Nelson da Silva Junior, A gramática pós-moderna da perversão e sua clínica psicanalítica A gramática pós-moderna da perversão e sua clínica psicanalítica* Nelson da Silva Junior Versão preliminar Economia libidinal e economia de mercado Diante da banalização da perversão em nossa sociedade, localizável, sobretudo, nos apelos publicitários - dificilmente classificáveis como sendo exclusivamente da ordem da patologia -, mas não apenas neles, como também em novos fenômenos sociais de natureza claramente perversa, como o canibalismo e pedofilia, uma reflexão psicanalítica conseqüente deveria posicionar-se de modo simultaneamente crítico e não normativo. Essa difícil passagem entre Sila e Caribdis deveria assim conseguir evitar a mera constatação de uma irremediável degenerescência perversa da cultura, e, ao mesmo tempo, tentar buscar um ponto de vista que, ao examinar os bastidores da banalização dos fenômenos perversos, trouxesse à superfície seu sentido profundo, isto é, sua articulação orgânica e necessária com estruturas sociais legítimas, oficiais, isto é, aparentemente independentes de tais fenômenos. Nesse sentido, um dos objetivos do presente texto é propor uma articulação entre a banalização da perversão e a inquietante hegemonia da economia sobre o sujeito no mundo contemporâneo, tomando assim a esfera econômica como uma dessas estruturas socialmente legítimas e sem vínculo aparente com a banalização dos fenômenos perversos. Contudo, trata-se fundamentalmente de compreender de que modo esses elementos se associam e se articulam, a saber, a banalização da perversão propagada pelas técnicas do marketing, por um lado, e as razões de sua eficácia no psiquismo, e seus efeitos nesse psiquismo, por outro. Veremos, com efeito, que essa equação terá reflexos profundos na economia libidinal, justificanto, até certo ponto, uma série de novos fenômenos psicopatológicos com os quais o analista se confronta atualmente. Pós-modernidade e razão instrumental Com efeito, uma das características mais freqüentemente apontadas como a marca da 'pósmodernidade' localiza-se, precisamente, na preocupante subordinação da cultura e da subjetividade ao registro econômico. É possível, contudo, apontar uma diferença fundamental entre a realidade econômica atual e a realidade presente nas análises freudianas da cultura. Freud sempre atribuiu à economia um lugar estável ao lado de outras forças do recalcamento da sexualidade, sendo essencialmente pensada como administração da precariedade de recursos em oposição à satisfação dos prazeres.1 Na realidade atual, contudo, a economia se faz presente junto ao psiquismo não mais como um princípio de limitação dos prazeres, mas, sobretudo, como uma administração instrumental dos desejos e prazeres para geração de novas riquezas. Essa mudança nas relações entre economia e psiquismo tornou-se visível particularmente nos últimos anos de vida de Freud, o que pode talvez justificar a ausência do tratamento explícito dessa questão em seus textos. Desde a Segunda Guerra Mundial, contudo, Adorno propôs um sombrio diagnóstico cultural do ocidente, a saber, a redução da razão humana a modos de pensamento puramente instrumentais, a mercadorização da cultura sob a forma da indústria cultural, e a submissão dos interesses humanos a prioridades econômicas. O aspecto preocupante diz respeito, conforme Adorno, ao funcionamento da racionalidade humana que, longe de se constituir em mera ferramenta de domínio da natureza, volta-se contra a própria natureza do homem. Ora, esse inquietante domínio da razão instrumental sobre a subjetividade pode ser constatado de modo particularmente evidente no fenômeno da banalização da perversão no momento atual da cultura, fenômeno que, segundo nossa hipótese, é indissociável da nova economia e de seu principal modo de produção atual: a produção do comportamento de consumo. Adorno e a indústria cultural Para começar com o primeiro elemento, devemos notar que o modelo adorniano do retorno da racionalidade instrumental no âmbito da indústria cultural visa chamar a atenção, para além do estatuto de mercadoria da cultura, igualmente para o fato de ela tornar-se um meio de produção de comportamentos, e, mais precisamente, comportamentos de consumo. Não se trata assim apenas de vender mercadorias por meio de imagens e discursos pelo cinema, televisão, rádio, internet - veículos de venda de mercadorias de natureza imagética -, mas, sobretudo, de produzir sujeitos com função de exercer o mais perfeitamente possível o papel de consumidor. Isto se torna possível com a construção planificada de discursos e valores, e também com a utilização da própria imagem como um elemento definidor do sujeito, o que sutiliza ao extremo a imagem como instrumento da venda de mercadorias. Com efeito, em última instância, em tal processo de mercantilização de imagens, a imagem ou marca do produto termina por valer mais do que o produto em si, tornando-se o meio e o fim do consumo. Essa forma de produção permite definir o momento atual da economia como aquele da imagem como mercadoria pura, em que a mercadoria finalmente se emancipou de todo e qualquer substrato material. De fato, pode-se dizer que o que caracteriza o momento atual da razão instrumental diz respeito, sobretudo, ao aspecto exponencial desse processo de tradução e criação de formas de subjetivação em elementos que as tornem acessíveis à lógica mercantil. Assim, não apenas ideais estéticos e sensoriais podem se tornar meio da indústria do consumo de, por exemplo, roupas, hábitos de higiene ou alimentares, como também relações de matrimônio ou de amizade, identidades, prazeres eróticos, valores morais, e mesmo formas de adoração religiosa. Em resumo: a era da imagem como mercadoria pura permite que qualquer processo psíquico possa tornar-se uma ferramenta eficaz da produção de consumo. Para tanto, deve-se simplesmente, a cada vez, seja recodificar velhas experiências humanas em comportamentos comercializáveis, seja criar novas necessidades. Por exemplo, a tristeza e as frustrações reais do homem comum devem ser primeiramente isoladas de seu contexto social, e renomeadas como depressão de origem orgânica, para que, em seguida, o medicamento eficaz para sua supressão seja apresentado como acesso imediato à felicidade.2 Ora, não é novidade o fato de que as formas de prazer não escapam dessa lógica de recodificação mercantil. A criação regular de novos ideais estéticos é demasiadamente previsível e evidente para que não se perceba seu caráter instrumental na circulação de mercadorias. A hipótese de uma banalização da perversão na cultura como intrinsecamente ligada à nova economia inspira-se, contudo, em um fenômeno social inteiramente novo, descrito por Zigmunt Bauman (1998). Trata-se do caráter imperativo do gozo na moderna sociedade de consumo, elemento indissociável de uma transformação global da sociedade como tal. Bauman chama a atenção, acima de tudo, para a mudança de valores decorrente da oficialização da ideologia neoliberal como o projeto oficial da comunidade como um todo: O desvio do projeto da comunidade como defensora do direito universal à vida decente e dignificada para o da promoção do mercado como garantia suficiente da universal oportunidade de auto enriquecimento aprofunda mais o sofrimento dos novos pobres, a seu mal acrescentando o insulto, interpretando a pobreza com humilhação e com a negação da liberdade do consumidor, agora identificada com a humanidade.3 Passemos agora ao segundo e terceiro elementos a serem articulados: trata-se de compreender a inquietante eficácia desse novo ideário e seus efeitos sobre o psiquismo. A eficácia libidinal desse imperativo tem como correlato a re-construção da perversão como a modalidade do prazer pós-moderno par excellence. A gravidade desses efeitos exige que busquemos compreender a gramática desse novo modo de prazer na subjetividade. Tal gramática, segundo nossa hipótese, reedita o recalcamento originário concebido por Freud, mas de modo ligeiramente diverso: se, num primeiro momento - tal como no recalcamento originário -, essa gramática suprime uma série de satisfações libidinais; em sua segunda etapa, em vez de empregar as forças libidinais insatisfeitas no trabalho, tal gramática permite a saciedade erótica no prazer de consumir. Examinemos a gramática dessa mimese mercantil da perversão a partir da hipótese freudiana do recalcamento das pulsões prégenitais e sua relação com a instauração da ordem cultural. O recalque originário e a civilização Em uma nota de O mal estar na civilização, Freud (1930) examina o papel da passagem da marcha horizontal para o bipedismo no processo civilizatório: A atrofia da sensibilidade olfativa parece ser um efeito do distanciamento da terra pelo ser humano, da decisão pela marcha ereta. (...) A atração pela limpeza surge da ânsia de afastar os excrementos, os quais se tornaram desagradáveis à percepção. Como sabemos, os excrementos não geram asco nas crianças. (...) Sua desvalorização [pela educação] mal seria realizável, se as matérias provenientes do corpo não fossem condenadas, pelos seus fortes odores, ao mesmo destino dos estímulos olfativos após o posicionamento ereto do homem e sua distância do solo. O erotismo anal sofre, portanto, um 'recalcamento orgânico', que prepara o caminho para a cultura.4 Nessa passagem para a posição ereta, o deslocamento do centro de gravidade da vida pulsional para o registro visual é concomitante à supressão de outras formas de satisfação sexual, que seriam então diretamente sublimadas para a cultura. Essa hipótese é apresentada oficialmente nos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), no qual, segundo Freud, são precisamente as pulsões pré-genitais que devem sofrer a sublimação. Será nesse sentido que Freud dirá que "as forças utilizadas para o trabalho cultural se originam, em grande parte, da repressão dos elementos perversos da excitação sexual".5 Aparentemente tudo se encaixa bem na concepção freudiana das relações entre a cultura e a sexualidade, uma vez que a primeira só retira da sexualidade aquilo que nela é supérfluo para a reprodução. O antagonismo na obra freudiana entre a cultura e a vida pulsional remonta a 1897. Em 31 de maio, ao término de uma carta ao amigo Fließ, Freud escreve que o incesto "é anti-social. A cultura se constitui nessa contínua renúncia."6 Já no texto "A sexualidade na etiologia das neuroses" de 1898 Freud aponta explicitamente para o papel etiológico da civilização: "certamente também a nossa civilização pode ser responsabilizada enquanto preparatória da neurastenia".7 Com efeito, essa oposição aparece claramente na teoria freudiana do período de latência como essencial ao desenvolvimento da sexualidade humana, no qual se confirmam as "relações antagônicas entre a cultura e desenvolvimento livre da sexualidade"8 A primazia da imagem na vida pulsional cotidiana e seu recalcamento pulsional Mas, de que modo a produção do consumo opera uma re-edição mimética do recalcamento originário freudiano ligado à passagem para a marcha bípede? Segundo nossa hipótese, esse processo está ligado ao modo como a imagem se transformou num foco fundamental de nossa experiência pulsional cotidiana. Com efeito, a mercadoria pura não existe de modo pontual ou esporádico, mas sim no interior de uma verdadeira hegemonia da imagem, hegemonia esta apenas potencializada pelo espaço virtual. Retomamos, aqui, a expressão "espaço virtual" na concepção de Baudrillard, para quem esse espaço transcende o mero espaço virtual das telas dos monitores, sendo já completamente indissociável do mundo real. Assim, Baudrillard afirma que "não é preciso entrar no duplo virtual da realidade, já estamos nele - o universo televisual é apenas um detalhe holográfico da realidade global".9 Como se sabe, a imagem holográfica possui o todo em cada um dos seus detalhes. No filme Matrix, de Andy & Larry Wachowsky (1999), por exemplo, o tema da imagetização total da experiência cotidiana é trabalhado de modo primoroso. O corpo humano - ou o que dele restou - acaba se tornando a última fonte de energia de um mundo dominado pela compulsão automática das máquinas. Essa metáfora da mercadorização da força de trabalho inclui a criação de um mundo virtual de modo a manter as pilhas corporais trabalhando adequadamente. Ora, o espaço virtual define-se nesse filme precisamente pelo seu desencarnamento e pela sua distância do corpo. Mas, seriam ainda corpos aqueles aglomerados de carne cujos espíritos vagueiam em um espaço virtual? Com efeito, o mundo virtualizado pressupõe um sujeito desvinculado de um corpo, e, diante de sistemas informatizados interativos, cada sujeito silenciosamente despe-se de seu invólucro corporal e passa a existir apenas na medida exata de suas respostas on-line. Esta nova modalidade ontológica da subjetividade já foi definida como 'identidade terminal', a qual é antes apenas mais um elemento do meio tecnológico do que propriamente originária e dependente de um corpo físico singular.10 O mimetismo do recalque originário na cultura do consumo. Na vida pulsional cotidiana, tanto o sujeito quanto seus objetos encontram-se igualmente privados de corporeidade física. As experiências fundamentais da existência humana: nascimento, vida e morte, realizam-se sob a égide, senão sob o monopólio, da imagem visual. Antes do nascimento, já é possível ver os bebês, determinar-lhes o sexo, e até mesmo concebê-los sem qualquer contato físico. A privação de outros elementos sensoriais, tais como o tato e o olfato, é assim hegemônica na atualidade. Ora, a indústria não se manteve indiferente a tal privação, e hoje é um fato já consumado a reintrodução de cheiros e toques no cotidiano virtual a partir de avanços técnicos. Entretanto, em tal reintrodução planificada, esses prazeres pré-genitais já estão devidamente privados de todos os seus detalhes chocantes e realidades imprevisíveis, contribuindo para otimizar ao máximo o desempenho do consumidor. Com efeito, não é de hoje que a tecnologia do marketing leva extremamente a sério a produção de ambientes artificiais. Já em 1956, a Good Year e a General Motors gastaram cerca de 12 milhões de dólares nesse tipo de pesquisa.11 Assim, na realidade construída para a produção do consumo, as satisfações pulsionais apoiadas sobre a percepção olfativa, tátil, e, em certa medida, a cinética corporal são objetos de uma recodificação tecnológica financeiramente promissora. Retomemos sumariamente a gramática pulsional dessa recodificação. Por um lado, na tecnologia do marketing, o mundo virtualizado opera de fato uma reedição do recalcamento orgânico, visto que, ao depurar a realidade de todos seus detalhes chocantes, ele simultaneamente priva o sujeito de grande parte de seu gozo pré-genital, com sérias conseqüências sobre os processos de desfusão pulsional.12 Mas, por outro lado, essa reedição do recalcamento é realizada de modo apenas parcial, uma vez que se trata de retomar a libido ali mantida em suspenso - em estase - e redirecioná-la para um prazer erótico devidamente associado às imagens da mercadoria. A libido represada volta então a formas não genitais de prazer erótico, segundo uma modalidade essencialmente masturbatória. Nesse ponto, a mimese mercantil dos prazeres potencializa e explora ao máximo a insatisfação constitutiva da lógica desejante, uma vez que a concretização da satisfação erótica em comportamentos de compra deve ser sempre assintótica, de modo a poder ser repetida ad infinitum. Assim, a produção do consumo recodifica o prazer perverso segundo uma racionalidade instrumental da qual o sujeito dificilmente se libertará. Desse modo, a nova economia rearticula a equação freudiana entre a repressão das pulsões sexuais pré-genitais e a sublimação. Assim como as ocupações pré-genitais eram revertidas para um fim socialmente aceito, promovendo a inserção na cultura, conforme o modelo tradicional; o mesmo também acontece atualmente, já que a sociedade pós-moderna tem como filhos pródigos aqueles que provam a maior capacidade de entrega ao consumo. A diferença reside no sentido do termo cultura, que passa de fim em si mesmo a meio de produção. Neste último sentido de cultura, os atos não têm mais como fundo os valores tradicionais e o imaginário social, que são substituídos pelo esvaziamento simbólico ou, em última instância, pelo esvaziamento da condição desejante, quando os atos visam, apenas, ao prazer imediato. A gramática perversa pulsional e sua desfusão Zigmunt Bauman13 apontou o caráter imperativo do gozo na moderna sociedade de consumo como um elemento pertencente a uma transformação global da sociedade. Ora, vimos como a eficácia mercantil desse imperativo depende do redirecionamento da libido segundo uma gramática particular. Segundo nossa hipótese, tal gramática reedita aquela do recalcamento originário, para finalizá-lo de modo ligeiramente diverso daquele prescrito pela perspectiva freudiana. Em seu primeiro momento, tal como no recalcamento originário, essa gramática suprime uma série de satisfações libidinais. Entretanto, em seu segundo momento, em vez de empregar as forças libidinais insatisfeitas no trabalho, conforme postula Freud, a nova gramática libidinal exige que a saciedade erótica se realize no prazer de consumir. Vimos também como o processo de virtualização do mundo, ao depurar a realidade de todos os seus detalhes chocantes, simultaneamente priva o sujeito de grande parte de seu gozo pré-genital, o que pode ser considerado como uma reedição do recalcamento orgânico. Todavia, essa reedição do recalcamento é realizada de modo apenas parcial, pois, na nova gramática libidinal, trata-se de redirecionar a libido em suspenso para formas de satisfação necessariamente associadas à imagem/mercadoria. De fato, a concretização da satisfação erótica em comportamentos de compra deve ser sempre assintótica, de modo a poder ser repetida ad infinitum. Eis o modo como a produção do consumo mimetiza o prazer perverso segundo um processo isomórfico ao da perversão: um prazer erótico é suspenso para ser substituído por um outro prazer, igualmente erótico, mas dirigido ao prazer de consumir. Nesse sentido, a gramática da perversão pode ser considerada o modo fundamental da produção de consumo. Um segundo modelo de sintoma Até agora, vimos como a transformação da esfera econômica a partir da indústria cultural exigiu o domínio de uma tecnologia simbólica destinada à produção do consumo. Isolamos seus mecanismos, que foram ilustrados pela recodificação da depressão e da impotência sexual. Localizamos o processo fundamental da produção de consumo no que denominei gramática da perversão. Trata-se agora de articular esse processo à compulsão à repetição e ao masoquismo, traços freqüentes das patologias da pós-modernidade. O primeiro ponto para o qual gostaríamos de chamar a atenção é o fato de que o sintoma oriundo da neurose não permanece hegemônico ao longo da obra freudiana. Mas o que seria um sintoma no contexto da segunda tópica e da segunda teoria das pulsões? Ora, no texto freudiano, a determinação última dos fenômenos normais e patológicos é sistematicamente localizada na noção de pulsão. Assim, pode-se dizer que os modelos de sintoma formam-se a partir dos modelos da pulsão. Na primeira teoria das pulsões, o sintoma tem a estrutura de uma solução de compromisso entre o desejo, seu recalcamento e o retorno do recalcado de forma deformada. De modo que podemos, em princípio, cogitar para a segunda teoria das pulsões a possibilidade de uma definição de sintoma análoga à da primeira teoria. Este segundo modelo de sintoma, diferente daquele oriundo da neurose, deve ser buscado nos destinos pulsionais indicados na obra freudiana após os anos 20. As reflexões clínicas de Freud, em seu período final, convergem para a problemática do masoquismo moral. Tal questão é explorada tanto clinicamente, quanto no âmbito das interpretações da cultura. Em Moisés e o Monoteísmo,14 por exemplo, Freud examina os efeitos da interdição do culto à imagem, e, portanto, da privação da sensorialidade, na economia libidinal. Esses efeitos são: a insatisfação libidinal e o aumento da agressividade. Mas com o recalcamento da violência dirigida para o exterior, condição necessária da convivência civilizada, a agressividade deve se satisfazer no próprio sujeito. Assim, o impasse pulsional que caracteriza a vida em civilização se traduziria na declaração: "Ou eu te mato, ou eu me mato". Quanto maior o grau de civilização e a renúncia pulsional que o sujeito faz em nome de seu semelhante, mais sua agressividade seria satisfeita em seu próprio interior. É assim que, segundo Freud, o processo civilizatório necessariamente carrega de agressividade o eixo que vai do Superego ao Ego. A implacável agressividade do Superego seria o resultado, segundo Freud, de uma desfusão pulsional entre as pulsões de vida e a pulsão de morte indissociável da Civilização. Tal dinâmica pulsional já havia sido descrita em detalhe em 1924 no Problema econômico do masoquismo como masoquismo moral. A construção psicanalítica do masoquismo moral é, contudo, um pouco mais complexa. A hipótese da agressividade do Superego - o sadismo do Superego - é seguida por uma segunda hipótese, a de um masoquismo do Ego, que seria responsável por uma reerogeneização da agressividade. Eis o sentido da enigmática frase que encerra o texto: "Assim o masoquismo moral se torna uma testemunha clássica da existência da fusão pulsional".15 Frase enigmática, pois no Ego e no Id, a desfusão pulsional se colocava claramente do lado da patologia, e o conceito de fusão pulsional ficava reservado para ilustrar fenômenos da normalidade. Claro está que, coerentemente com toda sua obra, em O Problema Econômico do Masoquismo, Freud se corrige e pensa a fusão pulsional como um processo presente tanto nos fenômenos normais como patológicos. O masoquismo moral, fenômeno evidentemente patológico, é resultado de uma fusão. Isso nos permite avançar na questão do segundo modelo de sintoma em Freud. Com efeito, se num sintoma necessariamente cooperam a causa da doença e a reação do organismo contra ela, é possível propor, tomando o masoquismo moral como testemunha clássica da fusão pulsional, uma primeira formalização do sintoma na segunda teoria das pulsões. Após um processo de desfusão pulsional, o qual pode ter sua origem em várias causas (sublimação excessiva pela privação da imagem, ou pela modalidade narcísica da satisfação pulsional), as pulsões de vida e a pulsão de morte refusionam-se total ou parcialmente em torno de novos eixos da tópica psíquica. Tal definição permite pensar que o masoquismo moral não é a única possibilidade de uma refusão pulsional patológica, abrindo a possibilidade de considerar outros tipos patológicos de refusão pulsional. Minha hipótese é que grande parte das psicopatologias da atualidade parece resultar de formas de refusão pulsional no nível do masoquismo erógeno. Fusão e desfusão pulsional hoje De que modo a nova economia estaria presente em tal refusão pulsional? Isto pode ser pensado a partir das diferenças de interface entre a economia e o psiquismo na época de Freud e na atualidade. Uma primeira diferença diz respeito, precisamente, ao papel da imagem nas formas de satisfação pulsional nessas duas épocas. Com efeito, se, na cultura vienense de Freud, a imagem erotizada era objeto de uma interdição, atualmente, ela é objeto de um imperativo ao gozo. A nova economia, à medida que se especializou na produção do consumo, passou a promover extensivamente modos de satisfação psíquica ligados à imagem. Ora tal satisfação imagética, diferentemente da satisfação objetal, fomenta exponencialmente a desfusão pulsional. Assim, a marca de um bem de consumo vende não mais produtos concretos, mas identificações a um grupo idealizado de representações. Eis por que, na economia libidinal da subjetividade contemporânea, pode-se afirmar a existência de uma tendência culturalmente definida para a substituição do investimento objetal por uma identificação com o objeto, substituindo as formas de satisfação da pulsionalidade objetal por formas narcísicas. Esse desvio do vetor da satisfação libidinal para o interior do sujeito gera uma desfusão em vista da sublimação ligada ao investimento narcísico e ao conseqüente enfraquecimento do poder de ligação das pulsões eróticas. Essa diferença entre os processos de desfusão oriundos da repressão e aqueles originários do imperativo ao gozo configura duas economias libidinais distinguíveis entre si. No caso da desfusão oriunda do recalcamento da sexualidade e dos componentes agressivos da pulsão, o eixo tópico que vai do Superego ao Ego reforça-se sob a égide do masoquismo moral. Já a desfusão pulsional com origem na satisfação narcísica possui, segundo minha hipótese, efeitos bem mais inquietantes sobre a economia psíquica. Por um lado, os processos de refusão pulsional dela provenientes concentram-se no masoquismo erógeno, associando seu aniquilamento ao prazer, como no caso das destruições intencionais do corpo. Por outro lado, essa forma de desfusão passa ao largo do eixo Eu/Supereu, diminuindo a culpabilidade e permitindo uma relação com a lei cada vez mais convencional e, portanto, pouco investida. Assim, a refusão pulsional tende a ser realizada em formas de masoquismo, com preocupantes associações entre o prazer e a dor física, sem que a conotação de uma transgressão esteja necessariamente presente. A nova interface entre economia de mercado e economia libidinal cria então um novo e pobre sujeito destinado a oscilar entre duas possibilidades de investimento psíquico. Por um lado, a tentação de um universo que se apresenta como pleno de sentido, mas cuja gramática perversa visa fundamentalmente a levá-lo ao consumo compulsivo. Por outro lado, tentativas desesperadas de fuga dessa prisão do falso sentido, freqüentemente na forma de desnorteantes atos de rebeldia sem transgressão, uma vez que a única experiência que ainda resta sem a obrigação de consumir é aquela de destruir a si próprio ou aos outros. Notas 1> Freud, S.. "Das Unbehagen in der Kultur (1930)", Gesammelte Werke, Frankfurt-amMain: Fischer Taschenbuch Verlag, v. XIV, (1982), p. 233. 2> Bolguese, S. Depressão & Doença Nervosa Moderna, São Paulo: Via Lettera e Fapesp, 2004. 3> Bauman, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Tradução Mauro Gama. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 34. 4> Freud, S. "Das Unbehagen in der Kultur", Studienausgabe, Frankfurt-am-Main: Fischer Taschenbuch Verlag, 1982, v. 9, p. 229-330. 5> Freud, S. "Drei Abhandlungen zur Sexualtheorie" (1905). In: SA, 1982, v. 5, p. 141. 6> Freud, S. Sigmund Freud Briefe an Wilhelm Fließ 1887-1904, Herausgegeben von Jeffrey Moussaieff Masson, Ungekürze Ausgabe, Fischer Verlag, Frankfurt-am-Main, 1986, p. 269. 7> Freud, S.. "Die Sexualität in der Ätiologie der Neurosen" (1898). In: SA,1982, v.5, p. 29. 8> Idem, p. 144. 9> Baudrillard, J. "Banalidade mortífera". Folha de S. Paulo (Caderno Mais!), 10 de junho de 2001, p. 12-13. 10> Sotto, R. "The virtualization of the organizational subject". In Chia, R. (Ed.) Organized Worlds. Explorations in Technology and Organization with Robert Cooper. Londres: Routledge, 1998. 11> Cf. Mazoye, F. "Consommateurs sous influence". Le Monde Diplomatique, dezembro de 2000 e T. Frank "Le bonheur est dans le centre commercial". Le Monde Diplomatique, agosto de 2001. 12> Silva Jr, N.. "A sombra da sublimação: o imperialismo da imagem e os destinos pulsionais na contemporaneidade". Psychê - Ano VII - n. 11 - São Paulo, 2003, p.29-38. 13> Bauman, Z. Op. cit. 14> Freud, S. "Der Mann Moses und die monotheistische Religion (1937)", GW, XIV, 1999. 15> Freud, S. "Das ökonomische Problem der Masochismus (1924)", GW, XIII, 1999. * Trabalho apresentado no VIII Encontro Científico da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental realizado em Petrópolis, de 11 a 15 de novembro de 2005. Versão preliminar.