BARRAGISTAS – (5)
“Chute, chute, senhor engenheiro”
H
á “tiradas” que pela força da sua mensagem, pela sua inocência ou pela sua espontaneidade
marcam, muito mais que uma pessoa, uma comunidade e muitas vezes revelam, melhor do que
qualquer ciência, a essência das coisas.
É o que se passa com a frase que titula esta crónica.
Onde e em que circunstâncias é que ela nasceu?
No decurso da construção da barragem de Picote, talvez a maior ocupação de tempos livres daqueles
milhares de pessoas que lá trabalhavam e viviam fosse a prática e a assistência a jogos de futebol, no
recinto a essa prática destinado.
Haviam formalmente constituídas três equipas: A equipa da Hidouro, só para funcionários da empresa
proprietária da obra; a equipa da Eteli, só para funcionários do empreiteiro construtor da barragem; a
equipa da União Operária, - a equipa do Silveira – para todos aqueles que não tinham lugar em
qualquer das outras duas equipas.
Além destas constituíam-se, ocasionalmente, outras equipas que funcionavam como desdobramentos
daquelas: Eram as equipas por secção profissional.
Eram exactamente os jogos entre estas equipas que produziam o maior alvoroço popular, a maior
hilaridade e traziam a comunidade, durante mais tempo, a falar daqueles eventos. E houve cenas
realmente de partir a “moca” a rir, como por exemplo:
O mercurocromo para curar os arranhões provocados pelo solo abrasivo do recinto de jogo, ser
substituído por garrafões de “tintol”, aproveitado ainda e também, para apagar a sede daqueles
marcoletas, daquelas gargantas secas e línguas ressequidas a sentirem-se como que bocados de cortiça
dentro da boca.
Ou também aquela cena da grua manual para montar e desmontar motores das viaturas na oficina,
estacionada a meio campo, junto da linha lateral e que invadia o recinto de jogo quando um “atleta”
caía e se demorava a levantar. O homem era içado, como se fôra um motor e posto na vertical para
voltar a correr, saltar, cambalear e cair de novo.
Mas de todas, a cena que ficou para a história e só pode ser entendida por um “barragista”, é esta:
Num desses jogos entre secções há um momento em que dois atletas vão a correr em sentidos opostos
para disputar o esférico que parece fugir aos dois.
Ambos trabalham na construção da barragem, em departamentos diferentes; um era engenheiro e o
outro operário especializado e naquele momento em que os dois já estão próximos da bola, o operário
pára repentinamente, faz uma vénia na direcção do esférico, enquanto que ao mesmo tempo e com um
movimento do braço direito, como só os toureiros sabem quando, rodopiando sobre si mesmos enquanto trazem a muleta à frente da cabeça do touro, obrigando este a curvar-se face ao seu dominador,
propõe ao seu oponente de ocasião:
“Chute, chute, senhor engenheiro”.
Este momento nunca mais foi esquecido dos “barragistas” e ao longo dos tempos foi mote para todo o
tipo de discussões jocosas.
E como ela é singular e identitária, todos dela se apropriaram como coisa sua.
Assim, “chute, chute, senhor engenheiro”, que nasceu em Picote num momento de grande descarga
emocional tem, na sua simbologia, autor colectivo.
Henrique Pinto
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“Chute, chute, senhor engenheiro”