Uma visita ao museu Rousseau
Claudio Mano
Membro do Centro de Pesquisas
Estratégicas “Paulino Soares de Sousa”, da UFJF.
Acadêmico do Curso de Filosofia da UFJF.
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A sabedoria popular nos diz que o homem se acostuma a tudo. Os habitantes de
algumas favelas acabam por se habituar com o mau cheiro que faz embrulhar o estomago dos
visitantes eventuais, suas crianças brincam na água de esgoto que seria mortal para seus
vizinhos de classe média, e o lixo jogado pelos cantos não causa espanto, é comum, não
sucinta admiração.
O filósofo Jean-Jacques Rousseau.
Da mesma forma, quem passa todos os dias pela praia de Ipanema rumo ao trabalho,
dificilmente se apercebe da beleza que o cenário da orla carioca oferece, ela simplesmente
está ali, sempre esteve, e na maioria das vezes nem ao menos faz a menor diferença, pois aos
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olhos acostumados, o raro da paisagem pode tornar-se comum, indiferente, e o mesmo se dá
com todas as coisas que se tornam rotina em nossas vidas.
Quando nos limitamos ao ambiente em que vivemos, a habilidade humana de se
adaptar e integrar novas situações no âmbito das já conhecidas, se por um lado favorece a
nossa sobrevivência nos mais variados cenários em que o homem convive ao redor do planeta
Terra, por outro esconde de nossa percepção o obvio, que as coisas em geral não precisam ser
da maneira que são, e mesmo talvez, que poderiam nos ser mais agradáveis e justas.
Parque de Montmorency – Gravura belga de 1720
Jean-Jacques Rousseau, o Filósofo que no séc XVIII se debruçou sobre os problemas
da modernidade, que valorizou a natureza, que destacou a importância da educação para
transformar a criança em um adulto pleno de suas capacidades, que tirou dos dignitários e
entregou ao povo – cidadãos comuns – a condução de seu próprio destino, também se dá
conta dessa faceta humana, e nos diz: “A única religião verdadeira a qual o homem deve se
dedicar é a do estudo. Viajar, conhecer outras culturas (...)”1, para então poder melhor
compreender e criticar a sua própria.
Assim, nada mais natural a um estudante de Filosofia, interessado na obra de
Rousseau, colocar como meta a ser cumprida nas férias escolares, uma viagem para conhecer
um pouco de outra cultura, mais precisamente a França, e em estando lá, por que não,
conhecer a casa em que o grande pensador genebrino viveu próximo a Paris, onde hoje
funciona o museu Rousseau.
A ida de Rousseau para “Montmorency” – a quinze quilômetros de Paris – se dá em
1756. Lá ele é recebido por Madame d’Epinay, e permanece seu hospede até o ano seguinte,
quando buscando um local mais calmo para trabalhar, aluga nas proximidades uma pequena
residência rural, em péssimo estado de conservação, mas com um valor de aluguel que lhe era
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ROUSSEAU Jean-Jacques, Émile, Paris, Flamarion, 1996, p 400
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acessível. Na propriedade havia um jardim, e em seu fundo, uma pequena construção – o
“donjon”, um abrigo – na qual ele colocou uma porta e transformou em seu escritório. Nesse
local foram escritos seus mais conhecidos trabalhos: “La Nouvelle Héloise”, “Émile ou de
L’Éducation” e “Du Contrat Social”. Como conseqüência da publicação de “Émile” em 1762,
nosso Filosofo é condenado à prisão, e deixa a França para se refugiar na Suíça2.
Paris é uma cidade acolhedora. A visão de prédios que obedecem à mesma arquitetura,
em geral de mesma altura – não mais que cinco andares, mesma aparência, proporciona uma
tranqüilidade ao olhar que os moradores de nossas cidades desconhecem. A ordem pública
que regula a ocupação urbana e que em nosso país, é inócua ou simplesmente desrespeitada
sob a complacência de nossos administradores e políticos, lá se efetiva em realidade como
uma possibilidade que ignoramos. Nas avenidas principais as calçadas são largas, a circulação
das pessoas é facilitada, e salvo os pontos turísticos por excelência, as ruas são tranqüilas,
vazias e calmas.
Por certo no metrô, nos horários de ida e volta ao trabalho, o volume de pessoas é
considerável, mas tudo funciona. O metrô de Paris é constituído por cerca de 14 linhas
independentes, que ao longo de seu curso se cruzam e compartilham estações, permitindo uma
mobilidade efetiva aos que se encontram na cidade. Isso sem falar das 5 linhas “RER”, que
são trens que vão além do perímetro da cidade, mas que em seu interior, se integram às linhas
de metrô. Existem também algumas linhas de ônibus (nada similar ao caótico sistema que
conhecemos), que permitem uma integração com o metrô. Lá sim é possível viver sem carro.
Agora estamos na estação “Denfert Rochereau”. Acabamos de sair do vagão de metrô
que nos trouxe da estação “Cambronne”, onde fica nosso hotel. É hora do almoço, meio-dia,
levamos 8 minutos até aqui, e temos 2 minutos para andar até a plataforma do “RER-B” que
nos levara em 11 minutos até a “Gare du Nord” onde pegaremos o trem que em 16 minutos
nos deixara em “Enghien-Les-Bains”, de onde finalmente pegaremos um ônibus e 10 minutos
depois estaremos em Montmorency.
Para quem mora nas grandes cidades do Brasil, ou atualmente, mesmo para nós que
vivemos em uma cidade média como Juiz de Fora, fazer uma estimativa do tempo que um
deslocamento levará, é pura fantasia. Nosso sistema viário urbano, bem como tudo que se
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Ver: Société Internationale des Amis du Musée Jean-Jacques Rousseau
http://www.litterature-lieux.com/EsMaker/index.asp?Clef=16&Page=2
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refere às obrigações do poder público, simplesmente opera por inércia, sem nenhum
planejamento, sem nenhuma responsabilidade, sem nenhum comprometimento. Certamente o
brasileiro – o ser humano – não é pior que o francês, mas quem sabe “de Gaulle” não
estivesse certo em seu comentário a respeito de nossa seriedade – de nossos homens públicos.
Deixando para trás o ônibus; uma pequena caminhada e chegamos ao centro de
“Montmorency”. Uma cidade graciosa, pequenas casas que à exemplo de Paris, obedecem a
um mesmo estilo arquitetônico. Como é uma cidade antiga, as ruas são estreitas, mas em
compensação, praticamente não há trafego, não se vê pessoas nas ruas. Os prédios todos são
bem conservados, as ruas limpas.
Como não havíamos ainda comido nada desde o café da manhã, entramos em uma
“Boulangerie” para um pequeno lanche. Muito se fala da excelência da cozinha francesa, e
não é exagero. Não que o sabor seja “melhor” que o de nossa culinária, na verdade em muitos
casos, não há muito como comparar, por se tratarem efetivamente de pratos distintos, com
ingredientes particulares; mas existem diferenças que podem ser percebidas. Por exemplo:
Uma coisa que chama atenção nos doces é a pouca quantidade de açúcar se comparados aos
nossos. Uma torta de maça, ou de cereja, é basicamente uma estrutura de massa de farinha
recheada essencialmente com a própria fruta. Uma delícia!
Outro aspecto que notamos, e que foge ao escopo da gastronomia, é que ao contrário
do Brasil, onde mesmo o pequeno comércio possui vários funcionários, ou seja, uma estrutura
administrativa complexa, aqui encontramos somente uma pessoa cuidando de todo o
funcionamento da loja, e que em muitas das vezes, se trata do próprio dono ou de um familiar.
Certa vez em “Cavaillon”, uma cidade da “Provence” famosa por produzir os melhores
melões da França, fomos jantar em um restaurante. O “maitre” nos trouxe o cardápio, depois
um “garçon” nos trouxe a bebida – um bom vinho da região – e finalmente o cozinheiro nos
trouxe os pratos. Sobremesa, café, e finalmente a conta que foi levada ao “gerente”. O que
pode ter de especial nisso? Todos os funcionários do restaurante eram a mesma pessoa, o
dono, e a nossa não era a única mesa sendo servida, e mais, o atendimento foi perfeito.
Longe de ser uma exceção, pude observar essa sistemática em vários
estabelecimentos, principalmente fora das grandes cidades. Seria possível alguém conduzir
seu negócio no Brasil nessas mesmas bases? O que fazer com toda a burocracia, fiscalização,
normas, leis, que na prática limitam as possibilidades de criatividade na condução de uma
pequena empresa? Como aparentemente isso é possível na França? Bem, não tive a
oportunidade de verificar como é possível, mas pude constatar uma forma de trabalhar que
foge aos padrões que conhecemos. Vale notar que não acreditamos que a sociedade francesa
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seja perfeita e a vida dos franceses um mar de rosas, certamente eles tem seus problemas, e
alguns, como o da imigração, bastante graves. Nosso objetivo é tão somente enfatizar que
existem outras boas formas de atuação que não aquelas que temos como consagradas.
Bem, finalmente estamos diante do número 5 da rua “Jean-Jacques Rousseau”. São
15Hs, o horário de funcionamento indicado é de 14 às 18Hs, mas a porta se encontra fechada!
Após um primeiro momento de frustração, vemos uma pequena placa que diz: “Caso a porta
esteja fechada, dirija-se ao número 4 da rua ‘Mont-Louis’”. Nesse endereço, a cerca de 20
metros da entrada do museu, funciona a biblioteca de estudos roussonianos, onde
aproximadamente 30.000 títulos relacionados ao grande Filósofo se encontram a disposição
dos pesquisadores. Fomos gentilmente recebidos e orientados a voltar à entrada do museu,
onde um funcionário nos aguardaria para uma visita guiada.
De volta à entrada do museu, após aguardar alguns minutos, temos a porta aberta pela
mesma senhora que havia nos recebido na biblioteca. O museu estava sendo aberto
exclusivamente para a nossa visita. Inicialmente temos a visão da casa. Como nos foi
explicado, a casa onde Rousseau viveu foi ampliada em 1865, sendo como que envolta em
dois de seus lados por uma nova construção, mas a parte original foi preservada quanto ao
interior e uma das fachadas.
Começamos nossa visita pela parte térrea, onde funcionava a cozinha, que era
basicamente constituída por uma pia e uma lareira. Ao lado desse cômodo, se encontra o
quarto de Thérèse, a companheira de Rousseau. Lá temos algumas peças de mobiliário e a
cama original. Tanto a cozinha quanto o quarto são aposentos bem pequenos. Subimos então
ao segundo andar e chegamos ao quarto do Filósofo. Uma lareira, sobre a qual se encontra
uma pintura com seu retrato, uma pequena mesa e a cama original em que ele dormia. Nossa
guia nos informa, que a escrivaninha do quarto não era utilizada para os trabalhos do Filósofo,
pois ele somente os fazia em seu escritório no jardim, o “donjon”.
A seguir passamos a uma sala já na construção anexa, onde outra funcionária, a
responsável pelo acervo do museu, deu continuidade a nossa visita. Na sala onde nos
encontrávamos, por detrás de vitrines, haviam diversos documentos e livros originais, como
por exemplo a ordem de prisão contra Rousseau, emitida em função da publicação de seu
livro “Émile”. A seguir seguimos para o jardim e a caminho para o “donjon”, podemos avistar
ao longe Paris. Certamente Rousseau não via a torre “Eiffel”, pois em seu tempo ela ainda não
existia, mas a visão de “Montmartre” ao longe no horizonte ainda é a mesma.
Agora, diante do “donjon”, podemos observar através de uma porta envidraçada, o
ambiente onde nosso filosofo desenvolveu grande parte de seu trabalho. No interior, apenas a
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pequena mesa – a original – uma prateleira fixada à parede e uma lareira ao fundo. Nossa guia
nos chama atenção para o fato de que logo que Rousseau se mudou para esta casa, não existia
ainda a lareira no “donjon”, que foi construída mais tarde. Isso nos traz imediatamente à
mente a imagem de nosso Filósofo trabalhando em um dia de inverno rigoroso, tendo-o a
aquecer, somente seus ideais.
Mais que conhecer a cidade, as ruas, poder observar a casa e ver os utensílios que
fizeram o dia a dia desse grande Filósofo, estar no mesmo ambiente em que ele esteve, sentir
o perfume do jardim, as cores da vegetação, a visão vigilante de Paris ao longe, de alguma
forma nos coloca em sintonia com o seu estar no mundo. Em Paris não habita mais a
aristocracia que Rousseau via tão negativamente, pelo menos não a mesma. Mas o poder que
a sociedade confere a alguns de seus integrantes, longe de estar submetido ao crivo da
“vontade geral” propugnada por Rousseau, continua a serviço do capricho de poucos.
Rousseau, embora visse na sociedade a origem do mal que aflige o homem, não
pensava em sua transformação radical como sendo a solução para esse problema. O filosofo
genebrino desejava sim, poder preparar o homem para encontrar a sua felicidade apesar da
sociedade, dentro da sociedade. Para tal, ele acreditava em formar um individuo com
capacidade crítica, que fosse independente, que cultivasse em seu intimo a piedade, que
soubesse dizer não, mas que também tivesse a disposição de se juntar a seus iguais em torno
de seus interesses comuns, mas que jamais se submetesse irrefletidamente a eles.
O Brasil não é o pior lugar do mundo, se é que existe um. Mas os eventuais equívocos
que presenciamos em outras sociedades, não podem nos servir de justificativa para os que
cometemos. Da mesma forma, as coisas que nos causam surpresa e boa impressão, devem nos
servir tão somente de inspiração, e jamais se tornar um modelo a ser copiado. O ensinamento
que podemos tirar de Rousseau, de sua constatação de que os diversos climas influenciam na
formação das variadas culturas e sociedades, é que a realidade que conhecemos não precisa
ser simplesmente aceita como definitiva apenas porque não conhecemos uma outra. Nossa
realidade pode ser mudada; e o contato com outras sociedades, que uma viagem proporciona,
é como que uma janela pela qual podemos vislumbrar essas novas possibilidades.
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Uma visita ao museu Rousseau