir toda a diversidade dos bois do estado, havendo bois que não se enquadram bem num ou noutro sotaque, permanecendo, de certa forma, inclassificáveis. a doutores e pajés, até que consegue reparar a perda e recuperar a liberdade depois de protagonizar muitas estripulias que dão à tragédia do casal um franco apelo cômico. Nas centenas de bois existentes no Maranhão, esse relato mítico assume os mais diferentes contornos. Não há, hoje, e nem parece ter havido em outros tempos, homoge- 16 Palhaçadas para São João Carro de boi. Página 14 Zona rural de Mirinzal. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 17 neidade nas narrativas que são representadas nas brincadeiras. Por um lado, variam as versões da trama, assim como ela se articula ou dá lugar a outros dramas que também são trazidos à cena. Por outro lado, inúmeros grupos nem sequer fazem alusão ao enredo ou a seus personagens, ou apenas os caracterizam muito timidamente com máscaras, roupas velhas e barrigão. Muito embora estudos importantes sustentem que há uma centralidade do “auto do boi” como núcleo agregador de sentidos do bumba meu boi, o que se observa nos bois do Maranhão é uma verdadeira profusão de referências simbólicas em um universo narrativo e performático que extrapola as categorias de classificação e análise com que, de fora, se tem regularmente observado as práticas cômicas da brincadeira. Nesse contexto, a opção por abordar o tema a partir das categorias nativas (matanças, comédias, palhaçadas) atribuídas às representações cômicas do boi pelos sujeitos que as criam e encenam – autodenominados palhaços ou palhaceiros – vai ao encontro da proposta do projeto de documentar, difundir e valorizar as tradições orais e dramáticas do bumba meu boi, focando-as do ponto de vista de seus realizadores. Acompanhando o brincante Herberth Mafra Reis, que uma vez declarou ironicamente que “auto [alto] é o céu, que Deus está lá” e “auto que eu conheço é um edifício bem alto”, o projeto toma como ponto de partida a polifonia e a multivocalidade do universo expressivo das perPraia do Outeiro, Cedral. formances do interior do estado, que, com frequência, são subvalorizadas em relação aos modelos festivos que atualmente prevalecem em São Luís. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 19 O objetivo, ao registrar narrativas relatadas e encenadas por brincantes residentes ou naturais do interior do estado é a salvaguarda de modos tradicionais de pensar, narrar, rir, festejar e, enfim, de “brincar boi”, que são próprios dos moradores de zonas rurais e que vêm, a cada ano, perdendo espaço para formas mais “modernas” de realizar a celebração. As localidades de atuação do projeto – Guimarães, Mirinzal, Cedral, Porto Rico, Central do Maranhão, Cururupu e Santa Helena2 – situam-se ao norte da Baixada Ocidental Maranhense, e correspondem à área cultural reconhecida como “a raiz” do sotaque de zabumba, o qual, por sua vez, é o mais apegado às tradições cômicas do boi, na visão local. As histórias que tem são porque nós, que somos do interior, cultivamos no nosso 2 Guimarães é o município mais antigo entre os mencionados, do qual se emanciparam Cururupu, Mirinzal, que mais tarde deu origem a Central do Maranhão, e Cedral, de onde se desmembrou Porto Rico. O município de Santa Helena também foi anexado a Guimarães e, depois, a Pinheiro, antes de sua emancipação. Guimarães está a cerca de 50 km de distância de São Luís, em linha reta, mas esse valor aumenta para pouco mais de 400 km considerando-se as rotas rodoviárias. O percurso pode ser feito por terra ou por terra e mar, atravessando-se a Baía de São Marcos em ferry boat. grupo. É uma comédia, como uma quadrilha. Quadrilha é uma dança normal, mas, quando chega o momento da representação, tem o casamento. Aquele casamento tem várias histórias; tem graça, o povo ri. Assim, nós continuamos com a comédia no bumba meu boi. Mas o nosso não é casamento, porque é bumba-boi. Nós temos a Catirina, que está grávida e fala que está desejando a língua do boi. Aquele boi lindo que está no cordão, brincando! Eu não vou chegar lá e cortar a língua de um boi lin- À direita, alto do daquele só para matar o desejo dela. Então, dentro daquela história, o tempo vai Peixaria em Cururupu. se passando e a gente termina a comédia e ela nunca termina o desejo. Esse desejo fica e todo ano nós cultivamos esse desejo dela (entrevista concedida por Eleutério Silva, em São Luís, em 19 de março de 2014). 20 À esquerda Detalhe da cidade de Central do Maranhão. Palhaçadas para São João À direita, baixo Praça em Santa Helena. 22 Palhaçadas para São João 3 Trata-se de uma região de relevo plano, próxima às reentrâncias do litoral norte do Maranhão, servida por abundantes lagos inundáveis nos períodos de inverno. De acordo com teorias nativas, supõe-se que na região de Guimarães estariam localizadas as origens históricas e as matrizes culturais não só do sotaque de zabumba, mas do próprio bumba meu boi maranhense. A brincadeira, em sua concepção mais difundida no estado, teria sido criada por negros escravizados nessa região, em eventual colaboração com indígenas. E a formação do sotaque de zabumba, segundo memórias registradas por pesquisadores, dataria da década de 1860, quando Gregório Malheiros, no povoado denominado Jacarequara (que fazia parte, à época, do município de Guimarães), resolveu substituir esses pandeiros grandes por zabumbas e tambores-de-fogo. E enfim, Damásio, já com os instrumentos novos, criou o ritmo de Guimarães, o qual foi, depois, gerando outras variações (AZEVEDO NETO, 1997, p. 34). Embora os bois de zabumba ainda sejam uma referência cultural da população local, formada na maior parte por lavradores e pescadores concentrados nas zonas rurais e lacustres,3 observa-se, hoje em dia, a desvalorização de suas formas expressivas mais tradicionais na região, que vem experimentando alterações significativas nos modos de celebrar o bumba-boi. Notam-se, no bojo desse processo, transformações semelhantes às ocorridas, nas últimas décadas, nos bois da capital, que incluem desde o desenvolvimento de novos padrões espaciais, temporais e estéticos de realização da brincadeira até a substituição de modelos tradicionais de organização, com base em relações de vizinhança, parentesco, afinidade e compadrio, pela Casario em Guimarães. constituição jurídica dos grupos na forma de associações ou sociedades beneficentes (AZEVEDO NETO, 1997; CARVALHO, 1995; CARVALHO, 2011; MARQUES, 1999). Comédias do bumba meu boi do Maranhão 23 Essas mudanças estão intimamente ligadas à transformação do bumba meu boi em um espetáculo folclórico de grandes proporções, que passou a se constituir em atração para maranhenses e turistas, relativamente independente do universo místico-religioso em que a brincadeira tradicionalmente era feita como pagamento de promessas e prova de devoção a São João Batista. Segundo a tradição secular, que muitos atribuem aos antigos escravos, o bumba meu boi nasceu como uma celebração em homenagem ao santo que batizou Jesus Cristo. A comédia, por sua vez, tematizando fatos relativos ao contexto da promessa feita pelo devoto responsável pela brincadeira, constituiria um testemunho da intervenção de São João. Nessa visão mais tradicional do boi, a função dos palhaceiros estaria, portanto, duplamente fundada na noção de graça: no sentido de fazer rir e de dar testemunho da dádiva divina. Brincar boi, até hoje, constitui para alguns devotos um modo de louvar o santo e agradecer por pedidos e promessas atendidas. Embora essa prática, muito significativa no passado, venha se tornando cada vez menos usual, muitos integrantes e donos de boi no Maranhão ainda mantêm a brincadeira em função de compromissos assumidos com São João e/ou, eventualmente, outras entidades, como santos católicos, principalmente os festejados no período junino, a exemplo de Antônio, Pedro e Marçal. Também estão incluídos caboclos do tambor de mina, uma religião que é bastante difundida no estado. Assim, ainda há promesseiros que “dão” ou “fazem” o “boi de promessa”, isto é, arcam com os custos de realização da brincadeira em pagamento por graças recebidas. No entanto, a maioria dos bois 24 Palhaçadas para São João atualmente sobrevive com recursos públicos e privados destinados à cultura, pagos aos grupos na forma de cachês e patrocínios, além dos investimentos feitos pelos próprios donos. Nesse tempo a brincadeira era promessial. A gente só fazia um boi na promessa, aí tinha de ter aqueles assuntos para a gente poder crescer. E agora não, é comercial, tudo no comércio. Nesse tempo, não. Se eu fizesse um boi aqui em Santa Maria, é porque eu tinha uma promessa de fazer um boi, aí eu dava aquele boi, a pessoa fazia gosto de brincar. Assim é que era. E agora não, está do mesmo estilo de São Luís (entrevista concedida por José Carlos Vieira, em Santa Maria dos Vieiras, Guimarães, em 28 de fevereiro de 2014). Os fluxos de indivíduos favorecidos pela participação no bumba-boi e em outras brincadeiras populares intensificam-se a cada período junino, e, com eles, aceleram-se também as trocas culturais entre diferentes grupos sociais. Dessa forma, o circuito dos bois de zabumba pressupõe um intercâmbio constante entre moradores das zonas rurais e urbanas, que nem sempre é avaliado de forma positiva pelos primeiros. Há um intenso trânsito de brincantes residentes em uma série de povoados rurais (muitos dos quais são atualmente reivindicados por comunidades remanescentes de quilombos) em direção às sedes municipais do interior. Com frequência, esse circuito se expande e alcança também São Luís, já que muitos donos de bois estabelecidos nessa cidade, que são naturais do interior, convidam parentes e amigos para brincar em seus grupos em determinadas datas do período junino. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 25 Aqui quem botava o bumba-boi, que vinha sempre, era esse povo mais velho. O Leonardo4 deu continuidade em São Luís e chamava o pessoal daqui para brincar. Acho que deve ter umas trinta a quarenta pessoas que brincam, são daqui e brincam lá em São Luís. Brincam em São Luís com ele, depois ele vem para cá e eles brincam aqui. Aí, ficou essa tradição (entrevista concedida por Célia Reis, em Santa Maria dos Vieiras, Guimarães, em 28 de fevereiro de 2014). Com efeito, os bois do sotaque de zabumba mantêm uma considerável unidade simbólica no interior e na capital, formando verdadeiramente uma rede, e continuam se afirmando como aqueles que mais prezam as práticas cômicas da brincadeira. Embora as matanças tenham mais importância no interior e tenham praticamente desaparecido em São Luís (onde restam algumas rápidas representações do “auto”, quando solicitadas e remuneradas pelos órgãos públicos de cultura), até mesmo aí se reconhece nos brincantes desse sotaque competências especiais para atualizarem as performances que culminam no atentado ao boi. É nos bois de zabumba, portanto, que os autores e atores cômicos ganham papéis de destaque, surpreendendo inclusive os bois de outros sotaques. O sotaque de zabumba é muito bonito porque eles montam comédias, têm especialistas em montar comédias. E o boi de matraca segue a tradição, não expande, nunca teve a criatividade de montar comédias. Ele faz tudo aquilo que sempre vem fazendo desde o início. Só que no boi de zabumba, eles fazem coisas 26 Palhaçadas para São João 4 Leonardo Martins Santos, finado dono do Boi da Liberdade, considerado um dos mais tradicionais de São Luís. Zabumba. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 27 engraçadíssimas mesmo (entrevista concedida por Humberto Barbosa Mendes ao INRC do Bumba Meu Boi do Maranhão apud CARVALHO, 2009, p. 121). Esses “especialistas em montar comédias” são os palhaços ou palhaceiros, também chamados chefes da matança ou da palhaçada, ou, ainda, Pais Franciscos e Mães Catirinas. Eles são os personagens a quem cabe efetivamente a autoria e a encenação das matanças, mesmo que outros brincantes desempenhem papéis importantes, como é o caso dos cabeceiras ou cantadores e os vaqueiros, com os quais os palhaços encetam diálogos estruturantes nas histórias encenadas. O primeiro interlocutor do palhaço é o vaqueiro, é ele que vem atender ao palhaço. O vaqueiro é quem fala com o fazendeiro, diz o nome de quem quer falar com ele e apresenta os dois. Depois disso é que os palhaços vão negociar com o fazendeiro, que expõe a desculpa dele, e o palhaço, a dele, para ver se fecham o negócio. Enfim, o interesse da gente é a jogada de conversa com aquelas piadinhas para fazer o povo rir. O tema é aleatório. São proposições inventadas, por isso a gente tem uma porção de enredos, À esquerda uma porção de ideias (entrevista concedida por Valdemar Piedade Pereira, em São Lourenço “Pinto” com “esqueleto”. Luís, em 14 de março de 2014). À direita Arlindo Trindade com máscara. As comédias propriamente ditas sempre começam depois de o cabeceira cantar sucessivas toadas, que são acompanhadas pelo coro de brincantes. Essas toadas obedecem a uma Comédias do bumba meu boi do Maranhão 29 ordem que alinhava todas as etapas da brincadeira: o “guarnicê” (de guarnecer) é uma espécie de convocação para os brincantes se prepararem e afinarem seus instrumentos; a “reunida” arregimenta o grupo para começar a brincadeira; o “lá vai” anuncia o cortejo de brincantes que, rapidamente, toma conta do espaço em fileiras ordenadas; a “licença” ou o “boa-noite” é um cumprimento aos anfitriões e espectadores da brincadeira; o “traz-o-boi” manda o vaqueiro trazer a prenda da fazenda; o “chegou” anuncia a entrada do próprio em cena. A partir do “lá vai” os palhaços podem entrar em ação. Tem as horas certas de matança, tem a hora de fazer. Por exemplo, tem a reunida na fogueira, tem a levagem do boi, para levar na porta. Não é propriamente na porta, chama lá e reúne. É uma chamada. E canta duas toadas que vai fazer a matança, para dar a continuação e fazer. São umas toadas de aviso de matança, de fazer matança, roubar boi, palhaçada (entrevista concedida por José Augusto Araújo, em Central do Maranhão, em 2 de março de 2014, grifo nosso). As performances são elaboradas a partir de fatos observados no cotidiano, notícias transmitidas pelo rádio e pela televisão, sonhos ou inspirações de caráter místico-religioso, incluindo-se nessa classe os motivos de promessas feitas por brincantes do grupo ou pessoas de seu relacionamento próximo. As tramas desdobram-se em vários assuntos: relações de trabalho, direito a terra, doença, morte, hierarquia, relações de afinidade e parentesco, traição, engodo. Nelas, a perda do precioso animal – por morte, roubo ou dano – revela-se como uma 30 Palhaçadas para São João 5 Personagens que cantam e dançam no círculo formado pela brincadeira. ideia recorrente a organizar as performances dos bois, constituindo-se como desfecho das mais diversas sequências cômicas, quase sempre deflagradas pela expressão não controlada do desejo humano. Nesse sentido, apesar da variedade temática das histórias, elas invariavelmente culminam num ato dramático chamado “meia-lua”, marcado por uma toada correspondente ao momento de perda, roubo ou morte do boi, ao qual se segue a restituição do animal à fazenda simbólica delimitada pelas fileiras de vaqueiros e rajados de fitas.5 Em toda matança a finalidade é roubar o boi. Daí que surgem as histórias em que o boi é a vítima. A história da Catirina é porque a mulher grávida quer comer a língua do boi. Mas nós inventamos outras também. Somos ladrões negociantes que querem negociar o que não têm com aquilo que você tem. Você que tem muito e eu não tenho nada, eu vou buscar alguma coisa que você tem. Essa é a graça da matança. É acusação. Quando não se quer devolver o boi roubado, aparece o gato maracajá, a onça para devorar o cara, os índios para bater. Tudo isso é para pressionar o sujeito a pagar o boi que tinha sido levado. Mas o ladrão oferece um jabuti, um tatu e faz aquela comédia doida (entrevista concedida por Valdemar Piedade Pereira, em São Luís, em 14 de março de 2014). Os personagens assumidos nas matanças são os mais variados e representam homens, mulheres, animais, visagens, santos, bichos encantados, entre outros. Para representá-los, os palhaceiros lançam mão de expedientes como roupas, máscaras e acessórios (bolsas, espingardas de pau, colares etc.) relativamente simples, mas também de bonecos bem elaborados, Comédias do bumba meu boi do Maranhão 31 que são inventados exclusivamente para compor os enredos. Produzidos pelos próprios palhaços ou artesãos especializados, esses apetrechos levam materiais simples e retirados das matas do interior: por exemplo, madeira de jeniparana, fibra de buriti, saco de cimento, papelão, jornal, cola, tinta, plástico, náilon e tecidos. Geralmente, as matanças mais elaboradas e com maior número de personagens são feitas no âmbito das “brincadas”, eventos nos quais o ato de “brincar boi” se caracteriza pelo tom familiar dos contatos entre os brincantes e entre eles e o seu público, que participa ativamente da ocasião, interagindo com os palhaços e prestigiando as encenações preferidas. Trata-se, em regra, de um público que, em seu cotidiano, dispõe de poucas opções de lazer e que tem – ou tinha, no caso dos mais idosos – nas festas juninas sua principal diversão. Era muita gente. Em Pinheiro, era na casa de senhor José Raimundo. Lá era tudo em um círculo, mas a assistência toda assistia. A arquibancada era todo mundo sentado. A gente brincava muito. Em um ano, nós brincamos boi em Mojó e fomos para Pinheiro. Nós começamos a brincar no dia 22, no Mojó; 23 nós brincamos em Bequimão; 24 nós brincamos nas Três Marias. De lá fomos para Pinheiro e de lá para a Ilha de À esquerda Boi. À direita Burrinha. Fora. Fomos e brincamos na Santa Helena, de lá para Centrinho, em cima de Santa Helena, quem vai para Machadinho. Do Centrinho fomos para Guariramã e de lá para o Abaixadinho. Brincamos duas noites. Brincamos em um lugar que tem para lá do Guariramã, já no Pará. Lá, nós pegamos lancha às sete horas da manhã e chegamos Comédias do bumba meu boi do Maranhão 33 sete da noite em Santa Helena. Depois viemos por Juçaral, município de Perimirim. Chegamos uma hora da madrugada em Juçaral. No outro dia, fomos para a Vila do Meio, no Mojó, onde era a brincadeira. Brincamos lá e de manhã viemos embora. Vinte e dois dias direto (entrevista concedida por Arcângelo Reis, em São Luís, em 18 de março de 2014). As “brincadas”, normalmente, ocorrem na zona rural, em frente à casa de algum conhecido, ou em praça pública, na área urbana, fugindo ao modelo festivo demarcado pelo espaço do arraial. Elas são bastante livres e, em função do local, podem se estender por até mais de oito horas, do início da noite até a manhã seguinte, durante as quais se representam de uma a três tramas para públicos essencialmente compostos por familiares, amigos e vizinhos. Uma boa matança passa uma hora de relógio. Para fazê-la, a primeira coisa que você vai fazer é ensaiar com o grupo, porque o cabeceira vai fazer a toada em cima do que o chefe da matança for apresentar pra ele. Por exemplo: PALHAÇO: Meu irmão, nós vamos fazer uma matança. CABECEIRA: Que enredo? PALHAÇO: Rapaz, eu vou vender um carro. Vou ser vendedor de carro. CABECEIRA: O que tu vais chegar a apresentar? PALHAÇO: Eu vou apresentar o carro. 34 Palhaçadas para São João Depois vamos combinar os nomes dos personagens etc. A ideia que eu quiser dizer, eu digo. E ele também se manifesta para fazer a toada em cima do meu nome. Assim começa a brincadeira (entrevista concedida por Valdemar Piedade Pereira, em São Luís, em 14 de março de 2014, grifo nosso). Nesse aspecto, as “brincadas” se distinguem marcadamente das “apresentações”, categoria que corresponde às exibições realizadas nos arraiais juninos montados nas principais praças das cidades do interior, que já seguem o mesmo modelo que se consolidou em São Luís após os anos 1970, quando as festas de junho começaram a se descentralizar, espalhando-se por vários bairros da capital. Os arraiais são espaços montados para apresentação das brincadeiras juninas, entre as quais o bumba meu boi. Em geral, compõem-se de um palco ou uma área delimitada para exibição dos grupos e são rodeados de barraquinhas que vendem bebidas e comidas típicas. Os espectadores, quando não estão consumindo algo nessas barraquinhas, aglomeram-se em volta dos brincantes durante as apresentações, principalmente das atrações mais concorridas, feitas pelos grupos mais famosos da região e, especialmente, da capital. Nos arraiais, os brincantes interagem com comerciantes e políticos locais, desconhecidos, eventuais turistas e pesquisadores, entre outros agentes externos a seu círculo próximo de relações. Sujeitas a regras dispostas por contratos firmados pelo grupo com indivíduos ou instituições pagantes, as “apresentações” feitas em arraiais têm duração limitada a períodos Comédias do bumba meu boi do Maranhão 35 curtos, raramente ultrapassando uma hora de duração, nos quais se desenvolve, quando muito, um formato mais compacto de matança que desagrada à maioria dos palhaços. Ainda assim, há quem defenda o aproveitamento do tempo curto para a representação de alguma comédia, para não “perder a tradição”. É só uma hora, certo. Mas, dentro de uma hora, você faz muita coisa! Eles cantam o “lá vai”; às vezes a gente também de sem-vergonha fica bebendo uma cerveja, larga eles uivando lá na porta... É quatro, cinco toadas e quando a gente chega, eles já estão zangados! Mas é porque é o sistema daqui! Mas, se você vai a São Luís, que é só uma hora, quando canta o “lá vai” você já vai preparadinho. Dentro de uma hora você apresenta! Se começasse a apresentar isso, estava lá em São Luís, isso! Hoje, todo mundo iria! Seria o mesmo que o reggae hoje. Eu fico imaginando como o reggae tomou conta do Maranhão. Me lembro que, quando começaram a sair as primeiras músicas de reggae, ninguém queria. Botava em uma festa e o salão esvaziava. Hoje, se não tiver reggae, a festa não presta! No Maranhão todo é reggae! E assim seria com a matança. O pessoal de São Luís não ia gostar de início. Tem muitas coisas que a gente começa, mas, até ela evoluir, precisa de tempo. Mas, depois, o povo ia apoiar (entrevista concedida por Carlos Augusto dos Santos, em Mirinzal, em 3 de março de 2014, grifo nosso). Os atuais modelos festivos do bumba meu boi do Maranhão incorporaram uma série de mudanças ocorridas nas últimas gerações, as quais vêm afetando sobremaneira as práticas cômi- 36 Palhaçadas para São João Praça de Eventos de Mirinzal. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 37 cas da brincadeira, assim como a seus realizadores, tendo em vista a dificuldade de adaptação às “apresentações” consideradas rápidas demais, em arraiais frequentados por pessoas estranhas ao universo mais próximo dos cômicos, que não são capazes de entender as suas piadas. No ano retrasado teve um boi ali em Cururupu, dos velhões. Nesse ano eu me assanhei para ir. Até sonhei brincando boi! Aí eu disse para o Valter: olha, compadre, nós vamos para Cururupu. Nós vamos para lá! Ele se empolgou, atentou, atentou e nós fomos. Meu Deus do céu! Quando chegou lá, só tinha os velhões. Todos cansados. Coitados, sem força! No Dia dos Pais fizemos uma apresentação, tinha umas dez pessoas na porta. Fazer papel de besta, já está bom! Eu vou fazer o quê? Senhor, tudo quanto é brincadeira, você só tem atração para você trabalhar se você tiver o calor! Quanto mais você tem o calor do público, mais lhe dá a vontade para você trabalhar! Mas já não tem! Eu chamei os companheiros e disse: olha, se vocês querem continuar bestando, ficam aí, que eu de bestar já está bom! Aquilo que eu fazia de graça, de primeiro, para os outros rirem, hoje eles já estão rindo da minha cara! E eu vou largar (entrevista concedida por Carlos Augusto dos Santos, em Mirinzal, em 3 de março de 2014, grifo nosso). Apesar dos esforços de alguns brincantes, as tradições cômicas focadas aqui são percebidas por seus executores e pelas pessoas mais próximas a eles como estando em vias de se perder, correspondendo cada vez mais a uma referência do passado que deixou saudades. 38 Palhaçadas para São João Sede do Bumba Meu Boi da Vila Ivar Saldanha, em São Luís. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 39 No início dos anos 2000, por ocasião de uma longa pesquisa de campo realizada nos municípios de Mirinzal, Cedral, Porto Rico, Guimarães, Cururupu e Central do Maranhão, tendo em vista a elaboração de uma tese sobre as comédias do boi do Maranhão (CARVALHO, 2005), foi registrado um conjunto significativo de histórias criadas por palhaceiros dessa região. Grande parte desse conjunto, correspondente a algumas dezenas de horas de entrevistas, “brincadas” e “apresentações” gravadas, foi integrada ao Inventário Nacional de Referências Culturais (INRC) do bumba meu boi, que, à época, estava sendo iniciado pelo Centro Nacional de Folclore e Cultura Popular (CNFCP) e que, mais tarde, embasou os trabalhos da Superintendência do Iphan no Maranhão para o registro da celebração, cuja documentação atenta para a importância e o progressivo desuso das matanças no contexto da brincadeira. Passados pouco mais de dez anos da abertura do INRC, o projeto Palhaceiros da Graça de Deus revisitou sujeitos que participaram do trabalho de campo anterior e buscou outros que informassem a respeito das comédias do boi na região de Guimarães e em São Luís. Ao todo, cerca de 30 pessoas foram entrevistadas, na maioria palhaceiros e ex-palhaceiros de bumba meu boi. Narraram relatos de vida e histórias que dramatizaram em matanças de bois no interior e na capital. O cenário encontrado em 2014 reacende as já conhecidas preocupações sobre os rumos que as tradições cômicas da brincadeira vêm tomando desde sua folclorização e turistificação, operadas, sobretudo, a partir dos anos 1970. 40 Palhaçadas para São João Percebe-se que, no decorrer desses anos, os bois de zabumba da região de Guimarães, mesmo onde eles constituíam a referência mais tradicional em bumba meu boi, estão perdendo espaço para grupos do sotaque de orquestra – principalmente, vindos da capital –, que têm sido considerados mais bonitos e vêm atraindo público mais numeroso nos últimos anos, levando, também, os melhores cachês das administrações municipais. Dos palhaceiros identificados no início dos 2000, já com idade avançada, alguns morreram e outros estão perecendo com problemas de saúde decorrentes do próprio envelhecimento e enfraquecimento biológico. A maioria deixou de brincar boi, sem que tenha havido a transmissão ou a reprodução das tradições cômicas que cultivaram durante tanto tempo, por falta de quem se interessasse por elas. Enquanto isso, na capital, políticas públicas de cultura promovem ações que insistentemente visam ao “resgate” da versão mais conhecida do “auto do boi”, suposta tradição originária que precisa ser recuperada, num contexto de desuso crescente. A continuidade do bumba meu boi do Maranhão não está, por assim dizer, ameaçada, embora os proprietários e organizadores de bois do sotaque de zabumba se queixem de receber menos atenção e recursos que grupos de outros sotaques de maior visibilidade no estado, a exemplo dos bois de matraca e de orquestra. Mas, nas distinções internas dos modos de celebrar o boi, projetam-se sérios desafios para a continuidade das expressões cômicas da brincadeira, articuladas a concepções, crenças e costumes que frequentemente se confrontam com modelos dominantes no contexto atual. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 41 42 Palhaçadas para São João A minha paixão é a gente ainda sentar cabeceira, vaqueiro, zabumbeiro, palhaço. Tenho, tenho muitas saudades mesmo! A gente sempre tem que fazer aquilo que a gente gosta, uma coisa importante é a gente fazer o que sempre gostou de fazer. Acho que a gente cresce, mas, se a gente está numa idade como essa que eu estou, parece que eu pego outra aparência, parece que eu nasço de novo. Tem que ver, se passar o São João aqui. Eu não durmo, eu não largo a brincadeira (entrevista concedida por Diomedes Rodrigues dos Santos, em São Luís, em 26 de março de 2014, grifo nosso). Focando a multivocalidade e a polifonia das matanças, comédias e palhaçadas dos bois de zabumba, na rede que liga a região de Guimarães a São Luís, este livro procura favorecer a difusão das práticas cômicas do boi por meio de registros mais duradouros, tornando-as mais conhecidas e valorizadas no universo da academia, da política pública e da própria brincadeira. O livro divide-se em duas partes cujos conteúdos foram registrados no âmbito de entrevistas abertas realizadas durante 30 dias de trabalho de campo em Guimarães, Mirinzal, Cedral, Porto Rico, Central do Maranhão, Cururupu, Santa Helena e São Luís, entre os meses de fevereiro e março de 2014. A primeira parte traz uma série de histórias rememoradas e narradas por palhaceiros e Meninos brincando na Graça de Deus, Mirinzal. outros brincantes de boi, que as encenaram em brincadeiras realizadas anos ou décadas atrás, dependendo do narrador. Criadas originalmente para serem executadas no contexto do bumba meu boi, essas narrativas receberam um tratamento editorial para chegarem Comédias do bumba meu boi do Maranhão 43 à forma final de apresentação no papel. Primeiramente, foram transcritas, preservando-se ao máximo o que fora enunciado pelos entrevistados. Em seguida, fez-se a revisão dos textos, no intuito de torná-los mais acessíveis ao leitor, evitando-se erros e vícios de linguagem que, embora habituais no discurso oral, comprometem a fruição do texto escrito. A fim de facilitar a organização das narrativas, títulos lhes foram atribuídos pelas editoras, sempre que possível, utilizando-se termos e expressões adotadas pelos próprios narradores para se referirem às matanças em que tais histórias foram representadas. Por fim, as histórias foram ilustradas a partir do conceito de bricolagem que caracteriza a cultura popular, remetendo tanto a uma estética do improviso quanto da intertextualidade de suas produções. A segunda parte do livro traz notas biográficas dos sujeitos que contribuíram para a formação do conjunto de histórias ora apresentadas. Os relatos, também retirados das entrevistas realizadas em campo, passaram igualmente por um tratamento editorial que priorizou a coerência e a fluência do texto, visando à apreciação por parte do leitor. Intervenções nas narrativas foram feitas no sentido de equalizar a quantidade e a profundidade – muito variáveis – das informações prestadas por cada narrador, tendo em vista a harmonia do conjunto. Por último, o livro traz um glossário que contempla regionalismos, corruptelas, vocábulos e interjeições próprias do Maranhão (e do interior do estado), o qual foi produzido 44 Palhaçadas para São João pelas editoras com o objetivo de orientar leitores menos habituados com o linguajar do universo pesquisado. Em um plano imediato, o que se espera com este material é fornecer ao leitor a oportunidade de experimentar um tipo de riso que é próprio do bumba meu boi do Maranhão e, mais peculiar ainda, dos moradores mais velhos da Baixada Maranhense. Em um plano abrangente, porém, pretende chamar atenção para a necessidade de formulação e implantação de uma política de salvaguarda do bumba meu boi que contemple a variedade e a particularidade de suas formas expressivas, principalmente daquelas que tendem a ser subordinadas ou silenciadas em processos de unificação dos discursos dissonantes sobre o bem patrimonializado. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 45 Referências ANDRADE, Mário de. Danças dramáticas do Brasil. Org. Oneida Alvarenga. Belo Horizonte: Itatiaia/Instituto Nacional do Livro/ Fundação Nacional Pró-Memória, 1982. AZEVEDO NETO, Antônio. Bumba meu boi no Maranhão. São Luís: Alumar, 1997. CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. São Paulo: Ediouro, 2000. CARVALHO, Luciana Gonçalves de. A graça de contar: narrativas de um Pai Francisco no bumba meu boi do Maranhão. (Tese de doutorado). Rio de Janeiro: UFRJ, 2005. __________ A matança do santo. In: CAVALCANTI, Maria Laura, GONÇALVES, José Reginaldo (Orgs.). As festas e os dias: ritos e sociabilidades festivas. Rio de Janeiro: Contracapa, 2009. __________ A graça de contar: um Pai Francisco no bumba meu boi do Maranhão. Rio de Janeiro: Aeroplano, 2011. CARVALHO, Maria Michol. Matracas que desafiam o tempo: é o bumba meu boi do Maranhão. Um estudo da tradição/ modernidade na cultura popular. São Luís: [s.n.], 1995. CAVALCANTI, Maria Laura Viveiros de Castro. Tema e variantes do mito: sobre a morte e a ressurreição do boi. In: Mana. 12(1): 69-104, 2006. MARQUES, Ester. Mídia e experiência estética na cultura popular: o caso do bumba meu boi. São Luís: Imprensa Universitária, 1999. Detalhe de chapéu de fitas. Página seguinte: Sede do bumba meu boi de Lourenço“Pinto”. 46 Palhaçadas para São João Comédias do bumba meu boi do Maranhão 47 48 Comédias Comédias 50 Comédias O macaco Por Roberval Silva (Legário, Rubico) O marido se mudava com a mulher porque tinha um O marido espiava de perto e apertava a bochecha do cara, no lugar onde eles moravam, que não dei- macaco. Este, de cuzinho arrebitado, se virava e tirava xava a mulher sossegar. Quando o marido chegava em casa, ele não a deixava sossegar também. Quando ele chegava o de comer não estava pronto porque o cara ficava tomando o tempo da mulher e não a deixava fazer o corpo. MARIDO: Este macaco está meio estranho! E tu já encomendaste ele operado? Porque ele não tem rabo! o de comer para o marido. Um dia, o marido se mudou E engraçado era que o macaco não deixava o marido de lugar, mas ela ainda se encontrava com ele. Eles in- se encostar. ventaram de ele ir vê-la vestido de macaco. E quando o O marido saía para o serviço e a mulher ficava com o marido chegava, estava lá o macaco. macaco. Na volta para casa, o marido tentava chegar a MULHER: Olha, eu ganhei um macaco! tempo de ver se pegava o tal macaco já vestido como E o marido ficava olhando... homem, mas que nada! Quando o sujeito via o marido chegando, saía correndo para puxar a roupa e se vestir. MARIDO: Mas este macaco está diferente! Porque maca- Então, quando o marido chegava, ele já estava prepara- co não tem bochecha de ruge! do de macaco. MARIDO: Ai, eu estou com um peso na cabeça, uma dor nas costas! Eu não posso nem me torcer. Quando eu Comédias do bumba meu boi do Maranhão 51 me abaixo, parece que tem alguma coisa montada em Ele pegava a roupa de macaco, ela agarrava a saia e mim! Eu abaixo, e parece que a cabeça vai cair. Olha, corriam para cá e amarravam os dois com um elástico. vou passar uns dias fora. MARIDO: Ah mulher, está amarrada, porque eu sou é Quando o marido saiu, o sujeito foi ficar com a mulher! mau! Agora você não pode mais correr! Mas, quando o marido saía, encontrava a mulher do E o cara queria se entender com a mulher dele. cara. Ela vinha procurando para saber onde ele estava. A gente ia procurar e... Ele estava lá, debaixo do lençol, com a outra mulher! 52 Comédias MULHER: Não! A questão é que agora deu tudo certo. Tu ficas com a mulher dele e eu fico com ele. Carneiro ou jumento Por Antônio Fausto Silva (Fausto) U m agricultor tinha uma roça de mandioca bem AGRICULTOR: Ah, está bom. Você não tem jumento, grande e bonita. Certo dia, ele chega lá e vê que né?! Vou te mostrar se tem ou não tem. toda a sua plantação foi comida. E o fazendeiro canta sua toada: AGRICULTOR: Poxa! Foi o jumento daquele fazendeiro! Ah, mas eu vou lá! E marchou em direção à casa do fazendeiro. Chegando É, só que eu não posso acreditar É, só que eu não posso acreditar lá, pediu para falar com o chefe. Nessa história que esse moço veio contar VAQUEIRO: Chefe, este cidadão quer falar com o senhor. De que na sua roça entrou o meu animal AGRICULTOR: Boa tarde, siô. É o seguinte: seu jumen- Dizendo ele que está lhe fazendo mal to invadiu a minha roça, comeu tudo! Eu não posso Está errado o seu pensamento ficar no prejuízo. O senhor tem que me indenizar! O que eu tenho é carneiro, não é jumento. FAZENDEIRO: Que jumento, siô? Não tem jumento nenhum! Eu tenho um carneiro! Não convencido, o agricultor voltou para a roça e ficou de tocaia. Quando o bicho chegou à roça para comer de novo, ele atirou! AGRICULTOR: Está vendo, agora quero ver ele dizer que não é jumento. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 53 O baile da bicharada Por Diomedes Rodrigues dos Santos (Xeleléu) U m circo de animais chegou à cidade e pediu aco- FAZENDEIRO: Ô, moço. Bom dia. Vim aqui conversar lhida em uma fazenda. O dono da fazenda con- com o senhor. sentiu, contanto que os bichos não incomodassem e não mexessem na sua criação de boi e na sua planta- DONO DO CIRCO: Pois não, meu patrão! ção. Tudo acertado, o dono do circo anunciou o baile FAZENDEIRO: Siô, não me leve a mal. Mas seu circo já da bicharada. está incomodando muito aqui o nosso trabalho e eu DONO DO CIRCO: Baile da bicharada só esta noite! O povo do lugar logo se empolgou e foi prestigiar o evento. Deu muita gente, foi o espetáculo que mais deu gente no mundo. Pensando no lucro, o dono do circo resolveu ficar mais um dia. Mais uma vez casa queria que o senhor deixasse o lugar. DONO DO CIRCO: Ô, meu patrão. Desculpe. Eu nem queria ficar, era o público que pedia. Eu, com pena de deixar eles sem diversão, fui ficando. Mas deixe estar. Hoje será nossa última noite. cheia. E aí o dono do circo foi adiando a sua ida. Mas FAZENDEIRO: Então tá, siô. o fazendeiro já estava se incomodando muito com DONO DO CIRCO: Mas eu queria lhe convidar para vir aquele entra e sai de gente na sua fazenda, os ani- assistir. Hoje o baile será em sua homenagem. mais dele ficavam assustados com tanto movimento, fora a música alta do baile. Quando deu no final da semana, o fazendeiro foi procurar o dono do circo. FAZENDEIRO: Ô, siô, que é isso. Carece não! DONO DO CIRCO: Não, venha. Não me faça essa desfeita. FAZENDEIRO: Tá certo então! 54 Comédias O fazendeiro voltou para casa e o dono do circo co- tatu, macaco, raposa. Todos os bichos! E a bicharada meçou a preparar o último baile da temporada. De entrava, cada qual se requebrando de um jeito. Um noite, a casa estava cheia como nunca. E o dono do mais bonito que o outro! O arrumador dos bichos, só circo estava só esperando o fazendeiro chegar para ali na frente, comandando. Também se requebrava, começar a festa. Quando este entrou com sua espo- se empinava, se abaixava, levando o público a dançar sa, a orquestra começou a tocar. junto também. Foram mais de três horas de festa, até DONO DO CIRCO: Boa noite, povo. Vai começar a fes- que o dono do circo apitou. ta. Hoje é nosso último dia. A gente queria agradecer DONO DO CIRCO: Acabou, meu povo! Até uma próxi- a atenção de vocês e principalmente a bondade do ma oportunidade! fazendeiro em nos acolher aqui no seu espaço. Uma salva de palmas para ele! PÚBLICO: Êêêêêêêêêêêêê! Viva!!!!! DONO DO CIRCO: E vamos ao que interessa. Com vocês, o baile da bicharada! Entrava no centro da roda tudo quanto era bicho dançando ao som de um baião tocado pelo arrumador dos bichos. Era girafa, era onça, era maracajá, E o arrumador saía na frente dos bichos, que formavam uma fila, mas sempre dançando. Era mais quem queria seguir o cordão, era gente entrando nesse palco. Ficou aquela multidão. Enquanto isso, o fazendeiro só observando animado, enquanto se arrumava para voltar para casa com seus vaqueiros. Mas a esposa pediu para ficar mais um pouco, de olho que estava no arrumador de bichos, e acabou fugindo com ele. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 55 O burro do fazendeiro Por João Vieira (Zió) T inha um fazendeiro, um burro e uma mulher. A FAZENDEIRO: Olha, já cheguei! mulher morreu e ficou só ele com o burro e o Lá foi o burro, largou o pé, derrubando o dono. cachorro. Quando ele saía para a fazenda dele, lá dentro do mato, ficavam o burro e o cachorro em casa. Quando ele chegava de volta da fazenda, o ca- FAZENDEIRO: O que você tem, rapaz? Se acomoda, que eu vou te vender! chorro ficava pulando, agradando, e o burro ficava O burro ficou triste. Não queria mais andar, só ficava só olhando para eles. deitado. O burro era só para carregar água, lenha, essas coi- FAZENDEIRO: Esse burro está doente. sas. Até que ele teve uma ideia. BURRO: Hoje, quando o chefe chegar, quem vai agradar ele sou eu. CACHORRO: Não, rapaz. Você é muito pesado, muito sem jeito para fazer as coisas. Você é mais para carregar lenha. BURRO: Não! Quem vai sou eu! E o fazendeiro chegava em casa. O cachorro tentava dizer para o dono o que estava acontecendo, mas só fazia latir e o dono não entendia. FAZENDEIRO: Mas o que você tem, rapaz? Está todo triste... Não vou te vender mais não. O burro levantou e tornou a agradar o dono, fazendo aquele movimento de novo. FAZENDEIRO: Não! Você é muito pesado, não pode fazer isso, não! Deixa que eu mesmo faço, deixa que eu passo a mão na sua cabeça. 56 Comédias Comédias do bumba meu boi do Maranhão 57 Veado comedor de roça Por Antônio Vieira (Bezerra) U m homem estava trabalhando desde cedo na AGRICULTOR: Então, se você não dá conta dos seus roça, debaixo de um sol quente. bichos, eu vou botar armadilha para eu matar tudi- AGRICULTOR: Opa! Hora do almoço. Vou para casa, mais tarde eu volto para fechar aqui a cerca. Um fazendeiro vizinho dele tinha uma criação de veados encarnados, que se soltavam e invadiam a roça do agricultor, comendo toda a plantação que tinha por lá. Quando o agricultor voltou, encontrou a roça toda destruída. nho e defender minha roça! FAZENDEIRO: Não, armadilha, não. Se você botar armadilha, você vai preso! Não se pode botar armadilha em roça assim! AGRICULTOR: Ah é?! É, né? Vamos ver! O agricultor saía e planejava fazer a armadilha. Nos arredores da roça, ele pôs um laço que, quando o AGRICULTOR: Patrão, seus veados comeram a minha veado vinha, ficava preso. Ele estava em casa com a roça! Não sobrou nada! Eu vim lhe reclamar! mulher. FAZENDEIRO: Siô, o que é que eu vou fazer? O bicho é AGRICULTOR: Mulher, vou lá espiar o laço para ver se lá do mato, você vai fazendo a roça no mato... o veado caiu. Quando viu que o veado estava enlaçado, o marido correu para casa muito contente e encontrou a mulher cozinhando um feijão. 58 Comédias AGRICULTOR: Mulher, bota esse feijão fora que o vea- AGRICULTOR: Corte lá, siô. Eu fico aqui na corda fir- do está no laço! Veado no laço, bota feijão fora! mando e você vai matar o veado lá. MULHER DO AGRICULTOR: Marido, o veado ainda não O compadre se ajeitava, amolando o facão. está morto, está no laço. Eu não boto o feijão fora! AGRICULTOR: Corte e mate, siô! Minha mão já está AGRICULTOR: Bota feijão fora, que eu estou mandando! doendo. O veado vai já escapulir, ele está acordando. O agricultor saiu de casa e foi até a casa do compadre. AGRICULTOR: Ei, compadre! Siô, vamos lá na roça que tem um veado no laço. Vamos matá-lo para mim? O senhor também ganha um pedaço. COMPADRE: Se é assim, eu vou! Chegando lá, o agricultor e o compadre puxavam a corda que pendurava o veado. COMPADRE: Tu não vais cortar o veado, compadre? Olha ele acordando! O compadre então se aproximou do veado, mirou com o facão, se arrumou e tac! Cortou a corda e o veado escapou. Ficaram os dois vendo o veado indo embora. O agricultor correu para casa. AGRICULTOR: Mulher, cadê o feijão? Botou fora? MULHER DO AGRICULTOR: Botei fora! AGRICULTOR: Então junta, mulher. Não deu certo com o veado! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 59 60 Comédias A onça Por Eleutério Silva (Loló) U m homem morava no interior e criava um filhote uma fera, avançando em todo mundo, correndo atrás de onça. Passou anos e anos cuidando da onça de gente para comer. desde pequena, que se mostrava dócil e respeitadora de seu dono. Um dia, o homem precisou viajar, ficando preocupado por não ter ninguém que cuidasse da onça enquanto ele estivesse fora. Falou com um e com outro, até que conseguiu um lugar para deixar seu bicho de estimação. DONO DA ONÇA: Ô, que bom que vocês me arranjaram esse cantinho para meu bichano ficar. DONA DA CASA: Tudo bem, siô. Mas ela não estranha? DONO DA ONÇA: Que nada! Ela é bem mansinha, não mexe com ninguém. DONO DA CASA: Está certo. O senhor pode viajar e deixar seu animal aqui. Quando o senhor voltar, pode vir buscá-lo. Nos primeiros dias o animal ficou bem quietinho, nem mesmo ligava para o gado que estava por ali por perto brincando. Mas, um belo dia, a onça virou POVO DO LUGAR: Corre! Corre! Olha a onça! O povo do lugarejo resolveu telefonar para o dono da onça de modo a contar o que estava acontecendo e ele voltar para tirar o animal de lá. Com poucos dias, o dono da onça chega e procura pelo seu bicho. DONO DA ONÇA: Cadê meu bichinho? Quando a onça surge, olha para o seu dono, mas o estranha, logo tentando comê-lo. DONO DA ONÇA: Ah, é assim? Te dou tanto carinho, só por que eu passei esses dias fora tu já me esqueceu e ainda quer me comer?! Deixe estar! POVO: Senhor, não vá, que essa onça lhe pega. DONO DA ONÇA: Espera aí, que eu pego ela é agora! Tac! Páááá. E atirou! Nessa hora, todo mundo correu. A onça deu um pulo e caiu mortinha lá! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 61 A cobra Por Valdemar Piedade Pereira (Caçador) Tinha o Pai Francisco e a Catirina, que era a mulher PAI FRANCISCO: Mas aqui não tem cobra nenhuma... dele. Catirina tinha muito medo de cobra. Um dia, CATIRINA: Uma cobra! Uma cobra! Uma cobra! eles iam para a roça, ele com um facão e ela com a enxada no ombro. Andando pelo caminho do mato, de repente, ela vê uma cobra, se espanta, corre e abraça o Pai Francisco. PAI FRANCISCO: O que é, mulher?! CATIRINA: Ai! Uma cobra! Uma cobra! Uma cobra! 62 Comédias PAI FRANCISCO: Hum hum! E tu tens medo de cobra, menina? E agora, o que vou fazer com a minha?! Eles continuavam o caminho, quando o Pai Francisco pensou: “Eu vou meter um susto nessa mulher, já que ela tem medo de cobra”. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 63 Criação de jabuti Por Eleutério Silva (Loló) U m homem chegou numa propriedade com sua HOMEM: Moço, o seu boi brincando no meio da mi- família e pediu ao dono da fazenda permissão nha roça comeu minha plantação todinha! para ocupar um pedaço de terreno com roça. A família foi liberada para fazer o cultivo e fizeram uma roça bem grande. Porém, como ele só criava jabuti, FAZENDEIRO: Não, siô. O meu boi não pula cerca, ele não é pulador. Sua plantação não é cercada? cuidou apenas de fazer uma cerca de proteção bem HOMEM: É cercada sim, senhor. baixinha. FAZENDEIRO: Que altura é sua cerca? O boi da fazenda veio chegando, pulando e brincan- HOMEM: Minha cerca é de meio metro de altura. do. Sem muito esforço, entrou na roça do homem e se dana a comer as plantas verdinhas que tinham FAZENDEIRO: Ôxe! Mas é muito baixa! Por quê? acabado de ser plantadas. Nesse momento, o dono HOMEM: Porque a minha criação é de jabuti e ele tem da roça chega e acha todo o seu trabalho bagunçado. a perna curtinha. Não carece de eu fazer uma cerca grandona! 64 Comédias Troíra Por Raimundo Leal (Baguinho) (Toada de entrada em cena) Dan dan rin dan dan Porque o pago que eles dão Eu sou pretinho, meu senhor Dan rin dan dan Eu sou pretinho, nunca tive dinheiro É de falarem mal da gente Nuca fui escravo Dan rin dan dan Mas eu ando no mundo fazendo graça O boi adoecia e a Mãe D’água vinha curar. Um juramento eu tenho feito A Mãe D’água chupava o boi por uma taboca e curava o boi, tirando uma troíra feita de buriti de dentro dele. Diz que a troíra era a flecha que estava dentro do bicho, que quase estava matando o boi. Dan rin dan dan De não curar mais ninguém Comédias do bumba meu boi do Maranhão 65 O jacaré macho Por Arcângelo Reis (Arcanjo) T inha um jacaré que estava devorando o gado da PATRÃO: Rapaz, como é para a gente matar esse ja- fazenda. O vaqueiro ia se reclamar para o ho- caré? Tem que matar! mem, patrão dele. VAQUEIRO: Como fazemos? VAQUEIRO: Patrão, o jacaré está comendo os bois! PATRÃO: Mande avisar às pessoas que estamos pagando bem pago para quem conseguir matar o jacaré. 66 Comédias Alguns corajosos se candidataram. Foi o primeiro lutar com o jacaré. Mas esse não demorou, foi comido pelo jacaré. Chamaram o outro. O segundo ia lutar PATRÃO: E aí? CAÇADOR: Mas o jacaré está morto. com o jacaré. Lutava, lutava, lutava, mas morria de- PATRÃO: Muito bem! Agora, você bota fora. vorado pela fera também. Então, o patrão chegava CAÇADOR: Não. O senhor falou comigo para eu ma- para o terceiro. tar, não foi para botar fora. Como é que eu vou botar PATRÃO: Senhor, o senhor vai. Mas saiba que aqui já fora, que eu não dou conta? Eu só, e ele é grande! vieram dois e o bicho comeu! PATRÃO: Ele é macho ou é fêmea? CAÇADOR: Não, mas eu sou acostumado! Está bom CAÇADOR: Não sei. Deixa eu ver... É macho. de conversar, eu vou agora matar esse bicho! O homem partiu para lutar com o jacaré, que começava a se armar para cima dele. Muito hábil, o caçador PATRÃO: É macho? CAÇADOR: É. dava uma bisca, dava uma pezada no bicho. O jacaré PATRÃO: E como é que o senhor sabe? deu um mau passo e o caçador pulou nas costas do CAÇADOR: É porque ele está piscando aí! jacaré. Montado, o caçador se agarrava no tontiço do animal e começava a dar murro na cabeça, dava dentada, até que matou o jacaré. PATRÃO: Como que ele está piscando? CAÇADOR: A coisa está piscando, está bulindo. É macho! CAÇADOR: Olha, senhor. Matei! Senhor, eu estou cansado demais! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 67 A jia encantada Por Rogério Fernandes E ra uma vez uma moça que se encantou na forma JIA: Você vai fazer uma corda e você vai me esperar um de uma jia. Essa jia andava fazendo sinal na bei- dia de quinta-feira, meia-noite, na beira da praia! Eu vou ra da praia, onde tinha um poço em que o povo se transformada em uma vaca. Na hora que tu vires aquela abastecia de água, mas o pessoal se assustava e fugia. vaca que vem correndo e largando faísca para cima de Quando foi um dia, um cara estava enchendo um balde ti, não é para você ter medo, porque sou eu, está vendo? de água e a jia se aproximou dele. Ele a olhou, mas HOMEM: Sim, estou entendendo. não correu. JIA: Na hora que eu vier correndo, tu me laças com JIA: Oi, moço. Que bom que o senhor não correu. Eu esta corda! Você me laça, me prende e vai me furar sou uma moça que estou encantada na forma de jia. com ferrão. Não se esqueça de levar a vara de fer- O senhor teria coragem de me desencantar? Se tu rão, porque você vai ter que me furar para me tirar tiveres coragem de me desencantar, eu caso contigo três pingos de sangue. Depois que você tirar os três e te dou muita riqueza que tenho. pingos de sangue, eu me transformo na moça e logo HOMEM: Eu tenho coragem! É para fazer o quê? Como é para eu te desencantar? JIA: Olha, eu vou te dizer, mas tu vais guardar isso em segredo. Não vai dizer nem para sua mãe, nem depois a gente vai fazer o casamento. HOMEM: É mesmo dona, a senhora faz? Vai se casar comigo? JIA: Faço! para o seu pai e nem para o seu amigo que eu estou HOMEM: Então está certo, está certo. Está tudo te dizendo isto que vamos combinar! combinado. HOMEM: Está certo! Tudo combinado, o homem foi tratar de fazer a corda. Mas ele só fazia aquela corda se escondendo. 68 Comédias Porém tinha um cara por perto, doido para marocar seguiu na ponta dos pés para espiar o cara. Quando o que o homem estava fazendo, até que viu que era o homem estava lá no ponto, esperando a vaca, com uma corda. a vara de ferrão... A vaca correndo numa velocidade MAROCA: Ê, rapaz, mas para que tu queres essa corda? na direção do homem... Ela vinha ligeira e faiscando. HOMEM: É porque eu tenho uns animais no campo. É Vinha doida para cima dele. Quando o homem pegou para eu apanhar o boi. o ferrão para furar a vaca, o maroca gritou. Então, o maroca ia embora e o homem continua- MAROCA: Lá vem a vaca! Sai daí, rapaz, que essa vaca va fazendo a corda. Na semana que iria acontecer vai te matar! o desencante, o cara foi, no horário de meia-noite, A vaca desviou o caminho e o homem não a furou. esperar pela vaca. Mas o maroca o viu saindo, e o Como não tirou o sangue, a vaca saiu correndo e se transformou numa jia. Nunca mais se desencantou. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 69 O boi visagento Por Arlindo Trindade U ns pescadores chegaram a uma fazenda e pedi- LÍDER DO GRUPO: Nós temos traje de pescaria. ram licença para falar com o fazendeiro. O va- FAZENDEIRO: Ali tem um lugar que é bom de se pescar. queiro chamou o dono da fazenda, que os atendeu, conversando com o líder do grupo. LÍDER DO GRUPO: Chefe, eu queria pedir ao senhor um espaço aqui na sua fazenda para que a gente pudesse tirar um termo de vida. O fazendeiro voltava para dentro de casa e os homens iam buscar a rede com os companheiros para pescarem. Os peixes que apanhavam iam sendo recebidos e divididos pelo líder para dividirem entre si. Porém, o líder do grupo fazia como Camões ou FAZENDEIRO: Vocês querem adquirir um termo de então como Gonzaga, e tirava vantagem, colocando vida sobre o quê? quatro peixes para ele e só um para cada um dos LÍDER DO GRUPO: Para nos alimentarmos. FAZENDEIRO: E de que vocês querem fazer os seus termos? LÍDER DO GRUPO: De pescaria. FAZENDEIRO: Pescaria? E vocês têm traje de pescaria? 70 Comédias outros. No final da dividição, o cofo do líder estava chapado e os dos outros homens, com alguns. Então o líder se preparava para sair. LÍDER DO GRUPO: Eu vou ali estender a rede pra nós irmos fazer outra pescaria no fim da semana. O líder foi, mas quando voltou, via que os outros pescadores caíam fora com o peixe todinho, e foi procurar o fazendeiro. LÍDER DO GRUPO: Chefe, não é que os companheiros, em vez de me agradarem, me levaram o peixe todinho?! Eu vou deixar a rede no estaleiro e vou arrumar outros companheiros para nós irmos fazer outra pes- FAZENDEIRO: Não, senhor! LÍDER DO GRUPO: Então eu vou esperar esse comedor de rede que comeu minha rede todinha. Eu quero ver quem é que está comendo essa rede! O líder fez uma moitagem e ficou esperando a noite chegar, quando veio uma visagem. caria porque esses não deram, me levaram tudinho e VISAGEM: Ôôôôôôôi ôi ôi ôi ôi. eu fiquei despenadão. LÍDER: Vem! Tu és comedor de rede, vem! Pois o líder deixou a rede estendida no estaleiro e foi VISAGEM: Ôôôôôôôi ôi ôi ôi ôi. dormir. Mas o boi veio, meteu o chavelho e pisou, destruindo tudinho. No outro dia, quando o líder veio tirar a rede do sol, viu o estrago e percebeu o rastro do boi. Então, se dirigiu à casa do fazendeiro, à procura de pistas. LÍDER DO GRUPO: Chefe, o senhor tem boi solto na fazenda? LÍDER DO GRUPO: Vem! Tu estás com vontade de comer rede e eu estou com vontade é de te olhar. Eu quero acabar contigo! Quando a visagem foi aparecendo, a coragem não deu para o pescador atirar. Ele caiu moita abaixo, escapuliu da visagem, que ainda chegou a tocar numa perna dele. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 71 72 Comédias O feiticeiro montador Por Roberval Silva (Legário, Rubico) E ra um feiticeiro doido para montar em gente. Eu, como já estava cansado do lugar onde eu mora- va, chegava lá para falar com o patrão, pedindo a ele uma hospedagem na sua fazenda porque tinha essa PALHAÇO: Não, senhor. PATRÃO: Então é sonho! Eu digo então que é sonho! PALHAÇO: Mas eu sei que eu olhei o feiticeiro. Será tal pessoa que não me deixava sossegar. Toda noite que esse cara veio atrás de mim? ele montava em mim, me fazendo de cavalo, e eu já Eu tornava a sossegar. Logo o feiticeiro vinha, com estava esbodegado de toda noite estar debaixo dele. a espiga de milho na mão na minha direção, para O patrão me dava essa licença e eu botava um pano querer montar em mim. Ficávamos lutando por qua- lá na fazenda e me deitava. Nisso que eu ia trespas- se uns trinta minutos, até que ele me amansava, me sando, o peste saía lá atrás do zabumbeiro. botava bride e montava em mim. PALHAÇO: Eu estou olhando o feiticeiro bem ali. PATRÃO: Que nada! É impressão sua, siô. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 73 A alma na fazenda Por Arlindo Trindade U m homem entrava na fazenda atrás de serviço e o fazendeiro só tinha serviço para quem fosse corajoso, porque lá diziam que aparecia uma alma, umas visagens, um feiticeiro que estava querendo fazer mal na fazenda. PALHAÇO: Rapaz, eu sou obrigado a ganhar o meu dinheiro. Eu tenho que ficar. Ele ficava lá, mas tinha uma escada. Quando ficava silencioso vinha uma zoada. ALMA: Uuuuuuuuh! Uuuuuuuh! PALHAÇO: O que é isso? ALMA: Uuuuuuuuh! Uuuuuuuh! FAZENDEIRO: Senhor, isso aí são as coisas que eu estou lhe falando. Aqui, o serviço é pra gente corajosa. A alma vinha chegando, vinha chegando e o homem ia subindo na escada até que ela ficava berrando no bem no pé da escada. ALMA: Uuuuuuuuh! Uuuuuuuh! Nessa hora o homem se danava pra rezar e se mijava nas calças. Ninguém sabe o que assustava a alma, se a reza ou o mijo, mas o certo é que ela ia abrandando, ia abrandando, e o homem vinha descendo. Ela ia abrandando e homem vinha descendo até que a visagem desaparecia. 74 Comédias Medroso metido a corajoso Por Valter Silva (Caburé) T inha um morto, tinha um corajoso e tinha um CORAJOSO: Ei, meu patrão... Esse negócio não dá pra medroso que só queria ser corajoso. O corajoso mim, não dá pra mim! O senhor disse que ele estava e o medroso estavam procurando trabalho, e o servi- morto e eu já vi ele bulir. Que eu saiba, morto não ço que o patrão estava oferecendo na fazenda era de levanta pé! E ele já levantou o pé! E não dá certo, não vigia. Para vigiar o morto. dá certo, não dá certo! PATRÃO: Olha, emprego tem aqui na fazenda, mas O corajoso queria para o patrão fazer o pagamento é para um corajoso! É para fazer sentinela para para ele. um morto! O cara precisava do emprego, aceitou. O morto estava em um caixão. PATRÃO: Tu vais dar conta de vigiar esse morto aqui? Tem que ficar de frente para o morto! CORAJOSO: Não, meu patrão... Eu, sozinho aqui? PATRÃO: Não! Não, senhor! O corajoso foi embora. Depois, chegou um medroso metido a corajoso que também ia procurar emprego. PATRÃO: Eu quero um homem corajoso. E esse não parou aqui! MEDROSO: Senhor, mas eu preciso do emprego! Eu PATRÃO: É, o senhor só! vou ficar! CORAJOSO: Mas de frente eu não fico para esse morto! PATRÃO: Então, o senhor se coloca bem aqui. Então o corajoso ficava para trás do morto. Quando E o patrão o colocava de frente para o morto. virava para espiar, o morto estendia um pé! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 75 PATRÃO: Agora é que eu quero ver se você tem cora- O morto suspendeu o outro braço e o medroso esta- gem ou não! va lá espiando. E o morto levantava o pé. PATRÃO: E então, fica ou não fica? MEDROSO: Só não quero que você me bata com MEDROSO: Eu tenho que eu ficar até o fim. Eu quero esse pé! ver é o fim! Qualquer coisa que acontecia, o morto suspendia o Daqui a pouco o morto se levantava e ficava sentado. outro pé e o medroso metido a corajoso apitava. MEDROSO: Ei, senhor, o defunto sentou! Ele não vai PATRÃO: Então, senhor, está gostando do serviço? ficar em pé, senhor? MEDROSO: Estou sim, senhor! Ele já buliu os dois PATRÃO: Não, senhor. pés e só, mas ainda não levantou! Daqui a pouco o morto suspendia um braço. Daqui a pouco o defunto levanta. MEDROSO: Ei patrão, ei patrão, ei patrão o defunto MEDROSO: Ei, patrão. Ele suspendeu os dois pés e está me abraçando patrão! Ei patrão, ei patrão, ei pa- agora está suspendendo um braço! trão, o defunto está me abraçando, patrão. PATRÃO: E aí, senhor? Enfrenta ou não enfrenta? O defunto abraçava e começava a carcar o medroso. MEDROSO: Enfrento! Eu vou enfrentar! 76 Comédias Comédias do bumba meu boi do Maranhão 77 O vigia do morto Por Carlos Augusto dos Santos (Pilola) U ma mulher vinha passeando com o marido. De O rapaz se distraiu e se sentou do lado do morto, que repente, ele deu um ataque e morreu. Ela saía puxava a sua perna. Na carreira, o rapaz sai gritando. desesperada, pedindo socorro. VIÚVA: Moço, me acuda! Eu vou atrás de ajuda. O senhor pode espiar o meu marido? HOMEM: Ah, não. Não tenho tempo de cuidar. Mas é bom ter alguém para vigiar, porque por aqui estão danados para roubar órgãos de defunto. Eu vou atrás de alguém que possa fazer isso pela senhora. A viúva e o homem saíram, e o morto estendido no chão. De repente, chega um rapaz a mando do homem para vigiar o morto, que de vez em quando roncava. RAPAZ: Hum... Parece que este homem está roncando. Será que eu estou doido? 78 Comédias RAPAZ: Ele está se bulindo! Ele está se bulindo! HOMEM: Não, senhor. Você está delirando. Onde o senhor já viu morto roncar? Morto não ronca, senhor! RAPAZ: Não, senhor... Esse cara está vivo! Ele está se mexendo! O homem, então, vai atrás de outra pessoa para vigiar o morto, quando aparece um cidadão que já estava meio lamparinado, segurando uma garrafinha em uma das mãos. BÊBADO: O senhor tem um emprego para me arrumar? HOMEM: Rapaz, serviço tem. É para vigiar esse morto porque estão roubando órgãos por aqui. BÊBADO: Senhor, é para vigiar morto que não anda mais?! Para que a gente quer morto?! Cruzes! Mas, já que não tem outro serviço, eu vou vigiar esse defunto metendo meu grode. HOMEM: O senhor é quem sabe. Mas diz que esse morto está se mexendo... BÊBADO: Senhor, eu nunca corri de uma visagem. Será que é hoje que eu vou correr? Mas a remuneração é boa, não é? HOMEM: Diz que é! O defunto estava tesinho dentro de um plástico. Então, o bêbado deitava logo encostadinho no morto. Quando, de repente, o morto começou a bufar. BÊBADO: Senhor, parece que o cara bufou! O bêbado examinava o morto e voltava a se deitar, depois que se certificava de que estava tudo bem. De repente, o morto erguia uma perna. O bêbado olhou aquilo... BÊBADO: Olha, já que tu estás doido, que tu não estás morto coisa nenhuma e eu estou também batizado, eu vou também te batizar! O bêbado levantava o morto e socava cachaça em sua boca! BÊBADO: Mas, rapaz, está aí o morto! Eu vou é arras- BÊBADO: Rapaz, este está mortinho, senhor! O cara tando ele porque morto não vai me botar para correr, não está se mexendo nada! gente! Eu posso morrer é de vivo, agora de morto, não! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 79 O defunto e o besouro Por João Vieira (Zió) O velho era tão ruim, que ele tinha uma terra em Cururupu onde não deixava ninguém plantar coco babaçu. Quando o velho morreu, foram fazer o velório. Tinha um quarto para o defunto, os con- MEDROSO: Não, está mexendo! HOMEM: Está certo! Então vai ver se o defunto continua mexendo a mão. vidados largaram ele lá e foram ter uma prosa lá Ele foi ver, olhou de novo e... estava mexendo! fora. Tinha um deles que nunca tinha visto defunto. MEDROSO: Está mexendo, sim. Este, medroso, ficou nervoso. Vira e mexe ele ia lá e olhava para ver como o defunto estava. Uma hora HOMEM: O que esse rapaz está inventando aí? que o morto ficou sozinho na sala, veio um besouro E os homens foram olhar. Chegaram lá, o morto bem grande, sentou e se escondeu debaixo da mão mexia com a mão. dele. O besouro se mexia, mexia a mão do cara. Foi HOMEM: O rei é ruim até morto! então que o medroso foi lá ver o defunto. E todos saíram correndo. Foi um pé de carreira da- MEDROSO: Pessoal, está acontecendo uma coisa! nado! Então, o defunto levantou o rosto, olhou para HOMEM: O que, rapaz? um lado, olhou para o outro e não viu ninguém. E ele MEDROSO: Rapaz, o defunto está mexendo com a mão. HOMEM: Não é você que está com medo e fica dizendo isso? 80 Comédias levantou e saiu correndo também. Nós-Tudo Por Herbeth Mafra Reis (Betinho) e Antônio Vieira (Bezerra) E ra uma vez um velho que já estava caduco e dava VELHO: Sim... Tudo indo, Graças a Deus. Mas estou muito trabalho para a família cuidar dele porque ele com fome! era muito atentado e cheio de vontade. Uma das manias NÓS-TUDO: Ah, eu também estou com fome. Tem comida? do velho era fugir de casa e invadir o terreno dos outros VELHO: O de comer está aí, mas é só para mim! para mexer naquilo que encontrasse pela frente. De NÓS-TUDO: O quê? Cala a boca, seu velho! Bota logo tanto o velho fazer isso, a família já estava indisposta com a vizinhança e acabou se mudando para as bandas de São Francisco, um lugar que era só mato. esse de comer aí para mim, senão, te bato! E o filho mais novo comia toda a comida, deixando o velho com fome. Quando deu mais tarde, o irmão FILHO MAIS VELHO: Pronto! Aqui a gente fica sosse- mais velho chega. gado. Papai não tem como aprontar! FILHO MAIS VELHO: Cheguei! Como está papai? Já O filho saía para trabalhar e deixava o velho em casa deste o de comer dele? com todo o de comer pronto. E dizia para o irmão. VELHO: Aonde?! Ele estava doido de fome e comeu FILHO MAIS VELHO: Irmão, toma conta de papai aí. Já tudo sozinho! fiz a comida dele. FILHO MAIS VELHO: Rapaz, por que tu comeste o de O filho mais novo era conhecido como Nós-Tudo. comer do velho? Ele está doido de fome! Tratava-se de um sujeito preguiçoso, gostava de ca- NÓS-TUDO: Não, rapaz! Esse velho já comeu! chaça e festa. Quando Nós-Tudo acordou, estava de VELHO: Comi? Não! Foi Nós-Tudo que comeu, sim. ressaca e cheio de fome. Logo, foi onde o velho. NÓS-TUDO: Tu estás vendo, rapaz. Esse velho está NÓS-TUDO: Papai, está tudo bem com o senhor? ficando maluco! Eu não comi teu de comer, velho. Quem comeu foi nós tudo! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 81 A velha jumenta Por Rogério Fernandes E ra uma velha que tinha dois netos que foram cria- comunicaram a avó sobre o início das aulas. A velha dos por ela. Eles cresceram e ela foi envelhecen- ficou tão contente porque ia aprender a leitura! do e começando a caducar, mas eles cuidavam muito bem dela. Há muito tempo, a velha reclamava para os netos que ela era analfabeta. VELHA: Ô, meus netos. Eu nunca fui ao colégio, eu não conheço nada de leitura. Eu tenho muita vontade de aprender a ler. Ô, meus netos, procurem um colégio. Antes de eu morrer, eu tenho que realizar meu sonho de aprender a leitura. Na escola, a professora começou a ensinar para a velha. Porém, ela já estava muito caduca e não aprendia nada, só estava dando trabalho para a professora. PROFESSORA: “Rapaz, vou botar essa velha fora! Ela está só me aporrinhando a paciência. Eu ensino uma coisa, ela faz outra! Mas como vou me livrar dela? Os responsáveis por ela nunca mais apareceram e nem tenho como devolvê-la... Já sei! Vou vesti-la nos Os netos começaram então a pedir informação sobre trajes de uma jumenta, que ela é mesmo, já está an- a existência de escola por perto. Quando souberam dando até de quatro pés, e vou vendê-la.” que uma moça tinha ido pedir licença na fazenda A professora fez uma vestimenta muito bem feita de para montar um colégio dentro do próprio povoado, eles foram falar com o patrão para matricular a avó no colégio. Então, o patrão apresentou a professora aos dois netos, acertaram tudo, voltaram para casa e 82 Comédias jumenta, vestiu a velha e ofereceu a um cigano que passava pelo povoado. PROFESSORA: Moço, o senhor não quer levar essa jumenta? Comédias do bumba meu boi do Maranhão 83 CIGANO: Jumenta? Quanto é? PROFESSORA: Qualquer coisa! Sou professora e não tenho como cuidar desse bicho. CIGANO: Pois eu quero! O cigano, então, pagou pela jumenta alguns trocados e carregou o seu lombo com suas tralhas. CIGANO: Como eu já tenho essa jumenta que serve para carregar a carga durante a viagem, vou logo combinar com o patrão a compra do peixe na praia para eu vir vender por aqui para ele. professora esperou e vocês não apareceram, então, ela entregou a velha para um homem aí. Agora ninguém sabe qual foi o roteiro deles. O neto deixou a fazenda e saiu à procura de sua avó. A noite já vinha caindo, e ele resolveu parar para descansar um pouco, deitando na beira da estrada. Quando o cigano retornou da pescaria, estava com a jumenta com a cangalha carregada de cofos cheios de peixe no lombo. A jumenta vinha devagarzinho, tamanho era o peso. No meio do caminho, porém, o cigano encontrou com um dos netos da velha tirando Isso feito, o cigano segue viagem na jumenta para um cochilo. Vestida de jumenta, a avó ia para cima comprar o peixe. Enquanto isso, um dos netos foi à do neto, cheirava, balançava a cabeça. fazenda à procura da avó. CIGANO: Mas quem é que está aqui neste caminho, NETO: Patrão, o senhor me entrega a minha avó? Eu esta hora da noite, me fazendo medo? Eu quero vim buscá-la. passar com a minha jumenta com a carga. Isto é FAZENDEIRO: Rapaz, agora que tu me aparece?! A 84 Comédias uma visão? Com o movimento da jumenta, o neto acordou assustado. NETO: Quem vem lá? CIGANO: Arreda, que eu quero passar. Eu estou com NETO: Ô, minha velha, a senhora já sofreu muito! Carregando peixe depois de velha! Que judiação! Isso foi uma injustiça que este cigano fez com a senhora. Lhe botou cangalha para carregar peso depois meu animal cheio de carga pesada, e eu quero passar. de velha?! Eu lhe quero muito bem. A senhora criou NETO: Tu és gente, tu és vivo ou tu és morto? meu irmão e eu com tanto carinho e sacrifício... CIGANO: Eu sou vivinho da silva! O neto levou a velha embora para casa e contou tudo NETO: E esse animal aí? para o irmão. Os dois, então, foram para a fazenda reclamar com o patrão que consentiu que a professo- CIGANO: Rapaz, essa é uma jumenta que eu comprei ra vendesse a avó deles. O patrão se desculpou por de uma dona que me vendeu. E eu tinha precisão de ter entregado a velha, e explicou que aceitara a pro- viajar para comprar peixe e vender nesta fazenda. Eu posta da professora porque ela estava caducando, comprei a jumenta e agora ela está cheia de peixe e ninguém a queria e a moça também não podia ficar eu quero passar. com ela. Os dois netos ficaram muito revoltados com Eles então se aproximam um do outro e o neto reco- o patrão e iniciou-se a confusão. nhecia que era a sua avó. Tirou a o traje de jumenta da velha e começou a chorar. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 85 O sequestro da velha Por Herbeth Mafra Reis (Betinho) e Antônio Vieira (Bezerra) E ra uma vez um homem e a mãe, uma velha senho- Um ladrão observou o movimento e se aproximou para ra muito rica. O homem precisava sair, mas não roubar a mulher rica. Porém, a velha era boa de coice, tinha com quem deixasse a mãe. Então, ele procurou enchia o ladrão de pancadas. Nessas alturas, que ela es- um compadre no povoado vizinho para que cuidasse tava lutando com o ladrão, o filho chegava e se juntava da velha. à briga também. Depois de muita confusão, o ladrão foi FILHO: Olha, cuidado com mamãe. Fica de olho nela! Ela gosta de meter grode e onde ela chega é desembru- pego e amarrado. O filho o agarrava, amarrava, e mandava a mãe ir embora. lhando um monte de dinheiro. Hoje em dia tem muito FILHO: Mamãe, vai embora! Deixa que eu me entendo ladrão por aí e eu não queria que ela fosse sequestrada. com ele! Hoje, no Brasil, o sequestro virou um empre- O filho saía e deixava a mãe com o compadre. Foi só o homem sair e o compadre se distrair, que a velha caía na brincadeira. Foi meter grode nos bares da comunidade e puxava um monte de dinheiro de uma bolsa grande que carregava a tiracolo. VELHA: Quem quer dinheiro? Pega! 86 Comédias go. Os vagabundos ficam largados na rua, onde eles sabem quem tem o dinheiro, e a filha dos outros, eles andam sequestrando. Eles ficam lá com os reféns e a pessoa tem que pagar o maior dinheiro para liberar, para poder empregar esse bando de vagabundos. Agora, eu não. Comigo tu vais é para a manceta! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 87 A mulher na festa Por João Vieira (Zió) A mulher não sabia o que era festa. Ela queria ver e MULHER: Não, é porque ele está sacudindo e estou saber o que era. O marido, então, a levou. Quan- achando bonito. do ela chegou lá, a mulher viu aquele movimento, aquela batucada, vaqueiros dançando por ali. MULHER: Marido, pede um negócio daquele que aquele cara tem na mão? Ela se referia à vara de ferrão do vaqueiro. MARIDO: Para que você quer aquilo? MARIDO: Tá certo. A mulher estava tão empolgada que, mesmo quando parava a batucada, ela não parava de dançar. Dançava para lá e para cá. O marido tinha que dizer “parou”, para ela parar. MARIDO: Peraí. Parou tudo, mulher! Para de dançar. Mas logo ela saía e continuava dançando. 88 Comédias O casamento Por João Vieira (Zió) U m rapaz arranjava um namoro com uma moça. NOIVO: Então está certo. No dia do casamento, você Mas o pai dela era muito rígido. leva a minha amada no seu colo e entrega para mim. PAI: Namorar, nada! Tem que casar! Atenderam ao desejo do pai da moça e marcaram casamento. Eu lhe pagarei bem pago! Chegado o dia do casamento, a igreja estava muito cheia. Aí o padre acabou pedindo que o pessoal fosse para o pátio porque lá caberia todo mundo e a MOÇA: Mas eu só caso se entrar carregada na igreja! cerimônia poderia ser vista por todos. O noivo con- NOIVO: Não se preocupe, meu amor. Eu vou dar um sentiu porque queria mesmo era mostrar para todo jeito de realizar seu sonho! mundo como ele estava feliz e como a sua futura Então formou-se a confusão. O noivo era pequenininho e a mulher, grande e gordona. O noivo começou a procurar por um homem forte que pudesse carre- esposa era bonitona. Porém, eles não repararam que, justo no lugar onde o carro ia chegar com a noiva e o estivador, estava tudo encharcado de lama. gar sua amada no colo e conduzi-la até o altar, até A noiva estava radiante e muito bonita. E o estivador, que contratou um forte estivador. a postos de cumprir o contrato feito, pegou ela pelos ESTIVADOR: Siô, eu estou acostumado a carregar vinte sacas de babaçu sozinho. Para mim é moleza esse serviço. braços e vinha trazendo ao altar improvisado no pátio da igreja. Todos estavam olhando, inclusive o noivo, que estava nervoso, mas muito contente. Quando o estivador deu dois passos, escorregou e derrubou a noiva numa poça de lama. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 89 NOIVO: O que o senhor está fazendo, siô? O senhor está machucando minha mulher. Olha, acabou com o vestido dela. NOIVA: Buá! Buá! Buá! Buá! Não caso mais! NOIVO: Ô, meu bem. Não fique assim! NOIVA: Buá! Buá! Buá! Some de minha frente, seu incompetente! Não serviu nem para arranjar quem me carregue. Imagine outras coisas! Acabou o casório! Fico com o estivador que, ao menos, é grandão! 90 Comédias A troca de mulheres Por Carlos Augusto dos Santos (Pilola) E ra uma vez dois rapazes que chegavam numa fes- MARIDO DA VELHA: Mas eu quero fazer esse negó- ta acompanhados de suas mulheres. Um deles era cio contigo. casado com uma velha e o outro tinha uma mulher grande, bem feita de corpo e de rosto. Na hora que tocava uma música animada, cada um deles cantava e dançava com sua mulher. O primeiro saiu para conversar com sua companheira e lá começaram a se acariciar, a se abraçar, a se beijar. Enquanto o outro, de longe, os espiava. Quando o casal voltou ao salão... MARIDO DA VELHA: Boa noite, siô! Como está? MARIDO DA BONITONA: Estou bem. Estou aproveitando a festa com a minha mulher. MARIDO DA VELHA: Siô, com todo respeito, ela é bonita demais! O senhor não troca a minha pela sua? MARIDO DA BONITONA: Não, eu não troco porque eu nunca ouvi falar que a gente troca uma mulher por outra! MARIDO DA BONITONA: Mas como é que tu vais fazer? Tu me dá uma taca? Só se for, porque eu não vou trocar a minha mulher! Mulher, tu queres ir dançar com este sujeito?! A mulher não falou nada, só sacudiu a cabeça em negativa. MARIDO DA VELHA: Ô, gente, me entendam! Eu estou pedindo isso só porque eu fui ao médico e ele me receitou uma mulher nova para eu ficar bonzinho! MARIDO DA BONITONA: Não, mas a minha mulher eu não troco. Até porque a tua já está um couro velho! Mas, de tanto insistir, o marido da velha acabou convencendo o outro a trocarem as esposas. O baile esquentou e o homem ia dançar com sua parceira bonita e nova. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 91 MARIDO DA VELHA: Me abraça, meu bem! A mulher nova não abraçava, enquanto o outro homem e a velha estavam dançando animados. MARIDO DA VELHA: Moça, vamos ali conversar. Mas a mulher não dava atenção e nem respondia para ele. MARIDO DA VELHA: “Essa mulher não quer falar... Será que ela está doente?” Me abraça, meu bem! Me MARIDO DA VELHA: Ô, senhor, e agora? Esse cara não aparece mais para a gente destrocar! Depois de muito tempo, o outro homem aparecia com a velha. MARIDO DA VELHA: Ei, devolve minha mulher. Vamos desfazer o trato! MARIDO DA BONITONA: Não, não faz! Não faz! Eu posso lhe propor outra coisa. beija, meu bem! MARIDO DA VELHA: O quê? Nada da mulher bonita responder ou atender aos pe- MARIDO DA BONITONA: Eu quero as duas mulheres. didos. Quando o dono da festa viu a situação... Então, o senhor me vende a minha de volta. DONO DA FESTA: Senhor, você foi enganado! Eu não MARIDO DA VELHA: É muito dinheiro? lhe disse para o senhor ficar com a sua mulher? Você estava tão acostumadinho com sua mulher! É, agora você foi enganado! MARIDO DA VELHA: Fui, senhor? DONA DA FESTA: Foi! 92 Comédias MARIDO DA BONITONA: Sim. Olha o sacão aqui. Eles então fecharam o negócio. O marido da velha devolveu a mulher bonita e pegou o saco de dinheiro. Mas quando ele abriu, não encontrou dinheiro, mas um veado dentro. Panada de facão Por Carlos Augusto dos Santos (Pilola) U m cara saía para trabalhar e deixava a mulher em casa. Depois que ele saía, ela botava outro dentro de casa e ficava namorando. Os vizinhos todos tentavam avisá-lo, mas ele não acreditava! Mas, quando foi um dia, ele começou a desconfiar. Então, ele inventou de se vestir com a roupa da esposa e ficava em casa esperando pelo amante. Quando MARIDO TRAVESTIDO: Não. AMANTE: Ô, meu bem. Me faz um carinho... O marido travestido, então, acariciava e alimentava o amante, dando-lhe do bom e do melhor. Depois que lanchava, o amante dormia e o marido trocava de roupa. Se vestindo de homem, o marido acordava o cara chegava, ia direto acarinhar a mulher. o amante. AMANTE: Meu amor! MARIDO TRAVESTIDO: Você não está conhecendo Mas nada de a mulher retribuir ou responder. AMANTE: Me dá um beijo, meu bem! esta pessoa? O marido se referia a um facão, com o qual encheu o amante de panadas. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 93 Santo amante Por Roberval Silva (Legário, Rubico) U m cara tinha uma mulher. A mulher tinha um MARIDO: Mas rapaz, esse santo é muito grande... amante, que ela inventou que era um santo. O cara saía para trabalhar, deixava a esposa em casa e logo o santo chegava lá e ficava com ela. Um dia, quando o marido voltou, achou a mulher dele ajeitando a cara do santo com muito carinho. E o santo ficava paradinho, sem fazer nada. MULHER: Marido, passou um santeiro aí trocando coisas. Eu troquei porque eu sempre tive vontade de ter um santo! MULHER: Não, mas eu queria um santo grande. Santinho não faz milagre. Eu quero é santo grande. Eu quero é santo grande meeeesmo. Santo grande é que eu quero. O marido inventava então de rezar para o santo. Oferecia prece para esse santo, acendia uma vela e a levava bem pertinho da venta do santo. Nessa hora, o santo corria de lá e o marido descobria que não era nada de santo, mas um homem que estava com a mulher. 94 Comédias Comédias do bumba meu boi do Maranhão 95 Olhinhos acesos Por Herbert Mafra Reis (Betinho) E u tinha uma mulher, e essa mulher se envolveu E ela agarrava um pau e vinha... Ela queria entrar no com outro homem. Mas eu não a abandonava. galinheiro! E ela entrava no galinheiro para matar a mu- Para onde eu ia, eu a levava. A gente ia se esconder cura do homem. E paulada nela! E ela gritava para mim. do amante dela, mas, quando a gente chegava lá, ele MULHER: Alumeia, alumeia! lá estava! Então, eu ia para outra fazenda. O dono da fazenda me dava um lugar para eu fazer minha casa. Como eu gostava de criar galinha, eu fiz um galinheiro. E eu alumiando. E ela gritava mais alto. MULHER: Alumeia, alumeia!!! E eu ouvia um “fuc, fuc”. Daqui a pouco, ela gritava MARIDO: Aqui eu estou sossegado! com a voz mais cansada. Nós colocávamos os frangos lá dentro e colocávamos MULHER: Alumeia, alumeia, alumeia, alumeia. uma coberta. Mas o cara descobriu onde a gente estava. Quando era à noite, eu levantava, e no galinheiro as galinhas estavam: cocó, có, có! MULHER: Meu amor, cuida que entraram no galinheiro! Vamos lá! MARIDO: Mas espera aí, como é que tu entras em uma afobação de “alumeia, alumeia” e agora tu estás gritando devagar “alumeia, alumeia”? MULHER: É porque eu estou cansada! MARIDO: Isso não é coisa de cansaço, isso é coisa de amor! Não sei com quem é, mas é amor! MULHER: Que amor, tu és doido? 96 Comédias MARIDO: Eu vou te prometer que esta mucura não vai MARIDO: Oras, porque toda hora esta mucura está entrar aí! Tu não vais mais nessa luta de “alumeia, aqui no galinheiro! E vem cá, eu estou olhando um alumeia”. E eu aqui, já desesperado para “alumiar” buraco aqui no galinheiro, aqui por trás e estou ven- e com medo de tu estar dando de pau naquele can- do, assim... O que foi isso? deeiro e atrapalhar a nossa vida! Podia um caco de vidro se quebrar e isto eu não quero ver! MULHER: Ainda bem que tu me amas, hein?! MULHER: Eu não sei. Não és tu que já está trilhando com tua saliência? MARIDO: Não, não é! Agora a galinha vai dormir no MARIDO: E bem muito! poleiro! Mas não estava bem não. Na hora que estava fazendo Eu botava a galinha no poleiro e, depois de desfazer aquilo, eu estava desconfiado! A gente voltava para o galinheiro, eu ia pescar. se deitar. MARIDO: Eu vou te prometer, amanhã eu vou te mostrar que a gente não vai mais atrás desta mucura! MARIDO: Olha, hoje eu vou pescar. Ia pescar e ela ficava em casa. E o cara ia para lá. Perguntava para ela que horas eu chegava e ia para Quando era de manhã, eu espantava e ia desmanchar lá! Eu chegava, escamava o peixe e ele estava lá se o galinheiro. escondendo debaixo da mesa. Depois que aprontava MULHER: Ué, por que é que tu estás desmanchando o galinheiro? o de comer, ela botava o molho no prato. E o cara escondido debaixo da mesa. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 97 MULHER: Ah, me esqueci de um negócio. Vou buscar ali na sala! Aí o pequeno dizia assim mesmo: FILHO: Olha, papai foi pescar e pegou três peixinhos, um para mim, um para papai e um para mamãe. E tu, de “olhinho aceso”? Que era o cara que estava debaixo da mesa... MARIDO: Meu bem, tem “olhinho aceso” onde? MULHER: Isso não é cachorro? Eu erguia o prato e, quando ele vinha, se levantava, levando a mesa para cima, quebrando meu prato, tudo! MARIDO: Eu não te disse que eu te pegava? Eu pegava um caco de prato para meter nele e ele ia saindo daqui para lá com a roupa de um lado, num braço, e o chinelo, do outro. Ela vinha entrando e ele dava aquela peitada nela. Ela caía e eu ia chegando 98 Comédias para ver se agarrava, ia me atrapalhando, assim, por cima dela e caía lá. Quando eu me levantava, não aguentava... Ela estava morta! Aí eu começava a lutar com ela. MARIDO: Levanta-te! Ela espantava, mas ainda ficava ali. MARIDO: Espera aí, deixa eu fazer uma respiração boca a boca! MULHER: Não, eu já estou melhor! MARIDO: Mas se fosse os “olhinhos acesos” tu querias, não é? MULHER: Olha, não me leva a mal! MARIDO: Heim heim! Eu não levo a mal, mas minha cabeça está pesada e eu vou embora! Vou levar só duas roupas do corpo! MARIDO: Fica com teus “olhinhos acesos”! Então eu ia dizer para o dono da fazenda o que tinha acontecido, que eu já ia embora e ia me despedir dele. DONO DA FAZENDA: Senhor, não faça isso! É porque o senhor está com a cabeça quente! MARIDO: Não é só quente, senhor! É pesada! DONO DA FAZENDA: Então, fique com sua mulher! Isso aí acontece com todo mundo! MARIDO: Já aconteceu com você? DONO DA FAZENDA: Não! MARIDO: E se acontecer, você fica com ela, com a sua? DONO DA FAZENDA: Fico! MARIDO: O senhor pode se acostumar, mas eu não! Ela que fique aqui! Botava em uma sacolinha e saía. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 99 O vendedor de caranguejo Por João Vieira (Zió) T inha um homem chamado Cururuca. Ninguém Chegando lá, só viram a mulher dele. sabia o nome verdadeiro dele. Cururuca era bom CLIENTE: Cadê Cururuca? tirador de caranguejo, pegava siri para vender. Mas, se pagasse a ele antecipado para tirar, ele não ia, ele se escondia. Um dia, um cliente encomendou para ele caranguejo, peixe e outras coisas, pagando adiantado. Ele não fez o serviço e ficou sumido durante dias e dias. O homem se chateou e convidou uns companheiros para procurarem pelo vendedor na casa dele. CLIENTE: Rapaz, o que tiver lá a gente leva, porque ele está devendo à gente. COMPANHEIRO 1: Está certo. MULHER: Saiu. Ela respondia com a porta fechada, ela não abria a porta. CLIENTE: Nós viemos conversar com ele... MULHER: Ele não está. O homem fez que foi embora com os colegas, mas todos ficaram escondidos espiando o movimento da casa. Quando a mulher de Cururuca abriu a porta de casa, eles entraram. CLIENTE: Ah, não! Agora ele vai pagar! MULHER: Como assim? 100 Comédias Comédias do bumba meu boi do Maranhão 101 Enquanto o cliente e a mulher do tirador de carangue- com o outro, lavaria os pratos. Ele estava de longe, jos discutiam, os companheiros estavam vasculhan- olhando os outros mexerem nas coisas dele, resmun- do a casa. Um mirava se a mulher era bonita. O outro gando, mas sem poder falar. mirava o que tinha na panela e nos pratos. E iam indagando sobre o que tinha de valor na casa. COMPANHEIRO 1: Tem farinha? COMPANHEIRO 2: Rapaz, não leva as coisas. Leva a mulher! Ah, quando ele disse “leva a mulher”, Cururuca não COMPANHEIRO 2: Tem feijão? se aguentou. MULHER: Não, não tem arroz, não tem farinha, não CURURUCA: Não! Levar a mulher, não. tem feijão. Não tem nada! COMPANHEIRO 1: Então, rapaz, a gente leva a mesa, as cadeiras. O tirador de caranguejo tinha brigado com a mulher e tinham apostado que quem falasse primeiro um 102 Comédias O vendedor de caranguejo pagou os homens e ainda lavou os pratos. O menino órfão Por Valdemar Piedade Pereira (Caçador) O vaqueiro entrava para tomar conta do boi e da fazenda... E lá tinha um menino órfão, que não tinha pai, não tinha mãe. Esse menino, que era fa- DONO DA FAZENDA: Cadê teus pais? MENINO: Eu não tenho pai. Eu não tenho mãe. zendeiro, olhou essa fazenda com o gado pulando, DONO DA FAZENDA: É mentira, né? brincando e pediu uma vaga para trabalhar. Então, VAQUEIRO: Ê, siô, ele está desempregado, é menino. um vaqueiro foi falar com o dono da fazenda. Então, bota ele para trabalhar na fazenda. VAQUEIRO: Olha chefe, esse menino quer trabalhar. DONO DA FAZENDA: Então tá. Rapaz, tu vais tirar o DONO DA FAZENDA: Rapaz, para que é que tu vais de comer para o gado. botar um menino desses para trabalhar? Tu não sa- Quando o boi começava a correr, ia para lá, ia para bes que menino não pode trabalhar nessa idade? acolá... O boi dava uma cabeçada no menino, que Aqui tem muito boi, muito bicho pesado, pode matar caía, levantava e ia falar com o chefe. esse pequeno, e aí? MENINO: Chefe, o seu boi me bateu! Chefe, o seu boi VAQUEIRO: Meu filho, de onde tu és? me bateu! MENINO: Sou de tal lugar. DONO DA FAZENDA: Meu filho, eu não disse que tu não podes ficar aqui? MENINOS: O seu boi me bateu. E agora? Eu tô quebrado, eu tô quebrado. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 103 O cabeceira cantava. Menino, menino, tu procura o teu destino Que eu não gosto de ver criança sem ter domínio Menino, menino, tu procura o teu destino Que eu não gosto de ver criança sem ter domínio De repente aparece um desatino Culpados são os teus pais Porque não te deram ensino. O menino respondia. MENINO: O senhor não vai pagar, não? O senhor não vai pagar, não? Se o senhor não vai pagar, eu vou embora. 104 Comédias Nessas alturas, o menino já saía levando o boizinho com ele. Quando iam procurar por ele, chegavam a mãe e o pai do menino. Eles chegavam à fazenda perguntando. PAI DO MENINO: Aqui não passou um menino, assim, assim, assim? VAQUEIRO: Passou um menino aqui, ele trabalhou na fazenda, mas o meu patrão despachou ele. MÃE DO MENINO: E para onde é que ele foi? VAQUEIRO: Não sei. Os pais partiam para cima do cabeceira, para o cabeceira pagar uma indenização do filho que desapareceu. Miruíra Por Arlindo Trindade U m homem estava a caminho de sua roça após ter O agricultor volta para a roça, quando encontra pelo a autorização do fazendeiro para plantar mani- caminho Miruíra caído para um lado, feixe de mani- va. Ele e a família roçaram o terreno. Quando eles terminaram, esperaram e esperaram pelo camarada que ficou de ir plantar a maniva, que não apareceu. AGRICULTOR: Ê, chefe. Acho que vou parar com o serviço um mucadinho. FAZENDEIRO: Por quê?! AGRICULTOR: Porque o melhor trabalhador daqui do serviço não apareceu hoje. FAZENDEIRO: E o que foi?! AGRICULTOR: Ele ficou para trás... FAZENDEIRO: Quem é ele?! AGRICULTOR: O nome dele é Miruíra, siô. FAZENDEIRO: Eu vou atrás dele! va, para o outro. MIRUÍRA (delirando): Eu quero manga azeda. Eu quero comer uma surulina. Eu quero uma tiquara... AGRICULTOR (para o fazendeiro): Siô! Eu vim lhe dizer que o pequeno está um mucado aceleradão lá no mato. Não tem nenhum curador ou um médico bom por aqui? FAZENDEIRO: Siô, vai chegar um curador bom aqui na fazenda agora... O curador chega e se atualiza da situação. CURADOR: Rapaz, eu sou muito perigoso. Vai buscar esse pequeno para mim! O agricultor foi buscar Miruíra, que veio puxado por uma corda amarrada na cintura, se apresentando saltitante no recinto. O curador o examina bem e logo Comédias do bumba meu boi do Maranhão 105 106 Comédias depois começa a sacudir o maracá sobre a cabeça do Com muito cuidado, o curador vai erguendo o doente, que se tremelica. paletó de Miruíra e todos avistam um enorme CURADOR: Rapaz, o pequeno está carregadíssimo. Tá brabo! AGRICULTOR: E o senhor dá conta de fazer o serviço de curá-lo? CURADOR: Rapaz, eu vou experimentar. O curador começa a entoar uma cantiga de pajé e todo mundo sapateia. AGRICULTOR: Como é? O que o senhor me diz? O que é a doença do pequeno? CURADOR: Siô, a doença do pequeno é só ela! AGRICULTOR: Só ela?! bicho-preguiça. AGRICULTOR: Credo! É tu que estás matando o meu trabalhador?! Espera aí! O agricultor, então, puxa um cinto de couro de dentro do bolso e com ele começa a bater nas costas de Miruíra, na tentativa de expulsar a preguiça. AGRICULTOR: Chefe, o senhor sabe o que eu vou lhe dizer? À vista desse bicho ter aparecido em meu trabalhador, de repente, esse mal pode passar para mim. Se eu ficar desesperado, eu vou embora. O senhor me dá licença de eu tirar pra fora daqui e me faz o favor de levar até no meio de viagem? Eu não quero mais ficar aqui na fazenda. CURADOR: É... Ele está com uma coisa grande pesando nas suas costas. É só ela que está matando esse moço! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 107 Abi Por Arlindo Trindade U m pescador estava há muito tempo sem opção de fisgar nada, quando soube que nos campos da fazenda São Francisco estava dando muito peixe no mês de dezembro. O homem então planejou uma viagem com uns companheiros e a família para irem pescar nessas lagoas. Eles arrumaram socó e caba- BOIADEIRO: Vai? E esse jumento? PESCADOR: Esse animal que eu vou levando, ele é meio espoletado, mas vai uma criança montada para não se judiar muito com viagem. É meu filho. O nome dele é Abi. ças no jumento e seguiram. Após dias de viagem, no BOIADEIRO: Abi? meio do caminho, encontraram uma boiada grande. PESCADOR: É, estou lhe dizendo que esse jumen- PESCADOR: Bom dia, senhor. Queria pedir uma licen- to é meio espoletado, siô! De vez em quando, ele ça para meu povo e eu passarmos... BOIADEIRO: E quando você veio? PESCADOR: Eu ainda vou... começa a rinchar e querer dar coice e o pequeno, A... bi, no chão. Aí a gente botou logo o nome da criança de Abi. Permissão dada, o pescador seguiu viagem com familiares e amigos rumo às lagoas. Lá pescaram o mais que puderam por dias e dias. Muito satisfeitos com 108 Comédias os resultados, o pescador retorna com sua turma, to- PESCADOR: Então, você não está vendo, siô, que isso dos com os cofos amarrados na garupa do jumento e é um desaforo?! Você, atravessado na estrada que eu cheios de peixe, quando encontram novamente com vou passar, e esse jerico pisunhou meu peixe todo! o boiadeiro e sua boiada no meio do caminho. Olha como está aqui, só o cofo de espinha de peixe, PESCADOR: Siô! Agora eu quero para você fazer o favor de se aquietar com a sua turma. Ainda levo uns peixes bem frescos. que já desmanchou a carne todinha, rapaz! BOIADEIRO: Ô, siô, me desculpe... PESCADOR: Felizmente, siô, eu só não lhe faço uma Atendendo ao pedido, o boiadeiro afastou seus bois desfeita tão grande agora porque eu não gosto de só o suficiente para os pescadores passarem em fila me prevalecer dos outros! indiana. Quando, de repente, o jumento se assustou com o berro de um bezerro da manada, derrubando e pisoteando toda a carga de peixes. Mesmo sabendo E o pescador sai com sua turma puxando o jumento e roubando o boi. que parte dos peixes já estava se estragando, o pescador mostrou sua indignação. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 109 Cururuca Por Herbeth Mafra Reis (Betinho) e Antônio Vieira (Bezerra) V inha um vendedor de peixe. PEIXEIRO: Olha o baiacu! Olha a arraia, freguesa! Tá fresquinho! Um conhecido dele, Cururuca, via o movimento e puxou assunto. Assim foi feito. O peixeiro ia anunciando e vendendo o peixe, e Cururuca, recebendo os pagamentos dos fregueses que eram vaqueiros, turcos, fazendeiros. O estoque de peixe foi baixando e o peixeiro foi percebendo que Cururuca estava se esquivando do serviço, sendo preciso o peixeiro lhe chamar a atenção. CURURUCA: O senhor está aí na lida do peixe? PEIXEIRO: Cururuca, presta atenção no serviço, ra- PEIXEIRO: Estou! O que tu estás fazendo por aí? paz! Tu estás vendo peixe diminuindo e já está cain- CURURUCA: Não, só estou por aqui também, ué! PEIXEIRO: Sei... CURURUCA: O senhor não quer que eu lhe ajude? Enquanto o senhor está vendendo este peixe, eu poderia ir recebendo o dinheiro... PEIXEIRO: Não! O peixe é meu, quem recebe o dinheiro sou eu! Mas, pensando bem... Tu és pequenininho. Se tu te fizeres de besta, eu te dou uns dois pescoções. Então está certo! Eu vou. Fica aí recebendo o dinheiro e eu vou te levando nas casas e vendendo. 110 Comédias do fora. Tu já estás com safadeza! Cururuca se prontificou no seu posto novamente e continuaram a fazer as vendas. Quando terminaram, foram fazer as contas. PEIXEIRO: Cururuca, vamos conferir o dinheiro. Mas Cururuca deu no pé, fugindo com o dinheiro. O pescador correu atrás até que o agarrou, dando-lhe muitos pescoções. Só não o matou porque os vaqueiros chegaram e apartaram a briga. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 111 O negociante ladrão Por Valdemar Piedade Pereira (Caçador) E ram uns ladrões negociantes que queriam nego- O cara não comprava nada. Os negociantes insistiam, ciar o que não tinham com aquilo que o dono da ficavam rondando a fazenda, até que inventaram que fazenda tinha. Porque este tinha muito e eles não o boi era brabo e tinha bazugado eles, tinha machu- tinham nada. cado eles. Fizeram um falatório com o dono da fa- Então, eles queriam o boi da fazenda e iam tentar negociar com um passarinho. zenda e, nessa confusão, os passarinhos acabaram se soltando. Enquanto isso, um dos negociantes pegava o boi e escapava com ele. O dono da fazenda manda- NEGOCIANTE: Senhor, eu tô vendendo passarinho, eu va o vaqueiro campear e procurar o boi. O vaqueiro tô vendendo passarinho... Quer comprar? Olha, tem campeava e voltava dizendo pro patrão que não tinha guriatã, tem sabiá da mata... encontrado nada. DONO DA FAZENDA: Aqui não tem nada pra se fazer com isso, aqui só se trabalha com gado. Há quinze anos que eu sou vaqueiro empregado Trabalho tanto e não tenho resultado Trabalho tanto e não tenho resultado Agora vou dizer pra meu patrão, Que nosso boi foi roubado Que nosso boi foi roubado 112 Comédias VAQUEIRO: Patrão, ele já levou o boi. DONO DA FAZENDA: E quem foi que pegou? VAQUEIRO: Ah, foi aquele moço. DONO DA FAZENDA: Vai buscar de novo... O fazendeiro mandou o vaqueiro ir atrás do cidadão e com ele foram os tapuios, para ajudar. Depois que encontraram o cidadão que roubou o boi, os tapuios lhe deram voz de prisão e o trouxeram E o preso corria pra lá e cá, tentando se defender, e cantando. Ê tapuio, devagar Ê tapuio, devagar Senão eu me espalho Mato tudo e não vou lá Senão eu me espalho Mato tudo e não vou lá empurrado à flecha. Para obrigar o camarada a pagar, meteram-lhe o chicote. TAPUIOS: Nego tem que pagar! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 113 114 Comédias O bêbado e o dentista Por Valdemar Piedade Pereira (Caçador) O doutor chega todo vestido de branco, porque é BÊBADO: Aaaaaaaaaaiiiiiiii... Não faça isso, não, não o doutor, e monta a sua banca. Então, manda faz mais, não! anunciar na fazenda que tinha chegado um doutor cirurgião. O primeiro que vem, chega com a mão no queixo e, DOUTOR: Abra a boca, siô! O doutor vai dar-lhe uma injeção. bebinho, passa o pé na cadeira do doutor, derruban- BÊBADO: Ai! Ai! Ai! do o dentista com a cadeira, com tudo. O doutor se Então, o doutor chamou duas enfermeiras que o au- levanta e pergunta: xiliavam. Elas pegaram o bêbado, o botaram sentado DOUTOR: O que foi? e amarrado na cadeira. BÊBADO: Siô, eu estou doido de dor, que eu estou DOUTOR: Agora nós vamos arrancar o dente, arran- ceguinho. car mesmo! DOUTOR: Eu estou vendo que tu está cego, tu me Quando o doutor botou a agulha pra arrancar o dente, derrubou... Derrubou até a minha cadeira. O doutor chegou perto para botar a mão na boca do bêbado. o bêbado se revira na cadeira. A cadeira saindo, e o bêbado, se revirando. Quando ele ia lá na frente, ele diz: BÊBADO: Doutor, até logo. Muito obrigado, eu estou bonzinho! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 115 O caçador Por Valdemar Piedade Pereira (Caçador) C hapeuzinho Vermelho ia levar a comida da vo- çador aparecia, metia bala no lobo mau e salvava a vozinha. Ela ia na estrada, viajando e cantando. Chapeuzinho Vermelho. Então, o caçador vinha com O lobo mau, que já tinha batido na porta da casa da avó e a devorado, estava lá deitado, como se fosse o dono da casa, esperando por quem fosse lá para ele também devorar. Quando a Chapeuzinho Verme- ela, a entregava para o pai dela. PAI: Cadê o lobo? CAÇADOR: O lobo está morto. lho chegava e batia na porta, ele respondia com uma voz rouca. Eles voltavam, pegavam o lobo pelas pernas e o botavam no meio do terreiro, para mostrar que tinham LOBO MAU: Ô, minha filha. CHAPEUZINHO VERMELHO: Vovó, é a Chapeuzinho. LOBO MAU: Eu estou rouca... Entra! Ela entrava. Quando se espantava, o lobo queria abocanhá-la. Nisso, ela gritava. Quando ela gritava, o ca- matado o lobo mau. Mas o pai de Chapeuzinho Vermelho, como eles não lhe pagaram pelo que foi feito com filha dele, levava embora o boi da fazenda. Então, os empregados da fazenda mandavam os índios buscarem o pai de Chapeuzinho, que ia preso. Quando os índios voltavam, o entregavam para o dono do boi e o botavam no pau. Se ele não pagasse o boi, o caçador tinha que atirar nele. Chamavam a Mãe Catirina, que vinha e pagava o boi. 116 Comédias Vendedora boa Por Arlindo Trindade U m casal tinha uma quitanda e nesse lugar chega um homem para fazer compras. A mulher do dono do comércio foi atender ao cliente e acabou se engraçando do homem. Quando o dono do comércio percebeu, a esposa estava aos beijos com o cliente. COMERCIANTE: Tá bom, Sempreminha. Assim que tu tá, não é? Está tudo bem? Disfarçando, enquanto o cliente escapulia, Sempreminha respondia. SEMPREMINHA: Está tudo bem. Tudo ótimo! COMERCIANTE: Está vendendo direitinho? SEMPREMINHA: Credo! Já vendi tudo o que tinha. E atendi bem o cliente, como tu mandaste! COMERCIANTE: Olha, eu te disse para vender tudo que tem, mas não para tu te vender! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 117 118 Comédias Culhote Por Valter Silva (Caburé) A rrupiado bota a filha para estudar em Cururupu. ARRUPIADO: Culhote? Está tudo bem. Como eu posso O nome dela é Cuca. Enquanto ela está estudan- falar com ele? do, chega um camarada muito bonitão para namorar com ela. O nome dele é Culhote. CUCA: Ah papai, ele é vendedor ambulante, tem esse negócio de confecção. ARRUPIADO: Minha filha, tudo bem? ARRUPIADO: Qual é teu compromisso com ele? É de CUCA: Tudo bem. Agora papai, eu estou gestante. casar? ARRUPIADO: Gestante!? Ah, minha filha, eu te botei CUCA: Ah papai, só falando com ele. para estudar e tu estás gestante? ARRUPIADO: Eu quero falar com ele! CUCA: Ah papai, estou gestante. CUCA: Ele vai chegar amanhã. ARRUPIADO: E de quem é? ARRUPIADO: Amanhã? Então pode aguardar. Eu venho CUCA: O nome dele é Culhote. aqui amanhã. Arrupiado chegou lá com um guarda-costas, e Culhote estava no colo de Cuca. “Rrrrrrrrrrrrrr.” Comédias do bumba meu boi do Maranhão 119 Culhote estava ressonando quando o guarda-costas lhe ARRUPIADO: Ô rapaz, aqui no Brasil a gente casa. Eu bo- algemou o pé e a mão. tei minha filha no colégio para estudar e ela já está ges- ARRUPIADO: Eh, Culhote! Eh, Culhote! CULHOTE: Aaahhh, é Cuca? tante! Tu vais embora, eu não sei se tu ainda voltas... Assim como tu fez a minha filha gordinha, eu vou fazer tu chegar lá nos teus exterior bem gordinho também. CUCA: Não, é meu pai que quer falar contigo. E Arrupiado parte para cima para castrar ele, capar ele. ARRUPIADO: Rapaz, qual é a tua finalidade mais minha CULHOTE: Ai, ai, ai. Ai, ai, ai, não. Peraí. filha? CULHOTE: Ela já está se sentindo gestante, mas eu não moro no Brasil, eu moro no exterior. 120 Comédias Pá, pá, pá! Era o machado capando o Culhote! Médico do mato Por Eleutério Silva (Loló) U m médico chegou ao interior e pediu à diretora Apareceu uma menina que estava em uma situação da escola que ela cedesse a quadra para que ele difícil. Ela se jogava, gritava... Todo mundo vendo pudesse montar seu consultório. aquilo com pena. MÉDICO: Minha senhora, aqui tem muita gente do- MÉDICO: É. Você está ruim. Está muito mal. ente. O povo está precisando de saúde. Me empreste esse espaço que é muita gente para atender e uma sala pequena não dá conta. Resposta positiva, logo o médico partiu para arrumar o seu local de trabalho e fez uma clínica. Depois de tudo pronto, convocou enfermeiros e outros médicos para trabalhar. MÉDICO: Pode entrar o primeiro paciente da fila. O médico chegava para curá-la, mas ela só gritava, se jogava no chão. Até que ele falava. MÉDICO: Seu caso não é para médico de medicina e sim para médico do mato. Nessa hora aparecia um pajé e ele dizia que ela estava era enfeitiçada. O pajé fazia o trabalho rapidinho. Ele batia, ele fazia, ele cantava, se jogava, e a moça ficou boa. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 121 O retrato da velha Por Arcângelo Reis (Arcanjo) U m homem chegou a uma repartição e pediu para hora que iam bater o retrato, a máquina fotográfica aposentarem a avó dele. acendia, a velha se assustava, caindo desmaiada. ATENDENTE: Senhor, não é aqui. É no sindicato rural! O neto, então, se dirigia ao sindicato rural para falar com outro rapaz. O neto ia com um amigo, que o ajudava a levar a velha. Chegando lá, souberam que era preciso tirar retrato da senhora para aposentá-la. Na NETO: Senhor, minha avó desmaiou e caiu. Me ajude a levantá-la! FOTÓGRAFO: Senhor, a sua avó já está morta. NETO: Não, não pode ser. Desesperado, o neto saiu para chamar o irmão. Quando voltaram, a velha morta já estava sendo comida por um urubu. 122 Comédias Comédias do bumba meu boi do Maranhão 123 Lição para o senador Por Herbert Mafra Reis (Betinho) O colega chegou na casa do outro e o chamou para PAI DO MENINO ESPECIAL: E por que é que a senhora fazer a aposentadoria do seu filho especial. procura ganhar mais de um salário mínimo? A senho- COLEGA: Olha, tem uma pessoa do INSS aí, vamos levar teu filho lá para ela aposentar ele! O pai do menino especial, animadão, pegou os documentos e, quando chegou lá, a mulher foi entrevistá-lo. FUNCIONÁRIA DO INSS: O senhor é aposentado? PAI DO MENINO ESPECIAL: Sou. FUNCIONÁRIA DO INSS: Quanto é seu salário? ra tem dez filhos? FUNCIONÁRIA DO INSS: Não! PAI DO MENINO ESPECIAL: Então, como é que eu, com um salário mínimo, vou sustentar cinco e a senhora está ganhando cinco salários e a senhora está dizendo que tem só um? O pai sai revoltado de lá e vai passar num lugar, que dizem que tinha um senador que morava lá. Quando PAI DO MENINO ESPECIAL: Meu salário é um salá- chega lá, vê uns colegas do senador, todos de terno, rio mínimo. engravatados, de luva na mão e duas panelas... O pai FUNCIONÁRIA DO INSS: Você não pode aposentar o ra- encosta para falar com eles, já de cabeça quente. paz, porque seu salário dá para sustentar cinco filhos. PAI DO MENINO ESPECIAL: Para onde vocês vão? 124 Comédias COLEGAS DO SENADOR: Vamos botar esse resto de Foram lá onde o homem estava, e ele foi fazer um comida ali no lixeiro. unguento. Fez de folha de mato, uma porção de fo- PAI DO MENINO ESPECIAL: E por que é que vocês não chamam os pobres e entregam? COLEGAS DO SENADOR: Não, o senador não quer que entregue, quer que bote lá! O pai fica com raiva e começa a falar, falar... Nisso, lha de mato! PAI DO MENINO ESPECIAL: Agora me dá o fumo de corda daí! Botou na boca e começou a mascar e cuspir dentro do unguento que tinha feito. o filho do senador vem correndo com um revólver PAI DO MENINO ESPECIAL: Leva aí e dá para ele. Com atrás do sujeito e, beira aqui, beira acolá, ele ganha o quinze dias eu vou lá acabar de curar ele para ele cerrado, mas era só pé de eucalipto. Na perseguição, também curar outro. Mas não digam o que vocês vi- o filho do senador mete o pé no eucalipto. Então, ram aqui, porque senão cobra vai matar ele! Ele não uma cobra o morde e ele fica ruinzão. Não tinha nin- tem que saber! guém que botasse ele bom. Deram a informação que aquele homem que ele tinha perseguido sabia curar mordida de cobra. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 125 Levavam o unguento, davam e ficavam com nojo da- Ele subia por cima de uma mesa e o homem pegava quilo. Quando o homem ia para curar ele, levava uma uma seringa. Quando o pai do menino ia dar uma cabaça e mandava botar umas cobras, dessas que injeção nele, ele já estava todo mijado! não crescem muito e que chamam pinta de cascavel. Tinha só uma cascavel. Ele soltava as cobras. FILHO DO SENADOR: Não faça isso! PAI DO MENINO ESPECIAL: Olha meu filho, agora eu Já estava também todo sujo. vou botar as cobras aqui e uma delas vai lhe morder para poder curar... Aquela que te mordeu, ela que vai te morder! FILHO DO SENADOR: Não me cure! PAI DO MENINO ESPECIAL: Se eu não te curar, cobra vai te matar! FILHO DO SENADOR: Não me cure! 126 Comédias PAI DO MENINO ESPECIAL: Senta aí! FILHO DO SENADOR: Mas eu já estou com o cu todo empastado! PAI DO MENINO ESPECIAL: Agora que danou-se, mas nós vamos fazer uma coisa! Tu vais agarrar em mim, ela vai me morder e eu vou te morder. Assim dá! Quando ele agarrava assim no homem, ficava to- SENADOR: Está aqui! do tremendo. PAI DO MENINO ESPECIAL: Não, pegue seu filho aí e PAI DO MENINO ESPECIAL: Acomoda, acomoda, que o senhor também! Entrem no carro! Eles entravam no o veneno da cobra fica em mim! Te acomoda, que carro e iam todos lá onde ele botava o comer no lixo. tu não estás com beribéri! Eu cheguei e tu estavas bonzinho, doido! PAI DO MENINO ESPECIAL: Agora entregue o dinheiro para esses daqui, que o senhor manda juntar o Ele se acomodava e o homem sentava pertinho dele. comer do chão! Na hora de votar, o senhor está ca- A cobra chegava, agarrava no homem e ele curava o rinhoso e depois manda botar o comer para eles no rapaz! Quando terminasse, eles iam pagar o serviço. chão! Dê o dinheiro para eles! O senador procurava quanto era. E ele ia dividindo o dinheiro! E o filho ficou tão doído PAI DO MENINO ESPECIAL: Senhor, eu quero dois mi- daquilo, largou o pai e foi viver no meio deles! lhões de cruzeiros pela vida do seu filho! Ele vinha com aquela maleta cheia de dinheiro. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 127 Palhaços do boi Antônio Vieira (Bezerra) Nasceu em 1933, no povoado de Santaninha, Cedral, onde vive até hoje. Aposentado, ainda trabalha na lavoura. Sou natural de Cedral, povoado de Santaninha. Tenho oitenta e uma quebrada. Uma vez, teve um pastor de igreja evangélica que veio da cidade e o nome dele era Antônio Bezerra. Meu nome também era Antônio. Lá me botaram Antônio Bezerra, Bezerra ficou. Se chamassem Antônio, quando eu estava brincando boi, eu não respondia. Se chamassem Bezerra, “êpa! É eu mesmo!” Eu brinquei um boizinho de criança, um boi de cofo! Fazia o boi com o cofo e enfeitava com uma florzinha amarelinha. Ficava bem enfeitadinho. A zabumba era um cacete de embira que amarrava e botava a zabumba para bater. Desse boi de cofo é que eu comecei a brincar boi de palhaço. Era todo ano. O finado Elecride, que era cantor, fazia a brincadeira no povoado do Anajá. Eu estava com quinze anos quando peguei a me ajeitar, comprar roupa para me vestir. Brincava na escola de samba, no tambor de crioula 130 Palhaços do boi e no boi. Boi era todo ano, e eles não me deixavam sem que foi o último boi em que brinquei. Nesses bois a gente brincar. Quem brinca desde os quinze até oitenta e fração não fazia palhaçada. E eu tinha pensado que faria. Então, já brincou um bocado. eu não quis mais brincar boi de palhaço e peguei a brincar de chapéu. Eu me engracei do chapéu e rolava. Para rolar, Matança, para nós, não tinha hora. Nós fazíamos a ma- ninguém me ganhava! Nessa época, eu brincava no boi de tança com o rapaz metido dentro daquela vestimenta de Terezinha, mas eu não podia subir no ônibus com a trou- Palmira. As minhas caretas, eu fazia. Eram de pano e eu xa em que carregava o chapéu. Na hora que eu agarrava mesmo costurava. Qualquer pedaço de pano, perna de o chapéu para entrar no ônibus, vinham me ajudar! Eles calça comprida, eu cortava, amarrava em cima, deixava diziam: “Sobe, velho!” Os companheiros me abusavam, um lugar para fazer olhos, careta, nariz. Mais para fren- xingavam. Eles me judiavam! Eu já estava velho mesmo, te começaram as matanças com muitos bichos. Os palha- então, disse: “Vou largar. Estou satisfeito. Não vou mais ços, éramos eu, Roberval (do povoado de Anajá), Lobato brincar no boi.” Então, fui brincar bloco no Mirinzal. Caí e Pedro. Compadre Manoel brincava no Anajá, mas ele foi doente. Não podia mais de tão velho. Não deu mais, lar- para o boi de Elecride e ficou. Ele era um bom cantor. Era guei logo! Ficar bestando para os outros!? só explicar como era a matança e podia deixar com ele. Às vezes a gente se esquecia de um ponto, ele lembrava para a Então, eu dei minhas roupas de tambor, de boi, de bloco, gente botar na matança. Ele era brilhante. chapéu, tudo eu fui entregando. E me entreguei para Jesus já vai fazer ano. Hoje eu sou evangélico, da Igreja Pente- Brinquei cinco anos no boi de Leonardo e larguei de brin- costal. Agora estou bem, graças a Deus. Estou me dando car lá quando morreu um irmão meu. Depois, compadre bem. Mas já brinquei muito, graças a Deus! Já chega! Já Manoel me levou de novo e me botou no boi de Terezinha, estou satisfeito! Deixa esses que são mais novos brincar. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 131 Arcângelo Reis (Arcanjo) Iam para assistir às toadas. Já os antigos iam para assistir às comédias. Nasceu em 1951, em Bequimão. Vive desde os anos 1980 em São Luís, onde é dono do Bumba Meu Boi Anjo do Meu Sonho. A gente fazia três comédias por noite. Cada couro de boi era uma comédia. Entrava o primeiro couro e se fazia uma Eu brinco no bumba meu boi desde pequeno. Meu pai era comédia. Quando mudava, quando entrava o segundo brincante antigo de boi em Bequimão, em um lugarzinho couro, tornava-se a fazer outra comédia. A melhor, a gente chamado Barroso. Eu dizia: “Papai, me leva para brincar deixava para fazer no terceiro couro, já no romper do dia. boi também!” Eu queria brincar era na palhaçada, porque o Essa que era a comédia boa! Nego ria, que faltava urinar na melhor da brincadeira, para mim, era palhaço. Não sei dizer roupa, só de molecagem! o porquê, mas eu achava tão bonito! Era uma graça! Uma vez, eu disse para o chefe da comédia: “Atanásio, eu tenho Quando eu vim embora para São Luís, eu comecei a brin- vontade de brincar boi, de palhaço, junto com vocês!” Em car no bumba meu boi em 1981. Brinquei com Mundi- um ano, eu fui com ele, e pronto. Assim comecei. Eu acho quinho, um ano, no São Francisco. No outro ano, eu fui que estava com treze, doze anos, por aí. brincar no boi de Terezinha Jansen, onde brinquei durante 16 anos como palhaço junto com Betinho, Manoel Dessa turma ainda tem um senhor vivo, que é o Teté. Gato e Beto da Boa Esperança. Atanásio já faleceu, Augustinho já faleceu, Bubu já faleceu... Isso faz muito tempo. Eu fazia umas comédias No interior, a gente só usava roupa velha ou virada do muito boas. Tinham muitos que iam para a brincadeira avesso, calça rasgada, o bolso por fora. Quanto mais es- olhar o couro do boi, para ver se era lindo. Outros, não. culhambado, melhor era para a molecagem. Em São Luís, 132 Palhaços do boi Eu sou dono do Bumba Meu Boi Anjo do Meu Sonho, do sotaque de zabumba. O nome da minha brincadeira saiu porque foi uma pessoa pedindo para eu fazer esse boi. Eu disse que eu não tinha condição de fazer essa brincadeira. Essa pessoa disse para eu continuar a brincadeira que ele ia me dar uma ajuda. Eu fiquei despreocupado e não disse para ninguém. Ela tornou a me chamar – eu estava dormindo –, e foi me dizer como era para eu fazer. Eu disse: “Eu só posso fazer essa brincadeira se você me der condição.” A pessoa: “Está bom, eu vou lhe dar condição.” não. Todo ano a gente muda a roupa do pessoal de comé- Dentro de poucos dias, enquanto eu andava na rua, apa- dia. Dona Terezinha Jansen todo ano comprava roupa. Eu receu um envelope rolando em minha frente. Juntei esse tinha um vestido, uma calça e um bermudão, tipo fofão, envelope e, parece mentira, mas tinha uma quantia de di- com as alças cruzadas atrás. nheiro dentro. À noite, a pessoa disse: “Está aí! O dinheiComédias do bumba meu boi do Maranhão 133 ro da brincadeira está aí. Eu quero que tu botes essa brin- Meu sobrinho e meu irmão chegaram para me conven- cadeira para mim durante quatro anos. Depois de quatro cer a parar com a brincadeira. Mas eu pedi que botasse anos, se tu quiseres, tu ficas. Se não quiser, pode acabar. boi só esse ano porque já estava em cima da hora e tudo Eu só quero que tu me botes o nome da brincadeira Anjo já estava pronto: “Eu boto o boi este ano e se eu ficar do Meu Sonho.” bom e se Deus e o santo me ajudarem, para o ano eu continuo. Mas se eu morrer, eu já botei o boi este ano! Deixa Com poucos dias que eu tinha achado esse dinheiro, che- eu botar o boi. São sete dias. Eu dou conta. O santo me ga um senhor que fez um boi de promessa na Vila Em- ajuda e Deus vai me ajudar e me dar coragem e força bratel para me vender as coisas da brincadeira dele. para eu botar a brincadeira.” E eu botei. Também não Ele tinha um boi, uma parelha grande, seis golas, seis parei. O santo está me dando força e vou indo devagar e chapéus de fita, zabumba, tudinho. Chamei dona Fáti- vou botando. Enquanto vida eu tiver e puder me arras- ma e falei da brincadeira. “Tu me ajudas?” Tudo nosso tar, eu vou botar. é combinado. Se eu sou, certa hora, meio doido, ela já é doida e meia. Ela correu, foi trabalhar. Recebeu o No meu boi ainda tem palhaçada, são dois rapazes que dinheiro dela e disse: “Está aqui o resto do dinheiro. moram no interior que fazem. Mas, em São Luís, a gente Vamos botar a brincadeira!” só faz a comédia no dia 23 de junho, que é o dia do batizado. A gente não tem tempo de fazer a matança porque Quando completou os quatro anos, eu pensei em parar. o horário para a gente brincar é trinta ou quarenta mi- Já tinha feito o trato com a pessoa. Mas eu criei uma nutos. Mas, de primeira, quando a gente ia brincar em amizade na brincadeira e não parei. Continuei. Um ano Bequimão – o boi da Fé em Deus, o boi de Antero, o boi eu adoeci, estava fraquinho, não conseguia nem andar. de Dona Zeca, o de finado Leonardo –, nesse tempo, to- 134 Palhaços do boi dos tinham que fazer comédia. Hoje, não faz mais. Hoje, Saio de palhaceiro só quando faz a comédia. Quando não, nenhum faz comédia. Ainda assim, a gente combina a fico só fardado e com a roupa da brincadeira, que é ver- matança porque, de uma hora para outra, podem pedir melha e branca, só na organização. Eu não me imagino para a gente fazer a comédia. Então, é ensaiada. Em todos sem brincar, é arriscado eu adoecer. Quando chega o ano os ensaios a gente faz a matança. Quem cria sou eu. novo, que vai se aproximando dos ensaios, tem noite que eu não durmo. Eu fecho os olhos, mas estou acordadi- Para eu fazer uma matança é dentro de poucos minutos. nho! E eu digo: “Eita, Dona Fátima, olha o tanto de boi Se, por acaso, eu estou sentado bem aqui, eu fico pensan- que vem ali! Vem preto, vem branco!” E ela: “Não tem do. Sem demora, naquele instante, eu tiro uma matança. nada! Tu já estás...? Tu já estás com tua lida com boi, ra- Depressinha! Eu tiro uma matança da boa. É de repen- paz! Será possível?!” te. Vem da cabeça. Eu não escrevo porque eu não sei. Só guardo mesmo na cabeça. Às vezes eu chamo minha Já sonhei muitas vezes com boi chegando na porta da mi- esposa: “Dona Fátima, escreve isso aqui para mim.” Eu nha casa. Eu estou dormindo e vendo boi vindo de carrei- vou dizendo. Ela vai, pega o caderno e escreve. Porque, ra. E nego correndo atrás, e ele chegando. Fica berrando na se eu me esquecer, eu pergunto para ela como foi que eu porta e, quando eu vou abrir o portão, ele se esconde para disse. Quando nós vamos começar o ensaio, eu chamo nego não o matar. seu Zé Raimundo, chamo seu Santiago e digo: “Crianças, eu tenho uma matança assim e assim. O que vocês me dizem? Está certo ou tem mais alguma coisa para colocar?” Seu Santiago e seu Zé Raimundo diziam que estava certo e nós íamos ensaiar. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 135 Arlindo Trindade Nasceu em 1940, em Santa Rosa, Guimarães. Vive em Central do Maranhão, onde é agricultor. Estou com 74 anos, mas ainda estou comendo farinha d’água, trabalhando de roça e fazendo matança de boi até a hora que der de jeito. Quem me botou para brincar boi foi o finado velho meu pai. Eu estava com onze anos quando ele fez um boi de verão e me procurou: “Meu filho, se eu te botasse para trabalhar numa palhaçada comigo, tu fazias?” Eu disse: “Papai é que sabe.” Daí, eu saía montado numa burrinha que eles fizeram e nós botamos o apelido dela de diamba. Nós fomos brincar boi em outra banda e teve um que disse: “Ah! Eles vão prender essa desgraça desse pequeno, que ele está fumando diamba, ele está só com nome de diamba na boca.” Eu digo: “É minha burrinha que é diamba, desgraça!” Era uma molecagem danada. Então, eu fiquei, fiquei, fiquei, fiquei, até agora. Papai já foi há muito tempo e eu fiquei ainda vivo, até agora pilhando nessas coisas de cultura. A 136 Palhaços do boi mesma coisa é um filho meu, o Adriel. Ele está com onze ainda estava no tempo antigo de guardar um ano de luto anos, mas é uma fera para palhaçada! Ele é que reúne o para papai e mamãe. Mas, desse tempo todinho, todo gado logo no começo da matança. Ele sai de visagem. Ele santo ano eu estou brincando. Agora eu já estou devagar, tem também uma vestimenta toda estampada de oncinha. mas às vezes, se eu me comprometer e os companheiros estiverem juntos, cruz credo! Vocês dizem: “Ô velho dis- Nós ainda praticamos a comédia, meus quatro compa- granhento pra fazer comédia de brincadeira!” nheiros e eu. Para se adquirir uma boa palhaçada eu não posso ficar sozinho. Vamos dar um exemplo. A senhora Em São Luís eu não faço matança porque onde é que nós é cabeceira duma brincadeira, eu introduzo a matança vamos fazer?! Às vezes são trinta ou vinte minutos de com a senhora. Então, eu já converso com os companhei- apresentação, e só isso não dá para fazer. Já por aqui, não! ros antes e combino tudinho: “Na hora que eu estiver me Aqui a gente brinca à vontade! No arraial dá para fazer explicando, que eu disser assim, assim, tu entras para ir a matança, dá para fazer as palhaçadas, tudinho. Por isso conversar comigo.” a gente vai tirando novas matanças, porque, quando nós brincamos só no interior, tem que fazer novas a cada ano, A minha farda de palhaceiro é roupa comum. Tem só uns tem que mudar! A gente não repete, tem que todo ano paletós. Uso caretinha de meia mesmo, que mandei fazer matar a cabeça para fazer novas. Meus companheiros não com uma senhora. Tem os bichos: carneiro, urubu, visa- tiram, sou só eu que tiro. Às vezes eles me ajudam, eu gem, veado, jerico, tudo para ajudar a contar as histórias. começo um termo e eles vão empregando certas palavrazinhas, e nós vamos inteirando. Já trabalhei muito, 58 anos de brincadeira! Só escapou no ano que mamãe morreu e que papai morreu, que eu Comédias do bumba meu boi do Maranhão 137 Carlos Augusto dos Santos (Pilola) Eu sou o mais jovem dos palhaceiros antigos daqui. Eu Nasceu em 1951, no povoado Moreira, em Mirinzal. Vive em me procurava se eu não tinha vergonha de trabalhar! Não! Graça de Deus, no mesmo município, onde é agricultor. Aquilo eu fazia porque eu gostava. Porque eles me viam Eu larguei, não teve mais palhaçada... Eu recebi um recado de Betinho há uns dois anos. Ele ficou de vir me apanhar na véspera de São Pedro e até hoje eu estou esperando! Hoje não é aquilo como era dantes. Eu cansei de chorar quando um grupo de bumba-boi vinha brincar aqui. Cansei de chorar quando cantavam lá. Era muita gente, e o povo aplaudindo, era muita assistência! Eu cansei de, às vezes, quando batia próximo de São João, eu me pegar sonhando, brincando bumba-boi. Cansei! De vez em quando, eu procurava para São João se ele estava ficando maluco de estar me atentando. Cansei, cansei de sonhar! comecei a brincar bumba boi com Betinho. Quando eu comecei a trabalhar, eu estava novinho. Muita gente assim, jovem, vestido de mulher e de roupa velha... Mas aquilo não tinha nada a ver. Eu fazia porque gostava. Nos anos que teve boi bom por aqui, não teve nem um que eu não brincasse. Quando Manoel, Emídio, Benedito Gomes e Elecride cantavam “lá vai”, que chegava na porta e Bezerra se apresentava... Rapaz, isto ficava durinho de gente. Porque eles eram bons de trabalho. Eu gostava de trabalhar nisso demais, demais, demais! Mas depois eles foram embora para São Luís e eu fiquei. Muitos apartaram porque passaram a brincar ganhando dinheiro. E eu apartei deles, separei, comecei a trabalhar para mim. E aquilo eu fazia com o maior prazer. Fazia de gosto. Aquilo, não tinha mulher, não tinha bebida, não tinha nada que Eu fiz muita matança! Depois que comecei a trabalhar me impedisse na hora do meu trabalho! Sempre organizei pela minha conta, sempre organizei a minha equipe. Sem- porque sempre gostei. pre orientava para fazer um papel perfeito porque tem 138 Palhaços do boi pessoas que vão para escutar e têm conhecimento. Para a de família, então, a gente tem que trabalhar com consciên- gente não despedir um palavrão, naquela ansiedade, com cia para a gente não estar fazendo papel errado!” E aquilo aquela doidice. Porque eu sempre pedia para eles: “Olha, eu fazia com gosto, com maior prazer. isso aqui é mesmo que ser uma novela que nós estamos apresentando para o público. Aqui tem pai de família, mãe Hoje, querem colocar o bumba-boi em uma festa. Se tiver cem pessoas para espiar, eu lhe pago! São os mesmos brincantes, sem assistência. Bumba-boi no interior acabou, porque não tem mais quem chame, não tem mais brincante. Os cabeceiras morreram todos, não renovaram os brincantes. Tem só aqueles velhões. No ano retrasado, o Emídio fez um boi ali no Cururupu, desses “velhões”. Nesse ano eu me assanhei para ir. Até sonhei brincando boi! Aí eu disse para o Valter: “Olha, compadre, nós vamos para Cururupu. Nós vamos para lá!” Ele se empolgou, atentou, atentou e nós fomos. Meu Deus do céu! Quando chegou lá, só tinha os velhões. Todos cansados. Coitados, sem força! Eles fizeram a primeira apresentação e eu pedi que eu queria fazer, aí eu fiz! Depois fizemos uma parada, a galera foi meter grode. Que luta para voltar de novo! Aí acabou tudo, acabou! A brincadeira ficou deste “tamanhozinho”! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 139 140 Palhaços do boi Clemente Felício Martins (Quelé) Hoje está só os cacos velhos. Não tive uma saída com aqui- Nasceu em 1933, no povoado São Sebastião, em Central do Eu não pegava em dinheiro nenhum! Ficou uma brinca- Maranhão, onde vive até hoje como aposentado. deira presa, brinca pouquinho, só uma hora ou duas. A lo, só gastando e sem colher nada, sem ajuda de ninguém. gente quase nem faz as matanças, não dá tempo. Eu aprendi a brincar boi ainda garoto, quando a gente fazia brincadeira aqui no Caçanga, Uruguaiana, Cocó, Eu resolvi parar tudo! Não guardei nada. Eu não queria Santa Rosa. Era sempre a mesma turma, tinha o Dedê, o mais fazer boi, não dou mais conta. Mas eu sinto falta, sau- João Cocó. Depois eu fiz a brincadeira por conta de uma dades daquilo. Até hoje ainda tenho ciúmes dos compa- promessa para São João. Eu comecei, mais ou menos, em nheiros que saem para outras brincadeiras, dá vontade de 1992. Eu paguei a promessa e fiz o boi por mais uns anos. ir, mas não posso mais. Estou velho. Tem um ano e pouco que eu parei. Eu brincava de fita, tocando maracá. Era um boi de zabumba bonito! A gente percorria Central, Mirinzal, Santa Helena, Pinheiro. Até São Luís! Tudo pela época de São João! Tinha aquelas matanças. A gente também chamava de comédias. Tem matança que leva uma hora. Tem matança que leva mais um pouco, outra que é mais ligeira. Tinha as horas certas de matança. Elas eram para fazer o povo rir e roubar o boi! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 141 Diomedes Rodrigues dos Santos (Xeleléu) que eu já vi mais gente no mundo. O dono era o seu Gregó- Nasceu em 1936, em Guimarães. Mudou-se em 1997 para São se apegou com São João. Se o filho dele vencesse tudo lá rio Mota, moreno rico, que tinha muito gado. Foi na época que o filho dele veio para São Luís servir o Exército e ele Luís, onde está aposentado. fora, ele pagava uma promessa para São João: fazer o maior A festa que eu mais gostava era o bumba-boi, desde novinho. com muitos foguetes, com muita festa. Juntou muita gente, Eu estava com treze anos quando comecei a brincar de za- muita gente. Não tenho mais lembrança de quando foi isso. bumbeiro. Depois, brinquei dois anos de vaqueiro. Depois Eu estava na faixa de doze a treze anos. boi de Guimarães. Quando o rapaz chegou, foi uma alegria, me botaram para ser chefe da palhaçada. Meu pai que me botou para brincar. Ele brincou de vaqueiro e brincou de O primeiro ano que eu brinquei como palhaço foi com chapéu de fita até quando morreu. Nesse tempo, eles porfia- Noratinho. Ele era o palhaço chefe da turma. Eu ainda me vam quem tinha o maior chapéu de fita, pela quantidade de lembro de uma matança que eu fiz mais Pedro Mendes, pontas. Meu pai, quando morreu, deixou o chapéu dele, deu da Boa Esperança, ele era um cantor bom. Um senhor por para arrumar três brincantes. nome Malaquias era o único que fazia os bichos do jeito que a gente queria. O primeiro boi que eu comecei brincar foi o Boi de Santo Antônio, na Vila Nova. A minha mulher, dona Rosa Aguiar, Depois eu vim brincar boi em São Luís. No primeiro boi se apegou com Santo Antônio e fez um boi de promessa. que eu entrei aqui em São Luís, Antônio Fausto era o can- Depois, fui brincar um boi por nome Pobre não Chama. tor e eles me botaram o apelido de Xeleléu, e assim está Botaram esse nome no boi porque era muita gente, o boi até hoje. 142 Palhaços do boi Os bois que eu brinquei aqui foram em Bairro de Fátima, Fé em Deus, Liberdade, Alto da Esperança, Areinha e Vila Passos. Há dois anos eu estou brincando com uma moça de São José de Ribamar. Sempre sotaque de zabumba. Para o personagem, eu ultimamente uso terno, paletó, gravata e a careta bem feia. Hoje eu compro pronta, mas antigamente se fazia no interior com buriti. Era muita gente assistindo às histórias bonitas que a gente fazia. Logo no começo, todos os bois tinham as comédias. Agora deu uma caída. Porque hoje não se faz, é apenas para mostrar que ainda existe alguma coisa. Hoje eu faço mais para mostrar como era o enredo antigo. Tenho muitas saudades mesmo desse tempo. A gente tem sempre que fazer aquilo que a gente gosta. Acho que se a gente está numa idade como essa que eu estou, quando brinca um bumba-boi parece que eu peguei outra aparência, parece que eu nasci de novo. Eu dou sapateado como um menino novo. Não é todo menino novo que me segura, porque eu não durmo, eu não largo a brincadeira. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 143 Eleutério Silva (Loló) Nasceu em 1937, em Marudá, Alcântara. Mudou-se em meados dos anos 1980 para São Luís, onde vive como aposentado. Nasci e fui criado na comunidade de Marudá, onde é hoje a Base de Lançamento de Alcântara. Lá chegaram e enxotaram a gente. E o povo se espalhou e foi para agrovila. Nunca pensei em morar em São Luís, mas está com trinta anos que estou em São Luís. A boiada era perto de Marudá, na comunidade Bom Viver. Lá nós cultivamos essas brincadeiras desde criança. Eu brincava de tapuio, com um chapéu feito de talo de buriti, e começava a pular. Até hoje ainda o tenho. Só que a gente foi crescendo e foi mudando. Foi ficando rapaz e já não era mais tapuio, era chapéu de fita. Quando eu brincava no boi com chapéu de fita, tinha um rapaz, Raimundinho, que fazia o papel na palhaçada e todo mundo achava graça. Eu não entendia nada, não tinha ambição naquilo, não sabia nem o que significava 144 Palhaços do boi aquilo. Quando ele saía no cordão, fazendo palhaçada, que eu que era o cara que tinha que fazer o papel doravante. todo mundo ria. Esse cara era bom. Foi o meu primeiro papel. E até hoje a gente cultiva esse trabalho de Pai Francisco, Cazumbá, Nego Chico. Mas nós fomos fazer uma representação e ele não foi. Quando chegou na hora da representação – é matança que chamamos, comédia –, o povo procurando por Raimundinho. Ele não veio porque estava ardendo em febre. E todo mundo: “Ô, rapaz, o boi não presta! Não tem comédia!” E eu não estava nem aí, estava sacudindo meu maracá, nem ligando para nada. O dono da brincadeira, Zé Lima, ficou preocupado e saiu procurando no cordão. Eu estava lá. Nem sonhava em fazer representação, nem nada. Aí, ele lembrou: “Rapaz, é Loló. Eleutério é danado. Loló, eu vou precisar de ti agora Agora, nós estamos nessa brincadeira da Vila Palmeira e eu faço a comédia. Eu pego dois ou três para me ajudar. Eu passo para eles, mas o trabalho é meu. Eu tenho que fazer o meu e cobrir o deles, tenho que me virar e fazer o papel completo. Tem vários temas de comédia. A cada ano, a gente faz um tipo diferente. Na verdade, a comédia tem a ver com as toadas. Eles cantam e dá tudo certo. A gente vai trabalhando de acordo com o papel que a gente vai fazendo e vai concluindo as comédias. para quebrar meu galho! Raimundinho não pôde vir para Temos os brinquedos para formar os personagens. Eu fazer a comédia e o povo está esperando e és tu que vais mesmo faço espingarda, facão. Uso bomba para fazer o fazer essa comédia agora.” “Eu? Eu é que vou fazer? En- estouro. Eu sempre preparo bichos também. É onça, é ja- tão, vamos lá!” Eu tive cinco minutos para me concentrar e buti, urubu, macaco, tudo. Isso tudo é para servir de graça com cinco minutos eu entrei no cordão. Quando entrei no para o pessoal. Às vezes a gente compra prontas as másca- cordão, o povo já foi rindo. Ave Maria! Quando eu acabei ras. Às vezes mandamos fazer vestimentas. Antigamente, de fazer meu papel, não quiseram mais esse Raimundinho. no interior, a gente fazia tudo de buriti. Mas aqui em São Largaram ele de mão e nem pensaram mais nele. Acharam Luís não dá para fazer assim. É difícil de achar buriti e Comédias do bumba meu boi do Maranhão 145 tem o pessoal que proíbe e diz que prende. Já imaginou, mento que tem hoje. Lá, nós não ganhávamos dinheiro. O ser preso por pegar buriti? Credo! que se fazia? Todo o esforço era do nosso suor para fazer Às vezes a gente não tem ideia nenhuma, mas quando chega a época da brincadeira, do movimento, de repente, com o movimento perto do São João, em um segundo entra uma história na cabeça. Quando está longe, a gente mata a cabeça e não sai nada. Mas, quando chega perto dos ensaios, perto da representação, aquilo vem rapidinho. Todo papel que a gente faz só tem graça com o conjunto. Eu contando não tem graça, mas, com a melodia e na hora do papel, com o grupo armado para a gente sentir o prazer de rir, acha graça com o papel. Mas aqui em São Luís, nós não representamos a comédia, eu faço só o papel de Pai Francisco e Catirina. Os palhaços antigos já morreram quase todos, era o João Cabeça, o Maçã, velhinho. Eu tinha 30 anos quando comecei. Já estou com 77. Trabalhei um bocado no assunto! a brincadeira. Se alguém quisesse levar o boi para brincar em casa, a gente se preocupava com o quê? Comprar um litro de cachaça. Nós brincávamos a noite todinha e quando era de manhã, tomava um café, comia um assado. Mas nós crescemos, com o tempo, e foram aumentando as despesas. Hoje, não se pode fazer isso que a gente fazia. Agora não. Agora é diferente. Com o motivo financeiro, foi se acabando e hoje não existe. Nós fazíamos um esforço danado, mas não tínhamos retorno desse gasto que fazíamos. E nem se esperava! Fazia por amor! No tempo que eu era garoto, tinha duas ou três brincadeiras e se brincava o São João todinho! Ninguém ganhava um centavo, todo mundo se aprontava da maneira que quisesse e ia brincar. Também não era representado em São Luís, e sim dentro dos matos. Hoje, para você fazer uma brincadeira, tem que caprichar porque não estamos Lá em Marudá sempre teve bumba-boi. Toda a Baixada representando só para nossos parentes, estamos represen- tinha. Brincava-se à toa, porque não tinha o reconheci- tando para o público. Então nós temos que caprichar. 146 Palhaços do boi Herbert Mafra Reis (Betinho) ficava longe um do outro, quase um metro, para dançar. E Nasceu em 1936, no povoado de Graça de Deus, Mirinzal. Em te, aqueles besouros, busca-pés. entre um e outro ficavam as pessoas botando bomba, fogue- 1972, transferiu-se para São Luís, onde hoje está aposentado. O meu avô e a minha família era que faziam os besouros, O meu avô roubou a minha avó na senzala e o meu tio tudo isso. E o meu tio Davi, a profissão dele dentro da brin- se criou quase sempre com ele. Ele era como um profes- cadeira, era brincar de Pai Francisco e preparar o boi. Ele sor; o meu avô sabia tudo dessa história do bumba meu preparava o boi, bordava tudo. Só que o boi não era bordado boi. Então, o meu tio se criou com ele e brincava de Pai como hoje, simplesmente pegava um pano preto e botava, Francisco. E eu não ia nem na brincadeira porque eu me desenhava uns corações, umas estrelas. O desenho era feito sentia mal de ver as pessoas lá rindo dele. Na época, eu com o papel brilhoso de antigamente. Não tinha canutilho, tinha quinze anos. não tinha enfeite. Bordava e botava. Fazia simples também, liso, só preto ou só branco. E ele fazia o Pai Francisco e a Então, nessa família existia esse Pai Francisco e o que eles Mãe Catirina. Os dois, porque quando a gente é completo, a faziam para o São João era o fogo. A família preparava o gente não tem posição. Hoje eu saio de Mãe Catirina, ama- foguete, o busca-pé. Reunia o boi lá e a gente vinha brin- nhã eu saio de Pai Francisco. Agora, só é que as histórias cando e eles atacavam com fogo. Acendia aquele besouro, eram tiradas por ele. daquele que sacode, que sai aquelas chamas bonitas, aquelas lágrimas, e botava foguete. E jogava lá; a gente vinha Porque lá em Guimarães a pessoa tem que ter tudo isso e dançando e eles jogavam no chão. Assim, o boi ficava mais não sair da origem porque, se sair, eles corrigem, qualquer bonito. Quando chegava na porta, a gente fazia o círculo e daquelas pessoas, principalmente os brancos. Até os brinComédias do bumba meu boi do Maranhão 147 cantes, tem muitos que não sabem, mas os brancos de lá, Eu não ia na brincadeira porque eu me sentia mal de ver eles te contam a história todinha e corrigem. Porque lá, se o as pessoas rindo dele. Aquilo era uma crítica que faziam boi vai brincar, pode ter um público enorme. Tem pessoas dele. Ele se pintava como mulher. Ele mesmo preparava, para assistir. Lá, você se interessa, mas todo mundo fica assim, uma touca com uma trança muito linda e se vestia caladinho para assistir, para poder julgar. de mulher, era uma mulher. E aquilo, eu me sentia mal 148 Palhaços do boi de ver meu tio fazendo aquelas coisas. E todo mundo disse: “Vocês são os escolhidos, porque estes, as pessoas perguntava: “O Boi de Tatu vai brincar em tal lugar? Eu que são escolhidas para cumprir aquela missão, assumir vou ver.” Então, eu deixava a matança de Guimarães. aquele trabalho, elas não podem se negar.” Quando eu tinha dezessete anos, eu comecei a sonhar com Foi o tempo que eu comecei a procurar saber mais. Um uma pessoa que me convidava para brincar e me mostrava dia eu fui no boi, o meu primo Manoel estava brincando. como era para fazer a história, até as músicas. Eu só olhava Quem estava fazendo a matança dele eram Quintino e An- ele da cintura para baixo. Para cima não. Depois que ele se tônio Augusto. E Antônio Augusto não foi. Ele, com aque- despedia, eu ficava olhando, assim, ele aparecia de costas, la luta, insistindo, eu terminei indo substituir o Antônio todo, num campo grande. Augusto. Daí para frente, já comecei a acompanhar o boi. E, depois, eu comecei a brincar. Sempre sem querer... De Eu fui ficando aperreado com aquilo, chamei o meu avô e lá para cá, eu nunca mais deixei. Então, eu quero dizer que procurei para ele: “Eu quero saber a origem.” “Por quê? assumi um compromisso da família, porque eu desenvolvo Agora?” Eu disse: “Eu preciso, eu quero saber.” Ele foi me o papel que a família sempre desenvolveu. contar. Disse: “Olha, meu filho, o bumba meu boi, para mim é incumbência da fé. Muita gente diz que é folclore, É por isso que eu digo que eu tenho um compromisso está errado. Só para ti ter uma ideia, bumba meu boi per- com São João. Porque na brincadeira, lá no interior, se tence a São João Batista. É feito em agradecimento a São faz uma promessa para São João. Na época que você vai João Batista, porque você está agradecendo uma graça que pagar essa promessa, você vai contar para o cabeceira, você conseguiu através dele. Então o bumba meu boi nas- que é o cantador, e para o Pai Francisco, como foi feita a ceu da fé.” Depois que eu contei para ele dos sonhos, ele sua promessa, para eles fazerem a matança para mostrar, Comédias do bumba meu boi do Maranhão 149 para dar o seu testemunho. São João precisa de testemu- Deus escreve certo por linhas tortas. Ele determinou nho. Então, você vai contar o porquê daquela promessa. aquele encontro para ver o que eu ia decidir da vida, porque eu não ia brincar boi naquele ano. Então, Ele deter- Lá, nós trabalhamos em equipe de Pai Francisco. Tem vez minou o encontro com Manoel para ver a decisão. Eu que tem até dez pessoas para ocupar a posição, o persona- vim para cá; seu Lauro mandou me buscar para brincar gem. Porque são três matanças que a gente faz em cada o boi dele de Pai Francisco. Ele alugou uma casa, pagou noite. Em cada ensaio também. São dois cantores para aluguel da casa três meses para mim. Eu vendi tudo que cada matança; às vezes são três cantores... A gente chega, eu tinha lá; só não vendi a farinha e o arroz, que eu trou- janta e vamos discutir o que é que nós vamos fazer. O Pai xe para cá. Trouxe quatro paneiros de arroz, cinco pa- Francisco, quem vai de Mãe Catirina, quem vai servir de neiros de farinha, um paneiro de açúcar. Eu trouxe para cachorro, quem vai ser o chefe daquela matança e o cabe- cá pra ir me alimentando, com nove filhos e a mulher. A ceira. Todo mundo que vai participar daquela matança fica mulher não acreditava que ia dar certo. Nós, com nove ali discutindo a matança que nós vamos fazer. filhos, e eu não tenho um estudo, só tenho o ofício que meu pai me deu. Terminaram os três meses de seu Lauro. Mas, um dia, Manoel veio brincar o boi de Canuto em São Luís. E nós, por acaso, nos encontramos no Brejo, em Guimarães, quando ele foi pegar o barco para viajar. E eu tinha ido lá comprar umas coisas para casa. Nós nos encontramos, eu vi que tinha um portador, mandei as coisas que comprei para casa e viajei com a roupa do corpo e uma japonesinha. 150 Palhaços do boi Mas, o que eu mais temia, eu encontrei facilidade. João Vieira (Zió) Nasceu em 1936, em Santa Maria dos Vieiras, Guimarães. Mudou-se quando criança para São Luís, onde trabalha como vigia. Sobre o meu apelido? Mamãe ia assim: estava grávida e a cada ano ela tinha um feminino, o próximo era masculino. Ia só trocando, cada ano que ela tinha era feminino, masculino, feminino, masculino. Mas nuns anos vieram duas meninas. Quando ela embuchou de novo, procuraram meu pai, João Branco: “E aí, João Branco? E agora, rapaz? Era um sim, outro não, e agora nasceram duas?! Vem mulher de novo?” Ele disse: “Não. Vai ser um Ziózinho.” E esse Zió ficou até hoje, muita gente não me conhece pelo meu nome não, só por Zió mesmo. Vim embora para São Luís desde criança. Minha mãe vivia mais aqui do que lá em Santa Maria, vinha com criança e tudo. Ela trabalhava de doméstica. A gente morava onde é a feira da Liberdade. Em 1977, mais ou menos, eu já fazia bobagem, essas coisas de palhaçada, como se diz. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 151 A palhaçada a gente fazia assim. Por exemplo, aconteceu de quase tudo. Até que de mulher não, porque o Magno já isso com Betinho. A gente ia fazer a comédia em cima do estava adaptado naquilo ali. que acontecia com ele. Todo o tempo sempre tinha alguma coisa para fazer. Fulano correu de um cachorro. Fazia Antigamente tinha muita matança. Eu sempre falo que a em cima daquilo ali. De pescaria, de roça, de traficante e gente tem matança porque é a tradição do boi. A comédia não sei o quê. Sobre tudo a gente ia fazendo. é a tradição do boi. Só que, aqui, não tem tempo de apresentar. Mas temos que estar preparados. Eu brincava na turma do Benedito Gomes, depois passou para o Emídio. Conheço esse pessoal todo do bumba-boi. Eu mudei de função porque os mais velhos foram. Fiquei Tem mais é novato agora, no nosso tempo era tudo conhe- de cantador. Já está quase com uns quinze anos que estou cido. Num tempo desse, ninguém está olhando o outro. só cantando mesmo. Eu sinto falta de brincar de palhaço. Mas quando chega no final do mês de maio ou um pouco Por exemplo, às vezes eles estão fazendo e eu me lembro mais para frente, vai acumulando, vai se encontrando. E de como era. Talvez, se eu estivesse com a minha turma, um conta uma coisa, outro conta outra, e fica aquela pales- nós faríamos melhor, mas a gente fica sempre naquilo ali, tra. Passou o São João, para olhar os camaradas é uma luta. quer fazer melhor, quer ser melhor que os outros, mas não pode fazer. E para fazer as duas funções, trocar de roupa, Meus companheiros de palhaçadas eram Josuel, Bigoro, fazer palhaçada, mudar de roupa e cantar, não dá. Mas eu Antônio Augusto, Magno, Nivaldo, Pilola e Bezerra. A invento histórias. gente fazia uma comédia hoje, amanhã já era outra matança. Muitas vezes não era nem combinado com o cabeceira, mas dava certo porque a gente ia inventando. Eu saía 152 Palhaços do boi José Augusto Araújo zerem a representação. Os vaqueiros iam se queixar para o Nasceu no povoado São Sebastião, em Central do Maranhão, cima disso tinha a palhaçada. Tinha umas matanças me- onde vive até hoje como aposentado. lhores que outras, por causa do capricho do chefe daquela dono da fazenda que tinham roubado o boi da fazenda. Em palhaçada. Quer dizer, se ele caprichasse na dele, saía boa. Estou confuso da data em que eu nasci, estou com 68 para Se eu caprichasse na minha, saía boa. Mas tudinho junto, 69 anos. Mas eu estava com uns sessenta quando comecei não tinha separação não, cada qual se juntava com os ou- a brincar de palhaçada. Eu fui discípulo de Malaquias, o tros. Era tudo decorado. Quando tinha gravador, gravava a pai de Severino. Eu fui brincando com ele, e ele, velho, matança e pronto. Mas a gente não esquecia aquele papel. foi dizendo que eu era a continuação, porque ele estava Para ser um bom palhaço, a memória tem que ser boa para cansado. Estava se preparando para viajar e morrer. E ele gravar. Tem que ensaiar primeiro, a matança e as toadas, morreu mesmo, mas já estava na faixa dos oitenta anos. Eu para fazer todo mundo certo. continuei e só paramos porque o boi mesmo parou. Se nós éramos, por exemplo, cinco, seis ou dez pessoas Quem inventava as comédias era o chefe da palhaçada. Os que participavam na matança, cada qual tinha uma função meus companheiros eram Guiné, Lourival, Fernando, nós para fazer dar certo, como uma novela. Então, cada hora éramos diversos. Aladim era o cabeceira. Morreu, coita- vinha uma pessoa participar e fazer tudo para a história se do. Mas Deus sabe o que faz. Se estivesse vivo, ia cantar encaixar certinho. A gente tinha três ou quatro matanças desentoado. Tinha que ter contato com o cabeceira para numa noitada. A cada matança a gente vinha vestido de combinar tudo. De acordo com as toadas que ele cantava, um jeito, tinha que mudar desde a máscara. As máscaras avisava que tinha início da matança para os palhaços fa- eram feitas de buriti ou em forma de barro. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 153 Tinha bode, porco, elefante, tigre, onça e boi-cavalo de Muita gente assistia! A festa era a noite toda. Tradição muito duas cabeças: fazia a figura de boi e nascia do mesmo cor- boa! Isso não é do tempo nosso. Já existia desde os mais ve- po uma cabeça de cavalo. Era corpo de boi e cabeça de lhos. Mas eu já esqueci as histórias. Para falar a verdade, tem cavalo. Os bichos eram feitos de buriti e vara. horas que eu lembro, mas já esqueci. A gente esquece com facilidade porque não ligou mais para aquilo e vai embora. Nunca mais brinquei. Eu adoeci, mas nem era muito por isso, porque a vontade que a gente traz é uma saudade, é uma lembrança, que quando chega a época a gente se lembra daquilo e às vezes faz a gente querer brincar. Todo ano brincando, é uma tradição muito boa para a gente. Ainda mais para os idosos. São João é uma festa dos idosos. Você dificilmente vê jovens. São todos regueiros. É difícil gostar da tradição. Embora que eu morra, porque esse é um caminho que a gente tem que seguir, mais tarde a juventude vai dizer assim: “Olha, fulano de tal está passando essa divulgação. Até morreu, mas está divulgando.” Isso para mim é um prazer! Mesmo que eu morra, eu deixo essa divulgação para minha esposa, meus filhos, qualquer amigo que olhe. 154 Palhaços do boi Lourenço Soares (Lourenço Pinto) velho, eu não participei mais porque não tem mais graça. Nasceu em 1937, em São Raimundo, Santa Helena, onde mo velho, quem ainda inventa as histórias sou eu, porque vive até hoje. Aposentado, é dono dos bois Capricho de União e Quando bota um mais novo, tudo que ele diz é uma risada. Quando bota um velho, ah, isso já está manjado. Mas, meseu já fui completo, eu já fui bom! Dos meus quinze aos trin- Mimo de São João. ta anos, aqui nessa Baixada o palhaço de bumba-boi era eu. Pinto é assinatura de meu pai, lá de Cururupu. Como ele inventava, fazia e apresentava. Eu era dono da cultura toda. Eu era contratado em bumba-boi de um ano para outro. Eu não era casado com mamãe, eu não me assinava de Pinto. Mas o pessoal encasquetou com Pinto. Aqui, se chamarem Eu brincava no Boi de Lázaro Campos, no São Francis- onde é a casa de Lourenço Soares, ninguém sabe. Eu sou o co. Brinquei no Boi de Benedito Soares, em Chapadinha. dono do boi, não sou amo porque não canto. Sou eu que in- Brinquei no São Raimundo, com José Ramos, por oito vento as comédias e armo os esqueletos do bichos, inclusive anos. Brinquei com Ciano Ferreira também no São Rai- do boi. Só o bordamento, são outras pessoas que bordam. mundo outra quantidade de tempo. De lá, eu fui para o Apaga Fogo, no município de Pinheiro, e brinquei três Dos palhaceiros, vivo não tem mais nenhum dos meus anos com Raimundo Caçamba. Brinquei três anos com companheiros de palhaçada. Aliás, ainda tem um, por nome Abelardo Ribeiro e brinquei três anos com Chico do Mato, Cesário da Silva, no município de Turilândia. Tinha o Rai- em Pinheiro. Depois eu brinquei no Juca, município de mundo Pimenta, tinha Albertino, tinha José Cativeiro. Esse Turilândia, por três anos com um rapaz por nome Jorge, camarada está para São Paulo, já está velhão, ficou com esse de Perimirim. E assim sucessivamente. Eu era convidado apelido por causa da comédia. Agora, depois que eu fiquei sempre para comandar as brincadeiras, porque eu tirava a Comédias do bumba meu boi do Maranhão 155 comédia, fazia os bichos, ensinava os outros e apresentava. apareciam os olhos, nem nariz, nem nada. Quando viu que Eu brinquei cinquenta e cinco anos de bumba-boi. estava todinha coberta, ele passou uma camada do papel, desse de jornal fininho, mas nesse tempo não tinha jornal, Eu aprendi esses negócios com José Ramos, que morreu era de caderno. Ele cortou tudinho, cobriu, pegou a goma, há pouco tempo, com oitenta e sete anos. Ele era de Mirin- desmanchou num pouquinho d’água, foi molhando, o pa- zal e o pai dele se mudou lá para o São Raimundo. Ele veio pel foi descendo, amoleceu e foi descendo. Onde era os moço. Chegou lá, ele casou, formou família. O pai dele era olhos ele ia só carcando, e foi descendo tudinho. Então, acostumado a brincar boi no Mirinzal, em Guimarães, e me mandou botar no sol, eu botei. No outro dia de manhã fazia as comédias e tal. José Ramos foi armar uns esque- ele já tornou a passar grude, mas já estava tudo coladinho! letos para uma comédia e me convidou para eu tirar um Onde eram os olhos, onde era a venta, onde era a boca, barro de fazer forma. Eu fui, tirei o barro, ele estava fazen- queixo, tudo feito. Eu ficava só prestando atenção, aí eu do a forma, eu estava olhando. Quando vinha uma chuva, entendi. Quando ele ia fazer esqueleto, ele só vinha tirar ele me mandava tirar a forma do sol. Na hora que o sol medida era em mim. Mas eu, calado, ele não sabia se eu esquentava, ele me mandava botar de volta. E eu, olhando estava aprendendo, porque se percebesse que eu estivesse tudo. Quando fomos à casa dele cobrir a forma, eu prestei aprendendo, ele me recusava. Nesse tempo, quem sabia fa- atenção. Nesse tempo, era aquele papel grosso de embru- zer uma arte dessas não ensinava a ninguém, senão ficava lho. Eu vi, ele cortou tudinho na tesoura, juntou as tiras sem ter saída ele só. E ele queria ser melhor, o boi dele era e botou lá. Depois, pegou uma tapioca de goma, fez um o boi melhor! O boi que tinha comédia, tinha onça, tinha papeiro de grude e banhou a forma todinha, passou só o cobra, tinha raposa e os outros bichos lá que ninguém sa- papel por cima encontrando as pontas umas nas outras. O bia fazer. Mas quando ele estava fazendo essas coisas, para papel ficou solto, ele foi cobrindo, cobrindo todinha, não ele, eu estava servindo assim como um escravo, um filho 156 Palhaços do boi de preto. Ele era branco, bem louro. E a família de negro que tinha lá no São Raimundo era só a do meu pai mesmo. Decerto que quando fez uns oito anos que o Germano já vinha fazendo esse boi, seu José adoeceu. Ele foi disparar uma espingarda, quando ela estava encravada, a espingarda arrebentou e o cano deu no rosto dele. Ele ficou defeituoso do rosto, sentindo dores de cabeça. Largou de fazer o boi e veio embora para Santa Helena. Tinha uma dona que estava com uma promessa para pagar para São João, ele adoeceu, despachou. Dona França ficou preocupada. Então, os que batiam as caixas, os batuqueiros, ficaram; dos cantadores de bumba-boi ficou João Pinto, ficou Júnior Pavão, ficou o Regino e o Antônio Cururu. Então, eu disse para a dona do boi: “Olha, se a senhora arranjar com Edith Lima e Zé Maria, para bordar o couro do boi, o esqueleto eu faço.” “Tu fazes?” “Faço.” Então, eu fui tirar as varinhas, o arame, tirar cera, encerar fio, assim como eu fazia junto com ele. Armei o esqueleto do boi direitinho e já fui fazer o que ele nunca tinha feito junto comigo, fui fazer onça, fui fazer uma cobra para engolir um cidadão até na cintura. Passei a fazer qualquer bicho! Comédias do bumba meu boi do Maranhão 157 Raimundo Leal (Baguinho) de ladinho; aqui estava outro primo que eu tinha. Se eles Nasceu em 1935, no Puca, Guimarães, onde vive até hoje. de botar o peixe, a gente tinha que comer tudinho, sem Aposentado, ainda trabalha em roça e pescaria. dizer nadinha. Eu vou contar a história do meu apelido. Quando eu caí Minha família toda brincava boi, meu pai, meus irmãos, em cima desta terra eu não conheci a minha mãe, o nome eu. Estou casado há um tempão, e minha esposa Maria é dela era Tilú. Ela teve eclampse e morreu, mas eu fiquei moda de zabumba. O pai dela, o seu Elias, é o rei daqui. vivo. Ficou só meu pai. A minha avó materna, Cristina, Ele ainda é vivo, já está velho e anda com duas muletas, tomou conta de mim, mas nesse tempo nós aqui vivíamos mas é invocado com bumba-boi. Para bater zabumba, era de pescaria, mas só os que já estavam adultos. O meu pandeiro ou bumbo, isso é a maior influência dele. Esse pai era homem e quando ele vinha da pescaria, às vezes homem era o melhor zabumbeiro que tinha aqui. Nesse ele me dava um peixe, às vezes não dava pra deixar. A mi- tempo, Maria e eu estávamos criando o nosso segundo nha avó mexia farinha. Nós levantávamos, uma hora, duas filho. Por onde eu ia, Maria ia também. Por onde ela horas, meia-noite, onze horas da noite, conforme o lugar, ia, botava o pequeno no ombro, chegava lá onde o boi para mexer farinha. Sabe o que é uma pobreza? E eu fui brincava, armava a rede de banda e botava o pequeno me criando numa pobreza grande e eu era muito magri- para dormir. Os filhos todos cresceram vendo boi. Mas nho, por isso esse apelido. nenhum chegou a brincar boi. Tem um, o Nivaldo, que entendessem de fazer o pirão no açúcar e se esquecessem é professor, esse era beleza pra brincar boi. Outro, que Eu fui criado numa pobreza, mas a gente nesse tempo sa- quebrou a perna, é um palhaço purinho. Ele mete um bia respeitar. Almoçava em cima de uma mesa, sentadinho cabelo grande e faz estripulia que só. Eu queria deixar 158 Palhaços do boi essa herança para eles. Mas, também, eu nunca fiz esfor- aprendi a fazer palhaçada da minha cabeça mesmo. Eu ço para eles aprenderem o que eu sei fazer. não tenho o tempo marcado, mas há muito tempo, desde novinho, eu brinquei de palhaço e a maior parte do Eu brincava todo tempo de boi. Aqui neste lugar não fal- tempo que eu brinquei boi foi como palhaceiro. Eu tinha tava boi. Todo ano era uma disputa de bumba-boi. Eu uma palhaçada que eu cantava assim: “Eu vou chegando Comédias do bumba meu boi do Maranhão 159 com a minha bicharada, eu vou chegando com a minha Eu tirava as matanças facilzinho. Pensava: “Rapaz, nós va- bicharada/dança, zebra, dança/dança, zebra, dança/dan- mos fazer assim, fazer assim.” E dava tudo certinho. Às ve- ça, girafa, dança/dança toda a bicharada.” zes, quando a gente começava a fazer o boi, fazia já o ensaio da matança e já via na hora se daquele jeito ia dar certo. Todos Os donos de boi me convidavam para ser palhaço na tur- nós nos metíamos a fazer graça e era facilzinho. ma deles: “Rapaz, eu quero pra tu ser o Pai Francisco da nossa brincadeira”. Tinha o finado Vico, do Jenipaúba, esse As roupas dos palhaceiros eram de tudo quanto era jei- já morreu há muito tempo. Brinquei no Boi de Valdemiro. to. Eram aquelas roupas mais velhas que não se queriam Brinquei no Boi de João Anastácio, no Boi de Silvestre Ra- mais. A gente guardava e eles vinham buscar. Já sabia que belo, daqui do Puca, várias vezes. Também brinquei no Boi era palhaceiro. Nós fazíamos aqueles fofões tudo rama- de Ricardo, daqui do Puca. Eu ia fazer minhas brincadeiras lhudo. Ramalhudo é aquela roupa estampada, que a gente como eu queria, a palhaçada mesmo era dominada por mim. compra para fazer cortina. Cada qual tinha a sua careta, era cada uma de um jeito. Às vezes fazia, ou se compravam Meus companheiros de palhaçada variavam. Tem um feitas, de pano. Quando eles faziam, faziam com aquelas vivo, o nome dele é Francisco, mas por todo lado é conhe- cuias que a gente tem cuieira no quintal. Furava tudinho, cido como Periquito, do Puca. Ele mora hoje lá na cidade botava pano na parte de trás e amarrava. Eram aquelas de São Luís. Esse era bom de palhaçada. Tinha também cuias bonitas. Manoel do Carmo, meu primo, gostava de Benedito, que nós chamávamos de Chapo, lá do Oiteiro. fazer boi de carnaval. Ah! Isso era bom demais. Ave Ma- Hoje está doente de hérnia. Tinha um por nome João Pato. ria! Brincava homem, brincava mulher. Mas os da frente, Outro que chamavam de Curica, o nome dele era Antônio. os que faziam, Deus já levou. Deus foi precisando, foi le- Esses, Deus já levou. vando, as coisas foram se acabando, agora não tem mais. 160 Palhaços do boi Aqui já foi muito de festival de bumba-boi, bloco, brinca- que em vez de eu fazer de pé para baixo, era de cabeça para deira; agora está tudo se acabando. O pessoal só quer saber baixo. Então, eu ia botar o nome dele Vira-o-Mundo, pois de gaiatice e de molecagem. A derradeira vez que eu brin- o mundo parece que retorceu. Porque hoje é tanta coisa quei foi em uma brincadeira de preto em que o cara can- esquisita, é tanta coisa que dói o coração da gente, então, tava: “Ê congoruê de Coroatá/ê congoruê de Coroatá/é se eu entrasse de novo nesse movimento de bumba-boi, de truca-truca é de mirunguê/ô lelê-lelê, ô lelê.” Nós queria fazer um boneco de cabeça para baixo, pois parece dançando e batendo na mão uns dos outros. Era bonito que o mundo virou de cabeça para baixo. como o quê! Este ano eu vou fazer um boi. Deus não há de me matar Eu, quando olho uma brincadeira dessa, fico muito enquanto eu não fizer esse boi! O pessoal já me aporri- emocionado porque não estou participando! Quando os nhou tanto e eu vou fazer, mesmo que agora pareça que outros estão brincando bumba-boi e eu não estou, nem não é como era dantes. sabe como eu fico com o meu coração. É certeza que eu até choro porque o meu pai, meus irmãos, meus tios eram dessa festa e era uma coisa muito gostosa. Isso para mim é tudo. Isso era bonito como o quê! Mas foi-se acabando esse pessoal mais velho. Decerto que eu também já estou velho, mas ainda estou vivendo. Eu estava com uma ideia de fazer o Vira-o-Mundo. Sabe o que era o Vira-o-Mundo da minha ideia? Era um boneco, Comédias do bumba meu boi do Maranhão 161 162 Palhaços do boi Roberval Silva (Legário, Rubico) e saía dali agoniadinho. Para mim, o importante do boi é Nasceu em 1947, no Anajá, Cedral, onde vive até hoje. Apo- onde eu quisesse, não me embaraçava com nada. Quem sentado, ainda trabalha na lavoura. vai se preparar para brincar boi com chapéu de fita ou ser palhaço. Eu terminava a palhaçada, ia para festa, para de vaqueiro tem que estar ali de pé a noite todinha. Para Dizer quando eu comecei a brincar de bumba-boi, eu mim, não! não sei dizer, mas eu já brinco há diversos anos. Meu pai brincava muito de vaqueiro e ele que fez eu ser pa- Tem gente que gosta de ver os palhaços. Mirinzal é um dos lhaço. Nenhum dos meus irmãos nunca brincou bum- lugares onde o povo mais gosta de palhaçada. Eu brincava ba-boi e mamãe era contra, não queria que eu brincasse com Bezerra, Pilola, Caburé, finado Antônio Augusto, e o de palhaço. Mas ele dizia que era só besteira dela e que povo gostava muito de nossa palhaçada. Cururupu é outro os palhaços é que arrumavam mulher. Assim meu pai lugar que gosta de palhaçada. Lá eles tomam conta da roda dizia. Mas eu brinquei boi não sei quantos anos, nunca de boi, entram para olhar a palhaçada de boi. Preste ou não arrumei mulher nenhuma. Ou meu pai me enganou, ou preste, eles estão lá em cima assistindo. Mas tem lugar onde eu fui burro. as pessoas nem ligam para os palhaços. Para eles, ter e não ter palhaço é uma coisa só. Eu achei mais jeito em ser palhaço porque eu acho uma doidice gente comprar aquele bando de coisas. O meu so- Eu usava roupa, careta... As caretas eram daquelas compradas gro tinha um chapeuzão cheio de fita que está estragando prontas em São Luís. Às vezes faz a máscara de barro e senta na casa da sogra. Às vezes ele estava brincando no boi e o papelão por cima para sair o molde. Mas nunca usei dessas. me dava o chapéu. Eu passava meia hora debaixo daquilo Quando era carnaval, os pequenos vinham atrás das minhas Comédias do bumba meu boi do Maranhão 163 máscaras. Eles agarravam e iam dando fim. Eu estou com cin- sentação, onde se visse um erro, a gente: “Olha, tu pecou co anos que eu não pulo boi, nunca mais comprei máscara. bem assim, assim, assim.” Quer dizer, na próxima vez, o Mas eu tinha era muita roupa! cara já sabia como ele teria que fazer. Cada um fazia por si e os brincantes sabiam quem estava fazendo melhor de Eu deixei de ser palhaceiro, há uns cinco anos que eu não acordo com as respostas, de acordo com o cantador. Tinha brinco. Depois que terminou boi aqui, nunca mais eu um cara que tomava conta dessa brincadeira aqui do Anajá brinquei, porque eu sempre brincava, mas só aqui na tur- de nome Zequinha. Ele era bom cantador. Lá em Sumaú- ma do Anajá, nunca brinquei boi fora daqui. ma, tinha um de nome Periquito, que era bom ao ponto de eu dizer que ele não era nem cantador, ele era também pa- Sempre fui ruim para tirar matança. Tinha companheiro lhaço. Ele ajudava o palhaço, ele dizia a resposta certinha que era bom para tirar matança e, às vezes, eu rendia al- para o palhaço. guma coisa que eu achava que desse para melhorar. Agora, o sentido sempre eram os outros que davam. Não tem Eu fazia várias matanças... Quando eu era criança faziam disputa entre os palhaços porque a gente é companheiro. um boi aqui. O tio de Betinho era palhaceiro e era cheio Para ser palhaço o sujeito tem que ter um contato bom de invenção. A primeira vez que eu saí em uma matan- com os cantadores, ser uma pessoa esperta. ça foi como um urso. Meu pai já estava velho, mas ainda brincava de vaqueiro nesse boi. Nessa matança, tinha um Era difícil ensaiar matança. Às vezes ensaiava só em con- viageiro que saiu para uma caçada. Tinha diversos bichos. versa no dia que fosse brincar. Em véspera de São João, no Esse viageiro tomava o urso dos cachorros para não ser dia de São João, a gente se juntava, conversava e apresen- mordido. Depois, os cachorros se revoltavam para querer tava logo em seguida. Assim que tivesse a primeira apre- comer esse viageiro. 164 Palhaços do boi O tio de Betinho também inventou uma matança em que Tinha a matança da alma na fazenda, que era importantís- um boiadeiro estava levando uma boiada para o Pará e sima. Eu fiz essa duas vezes. Mas, na segunda vez, parece que o dinheiro não dava mais para comprar bois barri- que eu não tinha mais o jeito pra fazer, não foi mais boa. gudos. Nessa história eu era o boi-búfalo. Na época, vi- Eu faço a matança um ano. Se passam uns cinco anos, eu nham muitos paraenses por aqui comprar boi para levar vou repeti-la, eu não acho que eu estou fazendo ela direi- para o Pará e vender por lá, e tinha muita gente que ven- tinho como eu fiz no primeiro ano. Para mim tem isso, na dia seus bois capados. primeira vez sai boa, quando eu vou fazer na segunda não 1 está mais... Eu não acho, né? Só a matança de um tal feitiDe bicho saí só essas duas vezes. De mulher eu saí uma ceiro montador que eu já fiz umas três vezes e eu achava vez, num boi daqui mesmo, de Rosa. Ela não teve palha- que quanto mais eu fazia ela, me parecia que mais melodia ceiro nesse ano porque Delza, lá no Moreira, fez um boi ela tinha. onde Manoel tomava conta dessa turma. Então, os palhaços da Tapera brincavam nesse boi do Moreira e o boi de Rosa Nós fizemos essa matança do feiticeiro montador no boi ficou sem palhaço. Nesse boi de Rosa os palhaços eram eu de um senhor lá de Parati. A mulher desse homem era en- e compadre Antônio de Apolônio. Eu saí de mulher nesse joada com essa matança. Se vivesse fazendo essa matança ano, mas depois nunca mais saí de mulher. Eu não levava para ela todo dia, era um favor. Ela queria porque queria muito jeito para arremedar mulher. essa matança, ela era muito enjoada com essa matança. Mas, para mim, para se repetir, só essa que eu achei boa. As outras que eu faço, quando eu vou repetir, parece que não estão mais boas. 1 Boi gordo por castração. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 165 Rogério Fernandes Guilherme e o finado Moço.” Guilherme e o finado Moço Nasceu em 1944, no Mota, Mirinzal. Vive nessa cidade até cões. Podia estar a melhor música lá. A gente tomava aquela hoje, onde, apesar de aposentado, ainda trabalha na lavoura. assistência de lá e vinha para dentro do nosso cordão, da- já morreram, eles dois. Não ficava nenhum naqueles barra- quela brincadeira. O lazer do bumba-boi era uma das coisas de que mais eu gostava. A gente era de quatro a cinco companheiros, a O cordão era do tamanho desse terreno grande, lá para gente formava as comédias, aquele teatro, aquela brinca- acolá dos brincantes. Mas, nessa hora, fechava, porque deira. Era sempre o Betinho ou eu que criávamos as histó- era muito importante para o povo. Era mais quem queria rias. A gente botava leão, onça, bode, boi, cobra. A gente ver, se empurrando e vem chegando, se encolhendo... E botava qualquer coisa para fazer aquele enredo, essas eram a gente ficava! Muitas vezes, a gente só ficava só naquele as graças em que apareciam os bichos. Essa equipe nossa localzinho, porque o povo fechava mesmo. Então, era uma era uma piada! Cada um de nós tinha um horário daquelas coisa importante que a gente tinha! piadas nossas. E nenhum atrapalhava uns aos outros. Tinha muitas pessoas que gravavam e mostravam para Quando a gente saía para fazer essa representação em qual- gente depois. A gente ia rir depois. O que a gente inventa- quer lugar grande, como Guimarães, Cedral, Porto Rico, va no momento, aquilo não era decorado, aquilo tudo era ou mesmo em Cururupu, a gente chegava lá, tinha o barra- repente nosso. As piadas de Betinho, eu dizia uma palavra cão de festa e tinha o local onde a gente representava essa para ele, ele tinha aquela prosa, aquele arremate que ele brincadeira. Era muita gente lá dentro do barracão, mas na tinha! Tudo com graça e aquilo era um prazer. Na hora da hora que dissesse: “É a palhaça do Betinho mais Rogério, minha representação, eu tirava, cantava. Todo ano tinha 166 Palhaços do boi as brincadeiras aqui na região. Eles vinham aqui com o Antes, quando eu fazia a matança, tinha aquela graça, mas tempo me avisar, mas com a falta dos companheiros, eu através dos companheiros que me davam força. Hoje, se eu resolvi fazer como Pelé: eu vou pendurar minha chuteira for fazer uma matança, eu não tenho companheiro para antes que eu fique desmoralizado. Só que aquilo, hoje, eu me ajudar. Então, vai ficar em nada! Por quê? Porque eu tomei como puro esquecimento. Tudo! fiquei desaparelhado. Fiquei só, por isso eu não brinquei Comédias do bumba meu boi do Maranhão 167 mais. Betinho foi embora, outros já morreram. A última corrigiam aquele povo. Ninguém bebia fora do limite. Só vez que eu saí de palhaçada, eu brinquei em um boi de tinha aquela medida de todos nós brincantes e a gente to- caboclo, aqui, em Mirinzal. Isso, eu acredito que vai fazer mava para não ficar bêbado, para não fazer feio, trabalhar quase uns oito a dez anos. Ainda brinquei botando outros certo. Outra, eram cinco, seis, dez zabumbeiros naque- companheiros que eu fui buscar para ver se a graça dava les instrumentos de bater. Mas tinha o chefe de puxar na certo, mas eu achei que não deu mais para mim. frente. Ninguém puxava sem o chefe começar. Aqui tudo era certo! As cantigas, o cabeceira cantava a toada dele Hoje tem boi bem pertinho na minha casa, no Mirinzal. e a gente só respondia quando ele sacudisse os maracás. Todo ano tem São João, mas eu não tenho o prazer de Enquanto ele não avisasse, a gente ficava caladinho ali. Na ver. Por quê? Aquela representação que eles fazem não hora que fazia o sinal para a gente, era a hora de todos! Todo me agrada mais. Para mim, não tem o assunto que a mundo cantava em uma voz só. Então, era por isso que eu gente tinha. E assim eu fui deixando. Tenho uma za- tenho um grande respeito! bumba, que eu comprei para brincar, mas em outro posto, de zabumbeiro! Agora, de palhaceiro, não. Porque Hoje eu olho, agora, nessas brincadeiras aí, não tem. eu fiquei desapontado. Cada qual puxa logo de uma vez. Um canta para uma banda, o outro canta para outra, todo mundo fuma den- A gente tinha um regime. Na nossa brincadeira tinha um tro da brincadeira! Aí ficou uma misturada que não me grande respeito. Em quê? Lá em nossa brincadeira nin- agradou mais! guém fumava dentro do cordão, porque aquela fumaça do fumo provocava a nossa voz para cantar. A gente tinha uns dois ou três regentes dentro daquela brincadeira, que 168 Palhaços do boi Valdemar Piedade Pereira (Caçador) época só tinham as turmas de Mizico, na Vila Passos; o de Nasceu em 1949, em Guimarães. Mudou-se na década de 1960 do Bairro de Fátima. Eram só esses, depois vieram surgindo para São Luís, onde, apesar de estar aposentado, ainda trabalha como pedreiro. Laurentino, que se diz ser o boi mais antigo do Maranhão; o de Leonardo, na Liberdade; e tinha o de Nilton Correia, outros e outros. Aqui em São Luís, eu brinquei com Betinho no boi de A primeira vez que eu olhei uma palhaçada está muito Lauro Almeida, lá na antiga rodoviária, no bairro da Ale- longe! O primeiro boi em que vi a comédia foi o de Pe- manha, e depois no bairro Ivar Saldanha. Mas antes, eu dro Relógio, em 1958, em Guimarães. Eu era garotinho, cheguei a fazer matanças com o finado China, que era o pixixitinho. Quase todo mundo da minha família lá em cantor, com o finado Tá-Roubado, o finado Nilo Mota e Guimarães brincou boi. E a primeira vez que eu brinquei o finado Zé Burnett. Em uma dessas matanças eu fazia o como palhaço foi em 1961, no boi de Chico Costa, da Ter- papel de caçador e é por isso que eu tenho esse apelido. Em ra Nova, também em Guimarães. Nesse tempo, os palha- 1978, eu fui para o boi de dona Zeca. ços eram Lourival, de Central do Maranhão, e Cláudio. Os cantores eram Mundico Veado e outro. Tem que ter Eu continuo brincando com dona Zeca, na rua Dagmar muita mente! Desterro, no Bairro de Fátima. Ela antes fazia boi de orquestra, nesse mesmo endereço. Mas quando o marido Eu vim de Guimarães para São Luís por intermédio de dela morreu, ela não teve condições de continuar com folclore de bumba-boi, sotaque de boi de zabumba. Lem- o boi. Como, na época, boi se fazia para pagar promes- bro que quando eu cheguei, eu ia olhar os bois e nessa sa, ela veio ajudar a fazer couro no boi de Lauro para Comédias do bumba meu boi do Maranhão 169 continuar com o compromisso. Lá, os principais palhaços com quem nós brincamos já morreram. Eram Pé de Bola, que era lá de Guimarães e seu Abílio. Mas esse boi de Lauro, como é perto de casa, eu sempre acompanhei, sempre gostei porque foi um boi também que marcou a minha vida. Eu brinquei de palhaço até 2004, mas a minha roupa ainda está aí guardada. De lá para cá, eu comecei a brincar boi de vaqueiro e brinco até hoje. Mas eu não vou mentir para vocês, quando eu tenho meus parceiros, eu gosto de fazer a palhaçada, gosto de brincar e eu faço tudo para nego se sentir bem. Eu faço com criatividade! Das matanças que eu já fiz aqui, muitos achavam graça, outros, não. Mas cada dia que eu chegava, inventava uma coisa. Todo ano era uma matança diferente. Qualquer boi de sotaque de zabumba que nós fizéssemos, os cabeceiras faziam tanto toada nova como os enredos. Era interessante! Antigamente tinha muito bicho. No interior, esses bichos eram feitos de buriti. A onça, a gente fazia 170 Palhaços do boi de buriti também, mas pegava aqueles sacos de estopa e a apresentação é de no máximo uma hora de relógio para pintava. Há poucos anos, como não tinha buriti, eu fiz cada uma. Às vezes nem isso. Então não dá tempo de se uma onça com saco de nylon. fazer uma matança conversada. No interior ainda brincam umas matanças como antigamente. Em Guimarães, Aqui eu não tenho mais nada. Eu só tenho uma gaiola de em Central, se você for brincar nesses lugares aí ainda se uma matança que eu apresentei lá no Ceprama, que eu era vê uma matança. Mas aqui tem apresentação que não dá vendedor de animal selvagem. Lembro que dessa vez a nem para o cantador cantar. polícia queria me prender porque eu falei mal do Ibama. Dizia que o culpado da mata estar com falta de bicho não Também não existe mais palhaçada porque a nossa brin- era o vendedor de animal, pois eu só pegava um bichinho cadeira é matuta, ela não tem uma significação de desen- para eu criar. Mas o Ibama fazia negócio e vendia para os volvimento, de ganhar dinheiro. Antes se fazia a brinca- atravessadores. O policial disse: “Olha, você não faça uma deira sem precisar de dinheiro. Nós fazíamos porque era coisa dessa!” promessa. A gente convidava um e outro e fazíamos festa bonita. Isso sim é precisar da cultura. Não se faz mais matança mesmo, aquela bem feita, bem desenhada. Na rua, nos arraiais, a gente não faz comédia, A gente tem um compromisso com a brincadeira, a gen- se faz uma imitaçãozinha de cinco minutos, que se dá te se veste, se fantasia, porque a gente faz aquilo que a nome de arranjo. Há uma tentativa de resgate, querem gente gosta. que nos bois tenham sempre um Pai Francisco e uma Catirina. Mas a gente não faz mais a matança porque o horário é muito curto. São várias brincadeiras nos arraiais, Comédias do bumba meu boi do Maranhão 171 Valter Silva (Caburé) A minha mãe sabia bem a leitura. Na época, Bernar- Nascido em 1940 em São Luís, mudou-se quando era ga- Esses, quando erravam uma letra, ela ia com maior cari- roto para Graça de Deus, Mirinzal, onde vive até hoje co- nho ensinar. Eu, não. Ela vinha logo para arrancar uma mo aposentado. orelha! Todo mundo aprendeu e eu não aprendi. O es- dinho, comadre Cidinha e eu íamos aprender com ela. tudo não encaixou, esse negócio não deu para mim. DeNasci em São Luís, no Caminho da Boiada. Estou na idade pois foi tarde. Nem a leitura eu conheço, só sei escrever de 74, mas não lembro o dia e o mês do meu nascimento. o nome. Eu aprendi mesmo foi a fazer palhaçada. Minha mãe era do Iguaíba e meu pai era do Anajá. Eu vim pequenininho para o Anajá e de lá meu pai veio morar A parte do boi que eu mais gostava era a palhaçada. Era a aqui na Graça de Deus e me trouxe. melhor parte do boi que eu gostava de brincar! Quando eu ainda podia saltitar, eu comprei um chapéu para eu botar Eu não gosto de me chamarem por meu nome. Eu gosto na careca. Uma filha me mandou canutilho de Brasília. que chame só Caburé. Eu ganhei esse apelido quando Mas eu dei o chapéu e vendi os canutilhos para brincar na eu cheguei aqui. Nós jogávamos muito lá no rio e tinha palhaçada. No boi, todo mundo está bem preparado com um Daniel que me olhava quando eu passava, e dizia: um chapeuzão de fita, com uma gola, uma saia, uma vara... “Lá vem, lá vem o pequeno olhudo. O olho dele é que Mas eu não via ninguém rir. Já eu, quando botava a care- nem um caburé!” E aí ficou Caburé! Caburé é um pássa- ta, saía com uma roupa rasgada e um paletó, todo mundo ro que é todo pequenininho, todo pintadinho e olhudo, ria. Para mim, não tinha escolha de personagem. Era no danado para chamar frio de noite, aí ele enrola o pesco- posto de homem, era no posto de mulher, tudo eu acho ço dele. que representava bem! Mas tinha uns dois palhaceiros que 172 Palhaços do boi não queriam sair de mulher, nunca que a gente botava um tanças. Uma pessoa sozinha faz, mas se for mais de uma vestido neles! Eu, não. Eu gostava. Ainda amarrava minha é melhor. Se somos quatro palhaceiros, nos reunimos e cabeça. Eu não tinha vergonha! E quanto mais eles me cada um dá sua opinião. Às vezes, nós saíamos daqui para chamavam de palhaço, mais estavam fazendo eu crescer. brincar boi em Guimarães e inventávamos matanças no “Olha, rapaz, tu é um “palhaço”! “Mas porque tu ris? Tu caminho. Nós, viajando, eu dizia: “Olha, a gente faz as- não estás vendo que estou fazendo é palhaçada?! Não ri! sim, assim, assim.” Se alguém achasse que não dava cer- Fica na tua, sério!” to, dizia: “Não, nós fazemos assim, assim.” Eu não lembro mais quando foi a primeira vez que eu O caso tem nome de brincadeira, mas na hora é sério! É pa- brinquei boi de palhaceiro... Betinho e o finado Antônio lhaçada no nome, mas não pode botar uma piada em falso! Augusto foram meus patrões. Eles que eram meus mes- De fora, a assistência não reconhecia quem era o palhaceiro. tres! Aqui na Graça de Deus, Pilola e eu somos palhacei- Só mesmo quando era de dentro do lugar! Aquele é Beti- ros. Leônidas já está morto. Roberval é meu primo por nho, aquele é Antônio Augusto, aquele é Caburé! Mas de parte de pai. Nós brincamos muito boi juntos, de palha- fora, não. Tinha que caprichar. Quando eu saía para brincar ceiros. Também com o Bezerra, de Santaninha; Ribamar, boi com a careta, eu reparava logo se tinha muita assistên- de Cururupu; Luiz Carlos, Eduardo... Fizemos muita ma- cia para achar o ritmo. E quando eu saía, que eu olhava, já tança e depois fomos nos separando. via aquela animação! De primeiro, eu gostava de brincar boi porque era todo o tempo, era de dia, era de noite, era Nós fazíamos três matanças por noite, quando o boi reu- cheio de gente! Enquanto o boi não se despedisse, tinha as- nia cedo. Depois passamos a fazer só duas porque, às ve- sistência. Tinha muita assistência. A festa ficava peladinha! zes, o boi se reunia tarde. Não era só eu que tirava as ma- Só iam para lá depois que terminassem de fazer a matança. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 173 Antigamente, nós saíamos andando para brincar boi em eu partir desta, os meus netos vão dizer: “Com isso aqui Guimarães, Outeiro, Cedral, Rabeca, Porto Rico... De é que vovô fazia palhaçada.” primeiro era uma porrada de boi. Tinha gente que perguntava: “Ei, rapaz, que horas é o boi de fulano de tal? Ah! Eu sinto falta do bumba-boi. É uma brincadeira que Que horas é o boi de Manoel?” Hoje em dia, não. Agora, eu acho bonita! Toda brincadeira é bonita, mas, para tudo mudou. O carro vem buscar na porta. Agora, nin- mim, véspera de São João, quando o boi reúne na foguei- guém mais quer ver bumba-boi, o reggae não deixa mais. ra, ahhh... Aqui tinha muito boi. Muito, muito boi! Dos Se tem um boi brincando aqui e tem uma festa acolá, bois que eu já brinquei, se hoje em dia eu fosse fazer um eles não saem da festa para vir ver o boi. Além do mais, só com donos de cada boi que eu brinquei, era um tur- boi para cá já está terminando. Zequinha, cabeceira, já mão! Eu não posso mais brincar, mas se um boi brincar morreu. Manoel, cabeceira, adoeceu. Tem Zé Zico, ali aqui, eu vou olhar. Gosto de ficar olhando e me sento só no Santaninha. Ribamar, ali no Pé das Graças. Mas eles para escutar! Ahhh... não têm brincado. Zé Bolacha morreu! Nós passamos então a brincar em Cururupu. Nunca mais fizeram boi aqui e eu também parei de brincar desde o ano de 2011. Não brinquei 2012, não brinquei 2013 e agora nós estamos em 2014 e eu vivo só no remédio. O último que brinquei foi no boi de Zé Maria, em Cururupu, onde fiz palhaçada, mas não como eu fazia. A doença... Mas quando eu estava bonzinho, eu fazia bem. Ainda tenho os brinquedinhos tudo ali dentro de um saco. Quando 174 Palhaços do boi Comédias do bumba meu boi do Maranhão 175 Glossário Alumiar – iluminar. Aperreado – perturbado, atrapalhado. Arremedar – imitar, fazer trejeitos alusivos a algo ou alguém de forma jocosa e debochada. Arredar – afastar. Bazugar (de bajogar) – arremessar, atirar longe. Besouro – fogo de artifício. Cabeceira – personagem do bumba meu boi, que, normalmente, desempenha o papel de dono da fazenda, amo do boi, e de cantador responsável por puxar as toadas. Campear – Correr campos, andar no campo a cavalo à procura ou tratamento do gado. Candeeiro – objeto usado para iluminar, muito utilizado em localidades do interior onde não há fornecimen- Bisca – tapa na nuca. to de energia elétrica. Bordamento – arte de fazer bordados no couro e na in- Cangalha – armação de madeira usada para carregar dumentária do boi. carga no lombo de animais. Bride – cabresto. Carcar – apertar, enfiar, colocar e pressionar com força. Bulir – mexer. Termo usado também com o sentido de dar bronca (fer- Cabaça – frutos da cabaceira (planta da família das cucurbitáceas) que nascem em ramas. rar) e fazer sexo. Careta – máscara. Carregadíssimo (muito carregado) – além do sentido usual, o termo carregado pode ser usado como sinônimo de azarado, influenciado por espíritos ou energias negativas. Chapado – abarrotado. Chavelho – chifre. Cofo – cesto artesanal feito de palha de palmeira, usado para armazenar e carregar artigos de diferentes naturezas. Comer ou de comer – refeição, comida. No Maranhão usa-se muito a expressão “o comer” ou “o de comer”, normalmente pronunciando-se o cumê. Couro do boi – cobertura de veludo que envolve a estrutura do boi de brinquedo do bumba meu boi. O veludo Curador – curandeiro, pajé. Cururuca – corvina (peixe). Dar uma taca – dar uma surra, bater, espancar. Diamba – maconha. Embira – fibra extraída da casca de árvores, que é muito utilizada para a confecção de cordas e barbantes devido à sua grande resistência. Encarnado – vermelho, avermelhado. Fazendeiro – além de designar o dono da fazenda, o termo também pode ser usado para designar aquele que tem fascínio por fazendas e seus afazeres. é bordado com miçangas, canutilhos e pedras, formando Grode – cachaça ou outra bebida alcóolica. desenhos que variam de acordo com a temática escolhida Guriatã – pássaro pequeno, muito apreciado no Mara- pelo grupo. nhão. É considerado um pássaro cantador, dos melhores Cuia – fruto da árvore popularmente conhecida como imitadores de pios de aves diferentes. cuieira. Partido ao meio, é usado em várias partes do Bra- Histórias de Gonzaga e Camões – tipo de histórias em sil para servir como vasilhame. Cuieira – árvore que dá cuias. 178 Glossário que esses dois personagens sempre querem levar vantagem nas situações. Hum hum, heim heim – interjeições ricas de sentidos, Matança – encenação cômica realizada nas brincadeiras muito comuns no Maranhão. Dependendo da entonação de bumba meu boi do Maranhão, principalmente no meio com que são enunciadas, podem expressar negação, dúvi- rural em certas regiões. Também conhecida como auto, co- da, escárnio, concordância ou repreensão. média, palhaçada. Japonesinha – sandália de dedo; sandália de tira. Matuta/o – adjetivo relativo ao meio rural, usado como Jia – rã. Lamparinado – bêbado. O termo vem de lamparinada, que significa uma dose de cachaça no linguajar regional sinônimo de simplório, ingênuo, caipira, sertanejo. Mucado (ou mucadinho) – corruptela de bocado, bocadinho, pequena porção. do Norte. Mucura – animal marsupial (tem uma bolsa para carregar Manceta – instrumento de madeira que é usado na quebra os filhotes) que expele um odor muito desagradável, como do coco babaçu. o gambá. Costuma ser rejeitado porque ataca galinheiros e Maniva – pedaço do caule da mandioca. Maracá – chocalho. O objeto é usado pelo cabeceira no bumba meu boi e em rituais de cura por pajés e curadores. Maracajá – tipo de felino selvagem. Maroca – abelhudo, bisbilhoteiro. Marocar – bisbilhotar a vida alheia. poleiros de aves para comer seus ovos. No Norte o termo é usado para se referir a pessoas feias e malcheirosas, ou simplesmente desagradáveis. Panada de facão – batidas dadas com o facão, sem cortar. Paneiro – cesto de palha trançado artesanalmente. Parelha – conjunto de três tambores usados no tambor de crioula. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 179 Perigoso – além do sentido óbvio de representação de pe- Regueiro/a – quem aprecia o reggae, estilo musical de rigo, o termo pode ser usado com o sentido de afiado, ex- grande popularidade no Maranhão. periente, competente. Santeiro – aquele que confecciona ou vende imagens de san- Pilhar – entusiasmar, empolgar, animar-se. tos. Antigamente, era comum o santeiro sair oferecendo as Pisunhou (de pisunhar) – pisar, pisotear. Porfiar – concorrer, disputar. No Maranhão, comumente fala-se trufiar. imagens de porta em porta, como um ambulante. Socó – instrumento artesanal de pesca, muito usado na região de lagos na Baixada Maranhense. Ele é uma espécie de cesto feito de tala de palmeira em formato de cone, Procurar – além do sentido usual de buscar, o verbo é sem fundo nem tampa, de pouco menos de um metro de usado no Maranhão com o sentido de perguntar. Pro- altura. A abertura menor tem cerca de 20 cm de diâmetro curar algo para alguém, portanto, significa perguntar e a maior tem o dobro dessa medida. O pescador entra na algo a alguém. água até a altura da perna ou da cintura, segurando o socó Provocar – o verbo pode ser usado com vários sentidos pela parte de cima. Em seguida, mergulha-o no fundo, dei- como causar, fomentar, injuriar, estimular, seduzir, irritar, xando a abertura superior fora da água. Por essa abertura, assanhar. ele enfia a mão e pega o peixe que, porventura, tenha sido Queria para (querer para) – expressão regional com o capturado no socó. sentido de querer que. Por exemplo, “o corajoso queria Sentar – pousar. para o patrão fazer o pagamento para ele” tem o sentido Surulina (sururina) – nome popular de uma ave da família de “o corajoso queria que o patrão fizesse o pagamento dos tinamídeos, que aparece nas Américas do Sul e Central. para ele”. Assemelha-se a uma pomba ou perdiz. Tem coloração mar- 180 Glossário rom, esbranquiçada na garganta. Alimenta-se de sementes, Tiquara – tipo de pirão feito com farinha branca, limão e insetos e pequenos frutos. Muito apreciada na culinária do água, temperado com sal e/ou pimenta, podendo ser acom- Maranhão, tem se tornado cada vez mais rara devido ao des- panhado de peixe ou carne. matamento de grandes áreas do estado. Tambor de crioula – forma de expressão que reúne música, canto e dança, bastante popular no Maranhão. Geral- Toada – tipo de canto próprio do bumba meu boi. Tontiço (toitiço) – nuca, cangote. mente é realizado em homenagem a São Benedito, tido Troíra – lagartixa. como santo protetor dos negros, e remonta ao período da Venta – nariz, focinho. escravidão. Caracteriza-se pela sonoridade de um conjunto de tambores tocados pelos coreiros e pela coreografia Viageiro – viajante. sensual executada pelas coreiras. O ponto alto da dança é Visagem – aparição, que pode ser de um morto ou de um a punga ou umbigada, uma batida de barriga com barriga ser encantado. Diz-se visagento daquele ou daquilo que que fazem as coreiras, e que funciona como um convite à provoca visagens. entrada e saída do centro da roda. O tambor de crioula foi Zabumba – espécie de tambor rústico, tradicionalmente registrado pelo Iphan como patrimônio cultural do Brasil em 2007. feito de madeira e couro. De médias e grandes dimensões, emite um som grave quando é percutido por varetas, Tapuios – personagens do bumba meu boi, os quais repre- macetas ou baquetas. Em várias partes do Brasil é muito sentam indígenas que ajudam os vaqueiros a procurar os usado para marcar o ritmo em diversos gêneros musicais. ladrões do boi, quando este é roubado. Também é conhecido como bumbo. Teso, tesinho – duro. Zoada – barulho forte. Comédias do bumba meu boi do Maranhão 181 Eu sou pretinho, meu senhor Eu sou pretinho, nunca tive dinheiro Nunca fui escravo Mas eu ando no mundo fazendo graça. O miolo deste livro foi impresso em papel couchê matte 120g e a capa em duo design 350 g. Os textos foram diagramados em Aldine 721 BT corpo 11/18. Os títulos e a numeração das páginas, em Lucida Sans. Tiragem de 1.000 exemplares. 184 Comédias