como unidade e finitude: os
existenciais do cuidado e do ser-paramorte
Dasein
José Reinaldo Felipe Martins Filho1
Resumo: A presente investigação intenta discorrer acerca dos dois
princípios constitutivos apontados como fundamentais pela analítica
heideggeriana, a saber: a unidade e a finitude de Dasein. Para tal, partindo
do § 39 de Ser e Tempo, percorrer-se-á o caminho de definição do existencial
do cuidado (Sorge) como princípio de unidade de todo Ser-no-mundo, de modo
a culminar na investigação acerca do Ser-para-morte e da finitude que a ele
é implicada. Em suma, trata-se do cerne da compreensão de Dasein como
ente privilegiado, bem como um dos elos de ligação entre os patamares do
ôntico e do ontológico.
Palavras-chave: Dasein; unidade; finitude.
Bacharel em Filosofia (2009) pelo Instituto de Filosofia e Teologia Santa Cruz –
Associação Sedes Sapientiae – ISC-GO. Estudante membro do grupo VIVA VOX de
pesquisa em filosofia clássica e contemporânea, UFS.
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Dasein como unidade e finitude: os existenciais do cuidado e do ser-para-morte
Em sua evolução, a analítica existencial de Ser e Tempo procurou
discorrer acerca de Dasein2 nos seus diferentes modos de ser. O ser-no-mundo
compreende, de igual modo, o Ser-em, em sua disposição, o ser-com-os-outros,
que ao mesmo tempo toma seu caráter impróprio tornando-se o impessoal
(Das Man) da vida cotidiana, e os demais momentos que o constituem, tais
como o próprio mundo em sua mundanidade. Seria possível afirmar que,
em suma, a constituição de Dasein se instaura por um aglomerado de modos
de ser? A resposta para tal questão é, em sua base, negativa. Dasein não
é um todo fragmentado. Como bem afirma Heidegger em sua definição,
trata-se do “ser-no-mundo aberto na decadência que, lançado, se projeta e
que, em seu ser junto ao ‘mundo’ e em seu ser-com-os-outros, está em jogo o
seu poder-ser mais próprio” (Heidegger, 1997, p. 244). Entretanto,
torna-se notória a necessidade de um modo fundamental de ser, capaz
de sustentar sobre si o papel de elemento fundante na constituição do
ser-no-mundo. Como resposta a essa questão, Heidegger aponta o cuidado
(Sorge). De modo a evidenciar a constituição unitária do ser-no-mundo, o
cuidado é apontado como essência de Dasein, enquanto ser-no-mundo. Desse
modo, somente a análise existencial do cuidado permitirá a compreensão
da unidade de todos os momentos de Dasein. Como aponta Corvez (1966,
p. 47), são “os três caracteres fundamentais de Dasein: a disposição afetiva,
a compreensão e a decadência formam a síntese estrutural que Heidegger
nomeia, num sentido muito especial, cuidado”3
Termo fundamental para a filosofia heideggeriana. Traduz-se literalmente por o aí do
ser, sendo comum encontrá-lo traduzido por ser-aí. A edição brasileira de Ser e Tempo
opta pelo termo presença quando se põe a traduzi-lo. Ao contrário do que indica em
seu contexto original alemão, em Heidegger a expressão Dasein toma novo sentido. É
o termo que indica o modo de ser do homem. Todo homem é Dasein, mesmo que de
maneira inautêntica. Como termo central para a filosofia heideggeriana sua compreensão
faz-se imprescindível. A presente investigação aponta-o como termo intraduzível, sendo
que qualquer tentativa de tradução decorreria na perca de seu profundo valor semântico.
Para melhor compreensão do termo cfr. Inwood (2002), no que tange ao verbete Dasein.
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O trecho entre aspas corresponde à livre tradução do autor. No texto original se
encontra: «Les trois caractères ontologiques fondamentaux du Dasein: la disposition
affective, la compréhension et la déchéance se nouent dans une synthése structurelle que
Heidegger nomme, en un sens très spécial, le souci.» (Corvez, 1966, p. 47). Optamos
por cuidado na tradução do termo souci levando em consideração a uniformidade do texto,
cotejado com a versão alemã, Sorge, de Sein und Zeit.
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O CUIDADO COMO PRINCÍPIO DE UNIDADE
Sob um dado olhar investigativo, a analítica do Ser-no-mundo parece
ter percorrido um caminho de enumeração dos seus diferentes modos de
ser. Por vezes, tem-se a impressão de se estar falando de coisas distintas
e, até mesmo, alheias umas às outras. Vários são os momentos de Dasein.
Todavia, é de encargo do cuidado conferir-lhe seu caráter unitário. O cuidado
é o que, de certa forma, colabora na unidade dos diferentes momentos
dos quais Dasein4 se constitui. Diante disso, vale ressaltar que a análise
heideggeriana emprega o termo cuidado unicamente sob um prisma
ontológico. Aqui não se pode dizer a existência de qualquer atribuição
ética, ao contrário do sentido comumente dado ao termo pela linguagem
corrente: “Ela não significa propriedades ônticas que continuamente
aparecem, e sim, a constituição ontológica subjacente” (Heidegger,
1997, p. 265). O cuidado não se dá através de fenômenos visíveis, tais como
o desejo, a vontade, a tendência, a propensão. Segundo o filósofo (idem,
p. 259), “do ponto de vista ontológico, o cuidado é anterior aos fenômenos
mencionados que, sem dúvida, só podem ser adequadamente descritos
dentro de certos limites [...]. Estes fenômenos se fundam existencialmente
no cuidado”. Para Heidegger, enquanto existencial, o cuidado precede
todas essas demonstrações fenomenais. De modo mais abrangente, tais
fenômenos não podem preceder o cuidado. Antes, nele estão contidos,
pois, como assinala o autor (1997, p. 245) de Ser e Tempo, “O cuidado não
pode derivar desses fenômenos, pois eles mesmos nele estão fundados”.
Para chegar à elaboração do conceito de cuidado, Heidegger parte de
outro conceito fundamental, a saber, o de angústia, apresentado na análise
do Ser-em. Em sua argumentação, a angústia é apresentada como uma das
principais disposições às quais todo Dasein é submetido. A angústia, como
disposição, é o que, de certo modo, possibilita a abertura do ser-no-mundo
rumo à sua constituição de ser decaído. Em certo sentido, a caracterização
Cfr. Zarader (1986, p. 211), onde afirma: “Car si nous sommes bien, avec Le souci, em
possession de la structure multiforme de l’être du Dasein, nous ne savons pás ce qui
constitue l’unité de cette multiplicité”.
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da angústia a delimita frente ao fenômeno que lhe é próximo, a saber,
o temor. Ambos estados se qualificam como principais disposições de
Dasein. Ao mesmo tempo em que possibilita o solo fecundo à abertura
de Dasein em sua constituição de ser-no-mundo, a angústia também torna
possível o solo fenomenal da compreensão de Dasein em sua totalidade
originária. Esse modo de ser originado de tal disposição é o que Heidegger
(1997, p. 245) denomina cuidado. Para Gonzalbéz (1992, p. 183), em Ser e
Tempo, a ideia de queda instaurada na consideração de Dasein como ser-nomundo é o que melhor exprime a ideia de sua essencialidade como cuidado.
Ser-no-mundo é cuidar de, preocupar-se e, precisamente, por não ter nada senão
o mundo, o Dasein se propõe a essa atividade. Assim, a queda no mundo
que proporciona ao Dasein a saída do interior de si mesmo não deve ser
vista como algo negativo nem, tampouco, o cuidado deve ser percebido
como um impulso volitivo que projeta o ser-no-mundo à entrega de si. Por
cuidado entende-se o existencial do Dasein responsável por sua unidade
estrutural, sendo concebido como o modo de ser mais básico de Dasein.
Ao contrário do temor, a angústia nunca se dá em função de um ente
intramundano. A angústia é o próprio desvio da decadência: “O desvio da
decadência se funda na angústia que, por sua vez, torna possível o temor”
(Heidegger, 1997, p. 249). A angústia sempre precederá o temor.
Como se vê, o motivo pelo qual Dasein se angustia não se atém a nenhum
ente intramundano: “Nada do que é simplesmente dado ou que se acha
à mão no interior do mundo serve para a angústia com ele se angustiar”
(idem, p. 250). Sendo assim, o que se torna a causa e a origem da angústia?
Segundo Heidegger (idem, ibidem), “aquilo com que a angústia se angustia
é o nada que não se revela em parte alguma”. Fenomenalmente esse nada
é representado pelo próprio mundo. Assim, o fenômeno originador da
angústia para Dasein é o próprio mundo como tal. Noutras palavras, sua
angústia é constituída por seu próprio ser-no-mundo. Para Heidegger (1997,
p. 251), “se o nada, ou seja, o mundo como tal, se apresenta como aquilo
com que a angústia se angustia, isso significa que a angústia se angustia
com seu próprio ser-no-mundo”.
No § 40 de Ser e Tempo, Heidegger apresenta a eleição da disposição
fundamental da angústia como abertura privilegiada de Dasein. A partir daí,
estende-se o processo de argumentação pelo qual se justifica a analítica
da angústia como possibilidade de compreensão do cuidado. A angústia
é apresentada como uma possibilidade ontológica de Dasein; é o que
possibilita sua abertura enquanto ente elevado. Toda abertura se baseia
na disposição e na compreensão. Como disposição privilegiada Heidegger
aponta a angústia. Ao contrário do que se deu na análise do Ser-em, a partir
daqui (§ 40) o filósofo de Freiburg construirá sua argumentação dando
ênfase na diferença entre a angústia e o temor anteriormente referidos. Em
primeiro lugar, na decadência Dasein se projeta para fora de si, desaloja-se.
Dessa forma, a decadência se torna, de certo modo, a maneira cotidiana
pela qual o próprio Dasein se apresenta. Nisso deve colaborar a angústia.
Mesmo que a distinção entre angústia e temor ainda se mostre obscura
a essa altura da argumentação – como também sejam constantemente
confundidas uma com a outra –, torna-se imprescindível tomá-la como
auxílio para a compreensão do cuidado, como modo de unidade de Dasein.
Tal angustiar-se não se apresenta contrário à abertura do ser-nomundo. Enquanto modo da disposição é a angústia que, primeiramente, abre
o mundo como mundo. Nela se torna possível conceber a mundanidade do
mundo como tal (Heidegger, 1997, p. 251). A angústia, dessa forma,
não se torna um simples angustiar-se com. Ao contrário, como disposição,
eleva-se a um angustiar-se por... Sua principal característica é o fato de pôr
em perda tudo o que o mundo é capaz de oferecer ao Dasein. Na angústia
todos os entes intramundanos se perdem; nem sequer a copresença dos
outros pode ser oferecida. Recordando, “a angústia angustia pelo próprio
ser-no-mundo” (Heidegger, 1997, p. 251). A própria angústia é o que
garante ao Dasein seu caráter de abertura às possibilidades. Para Heidegger
(1997, p. 252), é a “coincidência existencial do abrir e do aberto em que se
abre o mundo como mundo, o ser-em como poder-ser singularizado, puro
e lançado”, que evidencia a angústia enquanto fenômeno privilegiado. A
angústia abre Dasein para si mesmo. Dá a ele a possibilidade de melhor
compreender-se. É a disposição que revela o “como se está”. A angústia
de Dasein enquanto ser-no-mundo torna-o estranho em sua condição no
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Dasein como unidade e finitude: os existenciais do cuidado e do ser-para-morte
mundo. Como é apontado no § 12 de Ser e Tempo, Ser-em significa estar
familiarizado com... – para Dasein, com o mundo. O mundo é a casa de
Dasein. No mundo dá-se o seu sentir-se em casa. A angústia, ao contrário, retira
de Dasein seu empenho decadente no mundo. Rompe-se a familiaridade
cotidiana. Em outras palavras, Dasein é colocado para fora de casa. Retirase sua comodidade cotidiana de ser decadente. Tal ação, não sentir-se em casa,
torna Dasein estranho diante de sua relação com o mundo: angustiado.
Assim, é o próprio não sentir-se em casa que abre a possibilidade na qual
Dasein se torna capaz de voltar-se para si, compreender seu próprio ser:
“O não sentir-se em casa deve ser compreendido”, afirma Heidegger (1997, p.
254), “existencial e ontologicamente, como o fenômeno mais originário”.
Pertence a toda disposição a capacidade de abertura do ser-no-mundo
enquanto tal. Entretanto, “só na angústia subsiste a possibilidade de uma
abertura privilegiada na medida em que ela singulariza” (idem, p. 255). Na
angústia, o ente privilegiado encontra a possibilidade de se desvencilhar
dos demais entes intramundanos em detrimento de seu próprio ser. Nisso
consiste sua singularização. Segundo Heidegger (1997, p. 255 – tradução
modificada),
[e]ssa singularização retira o Dasein de sua decadência e lhe
revela a propriedade e impropriedade como possibilidades
do seu ser. Na angústia, essas possibilidades fundamentais de
Dasein, que é sempre meu, mostram-se como elas são em si
mesmas, sem deixar desfigurar pelo ente intramundano a que,
de início e na maior parte das vezes, o próprio Dasein se atém.
Por conseguinte, são apresentados como caracteres constituintes
desse Dasein três elementos fundamentais, a saber: a existencialidade, a
facticidade e a decadência (Ser e Tempo, § 41). Para Pasqua (1993, p. 99-100), essa
estrutura própria de Dasein é o que possibilita a sua existência como um
estar-diante-de-si-mesmo: “Ela caracteriza o Dasein sempre como já lançado
no mundo. A sua ek-sistência é fática no sentido em que se desenrola
sempre no mundo. [...] Existencialidade, facticidade e decadência formam,
assim, uma unidade que poderia formular-se como o ser-já-em-diante-de-simesmo-como-ser-jundo-de”. Mais uma vez Dasein é apresentado como um todo
constituído. Nenhuma dessas partes pode prescindir à outra. É a unidade
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ontológica desses momentos que possibilita ao Dasein o conhecimento de
seu ser como tal. No ente que o Dasein é, a questão que está sempre em jogo
é a questão do seu próprio ser: “Em seu ser Dasein sempre precedeu a si
mesmo” (Heidegger, 1997, p. 256). Estar em jogo significa precederse a si mesmo. A respeito disso, afirma Zarader (1986) que o cuidado, como
ser do Dasein, é uma articulação complexa constituída por três elementos
irredutíveis: o Dasein enquanto Ser-já-no-mundo, como Ser-diante-de-si e como
Ser-junto-ao-ente5. Seu ser-já-no-mundo implica a facticidade, o já encontrarse no mundo, ao que denomina o estar jogado – por isso, frente à sua
constituição na temporalidade, surge como correspondente ao passado.
Por sua vez, Ser-junto-ao-ente traz consigo o caráter da decadência. Trata-se
do ser junto aos objetos intramundanos e, por isso, o sentido temporal
do presente. Por fim, reserva-se ao Ser-diante-de-si o sentido do projetar-se
rumo às suas possibilidades e, assim, uma referência ao futuro. O cuidado
é, portanto, esse fenômeno capaz de garantir a unidade de Dasein em seus
três momentos distintos de ser: presente, passado e futuro. Para Heidegger
(1997, p. 257), toda formulação da estrutura fundamental da essência de
Dasein como cuidado deve ser compreendida tendo em consideração os
seguintes aspectos: o ser de Dasein diz respeito a si mesmo, por já Ser-em; o
ser junto aos entes que vêm ao seu encontro no mundo. Em sua essência,
o ser-no-mundo é cuidado. O cuidado, por sua vez, não se caracteriza pela
separação entre os três elementos caracteres de Dasein – existencialidade,
facticidade e decadência –, mas pela unidade de suas determinações
ontológicas. Assim, segundo Heidegger, toda tentativa de reduzir o cuidado
a meros momentos e impulsos particulares resulta em certo fracasso.
Como exemplificação da origem do cuidado Heidegger apresenta
uma antiga fábula, na qual oriundo do cuidado, juntamente com a
colaboração de outros deuses, dá-se a criação do homem. Através de tal
estória, Heidegger pretende apresentar o cuidado em sua interligação com
Cfr. Zarader (1986, p. 210-211), onde afirma: « Le souci, compris comme etrê du Dasein,
est une articulation complexe constituée par trois éléments irréductibles: le Dasein est,
pour autant qu’il est-déjà au monde, qu’il est-en-avant de soi même, et qu’il est-auprès de
l’étant. Tel est el résultat des différentes analyses constitutives de l’analytique existenciale.».
O trecho que compõe o texto acima corresponde à livre tradução de significado.
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Dasein como unidade e finitude: os existenciais do cuidado e do ser-para-morte
o próprio Dasein desde suas origens. Ser essência de Dasein significa, de
modo simultâneo, ser fundamento “pré-ontológico” na constituição de
todo homem. O homem é, em seu fundamento, cuidado. Tal generalização
aparece de modo a priori: “Não significam propriedades ônticas que
continuamente aparecem, e sim a constituição ontológica sempre
subjacente” (Heidegger, 1997, p. 265). Só isso dá a possibilidade de
interpretação de Dasein como cuidado. Ser, para Dasein, é ser no cuidado, ser
cuidadosamente, ser no cuidado do ser, ou seja, ocupar-se sempre com seu ser
(Dubois, 2005, p. 43). Ainda hoje usa-se o conceito de cura para atribuir
o sentido essencial do ser humano. Segundo Emmanuel Leão (1977, p. 25),
a “cura e o cuidado do pensamento radical se dão na reflexão da filosofia
que se empenha em remover as obstruções da funcionalidade, acumuladas
nas dicotomias de um mundo quase só feito de sujeito e objeto”. Como
conclusão, assinala Pasqua (1993, p. 102) que “no final deste breve capítulo,
o autor lembra-nos que a interpretação ontológica de Dasein como cuidado
visa não a elaboração duma antropologia filosófica, mas a preparação da
ontologia fundamental que se interroga sobre o sentido do ser”.
A FINITUDE DO SER-PARA-MORTE
Na medida em que Dasein é compreendido como um todo,
constituído de diferentes e diversos modos de ser, dá-se, como próximo
passo, sua apreensão como finitude. Quando se falava das disposições
de Dasein, em especial da angústia como disposição privilegiada, pôde-se
observar que Dasein se angustia com seu próprio ser-no-mundo; muito além
disso, se angustia com seu Ser-para-a-morte. Contudo, em que consiste tal
existencial? Acaso pode ser compreendido como um autêntico modo de ser
de Dasein? A morte é a única garantia em suas possibilidades, ou melhor, é
“a possibilidade em suas impossibilidades” (Heidegger, 1989, p. 32).
É pela morte que Dasein perde seu modo de ser. O fim de Dasein é a morte
(DUBOIS, 2004, p. 49). Nela, seu modo próprio de ser Dasein é reduzido
ao modo de ser dos entes simplesmente dados (Heidegger, 1989,
p. 30). Desse modo, vale refletir em que a morte pode fazer um todo de
Dasein, tendo em vista que ela é seu sucumbir; é o que faz de si um “nada”.
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Tal compreensão só pode se dar através da análise fenomenológica do fim
de Dasein, de sua morte.
Ao contrário das demais possibilidades, a morte não é passível
de experiência. Um Dasein nunca experimenta sua própria morte. Como
solução para tal empecilho, Heidegger projeta sua analítica tendo como
base a morte dos outros. A compreensão da morte como fim se dá, em
grande medida, sob o prisma da morte do outro. Entretanto, mesmo
na morte dos outros, o ser-no-mundo dos que ficam não é capaz de
experimentar o que, de fato, significa morrer. Jamais se pode experimentar
a morte do outro. Nem mesmo o sacrifício pelo outro significa morrer em
seu lugar. Trata-se, a morte, de uma experiência individual e própria. Para
Heidegger, morrer não é simplesmente estar no fim, mas sim ser-para-o-fim,
uma propensão rumo a... Nessa relação, o Dasein se diferencia dos demais
entes viventes. Para ele, morrer é o modo de ser pelo qual ele próprio é
para a morte. O morrer entendido como Ser-para-a-morte é o que possibilita
a compreensão da morte como um seu existencial próprio. Os demais
entes simplesmente dados perecem, ao passo que o termo falecimento é
reservado, unicamente, para se referir ao ato de morrer do próprio Dasein.
Ao estabelecer tal distinção, Heidegger resguarda o termo “morrer” à
condição de um modo existencial de Dasein – sua constituição de Serpara-a-morte (Sein zum Tode). Em consequência disso pode-se dizer: “Dasein
jamais perece, mas ele só pode falecer porque morre” (HEIDEGGER
apud DUBOIS, 2004, p. 49).
Para Heidegger (1989, p. 32), “a morte é uma possibilidade
ontológica que o próprio Dasein sempre tem de assumir”. Na morte dáse seu poder-ser mais próprio. A morte é a possibilidade que usurpa de
Dasein seu próprio ser-no-mundo. É o que garante sua individualização
em relação ao mundo. A morte é a única possibilidade na qual Dasein
depende unicamente de si. Nela, torna-se independente dos demais entes
do mundo; nisso se qualifica seu poder-ser mais próprio. É a extrema de
suas possibilidades, pelo fato de ser a única que não pode ser superada.
Tal possibilidade se funda no fato de Dasein estar totalmente aberto para
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Dasein como unidade e finitude: os existenciais do cuidado e do ser-para-morte
si mesmo. Assim, o preceder-se a si mesmo, como momento estrutural do
cuidado, encontra sua concretização mais originária no próprio Ser-para-amorte (idem, p. 32-33). De modo claro, o ser-para-o-fim como Ser-para-a-morte
se torna o ser-para essa possibilidade de Dasein.
A compreensão do Ser-para-a-morte parte de sua concepção como
“possibilidade nas impossibilidades”. Várias são as possibilidades nas
quais Dasein se encontra envolvido. Todas, em um âmbito particular,
incapazes de garantir sua própria existência. Na morte é o próprio Dasein
quem assume seu poder-ser em sua totalidade, prescindindo do auxílio
dos entes circundantes. A morte, nessa visão, é o que qualifica o ser
próprio – a morte é sempre minha. O morrer, enquanto possibilidade,
torna-se um constante caminhar em direção à morte. Em Heidegger, a
morte não é um momento isolado e definitivo. Morrer significa pender-se
constantemente rumo a... Isso confere a abertura total de Dasein para seu
próprio ser: “Puramente, ela é o que vem; não reside senão nessa vinda.
Mas nessa vinda, como vinda de nada no mundo, é precisamente o serno-mundo enquanto tal que se abre, avaliado em sua nudez” (Dubois,
2004, p. 50 – grifo meu). Na morte pode o Dasein compreender-se a
si mesmo inteiramente. A partir de seu isolamento torna-se capaz de
assumir a totalidade de sua existência. Enquanto ser-no-mundo, lançado nas
possibilidades, Dasein é Ser-para-a-morte. Experimenta a angústia por seu
próprio ser-no-mundo. Uma vez compreendido assim, suporta a certeza da
morte. Não se trata da morte como um fim – um perecer – mas o morrer
a cada instante, o morrer cotidiano, certeza em suas indeterminações,
única capaz de suportar qualquer indeterminação. Em Heidegger (1989),
a certeza de si significa certeza de si como mortal. Sum quer dizer um Sum
moribundus. Certo desse modo de ser, Dasein é capaz de tomar posse de si
mesmo, entrando em sua essência, seu último despojamento.
À primeira vista, Dasein não possui nenhum saber acerca de sua
própria morte. Sua condição é de ser-lançado. É na disposição da angústia
que lhe é desentranhada sua condição mais original (Heidegger, 1989,
p. 33): “A angústia com a morte é angústia ‘com’ o poder-ser mais próprio,
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irremissível e insuperável”. Tal angustiar não se pode ver confundido
com o vão temor do falecimento. Como disposição fundamental, afirma
Heidegger, a angústia é a abertura pela qual Dasein compreende que, em
seu próprio ser-lançado, existe para seu fim. Para Pasqua (1993, p. 127),
“a angústia não é a fuga diante da morte, mas o enfrentar da possibilidade
da nossa própria impossibilidade”. A morte é esse poder-ser mais próprio
(Heidegger, 1989, p. 33). Dessa forma, o morrer assume abrangência
muito maior que um mero findar ou desaparecer.
Ser-para-o-fim é caráter inerente ao próprio Dasein. Para Heidegger,
o fato de muitos não saberem de seu Ser-para-a-morte não lhe abdica
sua universal pertença ao Dasein. O conhecimento da morte se dá pela
angústia, como disposição fundamental e privilegiada. “Existindo Dasein
morre de fato” (Heidegger, 1989, p. 33). Como no cuidado, o serpara-o-fim também se caracteriza pela existência, facticidade e decadência.
Nisso se qualifica o conceito existencial de morte. Como possibilidade
ontológica o morrer se funda no cuidado (idem, p. 34).
Para Pasqua (1993, p. 127), o que convém reter como principal
resultado do § 50 de Ser e Tempo é o fato de que no Ser-para-a-morte
Dasein relaciona-se com seu poder-ser mais insigne. Sendo um ser de
possibilidades e encontrando o auge de todas as suas possibilidades na
morte, nela Dasein tem a condição de encontrar-se totalmente consigo
mesmo. Entretanto, tamanha é a abrangência desse encontrar-se consigo
mesmo, todo e completo, que, temendo ver-se todo em sua ipseidade,
Dasein refugia-se no Nós – impessoal/das Man, o a gente, comumente
empregado nos dias atuais – onde se dilui, perdendo-se a si mesmo. Por
isso a necessidade encontrada por Heidegger de, no § 51 de Ser e Tempo,
partir rumo à compreensão cotidiana do Ser-para-a-morte, tendo como
pressuposto o fenômeno da morte do Nós, o impessoal: “Quando o Nós
morre, Eu não morro, porque o Nós não é ninguém” (Pasqua, 1993,
p. 127).
Nesse parágrafo, segundo Ernildo Stein (2001, p. 292), “Heidegger
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Dasein como unidade e finitude: os existenciais do cuidado e do ser-para-morte
analisa o homem, sem, contudo, tomar como tema o próprio homem”.
A finitude6 do Nós representa a inautenticidade do Ser-para-a-morte.
No Nós a morte sempre surge como algo que chega ao Dasein por sua
exterioridade. É uma notícia de morte; é um anúncio de falecimento. A
morte é entendida como uma realidade fática, um acontecer imediato.
Nisso consiste seu dissimular. Tal dissimulação visa a tranquilização a
respeito da morte. Em outras palavras: “O impessoal (Nós) não permite
a coragem de assumir a angústia com a morte” (Heidegger, 1989,
p. 36 – grifo meu). Só na angústia dá-se o entregar-se à morte como
possibilidade radical (Pasqua, 1993, p. 128). O Nós rouba da angústia
seu sentido próprio, equiparando-a ao temor pelo morrer. Assim, a morte
torna-se estranha ao Dasein, dizendo respeito somente à morte dos outros.
Enquanto decadência, o “Ser-para-a-morte cotidiano é uma permanente
fuga de si mesmo” (Heidegger, 1989, p. 37). No modo de ser da
existência autêntica, a morte não se limita ao conceito de moribundo.
É no parágrafo 52 de Ser e Tempo que Heidegger esboça,
objetivamente, o conceito existencial de morte. Mesmo dissimulando
Dasein da compreensão autêntica de morte, o Nós não consegue subtrair
dele a certeza do morrer. A existência da morte permanece inabalável.
Resta, porém, uma aprofundada compreensão de seu sentido. A certeza
da morte não pode se ater ao nível empírico. Longe disso, trata-se de
uma certeza ontológica. Nos ditames empíricos a certeza da morte não
se revela como ela é. Sua certeza se dá pelo fato de que a cada instante é
possível, pois sempre é possível morrer, uma vez que se vive (Pasqua,
1993, p. 129). “Enquanto fim da presença, a morte é a possibilidade mais
própria, irremissível, certa e, como tal, indeterminada e insuperável de
Dasein. Enquanto fim de Dasein, a morte é e está em seu ser-para o fim”
(Heidegger, 1989, p. 41 – tradução modificada). Diante da morte,
Como ferramenta para a melhor compreensão do termo finitude e seu emprego na
filosofia heideggeriana recomenda-se a leitura de: Stein (2001). Nessa obra, o autor
se refere ao tema da finitude em Heidegger relacionando-o com outros conceitos
importantes para tal corrente do pensamento. De modo especial, o capítulo 4 da terceira
parte trata a questão da compreensão da finitude, onde o autor apresenta a definição de
finitude munida de breve explicação teórica.
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Dasein encontra a possibilidade de ser todo. Como fora visto, o cuidado é
o existencial responsável pela unidade de Dasein. O Ser-para-a-morte, por
sua vez, é o que possibilita ao Dasein ser totalmente si mesmo. Na morte
Dasein se abre para a possibilidade inexaurível de compreensão de si. Nela
é capaz de se isolar dos demais fenômenos do mundo. Na morte, Dasein
se encontra só e, por isso, completo: “O problema da possibilidade de
ser todo desse ente, que cada vez nós mesmos somos, justifica-se caso o
cuidado, entendido como constituição fundamental de Dasein, se conecte
com a morte, enquanto possibilidade mais extrema desse ente” (idem, p.
42 – tradução modificada). Para Heidegger, o Ser-para-a-morte funda-se no
cuidado. Isso garante sua possibilidade de ser todo.
Estando-se munido do conceito heideggeriano de morte, surge
o seguinte questionamento: se a morte é uma possibilidade e as demais
possibilidades se vencem pela realização, acaso deve Dasein destruí-la
como uma possibilidade? Acaso deve subtrair-se da existência em favor
da realização de tal possibilidade? Não! Como foi apresentado, a morte é
a mais certa de todas as possibilidades, por isso, sua compreensão deve
se estabelecer de modo a diferir-se das demais. As demais possibilidades
existem em função de Dasein, destruindo-se a seu serviço (Pasqua,
1993, p. 130): “Quanto à morte, ela é uma possibilidade cuja característica
é destruir todas as outras, e o próprio Dasein, realizando-se” (idem,
ibidem). Ele se abstém de morrer e vive morrendo: “O Ser-para-a-morte é a
antecipação do poder-ser de um ente cujo modo de ser é, em si mesmo, um
antecipar” (Heidegger, 1989, p. 46). Avançar para a morte significa
convergir rumo ao ponto onde se cruzam o possível e o impossível.
Tomando a morte como possibilidade que o torna impossível,
Dasein compreende-se intimamente ligado ao nada. A morte isola ao Dasein
de todas as suas possibilidades, reduzindo-o a ele próprio. Antecipando-se
na morte, Dasein alcança a garantia de ser si mesmo. Para Heidegger (1989,
p. 50), o antecipar da possibilidade sem relação força o ente antecipador
à possibilidade de assumir por si o seu ser mais próprio a partir de si
mesmo (cfr. também Pasqua, 1993, p. 131). Isolar-se significa renunciar
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Dasein como unidade e finitude: os existenciais do cuidado e do ser-para-morte
a si mesmo no nada. A morte isola ao Dasein pelo fato de ser sempre
ele quem morre. A morte é sempre minha. Diante disso, a atitude de
Dasein frente à morte deve se constituir como um aceitar livremente. Isso
é a “LIBERDADE PARA A MORTE”, fruto da angústia pelo morrer
(Dubois, 2004, p. 51). É liberdade apaixonada, factual, certa de si mesma
e desembaraçada das ilusões impessoais (Heidegger, 1989, p. 50).
Tal liberdade assume um papel muito além do simples libertar-se. Não
se trata de liberdade no sentido convencional, mas, como salienta Pasqua
(1993, p. 131), “a vertigem que acompanha a queda do ser no nada. É um
mergulhar no fim, do qual todo ser, esvaziado de si próprio se identifica
com o nada”, Nisso interliga-se seu princípio de unidade, advindo do
cuidado como existencial fundamental, e a finitude, como resposta última a
sua condição de ser para suas possibilidades.
Résumé: La présente recherche a comme objectif l’examen argumenté
des deux principes fondamentaux de l’analyse heidegerienne: l’unité
et la finitude du Dasein. A cette fin, nous étudierons, à partir du § 39
de Être et Temps, le procès de définition du caractère existentiel du souci
(Sorge) comme principe d’unité de tout être-au-monde. Notre recherche
nous amenera enfin à l’analyse de l’être-pour-la-mort et donc du concept de
finitude. En bref, c’est le coeur de la compréhension du Dasein comme
étant privilégié et comme un des liens entre l’ontique et l’ontologique que
nous nous proposons ici d’examiner.
José Reinaldo Felipe Martins Filho
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Dasein como unidade e finitude