História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br A civilização da legenda: considerações acerca do estatuto da imagem na cultura a partir da concepção de imagem reprodutiva de Walter Benjamin Marcelo Fonseca Alves Grupo IMAGINATA Doutorando de Imagem e Cultura • PPGAV/EBA/UFRJ Resumo: O que segue consiste em uma reflexão sobre o uso da imagem fotográfica, com acento no âmbito jornalístico, a partir da concepção de política da arte, de Walter Benjamin. Partindo do lugar comum de que se vive em uma “civilização da imagem”, procurou-se identificar as bases da recepção de tais imagens, bem como as implicações políticas decorrentes dessa recepção. A conclusão a que se chegou, segundo um método dialético de condução da reflexão, foi a de que, especialmente na esfera jornalística, a afirmação de uma “civilização da imagem” não é senão fruto da consideração empírica da presença da imagem fotográfica no jornal; e que nessa esfera, a imagem fotográfica é antes condicionada pela linguagem verbal, restringindo-se o seu papel ao de documentação, que confirma, a guisa de objetividade, aquilo que o texto afirma como fato. Palavras-chave: fotografia, legenda, política da arte. Abstract: The following text consists in a reflection on the use of the photographic image, emphasizing the journalistic context, from Walter Benjamin’s conception of “policy of art”. Given the common ideia that we live in the “images civilization”, sought to identify the basis of reception of such images, as well as the politics implications arising from this reception. The result that was reached, according to a dialectical method of conducting reflection was that, in the journalistic sphere, the idea of an images civilization is nothing but the result of the empirical consideration of the photograph’s presence in the newspaper. In this sphere, the image is conditioned first by verbal language, restricting its role to the documentation that confirms, disguised of objectivity, what is stated as a fact in the text. Keywords: photography, legend, politics of art. História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br É lugar comum a ideia de que se vive na civilização da imagem desde o evento da fotografia. O fato, porém, de que a dita civilização é, contraditoriamente, a “civilização da cegueira”, levou teóricos e literatos a buscarem explicações para essa “cegueira”. Elas foram da fisiologia à pedagogia. Dessas explicações é marcante a de Marshal McLuhan1, a partir da qual se pode pretender que ela, a “cegueira”, seja fruto da narcotização dos sentidos gerada pelo excesso de estímulo. Sua argumentação parte do seguinte: Sob pressão de hiperestímulos físicos da mais vária espécie, o sistema nervoso central reage para proteger-se, numa estratégia de amputação ou isolamento do órgão, sentido ou função atingida. Assim, o estímulo para uma nova invenção é a pressão exercida pela aceleração do ritmo e do aumento de carga. No caso da roda como extensão do pé, por exemplo, a pressão das novas cargas resultantes da aceleração das trocas por meios escritos e monetários criou as condições para a extensão ou “amputação” daquela função corporal. Em compensação, a roda, como contra-irritante das cargas crescentes, resultou em nova intensidade de ação pela amplificação de uma função separada ou isolada (o pé em rotação). O sistema nervoso somente suporta uma tal amplificação através do embotamento ou do bloqueio da percepção.2 Para o filósofo canadense, a saturação que gera o anestesiamento de um sentido (ou mesmo de uma função orgânica) vincula-se à tecnologia. O desenvolvimento de um mecanismo implica certo processo de denegação da função orgânica correspondente ao mecanismo. É a partir disso que ele desenvolve a sua tese central, dos mecanismos como extensões do homem. Assim, um mecanismo gera a saturação de uma função orgânica, que se atrofia e, a partir disso, o mecanismo passa a funcionar como prótese no cumprimento da respectiva função. No que concerne aos processos perceptivos, os exemplos são múltiplos, mas podem ser figurados sinteticamente na imagem de um carinho: o primeiro toque é percebido com intensidade e gera efeito agradável, mas sua continuidade acaba por tornar o toque desagradável e sua saturação leva ao anestesiamento da área. No que se refere à imagem, o princípio é o mesmo: o excesso de exposição a ela leva à neutralização da função visual, leva a uma cegueira relativa. A perspectiva de McLuhan trabalha a imagem (e a comunicação no sentido mais amplo) a partir desta zona de intercessão entre o físico e o psíquico que é a percepção3. 1 MCLUHAN, Marshal. Os meios de comunicação como extensões do homem. São Paulo: Cultrix, 2005. Id., ibid., p. 60-61. 3 A Gestalt (ARNHEIM, Rudolf. Arte e percepção visual: uma psicologia da visão criadora. São Paulo: Martins Fontes, 1983.) já propugnara algo análogo, ao menos em princípio, na sua teorização das compensações perceptivas, tais como a seletividade da percepção e a neutralização de uma cor ou de uma forma respectivamente por sua saturação ou repetição. No primeiro caso, o que está em questão são 2 2 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br Não há dúvida de que a imagem manifesta-se, antes de tudo, como um fenômeno psicofisiológico. Na perspectiva de McLuhan, esse componente psicofisiológico condiciona a significação. Se a saturação de um meio anestesia um sentido que lhe é correspondente, então a mensagem-chave fica restrita ao próprio meio, e não ao conteúdo que ele possa veicular. Daí a formulação de que o meio é a mensagem. Assim, no caso da imagem, tem-se que ela é tomada, sobretudo, no âmbito de sua visibilidade e de sua ocorrência como dado empírico. Não há dúvida de que a visibilidade é uma condição sinequanon à própria existência da imagem. Ocorre, porém, que tal condição de existência não dá conta, como se pretende demonstrar a seguir, da amplitude daquilo que a imagem instaura em nós e daquilo que ela possibilita em termos de significação. Essa preocupação com as relações da técnica com a percepção, a linguagem e a significação também esteve presente no cerne da reflexão estética de Walter Benjamin. A confiar na memória de seu amigo Gershom Scholem4, tal preocupação já era acentuada a partir de pelo menos 1918, desde então também dirigida às artes plásticas. Contudo, a evidente preocupação com a questão da visualidade só aparece de maneira inequívoca nos escritos de Benjamin no seu artigo sobre a fotografia5, Pequena história da fotografia, publicado em 1931. O escrito no qual a questão da visualidade vinculada à técnica chega ao paroxismo de sua formulação, que pode ser entendido como um desdobramento da reflexão presente no texto sobre a fotografia, é o seu artigo sobre a reprodutibilidade técnica6, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica, publicado em 1936. Walter Benjamin e a imagem fotográfica Ao longo de seu artigo sobre a fotografia, Benjamin procura estabelecer as implicações significativas da técnica fotográfica. Ele inicia fazendo a distinção dessa técnica em relação à pintura, particularmente a pintura de retrato, e afirma o seguinte: motivações psicofisiológicas e/ou outras mais propriamente psíquicas. Já no segundo caso, o que se dá é algo efetivamente análogo à tese de McLuhan. De qualquer maneira, ambos trabalham na zona de intercessão entre o físico e o psíquico que é a percepção. 4 SCHOLEM, Gershom. Walter Benjamin: a história de uma amizade. São Paulo: Perspectiva, 1989. 5 BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. In: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, v. 1). 6 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, v. 1). 3 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br [...] na fotografia surge algo de estranho e de novo: na vendedora de peixes de New Haven, olhando para o chão com um recato tão displicente e tão sedutor, preserva-se algo que não se reduz ao gênio artístico do fotógrafo Hill, algo que não pode ser silenciado, que reclama com insistência o nome daquela que viveu ali, que também na foto é real, e que não quer extinguir-se na arte.7. Na fotografia, dada a por assim dizer natureza de sua técnica, há, diferentemente da pintura, uma realidade que insiste na foto e que constitui, segundo Benjamin, a sua “magia”. A “magia” da fotografia está ligada, então, ao motivo – a mulher que insiste em ser nomeada referida na passagem acima8. Ou ainda, consiste no encontro de um “aqui e agora” que não se extingue na foto e que é diferente do “aqui e agora” do suporte. Nesse sentido, a fotografia vincula-se, em Benjamin, com a história, que de algum modo ela mantém viva para além da substância do suporte. Essa questão do suporte já permite introduzir o que se pode encontrar por trás de um conceito central da estética de Walter Benjamin: o conceito de aura. Esse conceito é amplamente apresentado no artigo sobre a fotografia, mas só é plenamente desenvolvido, em todos os seus nuances e com todas as suas implicações, no artigo sobre a reprodutibilidade técnica. No artigo sobre a fotografia, ele introduz o termo em sua análise de uma foto de Kafka criança para caracterizar a atmosfera densa que envolve o menino. Em seguida, ele passa a apresentar a aura como efeito técnico nas fotografias mais antigas: certo obscurecimento nas bordas das fotos e, secundariamente, a expressão do rosto humano gerada pela longa duração da pose nas primeiras fotografias. Por fim, chama atenção para a produção artificial desse efeito nas fotografias a partir de 1880, vendo nisso um artifício para a manutenção da aura em torno de uma burguesia cuja explicitação de seus propósitos imperialistas já dissolvera. Só então Benjamin fornece uma definição direta da aura, fazendoo nos seguintes termos: Em suma, o que é a aura? É uma figura singular, composta de elementos espaciais e temporais: a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja. Observar, em repouso, numa tarde de verão, uma cadeia de montanhas no horizonte, ou um galho, que projeta sua sombra sobre nós, até que o instante ou a hora participem de sua manifestação, significa respirar a aura dessa montanha, desse galho.9. 7 BENJAMIN, op. cit., p. 93. No mesmo artigo, Benjamin afirma, numa aparente contradição, que foi um pintor, Courbet, quem primeiro apresentou este vínculo entre a imagem e a realidade (que constitui um elemento-chave da linguagem fotográfica para Benjamin). A observação sobre Courbet pode ser vista um pouco mais desenvolvida no artigo Peinture e photographie, de 1936 (BENJAMIN, Walter. Sur la photographie. [S.l.]: Éditions Photosynthèses, 2012.). 9 Id., ibid., p. 101. No artigo sobre a reprodutibilidade técnica, Benjamin fornece a mesma definição, porém suprime o trecho “até que o instante ou a hora participem de sua manifestação” (op. cit., p. 170). Tal supressão se deve, talvez, ao fato de Benjamin pretender que o “instante”, independente da aura, seja de algum modo 8 4 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br O que chama atenção na definição é que a aura consiste numa aparição “real” no tempo e no espaço. É a qualidade dessa aparição que Benjamin projeta em sua apreciação da obra de arte – da obra de arte que ele chama de “arte tradicional”, no artigo sobre a reprodutibilidade técnica. Assim, a definição pode ser reformulada nos seguintes termos: a aura, no que se refere à obra de arte, consiste na consideração da obra concentrada em sua presença “real” no tempo e no espaço, isto é, a consideração da obra concentrada em seu caráter de coisa, na unicidade de sua presença. Tal consideração implica a valorização da obra exatamente por seu caráter único. A este modo de valorização da obra, Benjamin denomina “valor de culto”10. A ideia de valor de culto, Benjamin vai buscá-la na tradição da arte religiosa11. Mas, o que é mais importante aí é que sob a égide do capitalismo, o que era culto de base mágicoreligiosa converte-se em culto de mercado, a obra de arte cultuada antes de tudo como uma mercadoria rara. Isso implica que a manutenção da aura em torno da obra de arte na sociedade burguesa não faz outra coisa, senão camuflar o fato de que a obra de arte se converteu em uma mercadoria, entre outras tantas, cujo valor distintivo é, sobretudo, o de sua raridade. Puro fetichismo. O culto à obra de arte como objeto único também está associado ao caráter original do documento para o historiador. A origem do documento determina o seu valor como testemunho genuíno de uma época para o historiador. É sob a perspectiva de seu valor histórico que a obra de arte única deve ser preservada. Tal valor também acaba por se refletir no valor de mercado da obra – e também é fetichizado. Benjamin sublinha uma característica significativa do valor de culto da obra de arte. Mais uma vez ele vai à tradição da arte religiosa e chama atenção para o fato de o valor de culto implicar um baixo índice de exposição da obra de arte12. Ele cita como exemplo imagens que se localizavam em pontos inacessíveis ao olhar nas catedrais medievais e imagens da Virgem que passam a maior parte do ano cobertas, para serem exibidas apenas em procissões ou em ocasiões análogas. preservado na fotografia, além do fato, como será visto adiante, de a aura passar a envolver o suporte da obra de arte. 10 Id., ibid., p. 173.. 11 Id., ibid. 12 Id., ibid. 5 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br Sob essa perspectiva, Benjamin opõe ao valor de culto o que ele chama de “valor de exposição”13. O valor de exposição é um traço característico de uma arte que Benjamin distingue da arte tradicional: a arte reprodutiva. Ele afirma que a reprodução não é uma novidade em arte e faz referência às diversas modalidades de gravura. Mas sublinha que mesmo nestas modalidades, a questão do original se apresenta, sendo relativizado apenas na litografia. Daí ele põe em relevo o fato de numa modalidade como a fotografia (e o cinema, principalmente), diferentemente das outras técnicas de reprodução, a questão do original não se apresentar. Trata-se, então, de uma arte cuja natureza é a reprodução técnica, uma arte que prescinde da própria ideia de original14. A reprodutibilidade técnica inscreve a obra de arte na ordem da serialidade da produção industrial. Ora, tal variedade implica redução do custo unitário e, por isso mesmo, amplia o poder de circulação das obras, ou seja, amplia o seu poder de exibição. Porém, mais importante que isso, para Walter Benjamin a arte reprodutiva destrói a aura da obra de arte, que se concentrava no culto ao objeto único. Na definição de aura, Benjamin diz que ela é “a aparição única de uma coisa distante, por mais próxima que ela esteja”15. Ora, isso significa que a aura que envolve a obra de arte tradicional a torna distante, e com ela torna distante aquilo que ela mostra. Ao contrário, a obra de arte reprodutiva, segundo Benjamin, atende a uma necessidade que ele diz crescente, a de possuir as coisas de “tão perto quanto possível na imagem, ou melhor, na sua reprodução”16. Neste ponto de sua reflexão Benjamin introduz uma questão que lhe é cara, que é a questão da emergência da possibilidade do cumprimento de uma função política pela obra de arte. Como tudo em Walter Benjamin, a noção dessa função política é altamente nuançada. Ela diz respeito tanto à política no sentido mais geral, como o do que se pode conceber como uma política em relação à própria arte. No artigo de 1931, sobre a fotografia, Benjamin faz a seguinte indagação: “É característico que o debate tenha se concentrado na estética da ‘fotografia como arte’, ao passo que poucos se interessaram, por exemplo, pelo fato bem mais evidente da ‘arte como fotografia’”17. Isto introduz o primeiro aspecto da problemática mais ampla que a ideia de perda da aura representa para Benjamin, isto é, o evento de uma visibilidade que a obra de arte em geral talvez jamais tenha obtido em sua história, o que deve ser entendido como uma 13 Id., ibid., p. 173. Não se deve confundir “original” no sentido da origem do objeto com a “originalidade” de uma obra de arte, reprodutiva ou não. 15 BENJAMIN, op. cit., p. 101. 16 Id., ibid., p. 101. 17 Id., ibid., p.104. 14 6 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br política da arte instaurada pela imagem fotográfica. O exemplo que ele oferece em seguida é o de uma catedral, miniaturizada e tornada próxima, utilizável, pela recepção através da fotografia. Nesse sentido, o evento da fotografia tende, ao menos em princípio, a dissolver inclusive a aura que envolve a arte tradicional, ampliando o seu valor de exposição, a reprodução tornando-a mais amplamente acessível. Por outro lado, a perda da aura e a aproximação da obra de arte em relação à recepção implica uma mudança na relação de interesse entre a recepção e aquilo que a obra mostra. Neste aspecto, certo paralelismo com as concepções de Brecht relativas à obra de arte é flagrante. Segundo Walter Benjamin, em um artigo intitulado Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht18 (também de 1931, mesmo ano do artigo sobre a fotografia), a obra de arte que pretendesse a ampliação de seu espectro de público até o nível das massas deveria apresentar uma problemática próxima das massas, isto é, uma problemática no plano ficcional que refletisse a problemática da realidade contemporânea vivida pela recepção19. Cabe notar que essa reflexão da realidade não pode ser passiva, do tipo naturalista. No referido artigo sobre a fotografia, Benjamin cita Brecht: Com efeito, diz Brecht, a situação “se complica pelo fato de que menos que nunca a simples reprodução da realidade consegue dizer algo sobre a realidade. Uma fotografia das fábricas Krupp ou da AEG não diz quase nada sobre essas instituições. A verdadeira realidade transformou-se na realidade funcional. As relações humanas, reificadas – numa fábrica, por exemplo –, não mais se manifestam. É preciso, pois, construir alguma coisa, algo de artificial, de fabricado”.20. O sentido dessa construção incide em uma mudança no modo de recepção da obra. Ela torna a recepção coletiva. Isso opõe a recepção da obra referida pelo valor de exposição ao modo de recepção aurático. No segundo caso, tem-se o recolhimento individual na figura da contemplação – no culto, a obra única fala para um espectador único segundo o grau de sua “fé” (para manter a analogia com a arte religiosa). A recepção da arte reprodutiva é coletiva – a exposição coletiviza a recepção, torna-a simultânea. Essa coletivização depende de uma operação que faz emergir a vocação cinematográfica da fotografia, uma vez que ela depende de sua inscrição em uma narrativa social que a torna análoga a um fotograma. É exatamente onde Benjamin situa a importância da legenda. 18 BENJAMIN, Walter. Que é o teatro épico? Um estudo sobre Brecht. In: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, v. 1). 19 Além disso, a distância é quebrada no plano físico, com a nova concepção de espaço cênico criada por Brecht. (Id. ibid.). 20 BRECHT apud BENJAMIN, op. cit., p. 106. (grifo do autor). 7 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br No artigo sobre a fotografia, Benjamin introduz a questão da legenda nos seguintes termos A câmara se torna cada vez menor, cada vez mais apta a fixar imagens efêmeras e secretas, cujo efeito de choque paralisa o mecanismo associativo do espectador. Aqui deve intervir a legenda, introduzida pela fotografia para fornecer a literalização de todas as relações da vida e sem a qual qualquer construção fotográfica corre o risco de permanecer vaga e aproximativa. Não por acaso que as fotografias de Atget foram comparadas ao local de um crime. Mas existe em nossas cidades um só recanto que não seja o local de um crime? Não é cada passante um criminoso? Não deve o fotógrafo, sucessor dos áugures e arúspices, descobrir a culpa em suas imagens e denunciar o culpado?21. É significativo que o exemplo apresentado por Benjamin seja Atget. Ele introduz a obra desse fotógrafo em oposição ao retrato, que afirma ser o último refúgio da aura. As fotografias de Atget opõem-se, também, à hipotética fotografia das fábricas Krupp e sua inexpressividade no que diz respeito às relações travadas em seu interior, mencionada por Brecht no trecho citado mais acima. Atget fixa aspectos da cidade de Paris que, se não sugerem diretamente as relações (de dominação e de opressão) que se travam no interior da cidade, sem dúvida captam a vida, em pormenores e fragmentos que podem parecer, em princípio, secundários e inexpressivos, mas são fotografados pelos “indícios”22 que contêm. Essa é uma distinção de Atget que o torna um exemplo particularmente eficiente para o propósito de Benjamin na sua demonstração da destruição da aura e do efeito dessa destruição nos planos da imagem e de sua significação. Por outro lado, em sua leitura das fotografias de Atget que retratam as ruas de Paris esvaziadas, há uma importante referência implícita à sua leitura de um texto de Edgard Allan Poe23, O homem da multidão, e ao papel privilegiado que confere ao romance policial em sua reflexão relativa à grande cidade moderna. É daí que vem a proposição da cidade como o lugar de um crime. O que é significativo nesta imagem construída por Benjamin é o anonimato do criminoso24, daí a formação de um olhar detetivesco, que ele formula como 21 BENJAMIN, op. cit., p. 107. Id., op. cit., p.174. 23 BENJAMIN, Walter. Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo. São Paulo: Brasiliense, 1989. (Obras escolhidas, v. 3). 24 Isso remete também à leitura que Benjamin faz de Kafka. BENJAMIN, Walter. Franz Kafka: a propósito do décimo aniversário de sua morte. In: Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense, 1994. (Obras escolhidas, v. 1). 22 8 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br metáfora para o olhar crítico e politicamente educado25, que interpreta os mais fugidios indícios. Cabe notar que o que instiga esse olhar investigativo é a imagem, é a força sugestiva da imagem. Em Atget, o desconcertante esvaziamento das ruas de Paris. A contribuição da legenda é, neste caso, fundamentalmente a de nomear a cidade, ou melhor, o local da cidade de que se trata. É mediante essa nomeação que o assombro inicial se converte em um material que reenvia o olhar para a vida, com todo o drama, social e existencial, que ela implica. No artigo sobre a arte reprodutiva, Benjamin formula isso nos seguintes termos: Com Atget, as fotos se transformam em autos no processo histórico. Nisso está sua significação política latente. Essas fotos orientam a recepção num sentido predeterminado. A contemplação livre não lhes é adequada. Elas inquietam o observador, que pressente que deve seguir um caminho definido para se aproximar delas. Ao mesmo tempo, as revistas ilustradas começam a mostrar-lhe os indicadores do caminho – verdadeiros ou falsos, pouco importa. Nas revistas, as legendas explicativas se tornam pela primeira vez obrigatórias.26. Assim, o conjunto formado pela fotografia mais a legenda teria, para Benjamin, certo poder de precipitar a massa no sentido de uma consciência de sua própria problemática, isto é, a consciência de classe. A arte reprodutiva implica, então, a emancipação crítica da massa, ou ao menos a possibilidade dessa emancipação. A crítica da indústria cultural No capítulo A indústria cultural: o esclarecimento como mistificação das massas27, Adorno e Horkheimer analisam, nos âmbitos da cultura e da arte, os efeitos da racionalidade técnica instrumentalizada pelo capital, fazendo isso diante da cena cultural norte-americana no período da segunda guerra. A análise que fazem dos produtos da indústria cultural contém uma crítica implícita à hipótese de Walter Benjamin relativamente à politização da arte reprodutiva. É exatamente esse otimismo diante da possibilidade de emancipação da massa frente à arte reprodutiva que Adorno e Horkheimer refutam, ao demonstrar que a massa é produzida, sobretudo pela mercadoria cultural. Para Adorno e Horkheimer, toda mercadoria 25 Certamente, na imagem do crime vige, juntamente com a referência a Kafka, uma referência ao processo de ascensão do fascismo na Europa do entre guerras. 26 BENJAMIN, op. cit., p. 175. 27 ADORNO, Theodor Wiesengrund Adorno; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. 9 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br cultural – o que Benjamin chama de arte reprodutiva – é esteticamente uniformizada. Essa uniformidade é o resultado de um controle rigoroso da produção, controle que não se apresenta de maneira direta sob a forma de censura, mas como imperativo imposto justamente pela técnica – o que já de saída confere certa coloração ideológica ao modo como a técnica é trabalhada no âmbito dessa produção. O controle da produção no sentido da uniformidade estética do produto da indústria cultural visa a dois pontos específicos e articulados, a saber: a rígida classificação das mercadorias culturais que se espelham na massa e a subdivisão da massa em categorias de consumo que encarnam ideais de posição e ascensão social, porquanto espelham a classificação mesma das mercadorias (especialmente das mercadorias culturais) que consomem ou que desejam consumir: As distinções enfáticas que se fazem entre os filmes das categorias A e B, ou entre as histórias publicadas em revistas de diferentes preços, têm menos a ver com seu conteúdo do que com sua utilidade para a classificação, organização e computação estatística dos consumidores. Para todos algo está previsto; para que ninguém escape, as distinções são acentuadas e difundidas. O fornecimento ao público de uma hierarquia de qualidades serve apenas para uma quantificação ainda mais completa. Cada qual deve se comportar, como que espontaneamente, em conformidade com o seu level28, previamente caracterizado por certos sinais, e escolher a categoria dos produtos de massa fabricados para o seu tipo. 29. O que é significativo na passagem acima para a reflexão ora em curso é o espelhamento entre consumidor e mercadoria, a modelagem da massa a partir das pseudodistinções entre as mercadorias em geral via mercadorias culturais. A suposta distinção entre as mercadorias é formada, principalmente, a partir do cenário em que as faz figurar a publicidade. Cabe notar, entretanto, que a publicidade opera secundariamente em relação ao noticiário e às modalidades “artísticas” da indústria cultural. Para verificar isso, basta considerar os atletas, os atores e as outras celebridades que são convertidos em garotospropaganda de produtos e serviços30. Por outro lado, isso é um exemplo da unidade sistêmica entre os diferentes setores da indústria cultural identificada por Adorno e Horkheimer, visto que os diferentes setores se confirmam mutuamente e alimentam-se uns dos outros. O que se 28 Nível. Id., ibid., p. 175. 30 Por isso a virulência crítica de Adorno e Horkheimer se dirige apenas de maneira secundária à publicidade. Aliás, no texto da indústria cultural, que foi publicado em 1946, a dupla frankfurtiana já denunciara um processo que só se exacerbou no cinema, que é a sua publicitarização – que chega ao máximo de evidência em um filme como O náufrago, por exemplo. 29 10 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br verifica, portanto, nos produtos da indústria cultural é, segundo Adorno e Horkheimer, um trabalho sistêmico de reforço do fetiche da mercadoria. Ora, se é de fetiche que se trata, o que se tem é, contrariamente ao que pretende Benjamin, o reforço da aura, agora convertida no invólucro dos produtos tecnicamente reproduzidos da indústria cultural. Isso revela uma característica da aura e da sua relação com as obras algo diferente do que foi descrito por Benjamin. Ela não se vincula obrigatoriamente à obra única, isso porque ela é um elemento constitutivo da recepção e não da obra e se delineia como uma espécie de código superposto a esta última, um código que a envolve e compromete a sua significação. Na arte tradicional, segundo Benjamin, isso se dava de um lado como culto religioso e, de outro lado, como atestado de originalidade do suporte como documento histórico. Em todos os casos, o que se tem são sistemas que interferem na recepção da obra, uma vez que esses sistemas tenham sido interiorizados pela recepção, de tal maneira que a fruição estética como tal fica interrompida e a significação da obra fica condicionada pelo sistema que a ela se superpõe, o sistema que a contém. Na perspectiva assim delineada, tem-se que na indústria cultural o que se atualiza como sentido, independentemente da significação possível que a obra suscite e sustente, é a própria unidade dessa indústria. Assim, diferentemente do que Benjamin supõe, a fotografia não reenvia necessariamente o olhar para a realidade. A fotografia (e as outras modalidades da arte reprodutiva) foi auratizada, conforme a leitura de Adorno e Horkheimer. O que se fixa a guisa de significado da imagem veiculada, por exemplo, pelo anúncio é o slogan. Não é que Walter Benjamin não tenha se dado conta disso. Várias passagens de Pequena história da fotografia e de A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica atestam sua recusa à publicidade, bem como certa desconfiança para com a prática jornalística. Ocorre, porém, que Benjamin conferiu uma força à imagem em si mesma que a história dos meios de comunicação de massa contradisse. As teses de Adorno e Horkheimer presentes no texto da indústria cultural vêm sendo alvo de crítica por parte da literatura sociológica já há algumas décadas31. O cerne dessa crítica dirige-se à ideia de controle da consciência por parte da indústria cultural. Um dos pontos de apoio principais da argumentação dessa crítica tem sublinhado o que chamam de “ressemantização” da mercadoria em geral e da mercadoria cultural em particular. A crítica é fundamentada, pois essa possibilidade de ressemantização existe e efetivamente se dá, como 31 Quanto a isto, entre outros, ver: THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios de comunicação de massa. Rio de Janeiro: Vozes, 2009. E também: CANEVACCI, Massimo. Antropologia da comunicação visual. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. 11 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br argumentam os críticos. Há, porém, superestima desse processo, uma superestima que obscurece um ponto relevante da análise de Adorno e Horkheimer. Quanto a esse ponto, considere-se o seguinte. No que concerne à mercadoria em geral, um produto bastante popular no Brasil, por exemplo, a palha de aço da marca Bom-bril, teve seu sentido frequentemente deslocado através de conversões no seu uso. Foi usada, por exemplo, como acessório para melhorar a captação de sinal nas antenas internas de televisores e objeto de brincadeiras em festas juninas (ao ser incendiado, um chumaço de bom-bril flutua até que se esgote o fogo). Houve, portanto, ressemantização pelo uso diferenciado, criativo. Apropriações desse tipo, que deslocam o sentido do objeto por usos diferentes daquele para o qual o objeto foi criado, não são suficientes para refutar a crítica presente no texto da indústria cultural, uma vez que elas não escapam ao fetiche da mercadoria. O conceito de fetiche da mercadoria não se refere ao uso da coisa, mas à coisa como mercadoria, ou seja, à crença que esteia o seu valor de mercado. É indiferente, na perspectiva da crítica de Adorno e Horkheimer e, também, na própria perspectiva do mercado, o que o consumidor irá fazer com o produto. Importa é que o produto seja consumido e que seja reconhecida, mesmo que “criticamente”, sua posição de mercado. A obra de Andy Warhol confirma essa ideia. O que significa uma sequência de retratos de Merilin Monroe, Pelé e Mao Tsé Tung? Para o mercado, pouco importa o significado que cada uma dessas imagens possa ter para quem quer que seja, mas sim o sentido comum de que são todas mercadorias, tanto quanto o sabão em pó Brillo, cuja caixa foi reproduzida pelo artista. Neste sentido, e talvez apenas nele, se é “livre” no mundo capitalista. É exatamente o sentido desta “liberdade” que Adorno e Horkheimer colocam sob suspeita em sua observação da sociedade norte-americana, segundo o conceito de fetiche da mercadoria. Por outro lado, o que Benjamin tinha em vista, acertadamente, era algo da ordem da dita ressemantização, mas algo dessa ordem, não algo idêntico, como será visto a seguir. Crítica e política Em sua tese de doutorado, O conceito de crítica de arte no romantismo alemão32, defendida em 1922, Walter Benjamin debruça-se sobre os escritos de Friedrich Schlegel e Novalis, procurando identificar os conceitos de arte e crítica de arte da geração do primeiro 32 BENJAMIN, Walter. O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. São Paulo: Iluminuras, 1999. 12 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br romantismo alemão. Márcio Seligmann-Silva33, ao sublinhar o papel central da reflexão na crítica romântica, diz o seguinte: [...] o que se passa com os românticos é uma obliteração da diferença qualitativa entre os diversos níveis da reflexão. Daí a crítica assumir para eles o papel de um operador dentro do Reflexionsmedium. A crítica deixa de ser julgamento de obras de arte e passa a ser vista como um degrau da reflexão, na verdade incluída num processo de autoconhecimento da própria obra [...].34. Trata-se da concepção romântica de crítica imanente. Nessa concepção, a reflexão tem uma importância fundamental. Para os românticos a reflexão é o princípio do conhecimento e do pensamento e se estabelece em níveis que tendem ao infinito, constituindo o que Benjamin chama de um medium35. No caso da arte, o que supostamente figura no termo (irrealizável) da reflexão é a ideia mesma de arte, a arte em geral, singularizada nas obras particulares, que demarcam um nível da reflexão. Portanto, segundo o princípio da reflexão, a obra de arte é um momento no medium de reflexão, bem como a crítica. Daí o papel assumido pela crítica, que Seligmann-Silva afirma. Papel central, pois nessa função operativa no medium de reflexão, a crítica de arte é o ato que visa à conclusão da obra de arte no movimento da reflexão, conclusão requisitada pela própria obra, visto que a obra inscreve-se no medium e é constituída ela mesma como reflexão que, por sua natureza, engendra reflexão. Assim, a plena realização da obra consiste no seu desdobramento reflexivo, ou seja, na sua crítica. A ideia de reflexão como medium implicando a realização da crítica como requisição da própria obra já situa a obra de arte mais para o âmbito do valor de exposição que do valor de culto. O que difere substancialmente na argumentação da tese de Benjamin sobre o romantismo em relação à argumentação dos textos sobre a fotografia e, especialmente, sobre a arte reprodutiva, é a substituição do termo “crítica” pelo termo “política”. Na tese sobre o romantismo, o papel da obra de arte é instaurar criticidade, que deve ser entendida como tomada de posição no medium de reflexão; nos artigos sobre a fotografia e a arte reprodutiva seu papel é promover a consciência de classe. Mas a consciência de classe não é outra coisa que o conteúdo crítico da reflexão na perspectiva do ideário marxista, que constitui a referência teórica mais evidente nos textos que Benjamin produz nos anos 1930. A consciência de classe pode ser assim entendida como um conteúdo crítico da reflexão. 33 SELIGMANN-SILVA, Márcio. Double bind: Walter Benjamin, a tradução como modelo de criação absoluta e como crítica. In: SELIGMANN-SILVA, Márcio (org.). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: Annablume, 2007. (p. 17-49). 34 Id., ibid., p. 20-21. 35 Op. cit. 13 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br Se o conteúdo da reflexão assim determinado for entendido como resposta a um dado contexto, a concepção de política da arte pode ser relida sob outra perspectiva. Se o conteúdo da crítica é uma manifestação que, diante da obra de arte, remete ao contexto em que ela, crítica, se dá, então ela é a atualização da reflexão da obra em uma perspectiva que se inscreve na história. A questão da reflexão ocupou a literatura filosófica desde Descarte. De Descarte até Hegel, o que é invariável no que se pensou sobre a reflexão é que ela propicia a emergência da consciência de si. O que distingue a consciência de si nos escritos teóricos de Schlegel é que ela não é um processo que encontre um ponto de chegada, posto que a reflexão seja virtualmente infinita. Isto estabelece um estatuto para o Eu sobremodo diferente do que concebe Descarte. Em Descarte, o Eu é estabelecido de uma vez por todas na reflexão apresentada no cogito. É o sujeito assim determinado que evanesce na reflexão que se desdobra ao infinito, conforme o concepção romântica de Schlegel. Nos escritos do poeta, o Eu que salta da reflexão cartesiana reflete-se mais uma e outras tantas vezes ao infinito, o que implica conceber o sujeito como uma entidade inconclusa, que só pode ser suposto nos seus rastros, nas marcas que constituem a singularidade da obra de arte e, também, da escritura da crítica. Em Hegel36 a reflexão também é um movimento que pode ser apreendido em níveis, como em Schlegel. O que distingue de maneira decisiva a concepção do filósofo da concepção do poeta é que no primeiro os diferentes níveis são determinados como etapas históricas, sendo esta a especificidade do conteúdo de cada etapa da reflexão: o conteúdo é histórico. É o que se pode ler nas etapas da Fenomenologia do Espírito. É exatamente esta historicidade que Marx retém dos escritos de Hegel, esforçando-se em subtrair o que considera impregnação idealista na concepção hegeliana. Então, o que está em jogo na reflexão é o sujeito que nela se representa. Essa representação não é um “retrato”, um “autorretrato”; ela é a tomada da palavra, pelo sujeito, enquanto ato de interpretação. É o que Benjamin afirma, com outras palavras, quando descreve o “olhar politicamente educado”37. Ele situa esse olhar, diante da fotografia de Atget, como um olhar desconfiado, um olhar inquisidor, que procura desvendar um “crime”. Essa interpretação atualiza o que é interpretado (aquilo que a obra representa, isto é, o quadro sintomático do contexto que a viu nascer), mas atualiza, também, o quadro sintomático em que se situa aquele que fala na interpretação: o sujeito historicamente determinado. É o que o 36 HEGEL, G. W. Friedrich. Fenomenologia do Espírito. Trad. Paulo Meneses; colaboração Karl-Heinz Efken. Petrópolis: Vozes, 1997. (2 vol.). 37 Op. cit., p. 107. 14 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br próprio Benjamin fez no seu estudo sobre o drama barroco e é o que ele estava em via de realizar, ao longo dos anos 1930, no seu trabalho sobre o século XIX, que ficou esboçado nos textos sobre a fotografia, sobre a arte reprodutiva, sobre Charles Baudelaire e no monumental conjunto de fragmentos das Passagens38. Fotografia e legenda Walter Benjamin refere-se, na abertura do artigo sobre a arte reprodutiva, à tipografia. O texto já era produzido em série havia muito tempo. Ele conhece o impacto que essa técnica teve na cultura, mas não a coloca em destaque como forma reprodutiva contemporânea, optando por sublinhar o impacto da fotografia, que considerada a partir de hoje parece mais uma técnica artesanal. A reprodutibilidade técnica da imagem fotográfica é levada a cabo, no sentido que Benjamin pretende, muito mais pela imprensa, após a invenção de técnicas de conversão de um original de tom contínuo em um original a traço, permitindo, aí sim, a sua ampla reprodução. É, portanto, na imprensa que a imagem fotográfica efetivamente se presta à reprodução serial. Isso não anula o conjunto da reflexão de Walter Benjamin sobre a fotografia, especialmente no que se refere a certo impacto que ela produziu sobre a pintura, a sua proposta de considerar o itinerário histórico da pintura a partir desse impacto, sua preocupação com aquilo que a fotografia introduz com relação à captação da realidade, a questão da aproximação e da eliminação da figura do original, do recuo no culto do objeto único. Esses aspectos indicam, sem dúvida, a pretendida modificação no trato político com as imagens. Mas, visto de uma perspectiva atual, soa lacunar o fato de Benjamin não ter se detido no papel específico que essas imagens cumprem no jornal, articuladas com a linguagem verbal. Ele se limitou a indicar a legenda como elemento de literalização na leitura da imagem fotográfica. Uma das razões que se pode conceber para isso é que Benjamin tinha como foco as variantes contemporâneas que introduziam, no plano técnico, alguma diferença contundente, que eram os casos da fotografia e do cinema. Sua opção foi, então, a de refletir em profundidade acerca dessas modalidades e o papel da técnica nas suas respectivas produções. Outra razão pode ser rastreada na influência que exercia sobre ele, ao longo dos anos 30, as ideias de Brecht. 38 BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora da UFMG; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2009. 15 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br Tanto na fotografia quanto no cinema, mas principalmente no segundo, ele identifica, acertadamente, a possibilidade de coletivização da produção e da recepção das obras de arte. Mas havia, também, em Walter Benjamin, um compromisso, ainda que heterodoxo, com o ideário marxista, especialmente com o marxismo da ideologia. Isso pode ser verificado pelo fato de a maioria de suas referências a Marx serem relativas aos Manuscritos econômicosfilosóficos e ao Dezoito brumário de Napoleão Bonaparte. Esse foco na ideologia abriu espaço na reflexão de Benjamin para a aguda crítica de Adorno, que acusa o texto da reprodutibilidade técnica de subestimar a força do capital no sentido mesmo da ideologia. Para Adorno, o efeito disso no plano das obras é uma tendência à padronização estética, que ele considera de grande valor pedagógico no sentido de ensinar a multidão a comportar-se como massa. E não é outra coisa o que se dá na apropriação da fotografia pela prática jornalística. Na esfera jornalística, a imagem deve cumprir uma função informativa, deve se adequar ao imperativo da informação. Referindo-se às legendas enviadas por Henri CartierBresson junto com suas fotos, o fotógrafo Robert Capa diz o seguinte: Os textos são absolutamente insuficientes. Numa matéria ilustrada você nunca pode escrever legendas dizendo “Primeiro-Ministro” – “Policial” – “luxo extravagante do clube”... O primeiro-ministro tem nome; o luxo extravagante do clube deve estar situado em algum lugar, os seus frequentadores podem ser descritos de algum modo... No geral, Henri precisa aprender que [existem] coisas que são importantes e coisas que são menos importantes.39. A legenda introduz uma hierarquia na percepção40 da imagem fotográfica. No jornalismo, essa hierarquia tem o papel de assegurar a função de representação da imagem, de vinculá-la a uma dada realidade, de tal maneira que o sentido não possa ser outro que a suposta realidade, que é assegurada não pela imagem, por aquilo que a imagem mostra, mas sim por aquilo que o texto diz que ela mostra, ou melhor, por aquilo que o texto diz ser a realidade do que ela mostra. A questão da representação é fundamental para que se compreenda a relação entre o real e a imagem fotográfica em Benjamin. No artigo sobre a fotografia, ele afirmou que o real “não quer extinguir-se na arte”41. Esta insistência do “real” na imagem não pode ser 39 CAPA apud GLASSI, Peter. Henri Cartier-Bresson: o século moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2010. (p. 15). Segundo Márcio Seligmann-Silva (Op. cit.), Walter Benjamin não diferencia percepção de leitura, que por sua vez ele entende como interpretação. 41 Op. cit., p. 93. 40 16 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br confundida com a apreensão empírica das formas. Isto porque, como bem o disse Brecht42, a mera imagem da coisa por si só não permite apreender a plena dimensão de sua realidade interna. Pode-se ir ainda mais longe e afirmar que o real, entendido como acontecimento complexo, não deixa na imagem fotográfica (e em qualquer outra forma de representação) senão um resto, na fotografia literalmente um chamuscado, um traço que atesta a sua ocorrência, mas também a sua perda (inclusive e principalmente na representação)43. Ora, se o real é referido como perda, como falta, como ausência, é na linguagem tomada pela função poética que o real “não se extingue” na arte. Ao contrário, o prosaísmo da representação direta, empírica, da coisa mascara a sua perda, fundando com isso a realidade, eminentemente prosaica. Neste ponto cabe lembrar que a discussão que Benjamin inaugura no seu artigo sobre a fotografia, e que ele desenvolve no artigo sobre a reprodutibilidade técnica, refere-se a uma política da arte, portanto trata-se da contribuição da arte – isto é, da poesia em um sentido mais amplo – em relação à política. Essa contribuição não pode ser, então, a de simular um real que se perdeu, mas de promover a sua rememoração nos restos que ele deixou, lê-lo alegoricamente na ruína. Quanto à realidade, a partir desse raciocínio, ela não pode ser entendida como outra coisa senão a versão hegemônica. É a produção e, principalmente, a sustentação dessa versão que Adorno realça como papel central da indústria cultural44. Adorno refuta a tese de Benjamin relativa à reprodutibilidade técnica por causa da ação pedagógica levada a cabo pela indústria cultural – da qual ele sublinha o fato de ser um sistema. Essa pedagogia massiva apoia-se sobre dois pilares, a saber, a homogeneidade estética de seus produtos e o prosaísmo da representação. A leitura precipitada que alguns fazem de Adorno leva a crítica a ver na sua análise do jazz e do cinema a recusa dessas modalidades como tais. Mas não se trata disso. O que ele insistentemente denuncia é o fato de que os produtos da indústria cultural – para atualizar a proposição pode-se mesmo dizer, os produtos da mídia – estão submetidos ao princípio da produção industrial em geral, isto é, são pressionados de maneira decisiva pelo princípio da mercadoria, qual seja, são fetichizados. A recusa taxativa de Adorno não se dirige 42 BRECHT apud BENJAMIN, op. cit. É em resposta ao reconhecimento dessa perda e a compreensão da obra de arte como via preferencial de apresentação da perda como falta (de sentido) que Benjamin, em sua tese sobre o barroco (BENJAMIN, Walter. Origem do drama barroco alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984.), estabelece, como base de leitura de uma obra de arte, a alegoria como princípio. 44 Não se deve perder de vista que a concepção de arte de Adorno foi marcadamente influenciada pela concepção de Benjamin na tese sobre o barroco. Ainda nos anos 1920, em suas aulas de estética, Adorno trabalhou o livro de Benjamin sobre o drama barroco. Quanto a isto: BENAJIMIN, W.; SCHOLEM, G. Correspondência. São Paulo: Perspectiva, 1993.; e ADORNO, T. W.; BENJAMIN, Walter. Correspondence. Paris: Gallimard, 2006. 43 17 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br exatamente aos produtos eles mesmos, mas ao sistema. O que essa rejeição trai, isto sim, é a convicção com que a concepção de arte de Adorno é vinculada à ideia de autonomia da arte. Exatamente porque buscava uma via de distanciamento dessa ideia, Benjamin apostou na invasão do circuito massivo pela arte e viu nisso um evento politicamente positivo. A tese de Benjamin sobre a arte reprodutiva implica, contudo, o reconhecimento da insuficiência de toda representação em relação ao que efetivamente foi (vale dizer, ao que efetivamente é) o acontecimento. Nesse sentido, a interpretação pode ser entendida como a chave da política da arte, qual seja, a infiltração do sujeito proporcionada pela fratura do sentido, redundando em uma construção discursiva prenhe de hipóteses e suposições relativas ao real, nas quais as impregnações sintomáticas do sujeito (e de sua própria realidade) aparecem. Por outro lado, para Benjamin, a obra de arte emerge para o historiador e o cientista social como “documento” preferencial. E por que isso? Porque ela é uma versão não camuflada e altamente sintomática, ou seja, ela é uma versão que exibe a verdade de sua falta. Os termos dessa exibição devem ser buscados em sua tese sobre o romantismo. É na promoção voluntária de certa ambiguidade, de certa incompletude do sentido, que a obra de arte romântica procura provocar a reflexão. É esta falha no sentido, aquele esvaziamento das ruas de Paris fotografadas por Atget, que se procura eliminar sumariamente do jornal. E isso é feito, cabe reafirmar, pelo texto, restando à imagem a mera função de documentação, de testemunho ocular. A redução da fotografia a essa função tende a eliminar toda a poeticidade que a imagem fotográfica poderia assumir – e frequentemente assume, em outros contextos. Assim, em parte discordando da tese de McLuhan, não se trata de uma “cegueira” relativa gerada pelo excesso de exposição às imagens, mas do confinamento da imagem a certa zona de invisibilidade pelo registro verbal, o uso da imagem como máscara para o prosaísmo do palavrório noticioso que tece cotidianamente a realidade. Walter Benjamin encerra seu artigo sobre a fotografia com o seguinte: Já se disse que “o analfabeto do futuro não será quem não sabe escrever, e sim quem não sabe fotografar”. Mas um fotógrafo que não sabe ler suas próprias imagens não é pior que um analfabeto? Não se tornará a legenda a parte mais essencial da fotografia?45. A resposta é óbvia. 45 Op. cit., p. 107. 18 História, imagem e narrativas No 18, abril/2014 ‐ ISSN 1808‐9895 ‐ http://www.historiaimagem.com.br REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W.; BENJAMIN, Walter. Correspondence. Paris: Gallimard, 2006. ______; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006. ARNHEIM, Rudolf. 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