FREUD FILÓLOGO, NIETZSCHE PSICÓLOGO: O RETORNO DO ESTRANHO Dhyone Chris Schinemann (PAIC/Fundação Araucária-UNICENTRO) Hélio Sochodolak (Orientador), e-mail: [email protected] Universidade Estadual do Centro Oeste/Ciências Humanas Letras e Artes Palavras-chave: Freud, Nietzsche, estranho, trágico. Resumo Partindo do texto O estranho este estudo reflete acerca da compreensão deste conceito presente na idéia freudiana da estética. Paralelamente, fizemos um contraste com a idéia Nietzschiana do trágico abordada em O nascimento da tragédia. Podemos afirmar que se trata, nos dois casos, de um rompimento relativo com uma concepção moderna de sujeito que os insere numa posição de transição paradigmática. A articulação dos textos mostra que há concordância na idéia de cultura fundamentada na fragilidade humana de lidar com a limitação e a necessidade da criação de ilusões que dêem sentido à existência. Introdução Tratar de articulações teóricas, não raras vezes, pode ser algo polêmico. Pode-se “questionar a própria validade de contrapor formulações teóricas exteriores entre si, sendo que, essa exterioridade constitui, ela própria, outra questão polêmica” (NAFFAH NETO, 1997, p. 41). Mariguela (2001, p. 106) admite que entre estes autores exista um “certo campo de problemas comuns” e que Freud procurou introduzir a psicanálise na polifonia dos discursos existentes acerca da origem da espécie humana com ênfase na literatura poética. Um destes discursos é o Nietzschiano. Em discussão a respeito do Dionisíaco e do Apolíneo enquanto conceitos nietzschianos, Machado (2006, p. 212) fazendo um resgate de diversos autores, afirma que o deus Dioniso para os pensadores do século XIX representava inquestionavelmente um deus estrangeiro, “um corpo estranho na cultura grega homérica”, um deus camita que teria adquirido entre os frígios e os trácios da Ásia menor um rítimo selvagem e embriagador, fato hoje negado por muitos filólogos. Dioniso conserva, contudo, seu sentido de um deus portador de estranheza. Este estudo tem sua relevância por constituir-se numa tentativa não apenas de aproximação, mas de confrontação dinâmica que admita a estranheza, em seu sentido mesmo ambivalente, rompendo, deste modo, com qualquer pretensão de resultados em seu sentido pragmático, indo ao encontro de resultantes mais de sentido que explicativas. Materiais e Métodos Uma poética do estranho-familiar Anais da SIEPE – Semana de Integração Ensino, Pesquisa e Extensão 26 a 30 de outubro de 2009 Voltemos a Freud (1919) que no texto O estranho faz um estudo da filologia dos termos heimlich (familiar) e unheimlich (não-familiar/estranho) e a partir desta investigação entende que o termo estranho desenvolve-se no sentido da ambivalência até que coincide com seu oposto-suposto: familiar. Freud (1919, p. 243) une esta conclusão à definição de Schiller que entende o estranho como sendo “tudo que destinado a permanecer no segredo, no oculto, saiu à luz”. Podemos de certa forma perceber que há em Nietzsche a idéia de algo que por ser estranho (impulsos dionisíacos do deus estrangeiro), e pela sua impossibilidade de superação, é suprimido e mascarado por outra força que subjuga este desejo. Assim, as pulsões reprimidas, bem como a violência originária que nos constitui indivíduos, são reconciliáveis e desenvolvem-se sempre no sentido da ambivalência. Conforme aponta Kon (1996, p. 29) em relação ao ato psicanalítico, lugar de onde falamos mais confortavelmente, não se trata de buscar algo que está oculto, não há o oculto. Trata-se de um processo de criação que segundo a autora não reproduz o audível ou o visível, mas faz o visível, faz o audível. Partindo desta pressuposição o método que buscamos é uma aproximação com a poesia enquanto estética que permite o conhecer por meio da atribuição de um sentido e adotamos um tipo de resultado que é válido enquanto uma perspectiva. Resultados e Discussão Uma filologia do estranho Freud (1919) nos alerta que não é a incerteza intelectual, de fato, a fonte do sentimento de estranheza que causa por sua vez o medo. Para o autor não estamos observando o produto da imaginação de um louco com a superioridade das mentes racionais com o que podemos detectar a verdade e ainda que o fosse assim, em nada isso diminuiria o sentimento de estranheza. É no tema do duplo que Freud irá buscar uma melhor apreciação do tema do estranho. Para ele o duplo é uma forma de negar o poder da morte (da castração), mas quando esta etapa, infantil ou primitiva é superada o duplo modifica sua função e passa de “uma garantia de imortalidade para um anunciador da morte”. Forma-se por meio deste processo uma atividade especial, resistente ao ego, que o critica e julga – a consciência. O duplo converteu-se agora num objeto de terror e faz retornar sempre a lembrança do insólito e inominável ao qual cumpria a função de tamponar, a isso Freud nomeia como a qualidade do retorno constante da mesma coisa. Esta idéia está sustentada na inexorável condição de não superação do horror da morte que é apenas coberta com um véu de ilusão, fino e delicado, que, vez ou outra, faz valer sua transparência. Uma psicologia do trágico Salienta Nietzsche no Nascimento da tragédia (p. 73): Quem queira, com todo o rigor, pôr-se a si mesmo a prova, a fim de saber o quanto é aparentado ao verdadeiro ouvinte estético ou se pertence a comunidade dos homens socrático-críticos, deve apenas perguntar-se sinceramente qual o sentimento com que recebe o milagre representado Anais da SIEPE – Semana de Integração Ensino, Pesquisa e Extensão 26 a 30 de outubro de 2009 na cena: se por acaso sente nisso ofendido seu sentido histórico, orientado para a causalidade psicológica rigorosa, ou se com uma benevolente concessão, por assim falar, admite o milagre como um fenômeno compreensível para a infância, mas que se tornou para ele estranho (...) Apesar das possíveis conjecturas que este achado textual poderia fornecer-nos no tocante a uma equiparação das idéias dos dois autores não se trata realmente disso. Antes é preciso que tratemos de algo mais urgente: a questão da tragédia enquanto viabilizadora da vida, e acima disso, enquanto uma viabilidade distinta daquela da criação do indivíduo luminoso que triunfa sobre a morte numa solução mágica de onipotência de pensamentos que se dava na epopéia. Desta forma, para Castro (2008) e para Machado (2006) o Dionisíaco assume o deus Dioniso como representação, um deus que vem de fora o deus da embriagues, que garante a fusão do indivíduo ao uno. O Apolíneo, representado por Apolo, deus da beleza aparente e da luz e do sonho, garante a individuação, a medida e a consciência de si, operando, portanto um corte na simbiose do indivíduo com o uno. Diante dessas duas pulsões artísticas da natureza Nietzsche propõe a arte trágica como possibilidade reconciliatória de modo que esta apresenta apolineamente a sabedoria dionisíaca. Uma estranha familiaridade Em seu texto intitulado O futuro de uma ilusão, Freud (1927, p. 33) argumenta que tentou demonstrar que as realizações humanas surgem da necessidade do homem em defender-se perante a força esmagadoramente superior da natureza. Freud analisa a religião como sendo uma ilusão e atenta ao fato de que se admitirmos esta idéia podemos admitir também que outros predicativos culturais dos quais fazemos alta opinião e pelos quais deixamos nossas vidas serem governadas são igualmente ilusões. O Nascimento da Tragédia é a obra que contém o cerne do que ocupará as discussões de Nietzsche ao longo de sua vida (ALMEIDA, 2005, p.32). De mesmo modo O estranho tem em si esse caráter de adiantamento de questões que serão centrais no pensamento freudiano, conforme o próprio autor deixa claro que tratará no futuro (FREUD, 1919, p. 256). Mas esta familiaridade intertextual pode ser compreendida se analisamos o percurso metodológico freudiano, haja vista o diálogo intenso da psicanálise com toda a sorte de discursos, que colaboraram para que esta fosse de fato uma expressão de sua época. Em nota de rodapé da edição inglesa das obras de Freud, no texto O estranho (1919, p. 252) salienta o editor “esta frase parece ser um eco de Nietzsche” referindo-se a frase: o retorno constante da mesma coisa, escrita por Freud. O estranho serviu de esboço para Além do princípio do prazer e Compulsão à Repetição, que são textos fundamentais para a epistemologia da psicanálise, além da idéia de Pulsão de Morte, conforme salienta Dunley (2002, p. 95). Desta forma, de um modo ou de outro o pensamento Anais da SIEPE – Semana de Integração Ensino, Pesquisa e Extensão 26 a 30 de outubro de 2009 Nietzschiano acabou por influenciar todo o pensamento psicanalítico, haja vista a influencia destas obras freudianas para a elaboração de uma concepção de psicopatologia e de uma terapêutica na psicanálise. Conclusões Uma cultura histórica que uma vez abalada em sua capacidade de transmissão cultural regressaria instantaneamente a sua condição de infantilidade, ou seja, pensamento mágico, animismo ou a onipotência de pensamentos, por exemplo. A criação de um eu luminoso que triunfe sobre a morte pela ocultação de seus traços remete-nos a uma idéia de algo mal elaborado, que é apenas ocultado, e é por isso que acaba por se tornar deste mesmo lugar o anunciador insistente que causa o sentimento de estranheza frente o retorno do mesmo. Isso é o humano na sua natureza – um ser frágil e desamparado. Cabe a cultura histórica, leia-se não trágica, selecionar algumas ilusões mais fortes e que apolineamente nos dêem uma impressão familiar, numa tentativa de tamponar o estranho da nossa primitividade que insiste eternamente em repetir-se e em fazer-se falar. Retornando. Nietzsche vai mais longe ao propor a arte trágica como solução reconciliatória, no que tange ao Nascimento da Tragédia ao menos. Já em Freud temos a impossibilidade de superação desta castração que tem no desamparo e na falta a condição humana essencial. Agradecimentos À Fundação Araucária que financiou a pesquisa. Referências Almeida, R. M. de. Nietzsche e o paradoxo. Ed.: Loyola (ed.). São Paulo, 2005. Dunley, G. Metapsicologia: a ultrapassagem de um discurso científico na direção de uma ética trágica. Psychê. 2002, 09, 113. Castro, C. M. de. A inversão da verdade. Notas sobre o Nascimento da Tragédia. Kriterion. 2008, 117, 142. Freud, S. O futuro de uma ilusão. Ed.: Imago (ed.). Rio de Janeiro, 1969; Vol. XVII. ______. O estranho. Ed.: Imago (ed.). Rio de Janeiro, 1969; Vol. XVII. Kon, N. M. Freud e Seu Duplo. Ed.: EDUSP (ed.). São Paulo, 1996. Loffredo, A. M. Freud e Nietzsche: tragicidade e poesia. Imaginário (USP). 2007, 14, 65. Machado, R. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Ed.: Jorge Zahar (ed.). Rio de Janeiro, 2006. Mariguela, M. A. Freud e Nietzsche: ontogênese e filogênese. Impulso. 2001, 28,12. Naffah Neto, A. Nietzsche e a Psicanálise. Cadernos Nietzsche. 1997, 01,02. Nietzsche, F. W. O nascimento da tragédia ou helenismo e pessimismo. Ed.: Cia. Das letras (ed.). São Paulo, 1992. Anais da SIEPE – Semana de Integração Ensino, Pesquisa e Extensão 26 a 30 de outubro de 2009