1 UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado em Desenvolvimento VALORES FAMILIARES E PROCESSO SUCESSÓRIO NA PERSPECTIVA PSICOLÓGICA: O CASO DE UMA EMPRESA FAMILIAR GAÚCHA DO SETOR DE PLÁSTICOS Alan Murilo da Silva Ijuí, dezembro de 2012. 2 UNIVERSIDADE REGIONAL DO NOROESTE DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu Mestrado em Desenvolvimento VALORES FAMILIARES E PROCESSO SUCESSÓRIO NA PERSPECTIVA PSICOLÓGICA: O CASO DE UMA EMPRESA FAMILIAR GAÚCHA DO SETOR DE PLÁSTICOS Dissertação apresentada como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Desenvolvimento na área de concentração: Gestão de Organizações e Desenvolvimento da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí) Alan Murilo da Silva Orientadora: Doutora Enise Barth Teixeira Ijuí, dezembro de 2012. 3 Catalogação na Publicação S586v Silva, Alan Murilo da. Valores familiares e processo sucessório na perspectiva psicológica : o caso de uma empresa familiar gaúcha do setor de plásticos / Alan Murilo da Silva. – Ijuí, 2012. – 86 f. ; 29 cm. Dissertação (mestrado) – Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Campus Ijuí). Desenvolvimento. “Orientadora: Enise Barth Teixeira”. 1. Empresa familiar. 2. Processo sucessório. 3. Psicodinâmica familiar. 4. Valores familiares. I. Teixeira, Enise Barth. II. Título. III. Título: O caso de uma empresa familiar gaúcha do setor de plásticos. CDU: 658 658.114.1 Aline Morales dos Santos Theobald CRB 10/1879 4 UNIJUÍ - Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento – Mestrado A Banca Examinadora, abaixo assinada, aprova a Dissertação VALORES FAMILIARES E PROCESSO SUCESSÓRIO NA PERSPECTIVA PSICOLÓGICA: O CASO DE UMA EMPRESA FAMILIAR GAÚCHA DO SETOR DE PLÁSTICOS elaborada por ALAN MURILO DA SILVA como requisito parcial para a obtenção do grau de Mestre em Desenvolvimento Banca Examinadora: Profa. Dra. Enise Barth Teixeira (UNIJUÍ): _________________________________________ Profa. Dra. Vânia Medianeira Flores Costa (UFSM): _________________________________ Profa. Dra. Denize Grzybovski (UNIJUÍ): __________________________________________ Ijuí (RS), 21 de dezembro de 2012. 5 Dedico este trabalho a todas as pessoas que compartilharam deste ciclo ao meu lado, em especial aos meus familiares, minha avó materna, minha noiva, amigos e colegas pelo apoio constante. 6 AGRADECIMENTOS Primeiramente a Deus, por ser a razão de tudo e ter possibilitado realizar este trabalho, por iluminar e conduzir minha caminhada. À minha família, meu pai Olinto Afonso da Silva, minha mãe Marilene Antunes, meus irmãos Olinto Junior da Silva e Cássio Fernando da Silva, por simplesmente estarem ao meu lado. À minha avó, Santira Ana Cassol, por toda a sua dedicação e afeto incansável. À minha noiva, Juliana Defaci Mioto, pela compreensão de minhas ausências. À minha orientadora professora doutora Enise Barth Teixeira, por me guiar pelos caminhos acadêmicos. Enfim, a todos que, direta ou indiretamente, contribuíram nessa jornada. Muito obrigado! 7 “O homem é o que ele acredita”. Anton Tcheco 8 RESUMO A relevância das empresas familiares no contexto nacional e mundial, principalmente quando levado em conta o desenvolvimento decorrente das mesmas, fez desta temática um campo de estudo para a área da Administração. A proposta central desta Dissertação consiste em analisar se os valores familiares refletem no processo sucessório de uma empresa familiar na perspectiva da Psicologia. A análise de uma empresa familiar, realizada por intermédio de uma abordagem psicológica, pode contribuir com o estudo significativamente, pois existe um acervo de teorias voltado para o fenômeno das relações familiares. Além das características visíveis e concretas da empresa que são relevantes para este estudo, pode-se dar mais atenção aos processos inconscientes como também às emoções, medos, angústias e demais sentimentos que circundam as pessoas dessa organização. A base teórica empregada foi estruturada a partir de uma revisão sobre os temas “Empresas Familiares”, “Processo Sucessório” e “A Visão da Psicologia Sobre as Empresas Familiares”. No que refere aos aspectos metodológicos este estudo encontra-se alicerçado em uma abordagem qualitativa de pesquisa, sendo adotado como estratégia o estudo de caso único. O lócus de estudo corresponde a uma empresa familiar gaúcha do setor de plásticos. Já o corpus de estudo consiste nos membros da família empresária e três funcionários. A principal técnica de coleta de dados utilizada foi a entrevista semiestruturada buscando uma compreensão da importância dos valores familiares no processo sucessório. Para a apreciação dos dados foi usada a técnica de análise de conteúdo e de discurso. A análise e interpretação dos dados possibilitaram evidenciar que os valores familiares foram sendo construídos e preservados respeitando a individualidade e subjetividade de cada membro do núcleo familiar. O processo sucessório da empresa está se configurando aos poucos, porém ainda não é possível afirmar qual dos filhos assumirá a presidência. Com relação à identificação e descrição dos valores familiares compartilhados pelas pessoas que integram o grupo organizacional, constata-se que existem valores familiares presentes entre os sujeitos que atuam em todos os departamentos e setores da organização. No tocante ao processo sucessório, ainda não está sendo tratado diretamente qual dos filhos assumirá o comando. Em virtude dos aspectos analisados, conclui-se que os valores familiares são considerados na sucessão, tendo em vista a continuidade da empresa. Palavras-chave: Empresa familiar. Processo sucessório. Psicodinâmica familiar. Valores familiares. 9 ABSTRACT The relevance of family firms in the national and global levels, especially when taken into account due to the development of the same, made this theme a field of study in the area of administration. The central proposal of this dissertation is to examine whether family values reflected in the process of succession of a family business from the perspective of psychology. The analysis of a family business conducted by a psychological approach can contribute significantly to the study, as there is a collection of theories focused on the phenomenon of family relationships. Besides the concrete and visible features of the company that are relevant to this study, we can give more attention to unconscious processes as well as the emotions, fears, anxieties and other feelings that surround people in this organization. The theoretical basis used was structured from a review on the topics "Family Business", "Succession Process" and "The Vision of Psychology About the Family Business." As regards the methodological aspects of this study is grounded in a qualitative research approach, the strategy being adopted as a single case study. The locus of study is a family business Gaucho's plastics industry. Since the corpus of study consists of family members manager and three employees. The primary data collection technique used was the semis structured interview seeking an understanding of the importance of family values in the succession process. For the assessment of the data we used the technique of content analysis and discourse. The analysis and interpretation of data made possible evidence that family values were being built and preserved respecting the individuality and subjectivity of each member of the family. As noted in the speech of the father, the succession process of the company is gradually setting, however, is not yet possible to say which of the children will assume the presidency of the company. At the end of this research it was possible to meet the objectives originally proposed in the study. With regard to identification and description of family values shared by people in the group organizational family values are very present in the relations established between all departments and employees. Pertaining to the succession process has been found that this is a process that is shaping up initially, because not long ago that the children came to work in company with his father / founder. By virtue of the aspects analyzed it is concluded that family values are considered in the succession in order to continue business. Keywords: Family business. Succession process. Psychodynamic family. Family values. 10 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO ESTUDO .......................................................................... 13 1.1 Apresentação e Delimitação do Tema .......................................................................... 13 1.2 Problema ........................................................................................................................ 14 1.3 Objetivos. ........................................................................................................................ 14 1.3.1 Objetivo Geral ........................................................................................................ 14 1.3.2 Objetivos Específicos ............................................................................................. 14 1.4 Justificativa .................................................................................................................... 15 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA ...................................................................................... 17 2.1 A Empresa Familiar e o Modelo de Três Círculos ..................................................... 17 2.2 Cultura e Valores Familiares........................................................................................ 25 2.3 Processo Sucessório ....................................................................................................... 29 2.4 Equilíbrio Vida Pessoal e Profissional ......................................................................... 34 2.5 A Visão da Psicologia sobre as Famílias Empresárias ............................................... 38 2.5.1 Abordagem Psicodinâmica ..................................................................................... 40 2.5.2 Transferência/Contratransferência e Mecanismos de Defesa................................. 44 2.5.3 Abordagem Sistêmica ............................................................................................. 46 2.5.4 Algumas Correlações Entre a Abordagem Psicodinâmica e a Abordagem Sistêmica Familiar ........................................................................................................................... 49 3 METODOLOGIA................................................................................................................ 52 3.1 Delineamento da Pesquisa............................................................................................. 52 3.2 Sujeitos da Pesquisa ...................................................................................................... 55 3.3 Coleta de Dados ............................................................................................................. 56 3.4 Análise e Interpretação dos Dados ............................................................................... 58 4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS .................................................. 60 4.1 História e Características da Empresa Alfa ................................................................ 60 11 4.2 Identificação e Descrição dos Valores Familiares ...................................................... 64 4.3 Análise do Processo Sucessório .................................................................................... 67 4.4 Compreensão da Psicodinâmica Familiar e Seus Reflexos no Processo Sucessório 72 CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 77 REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 79 APÊNDICES ........................................................................................................................... 88 12 INTRODUÇÃO Novas concepções abarcam o campo da Administração visando a esclarecer as questões que rondam o contexto e as práticas executadas pelas empresas. Uma das principais descobertas relacionadas a este contexto está voltada para as questões de cunho subjetivo, ou seja, a organização é um ambiente que interfere, influencia e é influenciada pela experiência das pessoas que nela trabalham, espaço em que a racionalidade econômica se entretece com a subjetividade presente na mente humana (SILVA, 2010). Em muitos casos, estes processos são implícitos às práticas de gestão, todavia exercem um papel importante para o desempenho e sucesso organizacional. As empresas familiares passam por constantes transformações casuais, pois são baseadas em deliberações que unem as características emocionais com as racionais, e terminam descartando as reais necessidades do negócio. Num extremo, é visível a ausência de coerência entre as decisões do gestor/proprietário e as reais prioridades para o andamento do negócio, que, por sua vez, acaba dificultando a administração. No outro extremo, a forma com que os proprietários familiares administram suas empresas, ainda que desordenadamente, permite que muitas delas sobrevivam no mercado por um longo prazo. Conhecer os determinantes que facilitam e que dificultam o andamento das empresas familiares, portanto, ajuda na elaboração de estratégias que visem à propagação dos fatores responsáveis pelo desenvolvimento da empresa e iniba os causadores de desajustes na dinâmica organizacional (SILVA, 2010). Partindo-se dessa prerrogativa, “os aspectos emocionais dos laços familiares, caracterizados pela solidariedade, afetividade, segurança e estabilidade, coexistem com o conflito, a competição e a desagregação, típicos da dinâmica capitalista” (CRUZ, 2012, p. 11). As características emocionais acabam, muitas vezes, influenciando relações no âmbito do trabalho, como nos momentos de decisão e de competição, bem como refletem nos padrões de gestão e da cultura organizacional (DAVEL; COLBARI, 2003). 13 Pereira (2010) assinala que a família é possuidora de uma história e de caminhos socialmente construídos que tornam visível o resultado da interação família-empresa, traduzidas em práticas organizacionais e em valores que permeiam a organização. A empresa familiar se depara com desafios próprios da sua natureza que podem comprometer sua sequência. Dentre estes desafios destacam-se a maneira como lidam com os conflitos e as relações familiares, a sucessão, a profissionalização e a questão do gênero (LETHBRIDGE, 2005). É notório, todavia, que não é apenas a família em si que afeta a dinâmica empresarial, ou vice-versa, mas o fato de não saber lidar com problemas advindos desse relacionamento (BERNHOEFT; GALLO, 2003). O caso torna-se mais difícil quando os aspectos emocionais e sociais se sobressaem nas relações entre sucessores e fundadores (LE BRETON-MILLER; MILLER; STEIR, 2004). Nesse sentido, a transição entre gerações – característica fundamental dessa interação – torna-se um fator contundente de sucesso ou de fracasso para a continuidade das empresas familiares (GRZYBOVSKI; HOFFMANN; MUHL, 2008). Para Barach et al. (1988), inserir uma nova pessoa da família dentro da empresa significa confrontar os desafios resultantes da interação entre a família e a organização. Para Christensen (1979, p. 182), “[...] o pai pode apontar o filho para o comando da empresa, mas não pode forçar a sua aceitação pelo restante da organização”. O presente documento trata-se de uma Dissertação de Mestrado em Desenvolvimento da Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (Unijuí), e tem como tema central valores familiares e processo sucessório na perspectiva psicológica. A estrutura do presente estudo compreende cinco partes seguindo desta introdução. A primeira explica a contextualização apresentando algumas informações referentes ao tema oferecendo consistência ao assunto proposto, expõe o problema de pesquisa e destaca os objetivos – geral e específicos – contemplados no trabalho. Por último a justificativa, evidenciando os argumentos que retratam a importância da Dissertação para o meio acadêmico e para a empresa. A segunda parte apresenta o referencial teórico dividido em seis subtítulos. No primeiro, o texto contempla a definição de empresa familiar e o modelo de três círculos como um instrumento que facilite um mapeamento do funcionamento dessas organizações. Em uma segunda vertente, expõe conceitos sobre cultura e valores familiares. No terceiro subtítulo estão presentes as principais definições sobre processo sucessório. O quarto subtítulo aborda a questão do equilíbrio entre a vida profissional e a pessoal. Para finalizar, proporciona uma interlocução entre a Psicologia e as famílias empresárias. 14 A terceira parte compreende a metodologia, a qual corresponde ao delineamento da pesquisa, sujeitos, coleta, análise e interpretação de dados. A quarta parte corresponde à apresentação dos resultados e está dividida em quatro subtítulos. O primeiro versa sobre a história e características da empresa. Em seguida são identificados e descritos os valores familiares. O terceiro subtítulo ressalta a análise do processo sucessório e, para o fechamento desta parte, o último subtítulo aborda a compreensão da psicodinâmica familiar e seus reflexos no processo sucessório. A quinta parte desta Dissertação apresenta as considerações finais, evidenciando os principais resultados obtidos por meio da análise dos resultados, bem como sugestões para futuros estudos. 15 1 CONTEXTUALIZAÇÃO DO ESTUDO 1.1 Apresentação e Delimitação do Tema Os dados referentes às empresas familiares brasileiras são significativos e retratam a dimensão e a relevância dessa temática constituindo um aspecto amplamente referenciado pela literatura da área. Flores e Grisci (2010) explicam que 80% das empresas brasileiras legalmente constituídas podem ser ditas familiares, pois possuem membros de uma mesma família em seu controle acionário e, na maioria das vezes, também constituem o grupo dos gestores. No total de empresas privadas brasileiras, as familiares representam 4/5 destas, respondem por mais de 3/5 da receita e 2/3 dos empregos e, por outro lado, 1/5 das empresas familiares tem apresentado dificuldades de sucessão. Os mesmos reforçam ainda o valor das empresas familiares ao mencionar que o crescimento destas interfere na economia do país, porém sua preocupação vem no sentido de que a vida média das empresas brasileiras é de 12 anos; já a das empresas familiares é de nove anos. Destas empresas, 30% passam para o comando da segunda geração e somente 5% para a terceira. Autores como Bernhoeft e Castanheira (1995) demonstram que a ausência de planejamento sucessório pode ocasionar conflitos de interesses entre os membros da família empresária, tais como desarmonia e desgastes pessoais, falsos pensamentos em relação aos demais acionários e sentimentos ambivalentes, considerando que estas questões vão interferir nas características estruturais e de gestão, podendo levar o negócio à falência. Para Oliveira (2006, p. 11), “o processo sucessório representa um dos momentos mais importantes para que se otimize a continuidade da empresa familiar”. São inúmeros os fatores que interferem nessa transição, posto que, além dos efeitos e mudanças diretivas e operacionais envolvidas, existem fatores emocionais relacionados a esse processo. Outro assunto preponderante, relacionado à troca de comando, são os valores da família proprietária constituindo um aspecto importante a ser considerado, pois incorporam boa parte do comportamento dos gestores dando melhor visibilidade às razões pela qual uma 16 empresa opera de determinada forma em seu dia a dia (DAVEL; SOUZA, 2004; SCHEIN, 1985). Sendo assim, a proposta de elaborar uma pesquisa de natureza psicológica visa a compreender o objeto de estudo com foco em suas características subjetivas, ressaltando a importância destas no ambiente organizacional especificamente no que se refere à estruturação do processo sucessório. 1.2 Problema Até que ponto os valores familiares são considerados no processo sucessório de uma organização familiar na perspectiva psicológica? 1.3 Objetivos 1.3.1 Objetivo Geral Identificar os valores familiares e analisar os reflexos no processo sucessório de uma empresa familiar na perspectiva da Psicologia. 1.3.2 Objetivos Específicos a) Identificar e descrever os valores familiares compartilhados pelas pessoas que integram o grupo organizacional. b) Verificar e analisar os valores que os membros da família compartilham sobre o processo sucessório. c) Compreender a psicodinâmica1 familiar e sua relação com o processo sucessório. 1 As teorias psicodinâmicas assinalam que o comportamento é regido por um conjunto de forças psicológicas que interage dentro do indivíduo, na maioria das vezes fora de seu estado de consciência. Freud espelhou-se na física de sua época para elaborar o termo psicodinâmica. Assim como a termodinâmica é o estudo de elementos que sofrem mutações, a psicodinâmica é o estudo da energia psíquica e de suas interferências no comportamento das pessoas (MORRIS, 2004). Nesse caso, diz respeito ao papel que a família desempenha na socialização dos filhos, que pode ser entendida pela expressão dos valores familiares, ou seja, a maneira como os pais dão importância aos aspectos da vida profissional sempre estará presente no mundo de representações dos filhos. 17 1.4 Justificativa As pesquisas realizadas em empresas familiares vêm aumentando com o passar dos anos, considerando a relevância deste assunto para a área da Administração e pela representatividade na economia brasileira, uma vez que essas organizações representam uma grande fonte de renda e emprego para o país (MAGALHÃES NETO; FREITAS, 2003). No Brasil, estima-se que mais de 75% das empresas em operação encontram-se sob o comando de famílias (MUSSI; TEIXEIRA; MASSUKADO, 2008). A empresa estudada contribui com o desenvolvimento local em âmbito de geração de renda e emprego. Sua matriz está localizada no interior do Estado do Rio Grande do Sul, sendo referência para os municípios da região pelo fato de possuir uma estrutura que comporta cerca de 240 colaboradores e exportar produtos para 11 Estados brasileiros. Esse argumento, no entanto, não estabelece a justificativa principal, pois, independentemente do número de organizações familiares, o foco está nos processos sociais, os quais são traduzidos em aspectos políticos, simbólicos e emocionais decorrentes da relação família e empresa (DAVEL; COLBARI, 2003). Dessa forma, a pesquisa visou a explorar as histórias e as trajetórias socialmente construídas pelos membros da família, bem como os aspectos constituídos no ambiente de trabalho na tentativa de transparecer as múltiplas interfaces entre essas duas instâncias. Outro fator preponderante nesta justificativa é o tema, pois este se insere na linha de Pesquisa Gestão Empresarial da área de concentração Gestão de Organizações e Desenvolvimento do Mestrado em Desenvolvimento, e ainda no Grupo de Estudos e Pesquisas em Organizações, Gestão e Aprendizagem (Gepog). Ademais, existe uma limitação de estudos de cunho psicológico. Nesse sentido, tal abordagem pode contribuir de maneira diferenciada auxiliando no entendimento das características subjetivas (inconscientes) presentes nas organizações. Além disso, a inclusão dos estudos organizacionais em outras áreas do conhecimento (Psicologia, Filosofia, Física, Biologia, Medicina, etc.) se torna relevante, pois contribui para a compreensão dos fenômenos que permeiam esse ambiente, sendo uma alternativa a mais para desvendar a complexidade atrelada aos aspectos organizacionais. A análise de uma empresa familiar, realizada por meio de uma abordagem psicológica, pode contribuir com o estudo, pois existe um acervo significativo de teorias psicológicas voltadas para o fenômeno das relações familiares. Com isso, é possível, mediante a análise dos discursos dos integrantes da organização, entender tais processos sob uma ótica subjetiva. 18 Além das características visíveis e concretas da empresa que são relevantes para este estudo, foi possível dar mais atenção aos processos inconscientes como também às emoções, medos, angústias e demais sentimentos que circundam o grupo organizacional, ou seja, a subjetividade acaba complementando a objetividade característica das empresas. Para a empresa, este estudo é relevante, pois ela poderá utilizá-lo no futuro para elaborar e estruturar o processo sucessório a partir dos resultados obtidos nesta investigação. Também é importante para a universidade, pois este trabalho ficará à disposição para pesquisa dos acadêmicos e comunidade em geral, instigando novos trabalhos nessa linha de conhecimento. Por fim, a problemática levantada sobre as organizações familiares reforça o valor dessa temática como área de pesquisa nos estudos organizacionais e na Administração que, devido a sua multidisciplinaridade e interdisciplinaridade, possibilita a associação de vários pontos de vista e orientações acadêmicas. 19 2 FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA Esta parte tem a finalidade de apresentar os conceitos de alguns autores (Davel; Colbari (2000); Bottino-Antonaccio (2007); Gersick et al. (1997); Lansberg (1999), entre outros) que permeiam o campo dos estudos sobre organizações familiares por meio de quatro temáticas: empresa familiar, cultura e valores familiares, processo sucessório e a visão da Psicologia sobre as famílias empresárias. 2.1 A Empresa Familiar e o Modelo dos Três Círculos Davel e Colbari (2000) indicam que no ano de 1953 iniciam-se as primeiras pesquisas sobre as empresas familiares, elaboradas por Carl Roland Christensen, na condição de um documento que exibia os problemas decorrentes do processo de sucessão de pequenas empresas em fase de crescimento. Durante os anos de 1960 e 1970 esses estudos passaram a ter mais relevância, sendo analisados de uma forma em que os entendimentos começariam a ser aplicados para auxiliar a sucessão nas empresas. É a partir dos anos 80, no entanto, que as pesquisas para a compreensão das empresas familiares passam a ter suma importância na literatura mundial e no Brasil (DAVEL; COLBARI, 2000; 2003). A partir desta data surgiram os órgãos, conferências e bibliografias dedicadas aos estudos sobre a temática empresa familiar em vários países, tais como a Canadian Association of Family Enterprise em 1983, a Family Firm Institute (FFI) em 1984 e sua revista Family Business Review, o Family Business Research em 1988, nos Estados Unidos da América e o Family Business Network (FBN) em 1989, na Europa (DAVEL; COLBARI, 2000; BOTTINO-ANTONACCIO, 2007). Nesse período, os estudos sobre as organizações familiares eram limitados. Os principais assuntos estavam associados aos problemas de sucessão, à entrada da mulher no mercado de trabalho e, consequentemente, nas empresas, à profissionalização, à formação de herdeiros, aos aspectos psicológicos do empreendedor/fundador/líder e demais dificuldades 20 encontradas por essas empresas. Por sua vez, a criação dessas instituições teria por objetivo prestar serviço e auxiliar os profissionais que estavam em contato direto com organizações de caráter familiar, servindo também de objeto de estudo e interesse (BOTTINOANTONACCIO, 2007). Com o aumento no número de pesquisas em organizações familiares, novos assuntos começaram a emergir e, além das características racionais e tangíveis, as questões subjacentes às empresas familiares, como os fatores sociais, culturais, simbólicos, políticos, emocionais, relacionais, comunicacionais, linguísticos, temporais, comunitários e étnicos, também despertaram o interesse dos pesquisadores, pois os teóricos passaram a crer que tais aspectos poderiam influenciar o ritmo de funcionamento dessas empresas (DAVEL; COLBARI, 2003). De acordo com Bottino-Antonaccio (2007), as tendências mais pesquisadas no campo dos estudos sobre as empresas familiares, até o final dos anos 90, ainda se dirigiam para características como: as práticas gerenciais; o processo de sucessão e, consequentemente, os conflitos desencadeados por este; as particularidades das organizações familiares e a participação das mulheres. Tais assuntos estavam relacionados com o sucesso e perpetuação das organizações. A autora lembra que a maioria dos estudos analisava as empresas familiares como duas instituições distintas, nas quais as características, tanto de uma instituição (família) como de outra (organização), poderiam interferir negativamente no seu funcionamento. Nessa visão, são poucos os estudos que têm por objetivo analisar as empresas familiares como instituições recíprocas, nas quais a dinâmica tende a interferir positivamente nesses dois sistemas. São inúmeros os pesquisadores que dedicaram seu tempo ao estudo das empresas caracterizadas familiares. Por esse motivo, Lansberg (1999) afirma que há um dilema de definição, pois existem muitas divergências entre os vários teóricos sobre o conceito de empresa familiar. Donnelley (1964) considera a empresa familiar quando identificam-se, pelo menos, duas gerações com uma família e quando essa ligação influencia a política da empresa nos interesses e nos objetivos da família. Define ainda que essa ligação ocorre por meio de algumas condições, como: o relacionamento familiar ser um fator determinante na sucessão; esposa e filhos poderem participar no conselho de administração; e valores da empresa identificados como os valores da família, dentre outros. Bernhoeft (1991) descreve e caracteriza a empresa familiar como sendo apenas aquela que possui membros da família, pois defende a ideia de que as decisões e as escolhas são feitas com base na confiança entre as pessoas. 21 Para Davis (2007, p. 4), “empresa familiar é controlada por uma única família, da qual dois ou mais de seus membros têm influência preponderante na direção do negócio, mediante cargos gerenciais de governança, direitos de propriedade e relações familiares”. Os fatores influenciadores da criação de empresas familiares, conforme Gersick et al. (1997), podem ser descritos como as “forças que empurram” as pessoas a buscar esse objetivo, e representam as disposições psicológicas e acontecimentos da vida que levam o empreendedor à necessidade de abrir seu próprio negócio, e as “forças que puxam”, as quais estão relacionadas e são expressas pelas condições econômicas e ambientais que são determinantes para a abertura de novos empreendimentos. Um dado importante a ser considerado nos estudos realizados em empresas familiares, proposto por Silva, Fischer e Davel (1999), diz respeito a sua importância no sistema econômico de vários países, inclusive no Brasil, porém a grande questão que está em jogo é que muitas dessas empresas não sobrevivem durante longo período de tempo. A literatura aponta que 40% das empresas fracassam no primeiro ano de vida, 60% em menos de dois anos e 90% até o final do décimo. Na mesma linha de raciocínio, Bernhoeft (1991) complementa assinalando que 70% dos empreendimentos existentes no mundo não sobrevivem à morte do fundador. A maior dificuldade enfrentada pela empresa familiar, na visão de Carrão (1997), verifica-se na passagem da primeira para a segunda geração. Tal argumento é válido pelo fato de que 70% das empresas familiares vivem, em média, 24 anos, tempo que o fundador permanece na direção dos negócios. Carrão (1997) atribui isso ao fato de que a primeira sucessão guarda características que acabam não se repetindo nas demais, sendo a mais importante a se considerar a relação afetiva enraizada que o fundador possui para com a empresa. Campos e Mazzilli (1998, p. 1) trazem a concepção de que “a empresa familiar, ao abarcar duas instituições complexas e vitais ao homem (família e organização), traz consigo um grave conflito de papéis, que assume seu ápice no processo sucessório e pode determinar a estabilidade, expansão ou declínio do empreendimento”. As bibliografias nacionais sobre empresas familiares tiveram um atraso significativo em seu desenvolvimento, pois, conforme Bethlem (1994), não se apoiavam em estudos científicos e, por isso, não eram tratadas como conhecimentos válidos. Vários autores desenvolviam trabalhos direcionados para o entendimento das organizações familiares brasileiras, como, por exemplo, Lodi (1987; 1993), Gutierrez (1987) e Rodrigues (1991). 22 Um dos primeiros estudiosos que dedicou seu tempo pesquisando as organizações brasileiras foi Bethlem (1994). Seus estudos tiveram como base três mitos relacionados às empresas nacionais, assim escolhidos por não haver uma bibliografia que permitia um tratamento de tais mitos como acontecimentos. O primeiro mito referido foi do pai rico, filho nobre, neto pobre. Os estudos realizados até o momento não tinham evidências suficientes para validar tal afirmação, pois elas mencionam famílias donas de empresas familiares, tais como a Rede Globo, o Grupo Itaú, a Klabin, a Votorantin e a Aracruz, que já atravessaram gerações e ainda são proprietárias de considerável patrimônio (SILVA, 2010). O segundo mito é pertinente à competência gerencial do(s) fundador(es), sugerindo que uma empresa bem-administrada será certamente bem-sucedida. Bethlem (1994) e Bernhoeft (2008) explicam o sucesso empresarial a partir da leitura do ambiente externo, quando as oportunidades oferecidas pelo mercado alavancaram o crescimento empresarial, independente das estratégias elaboradas pelos administradores para obterem melhores resultados. Seguindo a mesma linha de pensamento, Silva (2010, p. 47) relata que: No Brasil, por exemplo, com a chegada da industrialização, fatores como o modelo de substituição de importações, a demanda maior que a oferta, consumidor pouco exigente, barreiras alfandegárias protecionistas, gerando proteção para o industrial local, mão-de-obra barata e ausência de sindicatos, foram fatores que permitiram o crescimento empresarial desconectado da elevada capacidade gerencial por parte dos administradores, que não necessitavam ser competentes em marketing, produção, controle, tecnologia e recursos humanos para alçarem resultados satisfatórios. Por fim, o último mito é o de que a profissionalização, ou seja, a contratação de pessoas com formação acadêmica que não tenham parentesco com os proprietários das organizações familiares é mais indicada para ocupação dos cargos gerenciais. Para Bethlem (1994), não existiam literaturas que comparassem a administração familiar da profissional evidenciando quais das duas era mais eficiente; o que na época estava claro era que o critério de escolha de dirigentes sucessores deveria ser o da competência e, não, o do parentesco ou relacionamentos familiares. Para Silva (2010), a partir do século 21 até atualmente, as pesquisas direcionadas para a compreensão das empresas familiares passaram a afirmar que todas as organizações são familiares. Tal afirmação provém dos estudos desenvolvidos por Davel e Colbari (2000), Davel (2008) e Garcia e Moreira (2008), em que os referidos autores partem do pressuposto de que o universo público, relacionado ao trabalho, não é desconectado da esfera privada, da experiência; assim, todos os indivíduos carregam consigo uma experiência de base familiar da 23 qual não podem se desvincular “simbólica, retórica ou subjetivamente por completo”, mesmo perante a ocupação de outros papéis na sociedade, pois a família é responsável pela socialização primária e constituição dos princípios norteadores de cada sujeito, os quais se entrelaçam com o modo de ser de cada ser humano (DAVEL, 2008, p. 10). A socialização no contexto organizacional acontece conforme a maneira em que o indivíduo torna-se pertencente ao grupo, familiariza-se com os elementos empresariais, tais como regras e valores, além dos fatores subjacentes que também se fazem presentes. Esse processo social se faz completo quando esses elementos passam a ser reproduzidos pelos indivíduos (LIMA; PIMENTEL; SOARES, 2008). Quando esse processo é imposto pela matriz familiar, a partir de conteúdos simbólicos, ideológicos e mitológicos, constitui uma base que serve como modelo e transparece na formação de identidades profissionais e empresariais que correspondem com a organização. Esse cruzamento de características familiares e identidades profissionais é usado pelas empresas em estratégias que auxiliem na gestão do trabalho (DAVEL; COLBARI, 2000; GARCIA; MOREIRA, 2008). As pesquisas buscam mostrar a relação das modalidades gerenciais com as questões de cunho emocional, superando os parâmetros de regras e comando, como também os de racionalidade, fortalecendo a dimensão afetiva que, da mesma forma, é vista como diferencial para o sucesso das grandes corporações. Uma nova perspectiva de análise para as organizações familiares, proposta por Pimenta e Corrêa (2008), visava a esclarecer as incertezas e insucessos provindos do universo do trabalho. Suas pesquisas voltaram-se para a tentativa de desvendar a complexidade existente nas organizações, abrindo os horizontes e enxergando a realidade a partir de um olhar mais aprofundado e direcionado para as questões implícitas aos processos organizacionais. Desta forma, a compreensão das organizações familiares é direcionada para quatro eixos que representam seus principais conflitos (PIMENTA; CORRÊA, 2008). Para entender cada eixo é necessário uma abordagem multidisciplinar, uma vez que suas manifestações são elementos essenciais e constitutivos do processo. Os eixos são representados pelas dualidades: afeto-racionalidade, público-privado, indivíduo-sociedade e formal-informal. Levando em consideração essas instâncias, tanto a família quanto a empresa constituem o eixo afeto-racionalidade, visto que elas são compostas por aspectos afetivos ao mesmo tempo em que são reprodutoras de poder, de relações conflituosas, disputas e competições. Dessa forma, tanto uma quanto a outra exercem papéis semelhantes devendo suprimir e regular ações de desacordo. 24 O segundo eixo é formado pelo público-privado. O público remete aos sentidos de que a percepção da realidade, comum a todos os indivíduos, assegura que há uma diversidade essencial que explica como este espaço é construído por coisas plurais e diversificadas, e também se torna foco da percepção de muitos indivíduos ao mesmo tempo, podendo ser vista por diferentes olhares, o que dificulta a existência de uma compreensão única do mundo e de seus significados. O público e o privado são interligados, e, apesar de ser a entidade essencial da experiência do indivíduo e responsável pelos processos sociais iniciais básicos, a família pode ser substituída ou complementada em uma visão da empresa como continuação desse espaço. O terceiro eixo, no qual se formam as relações entre o indivíduo-sociedade, é representado por dois extremos. De um lado pelo sujeito individual, refletindo a essência da família, e, de outro, pelo sujeito que é coletivo, reflexo da organização. Esse eixo foi criado a partir da natureza individualista do mundo contemporâneo, quando as pessoas tendem a ser cada vez mais egocêntricas e a pensar unicamente em si próprias, e da natureza coletiva, presente nas organizações. O ser humano está presente no individual e no social. A organização é o meio no qual as pessoas que nela trabalham atingem suas expectativas, que, por sua vez, fazem parte da constituição do indivíduo e são oriundas da socialização primária, ou seja, aquela em que o grupo de referência mais próximo do indivíduo é responsável por repassar os padrões e condutas que são referência para aquela família. É nesse eixo que se encontra uma das problemáticas evidenciadas nas organizações familiares, o conflito e os interesses. Essa problemática, quando considerada na condição dicotômica, pode limitar e desviar a análise; daí a importância de uma perspectiva voltada para o conhecimento das dualidades presentes, simultaneamente, nas organizações familiares. O último par antinômico, contudo, é formado no eixo formal-informal, em que transparece a “oscilação constante entre real e simbólico, entre códigos implícitos e explícitos, entre a construção do sentido e sua interpretação” (PIMENTA; CORRÊA, 2008, p. 55). Em uma das extremidades, a vida formal composta pelas experiências cotidianas da empresa captura e reduz o indivíduo e, inusitadamente, reprime seus desejos causando frustrações que são direcionadas para a figura do fundador que são compartilhadas ou sentidas em indivíduos de carne e osso, e que transcende da dimensão formal para a dimensão informal do eixo. Na outra extremidade, o imaginário/simbólico é formado a partir das duas esferas que, essencialmente, possuem uma origem preponderantemente baseada no compartilhamento de valores que se afirmam pela história da família e da empresa. 25 A importância em considerar o aspecto social também é fundamental para a análise dos acontecimentos pertencentes às organizações familiares, principalmente quando o sujeito passa a ser o objeto de estudo. Para Pimenta e Corrêa (2008), se o social não é considerado como parte do processo em sua totalidade como fenômeno que interfere nos aspectos psicológicos e sociais ao mesmo tempo, formando lógicas diferenciadas da lógica puramente individual, a percepção do processo como um todo pode ficar fragmentada pela não compreensão das relações existentes entre o todo e suas partes, entre o universal e o particular, entre a unidade e a totalidade. Perante essa afirmação, o indivíduo, por meio da vivência e das relações entre os dois mundos, não deve ser dissociado das esferas família e organização. Davel (2008) destaca a necessidade de se pesquisar empresas familiares, pois essas investigações contribuem para uma visão da necessidade de aproximação que deve ser dada às práticas cotidianas e sua complexidade subjetiva, na elaboração de novos conceitos sobre os estudos organizacionais que são referências universais. A simultaneidade de sentimentos opostos evidentes nestas instituições, racional e emocional, público e privado, pessoal e impessoal, por exemplo, auxiliam na compreensão das ambivalências presentes quando se parte do princípio de que todas as organizações são constituídas de experiências familiares, seja pela existência de laços de sangue ou não. É o olhar situado no plano das emoções, naquilo que é familiar, que permite o desvendar de um novo aspecto. Para Grzybovski, Carrieri e Saraiva (2008), as essências estruturais e comportamentais que englobam as organizações familiares sempre foram marcantes nos estudos, tanto brasileiros quanto internacionais, como nas diferentes escolas administrativas que dedicam seus trabalhos para o cotidiano destas empresas. Nesses casos, para esclarecer as questões que circundam esse ambiente, é preciso construir um “mosaico de dimensões de análise em diferentes tons”, pois há a necessidade de revelar “a transversalidade [das várias faces] do conhecimento, a multidisciplinaridade de abordagens e a pluralidade dos conceitos resultantes da interconexão família-organização” (p. 417-418). As empresas familiares nacionais refletem o mosaico brasileiro entendido como a família que se movimenta por meio de fases diferentes do seu ciclo de vida e da história da sociedade brasileira. O mesmo contexto histórico-social origina movimentos de mudanças e transições na gestão destas instituições, que ocorrem simultaneamente a novas inserções de dirigentes de diferentes gerações, marcando o modelo de gestão que é adotado por meio de eventos vinculados à dinâmica da família. Assim, sugere-se o modelo de três círculos da empresa familiar, conforme a Figura 1. 26 Cabe destacar que tal modelo visa, principalmente, a identificar as prioridades que cada elemento da empresa familiar possui na tentativa de explicar e identificar a origem dos conflitos presentes nelas. É importante relembrar, contudo, que a proposta desse projeto não se detém em estudar os conflitos presentes nas organizações (por mais que a estruturação do processo sucessório seja repleto de conflitos de interesses nas três esferas), mas, devido às implicações e correlação com o tema, esse conceito merece destaque, o que contribui para o entendimento da estrutura da empresa familiar. Figura 1: Modelo de Três Círculos da Empresa Familiar Fonte: Gersick et al. (1997, p. 6). Tal modelo delineia a dinâmica da empresa familiar como composta por três subsistemas diferentes e independentes, porém superpostos: negócio (gestão), propriedade e família. Assim, qualquer ente, dentro de uma empresa familiar, pode fazer parte de um dos sete setores formados pelos círculos superpostos dos subsistemas: 1) familiares sem participação nos outros subsistemas; 2) sócios-proprietários não gestores e não familiares; 3) gestores não proprietários e não familiares; 4) familiares proprietários sem participação na gestão; 5) proprietários gestores não familiares; 6) gestores familiares não proprietários; e 7) familiares gestores e proprietários. Alguns estarão em mais de um setor e outros em apenas um. É possível, portanto, a partir disso, “mapear” a presença da família nele (GERSICK et al., 1997; WARD, 2004). 27 No círculo familiar os membros da família atribuem grande importância aos aspectos emocionais (as gerações compartilham os valores familiares). Consideram também sua reputação dentro da comunidade e priorizam a criação de riquezas. Os valores, as relações e a forma como a família se comunica, são características presentes desse círculo. Muitos membros da família, independente de geração, poderão não fazer parte das demais esferas (VRIES; CARLOCK; TREACY, 2009). O círculo empresarial é representado pelos executivos das empresas que, por sua vez, mostram interesse pela estratégia e pela reputação do negócio no mercado. Seus princípios assemelham-se aos das organizações com fins lucrativos sendo orientadas pelas ações instituídas pela equipe gerencial. Esse círculo apresenta ainda estrutura hierárquica, divisões de departamentos e processos. O círculo da propriedade visa o capital financeiro, ou seja, o sistema de propriedade é determinado pela conjectura de valores para os acionistas que articulam as probabilidades do proprietário quanto à lucratividade, risco, crescimento e tipo de indústria. As metas são traduzidas em processos de governança e divisão de propriedade. A esfera da propriedade pode incluir membros familiares e investidores, como também empregados que são proprietários. 2.2 Cultura e Valores Familiares São os valores, fortemente enraizados no ambiente organizacional, que ditam os padrões e as diretrizes que irão influenciar as atitudes das pessoas nas organizações. É necessário frisar que o presente estudo não tem a intenção de aprofundar o conceito de cultura, no entanto é por meio dele que é possível ter um olhar sobre como os valores familiares estão presentes e interferem nos processos organizacionais. A cultura foi considerada por Schein (1985) como o conjunto de suposições básicas que um grupo criou, descobriu ou desenvolveu ao deparar-se com os problemas de como lidar com a adaptação externa e integração interna e que tiveram êxito suficiente para serem considerados válidos e transmitidos a outras pessoas como a forma correta de perceber, pensar e sentir em relação a tais problemas. A cultura organizacional é uma variedade de símbolos, tradições e mitos que expressam os valores e crenças inerentes à empresa. É visto como um instrumento essencial, pois os valores impõem direção e consistência às decisões e às ações dos gestores. A cultura envolve, assim, padrões de conceitos básicos sobre a forma de executar o trabalho, o que é 28 aceitável e não aceitável e qual comportamento e ações são encorajados no âmbito organizacional (MAIA, 2008). No mesmo ponto de vista, Schein (1992) explica que a cultura pode ser entendida por intermédio de três diferentes estados, diferenciados, concomitantemente, por componentes visíveis, valores e pressupostos básicos. O primeiro estado (componentes visíveis) é formado pelas características visíveis da organização; são eles: estrutura física, comunicação, tecnologia, vestimentas e documentos públicos. Nesse estado os componentes culturais são de fácil observação, entretanto de difícil interpretação, uma vez que a lógica implícita a esses elementos requer muita dedicação para conseguir ser interpretadas. No segundo estado localizam-se os valores, ou seja, as explicações ou racionalizações utilizadas para justificar as condutas das pessoas que compõem a organização. Tais manifestações da cultura são complexas para serem observadas diretamente, o que exige a aplicação de entrevistas bem-elaboradas e direcionadas para a compreensão dos valores presentes na instituição. No cerne dos pressupostos básicos estão presentes as manifestações culturais subjacentes, inconscientes e difíceis de serem descobertas, ainda que sejam os principais fatores responsáveis pelo modo pelo qual os membros sentem, percebem e pensam a organização. O processo de introjeção desses pressupostos acontece muitas vezes inconscientemente, ou seja, as pessoas, mesmo sem se dar conta, acabam seguindo tais princípios ferrenhamente. É evidente que esse processo ocorre em longo prazo e, depois de constituído, faz com que as pessoas compartilhem visões semelhantes sobre os objetivos da organização, sem que tenham clareza a respeito da sua posse. É característico nas empresas familiares que os verdadeiros valores sejam encobertos por discursos tradicionais (FLEURY; FLEURY, 1995). Os elementos simbólicos observáveis (comportamento dos indivíduos, processos de comunicação, linguagem, rituais organizacionais), contudo, assinalam os valores básicos que orientam o ambiente empresarial. Sendo assim, é possível fazer um mapeamento da empresa identificando as formas de organizar, bem como o significado atribuído ao trabalho, às relações de poder e às relações com o ambiente (FLEURY; FLEURY, 1995). Quando se tem uma boa quantidade de informações a respeito dos valores, torna-se mais fácil compreender as razões pelas quais uma empresa opera de determinada forma em seu dia a dia (SCHEIN, 1985). Na percepção de Tamayo (1998), são muitos os nomes atribuídos aos valores organizacionais: podem ser definidos como princípios ou crenças que, na maioria das vezes, 29 estão relacionados a modelos de comportamentos desejáveis que regem a vida na empresa, estando a serviço de interesses individuais, coletivos ou mistos. Tamayo e Gondim (1996) consideram os valores organizacionais como elementos integrados, pois os mesmos são compartilhados por todos os membros de uma organização independente do cargo que ocupam. Estudá-los requer entender as convergências e não as divergências presentes no funcionamento da empresa, de maneira que se possam analisar quais desses estão implícitos no funcionamento de determinada organização. Siqueira e Vieira (2011, p. 3) complementam relatando que “às convergências, os autores atribuem o nome de valores compartilhados, ou seja, a coincidência na percepção entre todos os membros da organização, ou pelo menos em sua maioria”. Seguindo a mesma linha de pensamento, Tamayo, Andrade e Codo (1997) defendem a ideia de que o pensamento coletivo representa a realidade organizacional e podem ser identificados a partir da representatividade concreta das normas, objetivos e missão da organização. Tamayo (1998) explica os valores organizacionais em três dimensões distintas: cognitiva, motivacional e estruturante. A primeira dimensão está relacionada ao ganho de conhecimento, ou seja, são os reflexos dos valores que são aceitos ou não pela organização. Na segunda dimensão os valores são explicados a partir das metas que devem ser alcançadas pela organização, tendo em mente que a importância atribuída a cada valor pode interferir nesse processo. Por fim, a terceira dimensão corresponde aos valores que, além de influenciar o comportamento das pessoas integrantes da organização, também dizem respeito à maneira como essas pessoas julgam seus colegas de trabalho. Para Tamayo e Gondim (1996), os valores organizacionais, além de contribuírem significativamente para a compreensão dos fenômenos presentes na organização, determinam a percepção e a definição que os funcionários possuem das distintas situações organizacionais, a percepção dos problemas e a forma de solucioná-los. O fundador possui um papel inquestionável na atribuição dos valores organizacionais, que tende a se materializar como um tipo de filosofia para as próximas gerações. O processo de desenvolvimento no âmbito da cultura e dos valores a serem seguidos abrange a recuperação de histórias a respeito da vida do fundador, como uma inspiração de fatos que incorporam o histórico da empresa, consagrando-se o mito do herói (FLEURY, 1987). Em outras palavras, os fundadores são os principais atores no desenvolvimento da cultura de uma organização, pois grande parte dos mecanismos de socialização se encontra em suas mãos, consolidando-se por meio de recompensas nos investimentos que são prioridades e nas 30 estratégias e definições de atribuições a partir dos quais eles transmitem, tanto explícita quanto implicitamente, as suas concepções e pressupostos da organização (SCHEIN, 1992). Sendo os valores constituídos dentro dessa perspectiva, é perceptível a influência da família no processo de construção destes, como também a aquisição pelos demais membros da empresa passando a se instituírem como valores organizacionais. Os valores da família proprietária compõem um aspecto importante a ser considerado, pois incorporam boa parte do comportamento dos gestores (DAVEL; SOUZA, 2004). A eficácia da cultura das empresas familiares está associada ao lado emocional e afetivo próprio da família, responsável por modelar uma cultura permeada por referências valorativas, atributos morais e afetivos e sentimentos de solidariedade, que se estendem para as relações empresariais (MAIA, 2008). Partindo da premissa de que as pessoas carregam em sua bagagem muitos valores adquiridos com o passar dos anos por meio da socialização primária, os seja, aqueles valores que foram passados pelos pais enquanto a criança ainda fazia parte direta do grupo familiar e, via socialização secundária, valores internalizados por meio da convivência com diferentes grupos de referência, é fundamental compreender a dinâmica e história familiar, isto é, identificar os principais elementos que são parte integrante da personalidade de cada pessoa do grupo familiar e que acabam sendo transmitidos para os demais membros da organização. As empresas familiares atribuem ao fundador e à família a constituição dos valores, e nesse modelo de organização os princípios morais resgatados essencialmente da família são mantidos em meio aos processos organizacionais. Os valores repassados de pai para filho interferem nas negociações da empresa e abarcam padrões de conduta que norteiam as relações com os stakeholders. Na gestão de pais e filhos os princípios morais transcendem as negociações (MAIA, 2008). O desenvolvimento da cultura organizacional de uma empresa familiar que se encontra em estágio inicial ocorre, essencialmente, pela disseminação dos valores do próprio fundador (ESTOL; FERREIRA, 2006). Na visão de Estol e Ferreira, O processo sucessório acarreta, entretanto, o surgimento de novas lideranças que por vezes apresentam padrões simbólicos, crenças e valores distintos daqueles que até então vigoravam na organização, o que pode acarretar mudanças no estilo de condução dos negócios, na estrutura da empresa e em sua cultura. Em outras palavras, as mudanças decorrentes do processo sucessório em empresas familiares provavelmente implicam transformações em sua cultura (2006, p. 8). Nesse sentido, Bernhoeft (1991) destaca que os conflitos desencadeados em períodos de sucessão nas empresas familiares têm como ponto de partida o fundador, com sua própria 31 bagagem de valores e seu estilo de vida e de relacionamento com a comunidade externa, características estas que formam a própria cultura da organização e que são difíceis de ser incorporadas pelo sucessor. Devido a estas questões, o sucessor, independente de ser membro da família ou não, deve ser escolhido com cautela, para que os valores da cultura empresarial continuem sendo preservados de modo que garantam que o processo sucessório traga benefícios para a organização, ainda que a transição sempre ocasione transformações nos aspectos culturais da empresa. 2.3 Processo Sucessório A forma como o chefe de família cria seus filhos é essencial para determinar a sucessão em uma empresa. A educação e os princípios transmitidos em casa é que darão sustentação e maturação suficiente para que os possíveis sucessores saibam lidar com a riqueza e o poder (RICCA, 1998). O fundador da empresa precisa dedicar-se ao extremo para construir um império industrial ou comercial, todavia é comum que o pai acabe se afastando dos filhos nessa ascensão. Quando chega a hora de “passar o bastão”, torna-se mais difícil reorganizar a empresa satisfatoriamente, uma vez que os sucessores não foram preparados. Nesse sentido, o chefe acaba optando pela profissionalização ou venda do empreendimento. Processos sucessórios são períodos de mudança no comando da organização. Quando se verifica que as trocas de liderança nas empresas são iniciadas sem um planejamento, principalmente no que se refere à escolha de um sucessor com perfil adequado para o cargo, é comum que ocorra uma rivalidade entre os candidatos, desencadeando conflitos e disputas de poder entre os familiares. “Nesse momento, verifica-se que o viés do proprietário-gestor prepondera sobre o coletivo; o fator pessoal sobrepõe-se ao organizacional” (LEMOS, 2003, p. 41). Em muitas empresas os familiares preferem não falar sobre o assunto em questão, apesar de todos terem plena consciência de sua relevância. São inúmeros os casos em que empresas não possuem na família herdeiros com perfil adequado. Muitos não possuem idade e nem maturidade suficiente para assumir uma presidência; outros preferem trilhar um caminho que não seja o negócio da família. Mais comum ainda é encontrar sucessores que não estão adequadamente preparados para assumir tamanha responsabilidade. Não raro, também, são casos em que, apesar de ter acontecido a sucessão e o candidato escolhido possuir as 32 características esperadas, como idade e capacidade profissional satisfatória, continuam sendo vistos como aquelas crianças que perambulavam nos arredores da empresa com suas fantasias. De tal modo, verifica-se que, dependendo da maneira como o processo é realizado, sendo ele planejado ou não, pode acarretar tanto vantagens quanto desvantagens, podendo, no último caso, levar a empresa à falência. Segundo Lemos, O processo de sucessão na empresa familiar é sempre arriscado e pode ser um período muito confuso e complexo, tanto em termos financeiros quanto emocionais. É durante esse período que as empresas correm alto risco de não sobreviverem, sendo muitas delas vendidas ou fechadas pelos herdeiros. Tais processos, sem planejamento e mal conduzidos, são os principais responsáveis pela vida curta de empresas familiares brasileiras (2003, p. 41). Quando o processo sucessório é bem-planejado e aplicado, esse assunto proporcionará muitos benefícios em prol da organização, quando os membros consanguíneos em sucessão permitem o resgate de características do passado e do futuro, realizando uma fusão entre os valores do fundador e as vocações e visões pessoais dos dirigentes atuais. Tal acontecimento fortalece ainda mais a cultura da organização, pois acaba unindo importantes valores da família com os da organização. Em outras palavras, Bernhoeft (1991) afirma que o sucesso de uma empresa familiar está na competência de seus colaboradores separarem os três chapéus, que, nesse caso, de maneira alguma devem misturar seus papéis: o chapéu de membro pertencente à família (pais, irmãos, cunhados, noras, etc.), o chapéu de proprietário e o chapéu de executivo da empresa. Ou seja, não se deve confundir as figuras, os direitos e os deveres de membro da família, acionista e gestor da empresa familiar, correndo o risco de incidência de conflitos de interesses entre os membros da família, prejudicando e colocando em risco o processo sucessório e a perpetuação do negócio. A sucessão garante que o nome da família seja lembrado e visto como a principal marca de uma organização. Ela representa o alicerce da empresa, ou seja, a história de vida e construção do patrimônio garantindo que os valores que sempre foram determinantes para o sucesso da empresa continuem enraizados e sendo transmitidos para cada colaborador. Estudando o processo sucessório em empresas familiares brasileiras, Lodi (1987) evidenciou três momentos cruciais que tais organizações costumam passar. A crise da sucessão geralmente acontece no momento da passagem do bastão do fundador para seu herdeiro devido às características marcantes de sua personalidade, tais como ser autocrata, concentrar decisões, sacrificar a família, criar obstáculos à profissionalização e ter 33 dificuldades em treinar e avaliar os filhos. O fundador acaba podando seus herdeiros, prejudicando consideravelmente o processo sucessório. O segundo momento crucial está relacionado à passagem da segunda para a terceira geração, pois acontece juntamente com o aumento dos negócios da organização. Nesse caso, é comum as empresas familiares passarem por crises de liderança entre os diversos legatários ou entre o sucessor e o sucedido. Toda essa tensão provém do fato de os legatários não apresentarem um perfil adequado para assumir tal desafio, acarretando momentos de crise política na definição de poderes. É nesse período que os dirigentes começam a se manifestar quanto à necessidade de profissionalização (LODI, 1987). O terceiro e último momento de crise caracteriza-se pela perda da identidade da empresa, ficando desorientada quanto aos seus princípios e objetivos. Tal crise coincide com o aumento de riqueza e gigantismo da organização e emana da divisão do poder acionário entre vários herdeiros. Juntamente com a divisão de ações, os valores que norteavam os objetivos da organização, ou melhor, os valores do fundador, acabam sendo esquecidos, pois a preocupação dos atuais proprietários é em relação à renda, não demonstrando nenhum compromisso com o histórico da empresa, optando, inclusive, pela corrupção para a solução de problemas isolados (LODI, 1987). Para Longaresi (2006), de modo geral, o empresário brasileiro não planeja sua sucessão, crendo ser interminável seu legado na empresa. É a falta de planejamento sucessório a causa principal dos problemas decorrentes na empresa nesse período. O maior obstáculo enfrentado pelas empresas familiares está, muitas vezes, na própria família no momento de encarar a sucessão e, inclusive, a profissionalização de seus futuros gestores. Para os membros da família empresária, falar sobre a sucessão é um momento delicado, visto que envolve emoções, relacionamentos e, principalmente, a aquisição de patrimônio e poder. Nesse sentido, planejar com antecedência é importante, contudo não existe uma solução pronta, muito menos um único modelo a ser seguido. Os filhos dos empreendedores, incumbidos do desejo de estabelecer um negócio e um legado para seus descendentes, muitas vezes acabam decidindo por seguir outro caminho distante do que era esperado pelo pai. Nesses casos, frequentemente, o número de herdeiros é superior ao de empreendedores iniciais, o que provoca uma divisão acionária (ZAPAROLLI, 2006). Longaresi (2006) afirma que uma empresa familiar não precisa, fundamentalmente, ser administrada por um herdeiro. Este pode assumir outro papel; por exemplo, ser membro do conselho administrativo ou societário. Antes de escolher o sucessor, entretanto, é preciso 34 conscientizar a família de que o legado transmite uma responsabilidade muito grande, visto que se as diferentes gerações não agregarem valor, o patrimônio acaba. Geralmente a história ilustra uma família eminentemente direcionada ao sucessor masculino, pelo fato de este ser responsável pela continuidade do nome da família por meio da geração de filhos. No decorrer dos anos, no entanto, a mulher passou a ter uma posição ampliada e mais ativa no seio social, principalmente a partir do momento em que ingressou no mercado de trabalho. A figura da mulher nas atividades empresariais, por sua vez, ampliou os conflitos sucessórios, pois aumentou o número de membros candidatos a receber o poder de mando e acirrou a disputa pela sucessão (FLORIANI; RODRIGUES, 2000). Kignel (1993, p. 32) argumenta que “é necessário se entender quem herda por disposição legal e quem herda por vontade daquele que está dispondo de seus bens. Isto significa dizer que cabe ao sucedido definir as regras de sua sucessão, planejando-a antes que esta se faça obrigatória por força de lei”. Rossato Neto (2008, p. 12) destaca que “o pai prepara o filho não para ser seu sucessor, mas para ser sua sombra”. Merhi et al. (2010) complementa afirmando que, se porventura os filhos vierem a assumir a gestão da empresa futuramente, o fazem depois da morte do pai, ou quando o mesmo não possui mais condições de ocupar esse cargo. É comum mediante essa situação que os filhos passem por um dilema entre assumir o negócio da família ou trilhar seu próprio caminho em outra empresa que não seja familiar. “Para assumir a organização familiar, é necessário que esse filho ‘mate’ simbolicamente esse pai, e reconheça suas virtudes e fraquezas, assim como as suas próprias” (ROSSATO NETO, 2008, p. 12). Para Gersick et al. (1997), a sucessão é composta por diversos fatores; não se configura como um acontecimento único, quando o pai que ocupa a posição de líder precisa passar o comando da organização para um novo líder/filho. Este processo acontece desde muito cedo nas vidas de algumas famílias, tornando-se constante no início e no final das gerações. Para esses autores, a sucessão leva tempo, mesmo nos casos inesperados (doença súbita, evento dramático), em que há necessidade de mudanças com urgência nas funções das pessoas. O processo sucessório passa a ser delicado no momento em que a liderança da primeira geração não garante que a próxima geração que virá a liderar a empresa tenha o mesmo empenho para administrá-la. Bernhoeft e Gallo (2003) consideram que a sucessão não é um acontecimento que ocorre apenas em função do controle acionário. Tal acontecimento requer preparo e esforço, e, para que esse processo ocorra de maneira saudável, tanto a primeira quanto a segunda geração devem chegar a um consenso em que as duas partes 35 fiquem satisfeitas com o acordo. Os autores ainda acreditam que esse processo deve ocorrer enquanto os membros da primeira geração ainda estiverem vivos, pois tratar desse assunto após alguma morte será mais difícil. A partir dessa base, revela-se que essa transferência de poder, geralmente conduzida em torno de três a cinco anos, é preparada ao longo de uma geração no sentido de que o pai é responsável pela educação dos filhos e pela harmonia familiar; portanto o sucesso de um programa sucessório está relacionado com a maneira como o pai/presidente preparou sua família para o poder e a riqueza (LODI, 1993). A origem dos conflitos na hora da sucessão empresarial fica, muitas vezes, a uma distância de 20-30 anos, quando o pai/presidente se doou completamente ao empreendimento a ponto de não preparar a família e a si mesmo para esse processo. O mesmo autor argumenta que a sucessão começa na infância dos filhos, e que muitas medidas devem ser tomadas entre a infância e a vida adulta. Essas medidas podem ser classificadas em três momentos que antecedem o período sucessório: a) a formação de base dos sucessores; b) o seu plano de desenvolvimento; e c) as medidas organizacionais e judiciárias. Vries, Carlock e Treacy (2009) acrescentam que conflitos entre práticas familiares e empresariais aumentam significativamente em períodos de transição, pois os membros da família deparam-se com mudanças significativas em seus papéis e compromissos, que exigem novas reformulações em suas vidas. Os sentimentos desencadeados pela transição, tanto no pai quanto no filho que receberá o bastão, são diversos. O fundador/pai, nesse caso, experimenta um sentimento de perda no que se refere a seu papel pessoal dentro da empresa. Por outro lado, um jovem adulto, além de vivenciar muitas angústias e sentimentos conflituosos que são característicos da transição da adolescência para a vida adulta, acaba sendo também afrontado por dúvidas e incertezas no momento em que toma a decisão de tocar o negócio da família. Sob a mesma perspectiva, Lemos (2003) explica que o pai, ou qualquer outro membro da família que já herdou a presidência da empresa, apresenta uma relação próxima com a organização, semelhante com aquela estabelecida entre criador e criatura. É uma relação carregada de sentimentos e emoções que vão muito além do que o racional. Toda essa dedicação pessoal faz com que o proprietário resista à aposentadoria. Por exibir um ideal implícito de autodeterminação, ele acaba fazendo com que a empresa se torne extensão do seu ego e sujeita, portanto, ao seu pleno controle. Tal acontecimento provém da 36 dificuldade de delegar autoridade e responsabilidade no momento da sucessão, pois nesse período ele depara-se com a dura realidade de perda do poder. 2.4 Equilíbrio Vida Pessoal e Profissional Dentre as coisas que os seres humanos consideram de maior importância podem-se destacar a convivência com sua família e o desempenho de suas atividades trabalhistas. A empresa familiar tem a interessante possibilidade de agrupar essas duas necessidades, tornando o trabalho mais harmonioso e produtivo. Muitas vezes, quando os vários cargos são preenchidos com integrantes da própria família, facilita-se o desenvolvimento da empresa em razão de o interesse tornar-se unificado e os investimentos, incluindo os sacrifícios pessoais para a criação da empresa, acabam sendo amenizados. Assim, a empresa sob gestão familiar tem suas vantagens, as quais podem viabilizá-la e levá-la ao caminho do sucesso. Em contrapartida, porém, a empresa sob esse tipo de administração também apresenta muitas desvantagens e enfrenta muitos desafios, que, se não adequadamente enfrentados, podem vir a destruir a organização. Assim sendo, muitos são os motivos que preocupam os administradores de uma empresa familiar. Dentre esses, problemas familiares particulares que se abatem sobre os membros das famílias têm levado muitas empresas ao fracasso, uma consequência das desvantagens desse tipo de organização. Os problemas são os mais diversos e o nível de complexidade varia de acordo com o porte da empresa e as características da estrutura familiar. Conforme Ricca (1998), A maior preocupação das empresas familiares é a sua sobrevivência. A maioria delas enfrenta problemas existenciais ou estratégicos, isto é, dificuldades relacionadas à inadequação, tanto na utilização, quanto na escolha dos recursos disponíveis para o alcance das vantagens de mercado (p. 7). Carrega-se em nossa sociedade o valor de que o patriarca tudo pode e aos membros do clã só cabe pedir e obedecer; caso contrário, a rebeldia pode ser “premiada” com a sua exclusão do âmbito das relações. O patriarcalismo, a face supridora e afetiva do pai, atendendo ao que dele esperam os membros do clã, e o patrimonialismo, a face hierárquica e absoluta, impondo com a tradicional aceitação sua vontade a seus membros, convivem lado a lado em nossa cultura. Segundo Floriani e Rodrigues (2000), 37 O nome da família surge, quando em épocas mais remotas e primitivas, representava a atividade do chefe principal da mesma e, por decorrência, de todos os seus componentes, notadamente os do sexo masculino que acabavam por suceder mais cedo ou mais tarde, o progenitor, deste herdado as habilidades (p. 37). Deve-se considerar que a partir daí surge o mercado econômico formal, organizado e estruturado, contendo regras, moeda, mercadoria, incorporando, então, as transações comerciais acrescidas do lucro, justificando, assim, o aparecimento na empresa da figura que vai coordenar, controlar, transformar e correr alguns riscos com o seu funcionamento. A empresa familiar, comumente, é considerada um entrave ao crescimento de uma região porque os administradores adotam um comportamento protetivo e acabam não aproveitando as novas oportunidades do mercado global. Verifica-se, no entanto, que há muitas empresas familiares que adaptaram suas estratégias às oportunidades apresentadas pelo mercado global, demonstrando possuir características fundamentais para atuar em um ambiente altamente competitivo como o atual. A administração da empresa do tipo familiar é considerada menos burocrática e impessoal, pois o acesso à cúpula administrativa é mais fácil, o que pode tornar as operações mais flexíveis e as decisões mais rápidas do que nas de capital aberto sob gestão não familiar. Os administradores de empresas familiares vitoriosas destacam-se mundialmente pela ousadia e pelo espírito empreendedor, diversificando os negócios da família sem perder a competitividade. A figura familiar cria um sistema baseado na lealdade e na submissão, que impede qualquer movimento contrário. Tal é a natureza da empresa familiar: pessoas com forte determinação, enorme autoconfiança e desejo de trabalhar mais tempo e com mais afinco a fim de alcançar suas metas. Em uma empresa familiar, as divergências familiares, quando ocorrem, são abafadas e, a fim de se protegerem, os indivíduos deixam de lado a consciência crítica, o que faz preponderar o respeito e a submissão, ênfase exagerada à obediência e à lealdade dos subalternos, dificultando as sugestões de inovação. Na primeira geração esse é um fator de sucesso e de rápido crescimento; no entanto a manutenção desse modelo nas gerações seguintes pode ser uma ameaça a sua continuidade. É possível que se crie uma confusão por parte dos herdeiros sobre a propriedade e a gestão. Por terem herdado uma propriedade, imaginam que receberam uma empresa e se julgam no direito de influir e buscar a sua realização pessoal pelo poder de gestão. Ao analisar a história de formação de uma empresa, é possível visualizar claramente a inter-relação que o fundador cria entre a sociedade-empresa-família e os indivíduos a ela 38 ligados, sejam membros ou não da família. “Os paradigmas familiares ditados pelo fundador se estendem ao sistema consciente e estruturado (a empresa), provocando e produzindo comportamentos característicos de uma sociedade familiar” (BERNHOEFT; CASTANHEIRA, 1995, p. 29). O fato de ter a sua própria empresa oferece uma gama variada de opções não disponíveis à pessoa pertencente à classe média que trabalha para terceiros, principalmente o status e o poder. Em contrapartida, é necessário assumir maiores responsabilidades e considerar que há alguns obstáculos. Quando se fala em família, é preciso verificar se a esta quer ajudar. Esposa e filhos normalmente têm seus próprios compromissos, e a empresa talvez não seja uma prioridade para eles. É preciso, então, sincronia total e uma extraordinária sensibilidade; caso contrário, um sério conflito pode se instalar. “Os relacionamentos interpessoais são extremamente importantes numa empresa familiar. Se um indivíduo tentar impor seus valores com muito empenho a outro membro da família, os resultados poderão ser desastrosos” (FRITZ, 1993, p. 8). A vida profissional pode acrescentar ou, pelo contrário, deteriorar/atrapalhar a vida familiar. Da mesma forma, a vida familiar pode vir a ter influências sobre a vida profissional, sejam elas boas ou ruins. Por ser tema de extrema importância, a análise das relações entre trabalho e família tem implicações importantes, tanto para as organizações como um todo quanto para os indivíduos (GREENHAUSS; SINGH, 2004). Parasuraman, Yasmin e Godshalk (1996) exemplificam estes conflitos a partir do controle de tempo. Quanto mais tempo o indivíduo se dedica ao trabalho, menos tempo terá para se dedicar à família, havendo interferência do domínio profissional no domínio familiar, aumentando-se, desta forma, o conflito trabalho-família. Por outro lado, quanto mais tempo se dedicar à família, menos tempo terá para o trabalho, aumentando, neste caso, o conflito família-trabalho. Ainda reafirmando a distinção entre os dois tipos de conflito, Noor (2002) conclui que quando empregamos tempo e energia extras em qualquer um dos lados (na família ou no trabalho), em contrapartida afetamos negativamente o outro. De acordo, entretanto, com pesquisa realizada com 1.306 executivos no Canadá por St-Onge et al. (2002), o que se pode constatar é que a maioria dos pesquisados percebe o conflito trabalho-família como sendo mais sério do que o conflito família-trabalho, sugerindo, desta forma, que as questões em torno da família são mais afetadas do que aquelas em torno do trabalho. Os mesmos autores mostram, contudo, que, de forma conflitante, as pessoas em geral tendem a diminuir mais as 39 responsabilidades com a família do que com o trabalho; isto porque os empregados inclinamse a acreditar que sofrerão consequências negativas em maior intensidade se negligenciarem mais a vida profissional do que a familiar. A literatura sugere que existem variáveis – como gênero, idade e estado civil – que moldam a relação entre a satisfação na carreira e o conflito entre a família e o trabalho. As mulheres tendem a fixar prioridades para suas famílias que não dependem das responsabilidades profissionais, enquanto o homem, mais frequentemente, inclina-se a priorizar a sua carreira. Dessa forma, a satisfação na carreira da mulher tende a estar negativamente mais afetada do que a do homem (MARTINS, EDDLESTON, VEIGA, 2002) quanto ao futuro e destino profissional. Assim, as carreiras das mulheres não podem ser compreendidas analisando-se sob uma perspectiva masculina, pois os homens geralmente empregam primeiramente as suas energias na vida profissional, enquanto as mulheres têm de equilibrar a sua energia tanto na vida familiar quanto na profissional (BUTTNER; MOORE, 1997). Segundo Buttner e Moore (1997), portanto, mesmo no caso das mulheres que entram no mundo empreendedor devido à identificação de uma oportunidade, e não apenas por necessidade, um dos principais motivos que as levam a buscar o autoemprego é a flexibilização de horário que este tipo de trabalho proporciona. Pelo fato de ainda terem grandes responsabilidades domésticas, procuram, por meio do autoemprego, organizar por si sós os seus horários: não estando presas a cargas horárias rígidas, podem amenizar os conflitos entre sua vida familiar e profissional. Este fato seria decorrente do papel social inerente à mulher de responsabilidade com a família. Existem argumentos de que as diferenças encontradas entre homens e mulheres empreendedores podem ser explicadas pelas tradições da sociedade e da persistência da ideia de que as mulheres têm a responsabilidade primária e fundamental de cuidar da casa e da família (LJUNGREEN; KOLVEREID, 1996). Assim, como durante séculos, a mulher tem sido responsável pelos afazeres domésticos. A sociedade ainda apresenta pressões e expectativas quanto ao papel feminino de ligação com o lar. Com isto, Capowski (1992) ressalta que, embora as empreendedoras passem a ter liberdade de organizar o seu dia a dia, elas acabam tendo de trabalhar muito mais. A jornada comum de oito horas de trabalho diárias – em um emprego tradicional – passa a ser mais extensa para aquelas mulheres que têm o seu próprio negócio. Muitas vezes trabalham de 12 a 14 horas por dia, principalmente no início do empreendimento. 40 Além disso, o fato de ter investido recursos em uma empresa que é de sua inteira responsabilidade, acaba por acarretar preocupações que, por vezes, aumentam o estresse. O fato de trabalhar mais implica, muitas vezes, abrir mão das férias, do lazer e do convívio social. Há uma preocupação constante também com a responsabilidade de garantir o pagamento dos funcionários e o consequente bem-estar destes e de suas famílias. No que diz respeito à liderança feminina em uma pequena empresa, nota-se que elas procuram manter um lento crescimento de sua organização, visando a preservar sua qualidade de vida, manter contato mais próximo com empregados e clientes e, principalmente, estar à frente das operações, o que lhes dá prazer. O fato de elas preferirem manter a sua empresa pequena também é influenciado pela questão trabalho e família: quanto maior for o porte do empreendimento, mais tempo terão de despender com o trabalho e, consequentemente, menos tempo terão para a vida familiar (GOSSELIN; GRISE, 1990). O referencial teórico do presente estudo possibilitou a compreensão de alguns dos principais temas que circundam o campo das empresas familiares. Permitiu, também, entender os fenômenos organizacionais sob a perspectiva da Psicologia, que compreende o ser humano como um ser moldado, principalmente pelos valores e costumes transmitidos por intermédio da convivência com o meio familiar. Diante do supraexposto, para se compreender se os valores familiares refletem no processo sucessório alguns caminhos precisam ser percorridos, sobretudo para aprofundar e consubstanciar esta discussão. A presente pesquisa percorreu alguns caminhos que serão apresentados na parte seguinte. 2.5 A Visão da Psicologia sobre as Famílias Empresárias Para compreender as organizações familiares sob a ótica da Psicologia, este tópico do referencial teórico tem como norte a obra de Vries, Carlock e Treacy (2009), denominada “A Empresa Familiar no Divã: uma perspectiva psicológica”, na qual os autores fazem uma conversação entre as abordagens psicodinâmica e sistêmica familiar na tentativa de explicar os fenômenos organizacionais. Entre os meios utilizados para avaliar e compreender o desempenho dos negócios há um consistente fundamento lógico para o emprego de uma abordagem psicológica direcionada a uma orientação tanto psicodinâmica quanto familiar sistêmica, com a intenção de explorar e compreender as famílias empresárias. As características internas, como as motivações e os impulsos que são responsáveis por direcionar o comportamento individual, contam parte da história. As atitudes da família no momento em que todos sentam à mesa de jantar conta outra 41 parte. Ao aliar a teoria psicodinâmica a uma teoria sistêmica familiar, fica mais fácil entender o que torna as famílias empresárias forças criativas e destrutivas tão poderosas. Sendo assim, um estudo da família deveria ser incluído como parte da pesquisa organizacional, uma vez que as famílias interferem no comportamento tanto no âmbito individual quanto também nos grupos e na empresa. De modo geral, a família possui a função de transmitir valores às gerações seguintes garantindo seu desenvolvimento físico e emocional. São regidas pela constante preocupação com a comodidade de seus membros e com o legado familiar. É característico de uma organização familiar que os objetivos da empresa entrem em conflito com os da família, pois para a família as necessidades físicas e emocionais ficam em primeiro plano e o retorno financeiro em segundo. Investigações clínicas manifestam que as principais dificuldades enfrentadas pelas empresas familiares resultam do fato de que os gestores/proprietários, como também demais membros familiares que exercem liderança na empresa, sem se dar conta do que esteja acontecendo, costumam extravasar seus mais profundos conflitos, desejos e fantasias no empreendimento familiar. Uma das teorias mais eficientes para entender o comportamento e as motivações individuais é a Psicologia psicanalítica, principalmente quando voltada para o campo das relações objetais. Para estudar as empresas familiares e conseguir contemplar os complexos processos humanos, todavia, é necessária uma abordagem mais recente como a análise de sistemas da terapia familiar. Sendo assim, o meio conceitual utilizado para a compreensão dos fenômenos oriundos das empresas familiares é uma junção da teoria psicodinâmica com a teoria sistêmica familiar. “Descobrimos que a combinação do pensamento psicodinâmico com noções sobre os sistemas familiares numa abordagem de sistemas psicodinâmicos pode ser inestimável como chave para revelar muitos dos intricados problemas enfrentados pelas famílias empresárias” (VRIES; CARLOCK; TREACY, 2009 p. 34). Mendes (2002, p. 2) afirma que “ao usar o referencial psicanalítico, busca-se interpretar os fenômenos organizacionais a partir de uma rede de significados, considerando a organização como uma entidade psicológica”. No entendimento de Lacan (2003), a família se configura, em princípio, como um grupo natural de pessoas unidas por uma dupla relação biológica: de um lado, a geração, que fornece os elementos do grupo; de outro, as condições do meio postuladas pelo desenvolvimento dos jovens e que mantêm o grupo, desde que os adultos geradores assegurem seus papéis. 42 O mesmo autor relata que a família é uma estrutura na ordem da cultura, realçando o social como substituto de um simbólico. Dessa forma: A família surge inicialmente como um grupo natural de indivíduos unidos por uma dupla relação biológica: a geração, que dá os componentes do grupo; as condições do meio que o desenvolvimento dos jovens postula e que mantêm o grupo na medida em que os adultos geradores assegurem sua função (LACAN, 2002, p. 11). Para Freud (1969), muitos pais acabam projetando em seus filhos seus desejos que não conseguiram realizar. Tais desejos são projetados no processo de subjetivação dos filhos no período da socialização primária. Na mesma linha de pensamento, Correa (2003) afirma que no processo de estruturação do sujeito é fundamental diferenciar seus próprios desejos dos dos pais e assumir uma identidade própria. Julien (2000, p. 46) assevera que a “verdadeira filiação é ter recebido dos pais o poder afetivo de abandoná-los”. É saber afastar-se para que, futuramente, não façam “recair sobre os filhos tornados adultos o peso de uma dívida de reciprocidade”. Lacan (2003) explica que a família é responsável pela educação precoce, principalmente na repressão dos instintos e na introdução da fala. É por meio dela que os primórdios básicos do desenvolvimento psíquico são introduzidos e a criança passa a organizar suas emoções. Dessa forma, cabe mencionar que o social é indispensável na estruturação do sujeito, que, “com a modernidade [...] não está mais reservada apenas aos pais: o terceiro social intervém para garanti-la, controlá-la e completá-la” (JULIEN, 2000, p. 45). 2.5.1 Abordagem Psicodinâmica Mediante as descobertas de Sigmund Freud (1969), ficou evidente que a mente humana funciona com a interação de forças antagônicas. O indivíduo é composto de desejos e fantasias que geram ansiedade, levando-o a utilizar os mais diversos mecanismos de defesa que variam de normais para patológicos. O conflito existente entre estas forças psíquicas, por mais inconsciente que possa ser, é refletido na vida emocional do sujeito e pode ser observado nas diversas relações estabelecidas por ele (VRIES; CARLOCK; TREACY, 2009). Miermont (1994) define a Psicanálise da seguinte forma: Primeiro modelo interdisciplinar de compreensão da personalidade humana e de ação terapêutica no século XX, a psicanálise é uma teoria do aparelho psíquico que mostra a importância dos processos inconscientes e dos mecanismos de defesa que os estruturam (recalques, isolamento, projeção, identificação projetiva). [...] A 43 psicanálise reconheceu a importância fundamental da sexualidade infantil e da repressão que ela sofre durante o período de latência (p. 451). Para ter um melhor conhecimento sobre a teoria psicanalítica é relevante conhecer seus principais conceitos, sobretudo das abordagens individuais. Nesta perspectiva, ao longo deste trabalho são destacados alguns conceitos referentes à estrutura do psiquismo, ao desenvolvimento psicossexual e suas fases, ressaltando a questão do complexo de Édipo, em virtude de sua importância para a formação da personalidade e a concepção de mecanismos de defesa, considerando-se que estes aspectos da Psicanálise são imprescindíveis para a compreensão de sua prática clínica. A teoria psicanalítica foi responsável pela criação de instrumentos para a compreensão da estrutura e da dinâmica do psiquismo que, por sua vez, foi definido a partir de três elementos fundamentais – id, ego e superego – que se relacionam por intermédio de conflitos provocados por forças contrárias de impulsos ou pulsão. O ego é responsável pelo contato com a realidade e tem a função de equilibrar os instintos primitivos do id com as forças repressoras do superego (instância representativa da moral social, adquirida mediante regras transmitidas pelas figuras parentais) (FIGUEIRA, 2005). Na perspectiva de Dewald (1981), É preciso novamente enfatizar que esta concepção do aparelho mental é uma abstração teórica baseada num conjunto de definições convencionais. O id, o ego e o superego não têm existência independente e representam agrupamentos práticos dos diferentes tipos de processo e funções mentais. [...] A utilidade dessa estrutura é que ela proporciona um meio de conceituação e compreensão dos aspectos objetivos do comportamento humano e, assim, promove um alicerce para uma teoria geral dinâmica do comportamento humano e da função mental, tanto normal quanto patológica (p. 35). As crianças, sobretudo nos primeiros anos de vida, possuem muitos desejos que as levam a procurar o prazer e a evitar a dor. Esses desejos se traduzem em imagens mentais, pois, à medida que são atendidas pela figura da mãe será observada sua atitude em relação a elas, podendo então internalizar a imagem de uma mão boa (que gratifica) e uma mãe ruim (que acaba reprimindo os desejos do filho). Essa atitude tem continuidade no momento em que os pais procuram socializá-las e prepará-las para a sociedade. Sendo assim, a compreensão do que é permitido e do que é proibido faz com que, consequentemente, experimentem a frustração desses desejos. Quando o tempo passa, todavia, muitos dos desejos iniciais e das ansiedades a elas atrelados acabam sendo esquecidos, ou melhor, são reprimidos para o inconsciente. Terão, porém, um potencial enorme de modificar o comportamento na vida adulta (VRIES; CARLOCK; TREACY, 2009). 44 A presença da sexualidade, na fase do desenvolvimento humano reconhecida como infância, é uma característica primordial na teoria psicanalítica. Conforme descrito por Figueira (2005), foram enfatizados pelo precursor da Psicanálise cinco estágios do desenvolvimento psicossexual na seguinte ordem: oral, anal, fálico, de latência e genital, que iniciam a partir do nascimento. Em cada um dos estágios, identificam-se zonas erógenas específicas do corpo da criança. No estágio oral, que corresponde do nascimento aos dois anos aproximadamente, a zona erógena é a boca que, quando estimulada, propicia prazer. Em seguida o estágio anal, que corresponde ao período dos dois aos quatro anos aproximadamente; nessa fase o prazer erógeno infantil situa-se no controle dos esfíncteres, em conter ou expulsar. No estágio fálico, dos cinco aos seis anos, ocorre a triangulação descrita por S. Freud como Complexo de Édipo; mediante intenso afeto pelo progenitor do sexo oposto e, temendo a castração pelo progenitor do mesmo sexo, a criança resolveria este conflito identificando-se com este último: Nas palavras de Miermont (1994), Ela (a psicanálise) apreende o drama da psique em torno de uma triangulação que estrutura o indivíduo normal e/ou neurótico: o complexo de Édipo aparece como um organizador e um obstáculo das relações familiares e sociais, que cumpre as suas funções a partir dos desejos e das interdições da criança confrontada, na realidade e no fantasma, afetiva e intelectualmente, às pessoas parentais. O complexo de Édipo seria, pois, uma invariante emocional universal que estrutura de forma triangular o pertencimento do indivíduo a sua família nuclear, bem como a necessidade que ele tem de desprender-se dela (p. 451). A fase de latência, apropriada para crianças de 7 a 12 anos aproximadamente, caracteriza-se por uma experiência de vida mais calma do ponto de vista dinâmico, proporcionando espaço para obtenção de habilidades, valores e papéis sociais. Por fim, a fase genital, correspondente aos 12 anos em diante, conhecida como adolescência; tal fase é caracterizada por uma reativação dos impulsos sexuais da fase fálica, porém, dessa vez, com a chance de resolução por meio do relacionamento com parceiros fora do espaço familiar. Levando em consideração os estágios do desenvolvimento psicossexual descritos, os psicanalistas argumentam que, dependendo da forma com que o indivíduo experimenta ou vivencia essas fases, existe tanto a possibilidade de ele ultrapassar sem problemas quanto de sofrer fixações em alguma das diversas etapas, podendo, então, desenvolver futuras neuroses que afetarão o comportamento adulto. Freud (1969) analisou a influência da família na formação e estruturação do psiquismo. Sua abordagem clínica, no entanto, estava voltada para o entendimento do indivíduo. 45 Para Nichols e Schwartz (1998), Freud não estava interessado na família atual; estava interessado na família-comoela-era-invocada, aprisionada no inconsciente. Conduzindo o tratamento de forma privada, Freud salvaguardava a verdade do paciente na santidade do relacionamento terapêutico e, assim, maximizava a probabilidade do paciente repetir, na relação com o analista, os aprendizados e os equívocos da infância (p. 22). Toda a estrutura teórica psicanalítica, apesar de considerar o convívio familiar como fonte dos conflitos, é direcionada para o atendimento individual. Os psicanalistas que foram seguidores de Freud, assim como seus dissidentes (tais como Alfred Adler, Carl Young e Karen Horney, apenas para citar alguns), apesar das suas próprias contribuições para o campo da Psicanálise, mantiveram como prática os atendimentos individuais. É aconselhado que em uma sessão de Psicoterapia, por exemplo, membros de uma mesma família não devam ser atendidos conjuntamente nem separadamente pelo mesmo terapeuta. Seguidores da mesma abordagem, Nichols e Schwartz (1998, p. 24) orientam que: “Embora o papel da família na etiologia dos problemas psiquiátricos há muito venha sendo reconhecido, a maior parte dos clínicos acreditava que a exclusão da família era uma condição necessária para anular sua influência destrutiva”. Foi possível ressaltar até aqui, de forma breve e sucinta, alguns dos principais conceitos e autores da teoria psicanalítica possibilitando uma orientação para sua prática em atendimentos individuais. Buscou-se fornecer subsídios históricos comparativos no sentido de ampliar o conhecimento a respeito da abordagem sistêmica e, acima de tudo, compreender como essas duas abordagens, por mais distintas que sejam, quando utilizadas para o campo das organizações podem fornecer uma visão mais completa sobre os processos de relações humanas e empresariais. 2.5.2 Transferência/Contratransferência e Mecanismos de Defesa As conversas do dia a dia incidem na tentativa de uma pessoa em transmitir seus sentimentos à outra. Um exemplo que ilustre melhor isto é quando uma pessoa está ansiosa e acaba procurando outra pessoa para conversar na expectativa de que ela possa literalmente sentir esse sofrimento. Conforme Vries, Carlock e Treacy (2009), o processo habitual de comunicação consiste em ciclos de projeção e introjeção bastante breves e oscilantes: assim, no momento em que uma pessoa se comunica com palavras e gestos (projeção) a outra escuta 46 e interpreta essa fala (introjeção) e, por sua vez, após ter compreendido a mensagem da pessoa que falou, retorna a mensagem com a bagagem de sua própria interpretação. A descrição anterior fica mais clara nos processos de investigação do comportamento humano, quando o objeto de investigação tende a despertar no pesquisador certas reações. Num processo de Psicoterapia entre paciente e terapeuta esses termos são conhecidos como “transferência e contratransferência”. Os autores definem transferência e contratransferência da seguinte maneira: transferência é o termo empregado para ilustrar a forma com que o paciente percebe ou experimenta no terapeuta traços ou condutas que compete a uma importante figura do seu próprio passado (um dos pais, por exemplo) ou que integra uma parte reprimida de sua personalidade (por exemplo, o paciente percebe a figura do terapeuta autoritário e controlador, quando, na verdade, esses são sentimentos que, por algum motivo, o paciente reprimiu para seu inconsciente). Contratransferência, por sua vez, é o termo conceitualmente utilizado para definir os sentimentos despertados no terapeuta pelo paciente (relacionados a uma figura importante do passado do terapeuta). Esboça sentimentos de que os terapeutas têm conhecimento, mas que não parecem pertencer-lhes, sendo experimentados como resultado de seu contato com o paciente. Por exemplo, ao final de uma sessão de Psicoterapia é comum que o terapeuta se sinta estranhamente ansioso, preocupado e até mesmo triste. Isso pode ser consequência da transferência dos sentimentos do paciente para o terapeuta. Quanto aos mecanismos de defesa, pode-se dizer que estes são responsáveis pelo equilíbrio do mundo interno do sujeito e os impactos impostos pela realidade externa. Ao lidar com o estresse e a tensão da vida quotidiana, as pessoas utilizam defesas psicológicas para manter o equilíbrio e combater a ansiedade que tenta emergir do aparelho psíquico. Essas reações defensivas são, em grande parte, inconscientes e têm por finalidade impedir-nos de enfrentar certos aspectos sobre nós mesmos que julgamos ameaçadores e, assim, evitar que sejamos oprimidos por sentimentos demasiados inquietantes. Tais mecanismos desempenham seu papel adequadamente à medida que auxiliam no equilíbrio mental. Figueira (2005) relata que Freud, no desenvolvimento da teoria psicanalítica, designou de mecanismos de defesa do ego os artifícios protetores dessa instância psíquica contra ameaças intoleráveis sob o ponto de vista emocional, advindas tanto do meio exterior quanto de impulsos internos do próprio id. Atualmente, tais mecanismos são analisados na prática clínica, principalmente na elaboração de diagnósticos de personalidade e se prestam como 47 conteúdos a serem trabalhados em Psicoterapia, pois limitam e causam sofrimento à vida das pessoas. Sob a tensão de uma forte ansiedade, o ego é forçado a adotar medidas extremas para aliviar a pressão. Essas atitudes são denominadas mecanismos de defesa. As defesas mais conhecidas são a repressão, a projeção, a formação reativa, a fixação e a regressão (FREUD, 1968). Todos os mecanismos de defesa possuem duas características em comum: (1) eles negam, mudam ou distorcem a realidade e (2) eles atuam inconscientemente, de modo que o indivíduo não tenha consciência do que está acontecendo. A repressão é um dos primeiros conceitos da Psicanálise e ocorre quando uma escolha de objeto que provoca um alerta indevido é empurrada para fora da consciência. Por exemplo, os indivíduos têm a capacidade de impedir que uma memória perturbadora se torne consciente, ou que uma pessoa não veja algo que está bem a sua frente, pois a percepção daquilo está reprimida. A projeção geralmente possui um propósito duplo. Ela diminui a ansiedade ao substituir um perigo maior por um menor, e possibilita ao indivíduo que está projetando expressar seus desejos de forma disfarçada. Na projeção alguém simplesmente diz: “ela me odeia”, mas o ideal seria “eu a odeio”. O mecanismo de formação reativa substitui na consciência um impulso ou sentimento antigênico pelo seu oposto. Por exemplo, em alguns casos, por mais que as pessoas se odeiem, quando juntas agem como amigas. Por fim, a fixação e a regressão podem ser entendidas da seguinte forma. A primeira ocorre quando a pessoa não muda de estágio de desenvolvimento devido às ansiedades causadas pela próxima fase; já a segunda acontece quando uma pessoa que passou por experiências traumáticas regride para um estágio anterior do desenvolvimento. Por exemplo, uma criança que está assustada com seu primeiro dia de aula pode apresentar comportamentos característicos de quando ela era bebê. A fixação e a regressão, em geral, são condições que se complementam: uma pessoa dificilmente se fixa ou regride completamente. As fixações e as regressões são responsáveis pela irregularidade do desenvolvimento da personalidade. 2.5.3 Abordagem Sistêmica Os precursores da prática familiar rompem com os pressupostos da abordagem psicodinâmica voltada para a compreensão dos fatores intrínsecos ao sujeito. Deparando-se com problemas práticos da clínica gradativamente, e na tentativa de obter melhores 48 resultados, a partir da metade do século 20 alguns psicanalistas começam a atender os pacientes em conjunto com seus familiares (FIGUEIRA, 2005): Na concepção de Miermont (1994), A terapia familiar surgiu dos problemas da clínica psiquiátrica ligados a certos impasses pragmáticos que a realidade cotidiana coloca aos terapeutas. Ela aparece como um recurso diante de realidades inextrincáveis. Por meio da criação de acontecimentos singulares, inscrevendo-se no tempo e no espaço, e modificando, nesse nível, a evolução espontânea da família, ela estabelece uma conexão entre a semiologia do corpo e a do espírito, e os modos de conduta, emoção e pensamento de microssistemas familiares em sofrimento (p. 33). A perspectiva familiar sistêmica provém de muitas das distintas correntes da pesquisa científica social voltada para o modo como os indivíduos interagem e se relacionam em grupos. No território da Sociologia, por exemplo, os estudos sobre dinâmicas de grupo realizados por Kurt Lewin chagaram a resultados de que o trabalho em grupo pode ser uma ferramenta para mudança de pensamento e atitude. Lewin foi pioneiro nos estudos de grupos e serviu de espelho para outros estudiosos, como o caso dos psicólogos que trabalham com famílias nas questões interpessoais e de relacionamento (VRIES; CARLOCK; TREACY, 2009). Figueira (2005) afirma que a teoria sistêmica familiar é relativamente recente quando comparada com a corrente psicanalítica, contudo não deixa de ter seus méritos e importância para a Psicologia. Sua contribuição para a compreensão dos sistemas familiares até o momento, pelo menos, mostra-se deveras proveitoso e válido no que tem instigado em termos de discussões, reflexões teóricas e resultados clínicos. A abordagem familiar, por sua vez, parte da hipótese de que quem adoece não é somente o indivíduo/paciente, mas também o sistema familiar, e, portanto, prioriza a abordagem de todo o grupo familiar: Ao invés de tratar da doença mental de um indivíduo, os terapeutas familiares tentam modificar as regras de comunicação, de percepção e de raciocínio que prevalecem no seio do grupo em que vive o “paciente designado”. Eles partem da hipótese de que as desordens de uma pessoa são sintoma da desordem de sua família (LÉVY, 1993, p. 140). O psicólogo/terapeuta, como descreve nitidamente a teoria dos sistemas familiares, é um observador que está sempre participando do que ocorre no universo das relações familiares compondo parte de sua dinâmica. Por esse motivo, é relevante perceber o papel que ele desempenha nesse universo para melhor entender a teoria dos sistemas familiares. Conforme os escritos dos primeiros terapeutas familiares, era tangível ao terapeuta mudar o 49 sistema ao mesmo tempo em que permanecia na posição de neutralidade e imparcialidade aos acontecimentos que ocorriam nas famílias (VRIES; CARLOCK; TREACY, 2009). É relevante mencionar que o paradigma de sustentação do pensamento sistêmico não segue os mesmos princípios das abordagens positivistas, pois define o conhecimento como dependente e relativo ao contexto. Dessa forma, questiona a objetividade e a neutralidade características da ciência moderna desafiando a certeza científica (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998). Figueira (2005) explica que o paradigma de sustentação da noção de sistema remete-se à compreensão holística:2 O termo “sistema” pode ser definido como um “todo” organizado em estruturas de múltiplos níveis, cada um dividido em subsistemas que são “todos” em relação às suas “partes” e “partes” em relação aos demais “todos” maiores. Cada “parte-todo” é autônoma mas, simultaneamente, dependente e interligada (p. 13). Koestler (1981) ilustra tal conceito com a metáfora da comparação das duas faces do mitológico deus romano Jano, pois, por meio de cada uma delas, podia ver dois níveis distintos ao mesmo tempo: Homem algum é uma ilha; cada qual é um “hólon”. Semelhantes a Jano, o deus romano de dois rostos opostos, os “hólons” possuem a dupla tendência de, ao mesmo tempo, se portarem como todos quase independentes, afirmando suas individualidades, e agirem como partes integradas de “todos” maiores, na escala de hierarquias da existência. Por conseguinte, um homem é, a um só tempo, um ser único e também parte de um grupo social, que, por sua vez, é parte de um grupo maior, e assim por diante (p. 5). Para Minuchin (1982), o trabalho do terapeuta familiar deve abordar as mudanças na organização familiar, acabando com as estruturas disfuncionais, fortalecendo as fronteiras difusas e suavizando as rígidas. Levando em conta esse ponto de vista, o autor criou importantes conceitos relativos ao que se entende hoje como terapia familiar estrutural. Entre eles destacam-se: a noção de estrutura, as regras, os subsistemas e as fronteiras. A noção de estrutura familiar passa pela sua composição e hierarquia dentro da família: Os subsistemas podem ser formados por geração, sexo, interesse ou por função [...] As fronteiras de um subsistema são as regras que definem quem participa e como 2 O termo provém da palavra holismo: "Do grego: que forma um todo, todo inteiro, o holismo designa as teorias segundo as quais um todo é mais do que a soma das suas partes. P. Watzlawick et al. (1976) afirmam que 'a análise de uma família não é a soma das análises de cada um dos seus membros.' A unidade familiar possui, pois, uma 'qualidade emergente' irredutível às qualidades pessoais dos membros que a constituem" (MIERMONT, 1994, p. 303). 50 [...]. A função das fronteiras é de proteger a diferenciação do sistema. Para o funcionamento apropriado da família, as fronteiras dos subsistemas devem ser nítidas (MINUCHIN, 1982, p. 58-59). Bion (1975), também interessado em abordagens coletivas, mostrou que os grupos desenvolvem táticas para fugir das reais tarefas postas diante de si. Por mais que um grupo de pessoas deva supostamente dedicar-se ao trabalho real, fica bastante claro que os grupos podem ser muito criativos em recorrer a outras atividades mais retrógradas que dificultam o andamento da tarefa a ser realizada. Na mesma linha de pensamento Vries, Carlock e Treacy (2009) argumentam que os terapeutas, consultores e assessores devem estar preparados para um processo de autorreflexão e análise; suas intervenções devem ser embasadas no pensamento de como as pessoas se sentem dentro do grupo familiar. É relevante considerar que não existe somente uma terapia familiar, “mas muitas terapias de família, cada uma com maneiras distintamente diferentes de conceituar e tratar as famílias” (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998, p. 21). Sendo assim, é apropriado levar em consideração que as terapias familiares não pretendem anular as abordagens individuais, inclusive a abordagem psicanalítica. “Sua atuação difere na forma prática e na concepção epistemológica. Aliás, estas foram as conclusões, de maneira ampliada, da maioria dos pioneiros das terapias familiares” (FIGUEIRA, 2005, p. 22). A família é a precursora dos problemas humanos e, como os demais grupos humanos, ela tem propriedades emergentes – o todo é maior que a soma de suas partes. Independente da importância e demais critérios mensuráveis que servem de argumento e explicação dessas prioridades, todas elas recaem em duas categorias: estrutura e processo. No que concerne à estrutura das famílias, inclui-se triângulos, subsistemas e limites. Entre os processos que narram a interação familiar – reatividade emocional, comunicação disfuncional, etc. –, o conceito central é a circularidade3 (NICHOLS; SCHWARTZ, 1998). Com referência à abordagem sistêmica, em termos gerais, conforme Figueira (2005), o objetivo do tratamento clínico está voltado para as redes de relacionamento e não no mundo 3 Circularidade: “a interação entre os componentes de um sistema manifesta-se como uma seqüência circular, de modo que a relação entre quaisquer de seus elementos é bilateral. Dentro desse pressuposto de causalidade circular, a ordem dos fatores não altera o produto, um todo não possui começo nem fim. As partes unidas de um sistema estão em relação circular, num circuito de retroalimentação: cada pessoa afeta e é afetada pelo comportamento de outra pessoa e do contexto em que está inserido” (FILOMENO, 2002, p. 29). 51 interno da pessoa, ou seja, no seu psiquismo, por mais que isso seja uma consequência dessas relações. O conceito de circularidade modifica a visão de todos no sistema familiar, não havendo mais vítimas e culpados. A noção de famílias, como organismos vivos, desencadeou uma nova base epistemológica e, consequentemente, uma nova perspectiva de entender as relações humanas. 2.5.4 Algumas Correlações entre a Abordagem Psicodinâmica e a Abordagem Sistêmica Familiar Por mais que o pensamento sistêmico familiar tenha um direcionamento que se distancia significativamente da abordagem psicodinâmica, existe uma crescente convergência entre a teoria dos sistemas familiares e os conceitos psicodinâmicos. Observa-se que o início da abordagem familiar surgiu a partir da Psicanálise, num período em que esta recebia forte reconhecimento por parte da sociedade. Alguns psicanalistas, que utilizavam métodos clínicos para tratamento de pacientes esquizofrênicos, em sua maioria, desistiram da prática do atendimento individual e começaram a atender em conjunto o grupo familiar destes pacientes (FIGUEIRA, 2005). A mesma autora descreve que a partir dos trabalhos iniciais dos profissionais em terapia familiar, novos entendimentos e escolas surgiram e, atualmente, expandiram-se por todos os continentes. As diversas abordagens crescem. Algumas somam adesões e ideais e outras se contrapõem. A pesquisa é fundamental, apesar das limitações e críticas que são típicas de quaisquer abordagens. Dos modelos iniciais, no entanto, os terapeutas familiares que chegaram posteriormente tiveram a chance de se aperfeiçoar, dando início a uma nova geração de abordagens. O Quadro 1 ilustra as características presentes em cada abordagem levando em consideração seus respectivos objetos de estudo. Quadro 1: Comparação entre a perspectiva sistêmica familiar e a perspectiva psicodinâmica clássica Perspectiva Sistêmica Familiar Perspectiva Psicodinâmica Focaliza as relações familiares Focaliza o indivíduo Explora o presente em relação ao futuro. Explora o passado em relação ao presente visando à construção do futuro. Enfoca mudanças comportamentais. Desenvolve novos insights como prérequisito para mudanças. Trata de problemas no sistema. Enfoca os problemas do indivíduo a partir de 52 O terapeuta colabora no sistema. Trabalha com famílias de verdade. Abordagem mais diretiva. Fonte: Vries, Carlock e Treacy (2009, p. 43). uma perspectiva relacional. O terapeuta assume uma postura mais neutra. Explora a família simbólica a partir de cada membro da família. Abordagem mais reflexiva. A combinação das entidades família e organização numa empresa familiar, explica a relevância que a junção entre essas duas abordagens obteve ao lidar com problemas da empresa familiar que foge da finalidade da tradicional teoria da Administração. A perspectiva psicodinâmica elucida como o pensamento e as atitudes dos indivíduos são regidas pela experiência e pelos eventos do passado. O fato de sermos todos produtos de nossas experiências e origens, o terapeuta procura descobrir como essas primeiras relações interferem na forma das pessoas se comportarem em determinados ambientes (VRIES; CARLOCK; TREACY, 2009). Em compensação, a abordagem sistêmica familiar analisa de que forma a família se relaciona no presente focando no processo de mudança a partir da criação de relações mais afetivas. O modelo dos sistemas familiares reconhece a importância das experiências passadas, mas concentra sua intervenção, sobretudo nas exigências do presente (VRIES; CARLOCK; TREACY, 2009). Nesse sentido, os autores argumentam que utilizar as duas perspectivas da Psicologia no contexto da empresa familiar fomenta uma aprendizagem mais ampla, pois ambas consideram tanto os problemas comportamentais quanto os mais rígidos sistemas de costumes sobre os quais se apoiam as decisões nos âmbitos individual, interpessoal e familiar. A aplicação dessas duas perspectivas, contudo, fornece insights referentes às esferas cognitiva, emocional, interpessoal e social. A partir do referencial teórico apresentado, foi possível explorar as características subjacentes aos fenômenos organizacionais que são essenciais na constituição do caráter dos indivíduos. Muitas dessas características estão presentes na cultua e são transformadas em valores. Sendo assim, almejou-se, por meio do relacionamento de teorias da Administração e da Psicologia, uma interação sobre esses aspectos, pois eles possuem um papel primordial no funcionamento e perpetuação dessas empresas. 53 3 METODOLOGIA Pode-se definir método como o caminho para se chegar a determinado fim, e método científico como um conjunto de procedimentos intelectuais e técnicos adotados para se atingir o conhecimento (GIL, 2010). Metodologia é um conjunto de técnicas utilizadas para alcançar o conhecimento ou objetivo sobre determinado assunto ou tema. 3.1 Delineamento da Pesquisa Este estudo contempla uma abordagem qualitativa de pesquisa visando a aprender a realidade social das organizações familiares a partir da subjetividade de seus atores (TRIVIÑOS, 1992). Nessa abordagem, supõe-se que os sistemas culturais e de significados, de alguma forma, compõem a percepção e a elaboração da realidade subjetiva e social por parte do indivíduo (FLICK, 2004). O princípio básico dessa abordagem é a necessidade de se fazer uma diferenciação entre o que é visível e o que está intrínseco às experiências e atividades desempenhadas pelas pessoas. A parte visível, ou seja, a superfície das ações e comportamentos, pode ser alterada e prevista conforme as intenções e prioridades das pessoas; enquanto o que está intrínseco, isto é, as questões que interferem nas decisões, não são acessíveis às reflexões individuais cotidianas. Estruturas desse tipo estão presentes em modelos culturais, em padrões interpretativos e estruturas latentes de significado que só podem ser entendidos por meio de uma abordagem subjetiva. A Psicanálise, portanto, propõe-se a revelar o inconsciente, tanto de grupos quanto de indivíduos, a partir do desenvolvimento de uma pesquisa, sendo a relação entre o pesquisador e o entrevistado um dos instrumentos fundamentais para a descoberta de como a inconsciência atua nessas condições. 54 Considerando os critérios de classificação da pesquisa proposto por Vergara (2009), quanto aos fins e quanto aos meios, tem-se: quanto aos fins trata-se de uma pesquisa exploratória e descritiva. Exploratória porque, embora a empresa estudada seja uma instituição aberta para pesquisas (a critério de ilustração, evidencia-se os estudos de Lanza (2001), Tomazelli e Marcon (2007) e Tiburski (2000)), não se verificou a existência de estudos que contemplem os valores familiares e a análise do processo sucessório pelo ponto de vista do qual a pesquisa tem a intenção de abordá-lo. A pesquisa exploratória “é realizada em área na qual há pouco conhecimento acumulado e sistematizado. Por sua natureza de sondagem, não comporta hipóteses que, todavia, poderão surgir durante ou ao final da pesquisa” (VERGARA, 2009, p. 42). Essa modalidade, conforme Gil (2010, p. 45), “visa proporcionar maior familiaridade com o problema, com vistas a torná-lo explícito ou a construir hipóteses, tendo como objetivo principal o aprimoramento de idéias ou a descoberta de intuições”. Köche (1997) menciona que pesquisas exploratórias são adequadas para casos em que ainda não proporcionem um sistema de teorias e conhecimentos prontos. "Nesse caso é necessário desencadear um processo de investigação que identifique a natureza do fenômeno e aponte as características essenciais das variáveis que se deseja estudar" (p.126). A pesquisa também é descritiva, por que apresenta os valores familiares presentes na organização e as características pertinentes à estruturação do processo sucessório de acordo com a visão da família empresária. A pesquisa descritiva visa a expor características de determinada população ou de determinado fenômeno (VERGARA, 2009). Gil (2010) afirma que algumas pesquisas descritivas, além da identificação da existência de relações entre variáveis, têm por objetivo determinar a natureza dessa relação. Cita ainda a existência de pesquisas que, "embora definidas como descritivas a partir de seus objetivos, acabam servindo mais para proporcionar uma nova visão do problema, o que as aproxima das pesquisas exploratórias" (p. 46). Para Mattar (1999, p. 45), essa modalidade “responderá a questões como: quem, o quê, quando e onde.” Desta forma, a relação com o problema de pesquisa, quando voltada ao propósito de estudar e descrever as características de grupo, deve comportar características dentro de uma população específica para descobrir ou verificar a existência de relação entre variáveis. A partir desta base, Fernandez e Gomes (2003) referem que a pesquisa descritiva é uma modalidade de pesquisa que visa a analisar ou verificar as relações entre fatos e acontecimentos (variáveis), ou seja, tomar conhecimento do que, com quem, como e qual a 55 intensidade do objeto em estudo. A pesquisa descritiva também é indicada para avaliação de programas; tais estudos podem optar por trabalhar com a formulação de hipóteses sem a utilização delas e muitas vezes podem servir de base para estudos de relações causais. Quanto aos meios, a pesquisa foi bibliográfica, documental e estudo de caso. Bibliográfica porque para a fundamentação teórico-metodológica do trabalho foi realizada a investigação dos seguintes assuntos: empresa familiar, processo sucessório, valores familiares e teoria psicodinâmica psicanalítica e sistêmica familiar. Essa modalidade é, com certeza, uma das fontes mais empregadas em estudos científicos e compõe a fase prévia no desenvolvimento de uma pesquisa, independente do problema em questão (FERNANDEZ; GOMES, 2003). Comporta, consideravelmente, parte da bibliografia já publicada em relação ao tema de estudo, desde publicações avulsas, boletins, jornais, revistas, livros, pesquisas, Monografias, Teses, Dissertações, Internet, etc., até meios de comunicação orais: rádio, gravações em fita magnética e audiovisuais: filme e televisão. “A sua finalidade é colocar o pesquisador em contato direto com tudo o que foi dito, escrito ou filmado sobre determinado assunto” (LAKATOS; MARCONI, 1996, p. 66). A investigação foi, também, documental, porque se valeu de documentos internos da empresa que diziam respeito ao objeto de estudo. Sua classificação referiu-se ao procedimento a ser empregado no processo de pesquisa, que consistiu em um instrumental de apoio a qualquer pesquisa. O que difere a pesquisa documental da pesquisa bibliográfica é, basicamente, a natureza das fontes, conforme explica Gil (2010, p. 51) ao argumentar que a pesquisa bibliográfica utiliza-se necessariamente de contribuições dos diversos autores, enquanto que a documental ampara-se de materiais que ainda não foram analisados ou que ainda podem ser reutilizados conforme os objetos da pesquisa. No entendimento de Fernandez e Gomes (2003): A pesquisa documental apresenta a vantagem de que os documentos constituem uma fonte rica e estável de dados e sobrevivem ao longo do tempo e é uma importante fonte de dados em pesquisa histórica, além de apresentarem um baixo custo. Outra vantagem é o fato de não exigir contato com os sujeitos da pesquisa, e existem alguns casos em que é muito difícil ou até mesmo impossível fazer tal contato (p. 26). Uma pesquisa baseada em documentos pode não fornecer dados suficientes para chegar à conclusão de um problema; por outro lado, pode proporcionar uma visão mais ampla e diferenciada do problema, ou, quem sabe, instigar uma nova pesquisa. 56 A pesquisa documental se deu por meio de documentos da empresa fornecidos pela psicóloga que é responsável pelo setor de recursos humanos durante as primeiras visitas à instituição, que tinham a finalidade de apresentação e dar conhecimento em termos de recursos humanos e espaço físico. Alguns documentos tinham acesso restrito a alguns funcionários, contudo foi possível analisar organograma, manual de integração, histórico da organização, currículo do fundador e filhos, publicações e documentos que certificavam os prêmios e títulos ganhos pela mesma. Por fim, a pesquisa abrange a modalidade de estudo de caso, pois tem caráter de profundidade e detalhamento de uma empresa familiar gaúcha. Gil (2010) pressupõe a existência de algumas circunstâncias para as quais o estudo de caso é apropriado; por exemplo, no início da construção de um estudo sobre temas difíceis, em que é recomendada a elaboração de hipóteses ou reformulação do problema. “Também se aplica com pertinência nas situações em que o objeto de estudo já é suficientemente conhecido a ponto de ser enquadrado em determinado tipo ideal” (p. 59). No entendimento de Yin (2001), o estudo de caso é a modalidade mais utilizada quando predominam questões dos tipos “como?” e “por quê?”, ou quando o pesquisador não possui conhecimento suficiente sobre os eventos e ainda quando o foco se concentra em fenômenos da vida real. É um tipo de pesquisa científica que investiga fenômenos contemporâneos em seu ambiente real, quando os limites entre os fatos e o contexto não são claramente definidos; quando as variáveis despertam inquietude no pesquisador; quando se baseia em diversas fontes de evidências; e quando há proposições teóricas para conduzir a coleta e a análise dos dados. 3.2 Sujeitos da Pesquisa A empresa Alfa4 trabalha com produtos de fibra de vidro e polietileno. Possui uma estrutura que possibilita a fabricação em massa destas duas linhas, e se destacam como principais produtos de comercialização as caixas de água e as antenas parabólicas. Esta empresa tem sua matriz situada no interior do Estado do Rio Grande do Sul e atua em 11 Estados do Brasil. Atualmente, possui cerca de 240 funcionários divididos em duas unidades. 4 Nome fictício da empresa estudada. 57 Os sujeitos da pesquisa estudados consistiram nos membros da família empresária, sendo estes pai, mãe e os dois filhos. Também foram entrevistados três funcionários que são líderes em seus respectivos setores. Identificar os sujeitos que possam fornecer diferentes visões sobre o processo, como também aqueles dispostos a participar da pesquisa e que possuem domínio sobre o tema explorado, são fatores importantes que devem ser considerados ao identificar as pessoas entrevistadas (RUBIN; RUBIN, 1995). Em decorrência do sigilo de informações, dados como nome da empresa, familiares e dos funcionários foram excluídos ou substituídos por nomes fictícios; os dados de localização também não serão divulgados. 3.3 Coleta de Dados Definida a natureza da pesquisa e estabelecido o estudo de caso como sua técnica, a próxima etapa consiste no delineamento das técnicas que foram utilizadas no levantamento dos dados. A principal técnica empregada foi a entrevista semiestruturada, buscando uma compreensão da importância dos valores familiares no processo sucessório. A delimitação da quantidade de pessoas entrevistadas baseou-se nos critérios de diversidade e saturação proposto por Marre (1991). No que se refere à diversidade, identificaram-se pessoas diferenciadas que puderam contribuir para a pesquisa e que conheciam o que se pretendeu explorar. Já a saturação indicou que as entrevistas já coletadas esgotaram as informações necessárias e que qualquer nova entrevista não acrescentaria outras informações ao estudo. Cabe destacar que, além da busca por satisfazer esses critérios, a escolha dos sujeitos esteve atrelada a sua disponibilidade. Além das entrevistas, houve algumas conversas informais com a psicóloga, responsável pelo setor de recursos humanos, com o pai e os dois filhos. No primeiro dia foi visitada a instituição como também se aproveitou a oportunidade para explicar o trabalho e coletar dados para a pesquisa documental. Neste dia também foram realizados diários de campo e observações durante a expedição e apresentação dos setores da empresa. Deste modo, a pesquisa de campo foi realizada nos meses de maio e junho de 2012. As entrevistas foram aplicadas conforme a disponibilidade dos sujeitos. Foram realizadas sete entrevistas, totalizando aproximadamente 453 minutos de gravação (7 horas e 55 minutos), o que resultou em 75 páginas de transcrição para análise. No Quadro 2 estão relacionados os entrevistados, as funções desempenhadas, a data e duração das entrevistas e o tempo que trabalham na empresa. 58 Quadro 2: Entrevistados na empresa Alfa* Entrevistado Função Desempenhada Marcos* Pai/Fundador Data e Duração da Entrevista 28/6/2012/100min. Tempo na Empresa 25 anos Maria* Mãe/Proprietária 28/6/2012/40min ______ Gustavo* Filho/Gerente Marketing 21/6/2012/90min. 2 anos Gabriel* Filho/Gerente Financeiro 21/6/2012/78min. 7 anos Ana* Funcionária/Psicóloga 17/5/2012/90 min. 3 anos Giovani* Funcionário/Compras 25/5/2012/26 min. 17 anos Lúcio*5 Funcionário/Facilitador 25/5/2012/29 min. 21 anos Para nortear as entrevistas foram utilizados quatro roteiros semiestruturados constituídos de questões abertas resultantes da investigação teórica anteriormente realizada. Cabe ressaltar que as diferenciações dos mesmos consistem, principalmente, em adaptar as questões para cada perfil de entrevistado, nesse caso pais, filhos e funcionários; inclusive as questões são semelhantes a fim de propiciar uma análise comparativa dos dados. Os roteiros de entrevistas compreendem os apêndices 1, 2, 3 e 4. Os roteiros foram elaborados com base nos seguintes aspectos: recuperação da trajetória de vida do pai/fundador, da mãe e dos filhos; compreensão das características familiares como os valores, costumes e conflitos; motivação dos filhos para trabalhar na empresa; semelhanças entre pai e filhos na forma de conduzir o negócio; e análise do processo sucessório apontando as dificuldades vivenciadas pelo sucessor ao longo do processo e no período pós-sucessão, buscando apreender se os valores familiares presentes continuarão vigorando na organização. Os entrevistados foram instigados a falar de seus sentimentos e angústias permitindo resgatar características de seu passado, visando a compreender as questões inconscientes e subjetivas relacionadas às temáticas em questão – valores e processo sucessório. Foi empregado nas entrevistas o método psicanalítico de associação livre, que, na concepção de Bevidas (2002), produz o discurso do inconsciente e expressa os desejos mais profundos que, por forças maiores, estão aprisionados no inconsciente; discurso este rico de informação, que, de certa forma, deve ser preparado com discreta atuação do clínico. O sujeito não se apresenta de antemão com sua subjetividade visível aos olhos de qualquer pessoa. Ao contrário, 5 *Nomes fictícios. 59 pronuncia-se com um discurso bloqueado, ou seja, com receio do que vai expressar num primeiro momento, posto que, na maioria das vezes, os conteúdos inconscientes aparecem de forma mascarada. 3.4 Análise e Interpretação dos Dados Para a apreciação dos dados foi usada a técnica de análise de conteúdo e de discurso. O exame de conteúdo é empregado no tratamento de dados com o objetivo de identificar e interpretar as informações adquiridas no decorrer do processo (VERGARA, 2005). Bardin (1997, p. 42) considera que a análise de conteúdo compreende: Um conjunto de técnicas de análise das comunicações, visando obter, por procedimentos, sistemáticos e objetivos de descrição do conteúdo das mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitem a inferência de conhecimentos relativos às condições de produção/recepção (variáveis inferidas) dessas mensagens. Demo (1989) argumenta que essa técnica não se remete unicamente ao conteúdo de um discurso, mas se refere ao conteúdo da prática. Sendo assim, a estrutura formal serve mais como um complemento. As principais questões a serem analisadas, portanto, devem ser dirigidas, essencialmente, para o caráter do depoimento dos entrevistados, naquilo que exibem de compromissos políticos, nos obstáculos presentes no dia a dia, nos acontecimentos históricos da vida e nas metas e objetivos atingidos. Levando em conta o conjunto das técnicas de análise de conteúdo, foi adotada para esse estudo a análise categorial ou temática, que é descrita por Bardin (1997) como o processo de apreciação do texto, a partir de análises categorizadas e agrupadas analogicamente em relação aos eixos temáticos. A análise apresentada aqui compreenderá as três fases operacionais: 1) pré-análise; 2) exploração do material; 3) tratamento dos resultados, inferência e interpretação. O Quadro 3 apresenta as categorias de análise e relaciona as perguntas das entrevistas referentes a cada tema. Quadro 3: Categorias de análise Categorias de Análise História da Empresa Valores Familiares Sucessão Psicodinâmica Familiar Pais 1, 3 1, 2, 7 4, 6, 8 1, 2, 5 Filhos 1, 3 1, 2, 7 3, 4, 6, 8 1, 2, 5 Funcionários 1, 2 3, 4, 5 6, 4 3 60 Vergara (2005) conceitua a análise de discurso como uma técnica que pretende, além de registrar como uma mensagem é comunicada, também explorar o seu sentido. A análise de discurso avalia o indivíduo relator da mensagem e a pessoa que a recebeu, sempre levando em conta o contexto e o momento em que foi gerada. “Uma das condições indispensáveis para que a análise de discurso seja efetivada com clareza é a transcrição de entrevistas e discursos na íntegra, sem cortes, correções ou interpretações iniciais” (PONTE et al., 2012, p. 12). Por fim, Vergara (2005) sugere que o relatório final, posterior à análise, deve apresentar fragmentos do material levantado, visando a garantir a fidelidade da interpretação do pesquisador. A autora defende também a importância de esse relatório apontar os critérios empregados na apreciação dos dados, de modo a facilitar a sua compreensão pelo leitor. Com a metodologia utilizada no estudo foi possível visualizar o delineamento, o objeto e os sujeitos da pesquisa, bem como os demais passos realizados até agora, os quais foram fundamentais no direcionamento e sequência do trabalho. 61 4 APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS RESULTADOS Nesta parte do estudo apresenta-se a análise dos resultados obtidos com a pesquisa de campo apontando conclusões acerca dos objetivos propostos pela investigação. Está dividida em quatro subpartes. A primeira retrata a história e características da empresa Alfa, a segunda identifica e descreve os valores familiares, em seguida é feita uma análise do processo sucessório e, por fim, a compreensão da psicodinâmica familiar e seus reflexos na sucessão. 4.1 História e Características da Empresa Alfa A partir do histórico, delineado a seguir, foi possível evidenciar os primeiros registros relacionados ao negócio da família, que, atualmente, vem preparando sua primeira sucessão. A história de uma empresa não se remete apenas ao seu ano de fundação, mas, de forma mais apropriada, deve ser iniciada pela história de seu fundador. Marcos nasceu em um município pequeno, em 1951. Seus pais eram agricultores e moravam no interior. Por volta dos 12 anos, manifestou vontade de estudar e seu pai o levou até a cidade, onde arrumou emprego em uma oficina mecânica de um posto de gasolina. Inicialmente o trabalho não era remunerado; em compensação não pagava moradia e alimentação. Estudava durante o dia e trabalhava à noite. Nos finais de semana visitava os familiares. Durante sua trajetória, Marcos teve várias profissões, e, após sair da oficina mecânica, começou a trabalhar em uma loja de materiais de construção. Após um período serviu o quartel e trabalhou em um banco, até o momento em que resolveu abrir uma empresa de implementos agrícolas em sociedade com mais quatro pessoas no município que atualmente reside, onde trabalhou por mais 12 anos. Por volta de 1985 decidiu sair da empresa e romper a sociedade com os demais membros. No período em que ficou desempregado visitou algumas feiras e exposições em outros Estados brasileiros procurando nichos de mercado, até que, certo dia, em uma feira na cidade de São Paulo, deparou-se com a antena parabólica. Tal produto chamou sua atenção e 62 despertou seu interesse, pois aquela invenção permitia que as pessoas ficassem conectadas em tempo real em diversos locais. Em 1987 fundou a empresa Alfa, localizada no interior do Estado do Rio Grande do Sul. Inicialmente com dois funcionários em uma área de 60m², começou a produção de antenas parabólicas em fibra de vidro, sendo pioneiro no Sul do Brasil na fabricação desse produto. Após um tempo mudou para uma área de 400m² e agregou a sua empresa a fabricação de móveis e tanques de lavar roupas. Preocupado com a sequência e a saúde financeira de sua empresa, em 1991 iniciou a fabricação e venda de caixas de água. Tal produto teve grande aceitação no mercado e passou a ser desenvolvido também em polietileno. Com o passar dos anos, novos itens foram fabricados e vendidos pela empresa. No Quadro 4 visualizam-se os fatos marcantes pelos quais a empresa passou no decorrer de sua trajetória, sendo possível, com isso, observar, de forma mais dinâmica e objetiva, os momentos importantes que direcionaram as mudanças da organização. Quadro 4: Fatos marcante da empresa Alfa 1987 - Produção de móveis em fibra de vidro e antenas parabólicas. 1991 - Lançamento das caixas de água em fibra de vidro no mercado. Investimento em tecnologias e novos produtos no mercado PERÍODO II: (1998-2003) 1998 - Expansão a nível estadual e nacional PERÍODO III: (2006) 2006 - Lançamento dos Sistemas Compactos de Tratamento de Esgoto, eficaz na remoção de matéria orgânica. Lançamento das caixas de água em polietileno. Produção de telhas em fibra de vidro Produção de Silos em fibra de vidro, Cochos de polietileno e Caixa de água Autolimpante, produto patenteado pela empresa. Estabilização no mercado regional e expansão em nível estadual e nacional. Participação e premiação em feiras, novos produtos PERÍODO IV: (2006-atualmente) Atual - Início das atividades e Ascensão PERÍODO I: (1987-1992) 2000 2001 2003 - Potencialização no mercado. Premiações em feiras e exposições, sendo líder do mercado. Encontra-se em plena ascensão. 63 Com a ascensão da indústria, e conforme visualizado no Quadro 4, outros produtos passaram a ser fabricados, como telhas transparentes em fibra de vidro, sistema de tratamento de esgoto, entre outros. Em decorrência do crescimento e demanda de produção, em 2002 a empresa foi ampliada com a construção de mais um armazém, e em 2006 comprou uma empresa concorrente do mesmo segmento em outro Estado brasileiro. Pouco antes dessa aquisição, Gabriel começou a trabalhar na empresa ajudando na diversificação dos produtos e assumiu a gerência contábil e financeira desta. Em 2008 ocorreu um incêndio que destruiu por completo um dos armazéns da empresa onde eram fabricados os produtos em fibra de vidro. Por ser um material inflamável, facilitou a propagação do fogo e queimou inclusive os moldes de fabricação, os quais eram essenciais nesse setor. Logo em seguida a fábrica começou a ser reconstruída. Nesse período os funcionários que ali trabalhavam foram transferidos para a filial. Alguns meses depois o armazém foi reconstruído, ecologicamente projetado e com melhores condições de trabalho. Passados alguns anos, mais especificamente em 2011, Gustavo decidiu trabalhar junto com Marcos e Gabriel no negócio da família. Outros investimentos importantes também são relevantes mencionar, como a compra de um posto de combustível para facilitar o abastecimento dos caminhões de entrega e a aquisição de uma empresa de distribuição de gás. Recentemente foi tomada a decisão de ampliar a fábrica e serão investidos dois milhões de reais em uma indústria num município vizinho. Esse histórico está representado na linha do tempo que segue (Figura 2). 64 Figura 2: Linha do tempo da Empresa Alfa 1987 – Produção de móveis de fibra de vidro e antena parabólica 1987 – Início das atividades da empresa 1991-1992 – Lançamento de caixas d’água de fibra 1988 – Primeira participação em feiras e eventos 2006 – Compra da maior concorrente em Campo Grande: Fibra Campo 1998 – Produção de telhas translúcidas 1998 – Sistemas Compactos de Tratamento de Esgoto 1994 – Baixa a venda de antenas parabólicas, porém se manteve no mercado com a venda de caixas d’água 2000 – Reedição do Tratamento de esgoto com melhorias tecnológicas 1998 – Começam a oferecer treinamentos e capacitações para outras empresas que adquiriam os produtos 2002 – Construção da fábrica nova: mais ampla e moderna e aumento da produção 2000 – Passam a utilizar polietileno como matéria-prima alternativa para seus produtos 2011 – Gustavo começa a trabalhar na empresa 2008 – incêndio em uma das fábricas 2005 – Compra de Posto 2012 – Inicia processo de de combustível para distribuição de gás para o atender demanda dos próprio posto de transportadores combustível 2005 – Gabriel começa a trabalhar na empresa 2012 – Investimento em uma nova fábrica 65 Atualmente o pai e os dois filhos estão trabalhando na Alfa e possuem uma equipe de aproximadamente 240 colaboradores. No que se refere às habilidades produtivas, a empresa possui capacidade de criar e desenvolver com qualidade produtos que envolvam fibra de vidro, polietileno ou metal. Sendo referência no segmento de plásticos, vem trabalhando para consolidar sua marca em âmbito nacional e internacional 4.2 Identificação e Descrição dos Valores Familiares A verificação do material levantado a partir das observações e das entrevistas, permitiu identificar e descrever os principais valores familiares compartilhados tanto pelos membros da família quanto pelos funcionários da Alfa. A Figura 3 ilustra os principais valores familiares descritos nesta investigação. Figura 3: Valores Familiares ALFA VALORES FAMILIARES Os valores da família foram constituídos inicialmente em uma geração anterior, ou seja, os costumes que tanto os pais de Marcos quanto os de Maria, sua esposa, adotaram como princípios morais foram sendo preservados e adotados pelos filhos e netos, respeitando a individualidade e subjetividade de cada um. Nesse sentido, a tendência é que esses valores continuem vigorando entre as pessoas que compõem o grupo familiar, pois o ser humano tende a reproduzir nas próximas gerações os ensinamentos aprendidos com seus antecessores. 66 Marcos, por exemplo, assumiu responsabilidades desde cedo, no momento em que seu pai decidiu que deveria aprender um ofício, pensando em seu futuro. Além da condição de ter uma ocupação, essa atitude do pai fez com que Marcos desenvolvesse maior autonomia e coragem tornando-se menos dependente da família. Na época com 12 anos, meu pai me levou à cidade para trabalhar em uma oficina num posto de gasolina. Na conversa com o proprietário falou o seguinte: olha trouxe esse guri aqui pra aprender a estudar e pra trabalhar. Não precisa ganhar nada durante seis meses. E foi o que eu fiz: comecei a trabalhar na oficina, à noite ia pra escola e na volta fazia a ronda no posto de gasolina, e por um ano e meio eu fiz isso aí. Eu trabalhava três finais de semana e folgava um e nesse um eu caminhava 20 quilômetros sábado de tarde pra visitá-los e 20 quilômetros no domingo de tarde pra voltar pra cidade. Essa passagem da infância está relacionada ao início das atividades da empresa Alfa, pois a trajetória de vida e de trabalho de cada indivíduo depende, em grande parte, de suas experiências particulares no andamento de sua primeira socialização que acontece no grupo familiar. Daí a importância dessa socialização tanto em âmbito interpessoal quanto social (BERGER; LUKMANN, 2004). Do ponto de vista da Psicologia, o passado não pode ser considerado um determinante único do presente, pois existem outros fatores que também influenciam a formação de personalidade. Sem dúvida, porém, ele está lá na origem dos fenômenos e acontecimentos humanos determinando-os. Ele é, sim, a base sobre a qual o ser humano consolida a sua existência, biografia e identidade (GOFFMAN, 1975). O contato entre pai e filho no cotidiano é referência na organização psíquica da criança devido ao seu papel estruturante do desenvolvimento do ego e, principalmente no período da adolescência, passa a servir de suporte das dificuldades decorrentes desta fase. É esse apoio que vai alavancar o desprendimento da criança do grupo familiar. O movimento para obter a autonomia ganha maior força na adolescência (ABERASTURY; SALAS, 1991). Maria também vivenciou essa experiência na educação de seus filhos, inclusive passou por momentos de reflexão quando algumas pessoas mais próximas começaram a questioná-la quanto a uma postura muito rígida em relação à criação dos mesmos. As pessoas falam que eu tive sorte com meus filhos. Eu acho que não é uma questão de sorte, mas fazer desde pequenininhos. Muitas vezes me falaram que eu era rígida e, às vezes, eu pensava: será que eu sou muito rígida com meus filhos? Bem, meus pais foram assim comigo e eu acho que eu tive um bom caminho e um bom exemplo. Então você deve passar valores para os filhos da forma com que foi passado pra você (MARIA). 67 Apesar desse dilema, Maria optou por seguir em frente e continuou adotando a mesma postura em relação à criação de seus filhos, tendo como base a certeza de que fora educada da mesma maneira por seus pais. A partir dessa base, decidiu que Gustavo e Gabriel deveriam começar a participar, ainda quando crianças, nos negócios da família. Gustavo comenta sobre alguns envolvimentos nos afazeres dos pais: Nós sempre tivemos contato com os negócios. Eu sempre estava junto com o pai; visitava o agricultor. Ele sempre me convidava pra ir junto. Eu me recordo que sempre no final das aulas eu dava uma passada no escritório dele. Nas férias nós íamos pra fábrica junto com eles e na livraria a gente sempre brincava de atender de vender. Com o filho mais novo não foi diferente. A atribuição de responsabilidade também iniciou na infância: Eu sempre tive muito contato com a livraria. Quando muito pequeno eu já trabalhava lá. Aí com 12 anos eu já tinha mais responsabilidades na loja e quando a mãe viajava eu ficava responsável por pegar os pagamentos a serem feitos, depósitos. Separava tudo, a lá e pagava. Então eu tive essa relação com a livraria (GABRIEL). Nesta perspectiva, fica claro que o ser humano, além da bagagem genética que herda das gerações anteriores, carrega consigo comportamentos que são decorrentes de fatores ambientais responsáveis por determinarem seu modo de ser, conduzir e se comportar mediante determinada situação, por exemplo na educação dos filhos, na relação com o cônjuge, na vida profissional, na convivência com outras pessoas, entre outros. Nuttin (1982) defende a concepção de que a personalidade é algo com a qual o indivíduo não nasce, ou seja, ela não é nata ao ser humano, mas sim construída e modificada ao longo da vida, sofrendo interferência do meio social no qual o indivíduo está inserido bem como dos valores que lhes são repassados e das situações vivenciadas durante sua trajetória de vida. Nesse sentido, a personalidade é preenchida pelo mundo, sendo resultante da interação de fatores ambientais e características hereditárias. Atribuir esses valores ao sucesso organizacional pode ser considerado a principal diferenciação entre a empresa familiar e as demais empresas, sendo um fator preponderante para sua sobrevivência. Levando em consideração este fato, surge o seguinte questionamento: Após a sucessão esses valores continuarão presentes na cultura organizacional? Giovani manifestou essa preocupação na seguinte fala: Pode acontecer de algum dia esses valores que tanto o Marcos como sua esposa e filhos insistem disseminar entre os colaboradores da empresa enfraquecerem, devido à dimensão e à proporção que a empresa vem tomando e aos poucos ela poderá 68 perder essa característica de familiar. Outra situação que pode acontecer, por exemplo, é de algum dia alguma multinacional querer comprar essa empresa e isso poderá afetar sim a cultura organizacional. Apesar dessa inquietação, o mesmo acredita que se isso vir a acontecer é somente num futuro distante, e crê muito que nessa primeira sucessão os valores continuarão vigorando, pois todos os membros da família, como também os funcionários mais estáveis da empresa, insistem muito na dispersão dessa filosofia. O ambiente familiar é, portanto, um diferencial para a empresa; por isso a importância de um sucessor que consiga continuar disseminando essa cultura para garantir a perpetuidade da empresa. O ambiente familiar ele existe na cumplicidade, do trato da forma de ser com as pessoas e isso com certeza é uma forma nossa de ser. Essa proximidade ela existe e nós queremos que ela exista por que esse é o nosso diferencial (GABRIEL). Compreender a empresa familiar, portanto, acarreta transpassar os limites de sua conceituação, procurando ir além das abordagens que envolvem a interação entre os membros da família na empresa familiar. É preciso compreender o processo de crescimento e desenvolvimento dessas empresas e, por conseguinte, aceitar que a “empresa familiar” é diferente dos demais tipos de organizações empresariais, pois se encontra estruturada por espaço físico e social, em que membros de uma ou mais famílias representam papéis ambíguos e suas estruturas sociais e afetivas sobrepõem-se à lógica objetivista da estrutura organizacional (DONALDSON, 1999). Refletir sobre a inserção de sucessores no mundo dos negócios, portanto, requer o reconhecimento de que o processo de sucessão em empresas familiares perpassa os casos de negócios transmitidos de pai para filho ou filha, e de mãe para filha ou filho. Ou seja, “fazer com que um empreendimento empresarial tenha sucesso e continuidade é um sonho para grande parte da população do mundo” (RICCA, 1998). Além disso, requer o reconhecimento de que empresas familiares vêm adquirindo relevância devido a seu predomínio e, consequentemente, importância e significação para a economia e para a sociedade em geral (LEONE, 2005). 4.3 Análise do Processo Sucessório A escolha do sucessor é um processo complexo. É fundamental que seja procedida o quanto antes, possibilitando maior flexibilidade na estrutura da transição. Ao perceber essa 69 necessidade, o sucedido deve definir o futuro da empresa planejando e organizando a sucessão. Por isso, deve ser iniciado muito tempo antes da real troca de comando. O processo sucessório na empresa Alfa sempre esteve muito presente entre os familiares, e está precedendo de maneira natural, ou seja, não existe um planejamento formal de quando irá ocorrer. Uma das primeiras evidências relacionadas a esse procedimento consiste no envolvimento dos filhos, ainda quando crianças, nas atividades da firma. Maccari et al. (2006), ao estudarem a literatura, perceberam que o foco de discussão da empresa familiar está no processo sucessório, até porque a sucessão está ligada ao fator hereditário. Os valores institucionais da empresa identificam-se com o sobrenome da família ou com a figura do fundador. A sucessão representa uma fase complicada na vida dessas empresas devido ao processo de transferência de poder e capital para as novas gerações. É uma ocasião importante no ciclo de vida dos negócios familiares e é normalmente acompanhada de problemas gerenciais e obstáculos emocionais (FLÖREN, 1998). A diferenciação predominante entre os dois irmãos que ocupam a posição de sucessores incide principalmente no tempo de trabalho, considerando que Gabriel, filho mais novo, possui maior conhecimento da empresa, pois trabalha nela há mais tempo, enquanto o filho mais velho, Gustavo, trabalhou em outras organizações. Os dois, contudo, estão aptos a assumirem a direção. Essa afirmação está presente no depoimento de Lucio: Os dois são iguais só que um adquiriu mais tempo fora e o outro mais tempo aqui dentro, mas a forma de eles administrarem e tratarem os funcionários é semelhante à de seu pai: foi sincero e correto como trabalhador e sempre terá o apoio deles. A trajetória de vida, conforme expressam Gonçalves e Lisboa (2007), pode ser considerada como uma parte da sua história, um ciclo ou etapa da existência do sujeito que vai ao encontro do interesse do pesquisador. Para a presente pesquisa, apreender os momentos da vida do(a) herdeiro-sucessor na organização foi essencial para alcançar os objetivos do estudo. Concorda-se com essas autoras que “[...] em cada momento de sua existência, os indivíduos ocupam simultaneamente várias posições, que resultam obviamente do entrelaçamento entre os campos profissionais e familiares” (GONÇALVES; LISBOA, 2007, p. 88). A volta dos filhos para a empresa não foi uma exigência do pai. Conforme Marcos, “no processo sucessório em nenhum momento a gente exigiu a presença aqui nem do Gustavo 70 e nem do Gabriel. Fomos conversando, trocando idéias, até o momento em que o Gabriel decidiu vir trabalhar na empresa”. Gabriel salienta que: O pai, ele nunca pediu para que voltássemos, mas ele sempre deixou abertura para isso, mas claro que no fundo a gente sabe que o desejo é que se retorne, afinal das contas tem sucessão e tem que preparar por que em algum dia alguém, sendo familiar ou não, terá que assumir e dar continuidade no negócio. Até teve um período que nós começamos a acompanhar o negócio de forma que pudéssemos saber como andavam as coisas por aqui; então estávamos por dentro dos indicadores e outras informações por que a gente era profissional e também poderia contribuir de outra maneira, só que chegou um ponto que a gente viu que ou você está no negócio ou você não está no negócio. As organizações familiares, como Lima, Pimentel e Soares (2008) ressaltam, apresentam processos peculiares de socializações dos seus membros, uma vez que esses processos vão além da transmissão de conhecimentos relativos à esfera do trabalho (socialização secundária). Os processos de socialização nessas organizações envolvem a introjeção de símbolos, valores, crenças, formas de fazer e de pensar relacionados à esfera da família e à do trabalho que se mesclam. Em outras palavras, juntamente com a família a empresa se configura como um espaço por meio do qual os membros da família empresária interagem socialmente desde a infância. Conforme salientam Berger e Luckmann (2004), na socialização secundária o indivíduo experimenta outros tipos de interações sociais ao entrar em contato com grupos que não apenas a família. A empresa, portanto, também constitui uma instância de socialização secundária e, dessa forma, os membros que a compõem configuram-se como outros significativos. Nesse momento, o contraponto com o outro se torna um elemento de autoconhecimento, de identificação consigo mesmo. Percebe-se, então, a construção de uma identidade em relação à generalidade; identidade esta subjetivamente apreendida como constante e composta por todos os papéis e atitudes interiorizados e pela autoidentificação. Esse processo de socialização foi vivenciado por ambos possíveis sucessores, uma vez que tiveram oportunidades de estudar e trabalhar em outros locais e cursos que se distanciavam da realidade da empresa. A opção pelo retorno à empresa partiu inicialmente de Gabriel, o qual descreve o processo de tomada de decisão da seguinte forma: Nosso objetivo foi fazer uma carreira fora, e depois voltamos por opção para a empresa e não por obrigação. A gente sempre deixou bem claro isso por que sempre teve uma cobrança de ser um profissional e eu sabia que não gostaria de estar aqui como filho do dono, mas como profissional. Tenho a minha caminhada, tenho a minha experiência para poder agregar e não sair do zero, pois não acrescer nada para o negócio não faria sentido. Eu fiquei mais uns três anos naquela empresa que eu 71 trabalhava até que chegou uma época que eu percebi que aquela empresa precisava de uma alavancada em termos profissionais. Eu tinha uma vida profissional boa, mas ambiente de trabalho não estava bom; daí eu pensei que entre buscar alguma outra atividade talvez seria o momento para vir para a nossa empresa e o pai comentou de uma reestruturação que estava ocorrendo no financeiro e ofereceu essa vaga. Digamos assim, pensei por muito tempo, fiquei uns seis meses amadurecendo a ideia até o momento que decidi voltar. Assim, ao se inserirem na empresa da família e passarem a se relacionar com os membros da organização, os herdeiros (re)constroem sua identidade nesse contexto social. Essa nova realidade lhes coloca novos papéis e atribuições em função da posição que ocuparão na divisão do trabalho (BERGER; LUCKMANN, 2004). Ou seja, novas responsabilidades e cobranças lhes são colocadas justamente por serem filhos dos proprietários e futuros donos do negócio. Ao inserir-se formalmente na empresa, o herdeiro passa a vivenciar uma realidade em que os membros da organização tornam-se seus outros significantes e, nesse espaço, o conhecimento, seja do negócio, seja por formação profissional ou por experiências somadas fora da empresa da família, torna-se uma importante tática para superar o estereótipo de filho do dono e se configura como elemento de legitimação (BERGER; LUCKMANN, 2004). Essa era a problemática que os filhos vivenciaram durante o processo de formação educacional, pois não queriam voltar para a empresa como “filhos do dono” e sim como profissionais, que vinham a somar e contribuir para o desenvolvimento da organização. Eu resolvi voltar por opção. Tinha um salário muito bom, quem sabe até mais do que eu tenho aqui. Todo o trabalho tem sacrifícios e eu pensei: se for fazer algum sacrifício vamos fazer por nós. Como havia uma vaga em aberto aqui para o meu perfil resolvi retornar, mas não como filho do dono, e sim entrar como o Gustavo do comercial (GUSTAVO). É possível observar a preocupação desses prováveis sucessores com a percepção dos outros sobre a sua trajetória. No espaço de socialização secundária, o reconhecimento do outro é importante para que possa ser visto como profissional competente que ocupa cargos por méritos e não por nepotismo. Aos poucos o pai está dando mais liberdade para os filhos tomarem decisões importantes na empresa. Cada qual em sua área de atuação possui total autonomia, porém, num âmbito maior, ainda não se pode afirmar qual deles assumirá a organização. Tanto um quanto o outro, eles tem uma tranquilidade muito grande para ouvir, pra conduzir as pessoas no negócio e eu fico muito tranquilo porque a experiência que eles possuem serve para navegar e tomar qualquer decisão; aliás eu venho afastandome muitas vezes para permitir que eles tomem as decisões (MARCOS). 72 O processo sucessório nas empresas de gestão familiar constitui-se no que pode ser denominado de “ponto crítico” destas e, principalmente, da sua perpetuação. É na passagem da geração do fundador para a segunda geração que se tem uma crise de sucessão. Dessa segunda geração, para passar à dos netos, tem-se a crise de liderança, que, por sua vez, conduz a empresa para a chamada crise de identidade, característica da terceira geração (BERNHOEFT, 1991; FLORIANI, RODRIGUES, 2000). A sucessão deve ser planejada, uma vez que pode representar uma oportunidade estratégica para a organização, especialmente quando se considera a dinamicidade do mercado (DYCK et al., 2002). Além disso, o êxito do processo sucessório também está na habilidade do fundador em criar e comunicar uma cultura empresarial no momento de preparar seu sucessor (GOFFEE, 1996). O fundador assim expressa opinião quanto ao seu possível afastamento: Bem tranquilo, tanto é que eu tenho delegado a eles muitas funções, por exemplo, uma entrevista na rádio vai lá fazer, uma visita a um cliente, uma decisão aqui dentro. Agora se tu me pede, o senhor pensa em parar nos próximos dois, ou cinco ou dez anos, eu estou pensando nessa transição, mas o meu trabalho e a minha permanência deve ser muito longo ainda. A empresa já está tocando sem a minha presença aqui, mas há um tempo atrás eu tinha que vir abrir a porta e fechar a empresa no final do dia e tem empresários que não conseguem se desligar, eles que carregam aquele monte de chaves no bolso. Eu estou trabalhando para que o dia a dia seja tocado sem a minha interferência (MARCOS). Lodi (1987), todavia, afirma que a sucessão é um processo de transferência de poder que leva um longo tempo de maturação. Morris et al. (1998) apontam quatro fatores que devem ser observados no processo sucessório: a) desenvolvimento dos herdeiros; b) relacionamento do fundador com os herdeiros; c) confiança; e) planejamento do processo sucessório. Por ser um processo que se concretiza a médio e longo prazos, convém priorizá-lo no conjunto de estratégias de empresas familiares, dado o reconhecimento da predominância, importância e significância que estas empresas têm para a economia e para a sociedade em geral (LEONE, 2005). Para Weinstein (1999), Venter, Boshoff e Maas (2005), o preparo do sucessor é uma característica associada à sobrevivência da empresa na próxima geração. Para tanto, algumas medidas podem ser adotadas. A primeira diz respeito à formação de base dos sucessores, que é caracterizada pelas experiências de trabalhos fora da empresa da família. 73 A segunda é o desenvolvimento dos sucessores dentro da empresa, onde ele deve iniciar seu trabalho no setor de produção, possibilitando conhecer todo o processo produtivo, para depois ascender na hierarquia da empresa. A terceira trata das medidas de caráter organizacional e jurídico (LODI, 1993). Nesta fase, Costa e Luz (2003) descrevem que são requeridas modificações estruturais na empresa para preparar a carreira do sucessor e facilitar o seu poder na organização. Quando os filhos ingressaram na empresa, Marcos teve muita cautela e realizou toda uma preparação, pois estava acontecendo uma mudança e, consequentemente, acarretaria um sentimento de resistência entre os colaboradores. Levando em consideração este fato, Marcos conduziu os filhos da forma descrita a seguir: No início, quando veio o Gabriel, eu procurei fazer um trabalho com ele em todos os setores. Inicialmente onde eu andava ele estava comigo, mas depois ele fez carreira solo. O Gustavo a mesma coisa, quando ele veio começamos a andar os três juntos para sintonizar a linguagem, inclusive viajamos muito. Praticamente nós deixamos o Gustavo até quatro meses sem ele precisar tomar alguma decisão, por que se você quiser queimar uma pessoa é bem fácil; você pega ela coloca aqui na frente e pede pra tomar uma decisão sem ele ter experiência do negócio. Hoje ele está na área comercial e tem liberdade para tomar decisões embora a gente tenha um colegiado que senta pra tomar decisões juntos, onde a gente senta os três com reuniões longas e definimos o que tem que ser feito e como vai ser feito. O bom relacionamento do fundador com seus herdeiros é uma peça chave do processo sucessório que não pode ser relegada e deve ser construída durante todo o processo de fortalecimento dos laços tanto familiares quanto empresariais. É imprescindível nesse relacionamento que ocorra o respeito à subjetividade e à individualidade dos envolvidos, para que não seja um processo forçado, desigual e, consequentemente, fracassado (HANDLER, 1989). 4.4 Compreensão da Psicodinâmica Familiar e Seus Reflexos no Processo Sucessório Neste tópico foi possível compreender a psicodinâmica familiar da família empresária sob a perspectiva dos próprios membros, bem como dos funcionários que trabalham há mais tempo na empresa e possuem uma relação mais próxima com os proprietários. Macedo (1993) explica o conceito de família sob duas perspectivas: pelo senso comum e pela ciência. No cotidiano implica a ideia de uma entidade composta de certos membros – pai, mãe, filhos – cuja responsabilidade dos primeiros é procriar e cuidar dos filhos. Nesta ótica, a família também é definida como um refúgio seguro no qual se retorna após as batalhas decorrente do dia a dia, um lugar de paz e harmonia, ou seja, o melhor lugar para crescer. 74 Do ponto de vista científico, família define-se como uma unidade social, cujo objetivo principal consiste na socialização das crianças por meio da educação e da transmissão da cultura, logo, um importante agente para a manutenção da continuidade cultural. Para a Psicologia, a família é muito importante, visto que é o primeiro ambiente no qual se desenvolve a personalidade de cada pessoa, ou seja, principal espaço psicossocial, base das relações a serem estabelecidas com o mundo. É a matriz da identidade pessoal, sendo responsável pelo desenvolvimento do sentimento de pertencimento, independência e autonomia. Esse sentimento de pertencer é decorrente da participação da criança nos diversos grupos familiares ao acomodar-se às regras e compartilhar da cultura particular da família, que é traduzida em mitos, crenças e hábitos (MINUCHIN, 1982). O bom relacionamento no seio familiar sempre partiu de uma base forte na relação conjugal, como pode ser observado na fala de Maria: “A gente nunca brigou na frente dos filhos. Nunca discutimos na frente deles. Eu não sei se é certo ou errado, mas fazíamos assim”. Aproveita o momento também para destacar a importância da mulher no grupo familiar: “eu acho que as mulheres são muito importantes. Em muitos casos são as mulheres que precisam fazer com que tenha essa união e eu vejo que em muitas famílias isso não tem, pois existem muitas brigas”. Maria escolheu não trabalhar na empresa e ter seu próprio emprego. Esta decisão pode ser compreendida como forma de compensar a ausência do marido e dos filhos em casa. “Olha, eu nunca trabalhei com ele; sempre tive a minha profissão separada e isso sempre foi a vida inteira, mas teve uma época que a gente até pensou, mas eu achei que era melhor não”. Marcos sempre foi muito ausente da vida familiar em função do tempo que dedicava ao trabalho; no entanto sempre procurou conciliar a vida profissional com a vida pessoal compensando essa ausência, principalmente no tempo que despendia para ficar com os filhos quando pequenos: Eu trabalhava muito e a mãe deles deu muito apoio nisso, mas eu sempre digo que não é a quantidade de tempo que você destina, mas a qualidade do tempo que você pode destinar. Não adianta você ficar o dia inteiro com o teu filho sendo que você não tem um amor, não tem um carinho por ele. Pra mim, se eu pegar a bicicleta sábado de tarde ou domingo de manhã e sair andar com eles, explicar o porquê você não pode ficar junto o dia inteiro, eles entendem perfeitamente e isso pra mim é muito tranquilo (MARCOS). No que diz respeito à criação dos filhos, Lucio ressalta: 75 Eu já tive na casa deles e a criação que eles deram para os filhos foi muito boa. Nenhum pai assim que eu conheço deu tanta atenção assim para os filhos. Marcos nunca deixou funcionário e família. Sempre tratou as pessoas da mesma forma. Ele sempre trouxe funcionários e família ao lado dele apesar de que hoje ele tem os filhos trabalhando na empresa. Apesar dessa ausência, decorrente dos compromissos profissionais, Marcos conseguiu criar seus filhos de forma que estes não sentissem a sua falta, investindo, sobretudo, na qualidade do tempo com que ficava com eles. Gustavo explica que, apesar de não ter um pai muito presente na sua infância, não sentiu essa falta, e que não possui nenhuma mágoa em relação ao comportamento do pai, mas lembra que a mãe sofreu mais com essa situação, e ele, por ser o filho mais velho, sempre tentou compensar essa ausência do pai dedicando mais tempo para a mãe. O diálogo entre os membros da família é uma característica marcante. No horário do almoço, quando estão todos reunidos, eles sempre procuram conversar e, se houver algum problema, decidem juntos o que fazer. Gabriel comenta sobre um episódio que marcou sua infância: quando o pai decidiu romper com a sociedade da empresa de implementos agrícolas e ficou desempregado por algum tempo. Apesar desta situação, conseguiu passar muita segurança para a família. Já passamos por dificuldades financeiras, e um fato que marcou muito a minha infância foi quando o pai saiu da sociedade da empresa do segmento agrícola. Foi num almoço que eles falaram para nós o que estava acontecendo; então aquilo gerou um pouco de insegurança, tipo pera aí e agora vai fazer o quê? Em 87 eu tinha oito anos, e ele disse: fica tranqüilo, temos essa economia, tem esse objetivo de negócio então vamos ter que poupar. Isso era muito característico, pois sentávamos na mesa da cozinha e quando tinha algum problema falávamos sobre aquilo (GABRIEL). Em tese, os membros que compõem o grupo familiar procuram separar os problemas particulares dos estressores decorrentes da vida profissional, pois isso acaba causando desgaste e afetando a relação familiar. Nos momentos em que a família se reúne para fazer alguma atividade extraprofissional, procura abrir alguns parênteses, conversar um pouco sobre trabalho, e depois optam por não falar mais de assuntos profissionais. É preciso ter em mente de que quando se trata de uma empresa familiar são duas instituições que estão em jogo – a família e o negócio – e é muito comum que acabem interferindo uma na outra. Temos muitas histórias e experiências de que se você não tiver muito separado o que é família e o que é negócio, isso pode gerar desentendimentos na família, pode gerar coisas que não fazem bem para o negócio; então fizemos um esforço muito grande de separar essas coisas (GUSTAVO). 76 Todas essas características descritas a respeito do comportamento familiar influenciaram a decisão dos filhos em retornar para a empresa. Sempre existiu essa possibilidade, mas tanto Gustavo quanto Gabriel viviam há um bom tempo fora de casa e já estavam acostumados com essa condição. Tomar essa decisão, consequentemente, despertaria sentimentos de medo, insegurança e resistência, e o principal fator responsável por superar esses sentimentos foi a estrutura familiar. Aquela empresa ali embaixo eu, literalmente, ajudei a construir. Então eu já tinha alguma participação, mas não diretamente, e isso me fez tomar algumas decisões que se eu não tivesse essa segurança familiar eu não tomaria, como, por exemplo, mudar de emprego. A decisão de retornar para o negócio da família sempre é muito complexa (GABRIEL). A sobrevivência da empresa familiar repousa na sucessão bem-aceita e na observação de regras de convivência entre empresa e família, ajudando a perpetuar o negócio, indo de encontro com o que expõe Leone (2005, p. 42): “a sucessão pode acontecer de forma gradativa e planejada ou através de processo inesperado ou repentino de mudança da direção”. A questão sucessória, porém, deve ser prioridade, visto que uma organização só se transforma numa “verdadeira” empresa familiar quando consegue passar o controle para a segunda geração, mediante o desenvolvimento e o treinamento dos sucessores em potencial e da montagem de um processo para a seleção dos líderes. Por fim, a mudança de gestão deve ser preparada, planejada e introduzida com cautela, para que a mudança de geração não coloque em perigo a continuação da empresa. Outro fator importante apresentado pela teoria sobre sucessão familiar é a geração de conflitos existentes no processo sucessório. A empresa familiar na segunda fase de seu ciclo de vida é uma raridade, uma vez que nessa fase ela tende a sucumbir em função da complexidade das relações e do elevado grau de conflito de interesses existente entre os membros da empresa e da família. A partir dessa fase são comuns as crises de sucessão, de liderança e de identidade, pois a geração que assume o comando ainda está adaptando-se ao processo sucessório (LEONE, 2005). Deste modo, este estudo de caso traz alguns elementos diferentes sobre sucessão familiar dos que foram apontados em estudos anteriores (COSTA; LUZ, 2003; DAVEL, 2008; LEONE, 2005; LODI, 1987; MACCARI et al., 2006). A inexistência de conflitos pode ser atribuída ao fato de os sucessores terem outras atividades estruturadas e a empresa ter sido, de fato, uma opção para todos. O relacionamento familiar contribuiu para a integração operacional, administrativa e estratégica. 77 A sucessão familiar é um processo lento que exige a capacidade de administrar os conflitos que, na maioria das vezes, acompanham o processo sucessório. O importante, no entanto, é saber abrir espaço à preparação de outra pessoa para assumir o comando. Esta parte do estudo apresentou os dados empíricos alcançados com esta investigação expondo os principais dados acerca dos objetivos levantados no início do trabalho. A seguir apresentam-se as considerações finais, possibilitando um apanhado geral do que foi visto até o momento assim como as sugestões para os meios acadêmicos e gerenciais. 78 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Em relação à identificação e descrição dos valores familiares compartilhados pelas pessoas que integram o grupo organizacional, verificou-se, a partir das entrevistas realizadas tanto com os gestores quanto com os colaboradores, que na organização existem valores familiares tais como: ética, humildade, simplicidade, diálogo, respeito, dedicação, exemplo e disciplina, estando presentes nas relações estabelecidas entre todos os departamentos e com os funcionários. A família mantém os laços por considerar essa relação válida para o clima organizacional, promove e envolve os colaboradores em atividades constantemente incluindo o grupo familiar, cria espaços de discussão para elaboração de plano de metas e de atividades, organiza grupos de trabalho, entre outros. Pertinente à sucessão, verificou-se que é um processo que está se configurando, inicialmente levando-se em consideração a data em que os filhos ingressaram na empresa como profissionais. Por outro lado, observou-se que sempre houve registros de envolvimento dos filhos nas atividades da firma desde a sua fundação, e que, apesar do livre-arbítrio na escolha dos cursos de formação dos herdeiros, estes foram direcionados para áreas que pudessem acrescer no negócio da família. Constata-se, portanto, que é procedimento complexo e que está ocorrendo de maneira natural. No decorrer do estudo, observou-se ainda que os pais sempre ofereceram atividades para ocupar o tempo ocioso dos filhos, evitando, com isso, que ficassem sozinhos em casa ou com muito tempo sem atividade. O filho mais novo foi o primeiro a vir trabalhar com o pai, e hoje é quem tem maiores condições de assumir a sucessão da empresa por estar mais familiarizado com o processo administrativo organizacional. O filho mais velho retornou no ano passado e se encontra ainda numa etapa de conhecimento e adaptação ante a organização, administrando apenas seu departamento de trabalho. Quando o herdeiro-sucessor é preparado formalmente, de acordo com os critérios comumente enumerados pela literatura sobre empresas familiares, ele poderia se engajar na 79 dinâmica da empresa já em um cargo de gestão. Em alguns casos, essa mudança gera resistências e preconceitos por parte dos funcionários que entendem negativamente a trajetória desse sucessor como aquele que apenas ocupa um lugar herdado. A legitimidade, nesse caso, se torna situacional e frágil. Por outro lado, quando o legatário se insere na empresa em funções operacionais e aos poucos assume novas funções e responsabilidades ou quando acumula experiências externas à empresa, o conhecimento tácito pode minimizar essa percepção ao legitimar o sucessor como aquele que conhece o negócio. Nessas situações, os membros da organização e os herdeiros passam a conviver em um mesmo espaço de socialização, possibilitando, assim, que ambos compartilhem valores, crenças e normas. Na empresa estudada foi verificado que o fundador ainda não definiu o herdeiro que assumirá a sucessão, até porque ainda tem condições de continuar presidindo a empresa. Da mesma forma, verificou-se nas falas do comprador e do facilitador o destaque no desempenho das atividades pelo filho mais novo, que é observado pela maioria dos colaboradores da empresa. Esta pesquisa representa um olhar lançado sobre a realidade das organizações familiares, permitindo entender que seu cerne consiste principalmente na disseminação dos valores, os quais estão enraizados na figura do fundador e são responsáveis por influenciar a cultura organizacional. É possível afirmar, portanto, com base na relação entre a trajetória de vida e os processos de socialização primária e secundária, que nessa primeira transição os valores continuarão representados na imagem dos filhos e serão refletidos no ambiente empresarial. A aplicação de tal entendimento ao contexto da Alfa contribui no sentido de enriquecer e nortear reflexões teóricas sobre os temas sugeridos pelo presente trabalho. Sugere-se, no entanto, para o meio acadêmico, e também por questões gerenciais, que seja desenvolvido um estudo comparativo entre a Matriz e a sua filial, cuja aquisição se deu pela compra de uma companhia concorrente no Estado do Mato Grosso do Sul. Nesse sentido, pressupõe-s que a cultura deva diferir em função das características históricas e localização, da mesma forma que os gestores podem utilizar os resultados da pesquisa para estruturar e definir os valores organizacionais que até a presente data não foram formalizados. 80 REFERÊNCIAS ABERASTURY, Arminda; SALAS, Eduardo, J. A paternidade: um enfoque psicanalítico. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991. BARACH, Jeffrey A. et al. Entry of the next generation: strategic challenge for family business. Journal of Small Business Management, v. 26, n. 2, p. 49-56, apr. 1988. BARDIN, Laurence. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1997. BERGER, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade: tratado de sociologia do conhecimento. 24. ed. Petrópolis: Vozes, 2004. BERNHOEFT, Renato. Empresa familiar no Brasil: origens e perspectivas. São Paulo: Editora Gente, 2008. 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Estudo de caso: planejamento e métodos. 2. ed. Porto Alegre: Bookman, 2001. ZAPAROLLI, Domingos. De pai para filhos, até quando? Revista da Indústria de São Paulo, São Paulo, v. 27, n. 118, p. 1-35, jun. 2006. 89 APÊNDICES APÊNDICE 1 Entrevista Pai/Fundador 1 – Discorra sobre sua história de vida (investigar sua infância, adolescência, casamento, nascimento dos filhos, início da empresa, acontecimentos marcantes). 2 – Fale sobre a sua família (características, valores, princípios, educação e futuro dos filhos). 3 – O que motivou você a fundar a empresa? (Perguntar sobre a vinda dos filhos para o negócio). 4 – Que competências são requeridas para o seu trabalho? 5 – O dia a dia na empresa interfere na vida familiar ou vice-versa? Como? 6 – Você considera a sua forma de administrar a empresa semelhante à de seus filhos? 7 – Você considera que os valores da família estão presentes na organização? De que forma? 8 – Como você vê o processo de sucessão? Você percebe que existe algum movimento neste sentido? (A escolha do sucessor já foi realizada? Em que foi baseada essa decisão? O que vai mudar após a sucessão? O senhor está preparado para esse momento?). Dados de Identificação: Nome: Idade: Sexo: Data: Hora: Tempo serviço: Cargo: 90 APÊNDICE 2 Entrevista Mãe 1 – Discorra sobre sua história de vida (investigar sua infância, adolescência, casamento, nascimento dos filhos, início da empresa, acontecimentos marcantes). 2 – Fale sobre a sua família (características, valores, princípios, educação e futuro dos filhos). 3 – Como ocorreu o início da empresa? (Perguntar sobre a vinda dos filhos para o negócio). 4 – Que competências são requeridas para o seu trabalho? 5 – O dia a dia na empresa interfere na vida familiar ou vice-versa? Como? 6 – Como você percebe o trabalho do marido e filhos? 7 – Você considera que os valores da família estão presentes na organização? De que forma? 8 – Como você vê o processo de sucessão? Você percebe que existe algum movimento neste sentido? (A escolha do sucessor já foi realizada? Em que foi baseada essa decisão? O que vai mudar após a sucessão? O fundador está preparado para esse momento?). Dados de Identificação: Nome: Idade: Sexo: Data: Hora: Tempo serviço: Cargo: 91 APÊNDICE 3 Entrevista Filhos 1 – Discorra sobre sua história de vida (investigar sua infância, adolescência, casamento, nascimento dos filhos, início da empresa, acontecimentos marcantes). 2 – Fale sobre a sua família (características, valores, princípios). 3 – O que motivou você a se inserir na empresa? Em que momento você decidiu que iria trabalhar no negócio da família? Já tinha outras experiências profissionais? 4 – Que competências são requeridas para o seu trabalho? 5 – O dia a dia na empresa interfere na vida familiar ou vice-versa? Como? 6 – Você considera a sua forma de administrar a empresa semelhante à de seu pai? 7 – Você considera que os valores da família estão presentes na organização? De que forma? 8 – Como você vê o processo de sucessão? Você percebe que existe algum movimento neste sentido? (A escolha do sucessor já foi realizada? Em que foi baseada essa decisão? O que vai mudar após a sucessão? O fundador está preparado para esse momento?). Dados de Identificação: Nome: Idade: Sexo: Data: Hora: Tempo serviço: Cargo: 92 APÊNDICE 4 Entrevista Funcionários 1 – O que motivou você a se inserir na empresa? De que forma ocorreu? Já tinha outras experiências profissionais? (Caso positivo, que aspectos destacaria como similares e como distintos entre as empresas em que já trabalhou?) 2 – Que competências são requeridas para o trabalho? (Investigar as dificuldades nos primeiros dias de trabalho e como foi o acolhimento da instituição). 3 – Fale sobre a família empresária (características, valores, princípios e se é próximo da família). 4 – Como percebe o trabalho dos membros da família? (Relações, conflitos, tomadas de decisão, semelhanças entre pai, filhos e esposa, administração, forma de abordar os funcionários, princípios e valores, etc.). 5 – Você considera que os valores da família estão presentes na organização? De que forma? 6 – Como você vê o processo de sucessão? Você percebe que existe algum movimento neste sentido? (A escolha do sucessor já foi realizada? Em que foi baseada essa decisão? O que vai mudar após a sucessão? O fundador está preparado para esse momento?). Dados de Identificação: Nome: Idade: Sexo: Data: Hora: Tempo serviço: Cargo: