As leituras de alunos das séries iniciais do Ensino Fundamental sobre fenômenos físicosa partir de atividades experimentais em aulas de Ciências: uma análise das contribuições dos movimentos discursivos em sala de aula para a construção de argumentos por parte dos alunos Daniella de Almeida Santos 1, Marco Aurélio Alvarenga Monteiro 2, Odete Pacubi Baierl Teixeira 2 1 Departamento de Comunicação Social – Universidade de Taubaté (UNITAU) C.E.P. 12.030-050 – Taubaté – SP – Brasil 2 Departamento de Física e Química – Faculdade de Engenharia de Guaratinguetá (UNESP) C.E.P. 12.516-410 – Guaratinguetá – SP – Brasil [email protected] , [email protected] , [email protected] Resumo. Nosso trabalho visa discutir como o discurso do professor pode interferir na construção de argumentos por parte dos alunos, quando estes se encontram envolvidos com um problema experimental em aulas de ciências. Assim, buscamos compreender como professor e alunos se inter-relacionam num movimento discursivo para a estruturação de sentidos dos dados experimentais obtidos. Com essa preocupação, focamos nosso olhar nos processos de autoria dos discursos, tanto dos alunos quanto dos professores, nos episódios em que os atores do processo de ensino e de aprendizagem organizam suas falas, mediados pela atividade experimental. Palavras-chave. Análise do discurso; interações dialógicas; ensino de Física. Abstract. Our paper intends to discuss how the teacher's speech can interfere in the construction of arguments on the part of the students, when they are involved with the task of solving an experimental problem in sciences classes. Thus, we wanted to understand how teacher and students relate to each other in a discursive movement for the senses structuring of the obtained experimental data. With that concern, our focus is in the processes of the speeches authorship, both students' and teachers', in the episodes in which the actors of the teaching and learning process organize their speeches, mediated by the experimental activity. Keywords. Discourse analysis; Dialogics interactions; Teaching of Physics Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 445-449, 2005. [ 445 / 449 ] Introdução Nossa pesquisa teve como propósito principal investigar como professor e alunos se inter-relacionam num movimento discursivo para a estruturação de sentidos dos dados experimentais obtidos em aulas de ciências das séries iniciais do Ensino Fundamental, desencadeado pela utilização de atividades de conhecimento físico, visando entender como o discurso do professor pode contribuir ou criar obstáculos à construção de argumentos por parte de seus alunos. Desse modo, centramos nosso olhar nos processos de autoria dos discursos, tanto dos alunos quanto dos professores, nos episódios em que os atores no processo de ensino e aprendizagem organizam suas falas a partir da interpretação que fazem do discurso do outro, mediados pela atividade experimental. A interação professor/alunos na construção do sentido: um diálogo possível? Partindo do conceito foucaultiano de autor, segundo o qual este é considerado como “princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de sua coerência” (Foucault, 1996, p. 26), adotamos, para efeito de análise em nosso trabalho, a mesma concepção de função-autor postulada por Eni Orlandi (2000), para a qual o princípio de autoria transcende o limite da entidade jurídica que responde pelo documento escrito, estendendo-se a todo e qualquer discurso, que, ainda que não lhe seja possível atribuir uma autoria específica, não prescinde de um autor, visto este estar, na visão de Orlandi, na origem da textualidade. Ao compararmos a maneira como as professoras conduziram a atividade e como os alunos organizaram as suas argumentações a partir dos comentários feitos por elas, constatamos que as influências mútuas provenientes tanto do discurso do professor quanto do discurso dos alunos determinaram o maior ou menor êxito destes na produção da argumentação frente à atividade proposta. Em termos de autoria, esse fenômeno se evidencia pelo distanciamento do sujeito-professor, quando inscrito na posição de função-autor em situação de interlocução, do autor, como o concebe Foucault. Vamos nos explicar melhor. Valemo-nos do conceito de função-autor, de Orlandi, para atribuir uma autoria tanto ao discurso do professor quanto ao discurso dos alunos. Mas, para atingirmos o objetivo proposto neste trabalho, precisamos dinamizar esse conceito no sentido de possibilitar-lhe transitar por várias esferas que, a partir do referencial autor, criassem patamares diferentes de função-autor, conferindo-lhe nuances mais ou menos nítidas daquele, para que então pudéssemos avaliar em que graus se dá a assunção da autoria, pois, segundo a linguista, não basta falar para ser autor. A assunção da autoria implica uma inserção do sujeito na cultura, uma posição dele no contexto históricosocial. Aprender a se representar como autor é assumir, diante das instâncias institucionais, esse papel social na sua relação com a linguagem: constituir-se e mostrar-se autor (Orlandi, 2000, p. 76). Assim sendo, quanto mais o professor, investido da função-autor, se aproximar do seu referencial, mais contornos ele adquire da feição de autor. E esse fator, ao nosso ver, é determinante na interação dialógica efetiva em sala de aula, na medida em que, dominando os mecanismos discursivos que permitem configurar o professor mais ou menos apto a se Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 445-449, 2005. [ 446 / 449 ] representar como autor, conforme o grau de assunção da autoria em que se encontre, o docente possa criar condições para que os alunos também consigam atingir patamares cada vez mais altos de função-autor, possibilitando, assim, a construção do saber de uma maneira menos impositiva e mais democrática. Retomando, portanto, o objetivo inicial deste artigo, qual seja o de analisar em que medida o processo de autoria contribui na inter-relação de professor e alunos num movimento discursivo para a estruturação de sentidos dos dados experimentais obtidos em aulas de ciências das séries iniciais do Ensino Fundamental, sem desconsiderar, evidentemente, a limitação do nosso corpus, acreditamos poder afirmar que 1 – o fato de duas das professoras, cujas aulas foram investigadas, terem mencionado, no início da aula, que fariam uma experiência pode ter direcionado os movimentos discursivos de maneira diferente dos alunos da terceira professora, já que esta procurou explorar o lado lúdico da experiência, transformando a atividade experimental numa competição, na qual os alunos buscam resolver o problema proposto num clima de maior motivação. Valendo-se da ludicidade, de que as crianças necessitam para seu desenvolvimento intelectual e afetivo (Monteiro, 2002, p. 23), a professora criou um ambiente descontraído em que as crianças sentiram-se mais à vontade e livres para expor suas opiniões. 2 – O “mito científico”, evocado pela prática experimental, cria obstáculos à prática cultural da ciência em sala de aula, o que reforça o “poder” do discurso científico e, conseqüentemente, do sujeito que o domina, em geral os cientistas e físicos, vistos como pessoas geniais ou dotadas de uma inteligência especial e autores de um discurso pretensamente verdadeiro, portanto irrefutável. Colocando-se à margem desse universo, por não só não terem tido a oportunidade de vivenciar atividades desse tipo enquanto alunas em seu curso de formação dado revelado em suas narrativas de memórias coletadas em nossa pesquisa , como também por estarem isoladas em seu ambiente de trabalho e, portanto, alheias aos processos pelos quais o conhecimento científico é produzido, somando-se a isso o fato de, algumas vezes, desconhecerem alguns conceitos físicos, as professoras depositam na atividade experimental a esperança de esta estimular os alunos e promover a aprendizagem, como se o experimento independesse da sua intervenção como mediadoras. Essa afirmação se evidencia nas atitudes diretivas adotadas pelas mesmas duas professoras que se apegaram a esse mito da experiência, a qual funcionou mais como um pretexto para camuflar a aula tradicional do que como meio de construção do saber. Mais uma vez, o professor fez valer, embora de forma disfarçada, a sua ocupação hegemônica do dominante. 3 – Imagens distorcidas da natureza da ciência e do fazer científico, segundo as quais a ciência possui procedimentos precisos e isentos de qualquer influência psicológica ou social que conduzem o cientista à verdade absoluta, fazem com que as professoras, investidas da função-autor em sala de aula, construam discursos diretivos, não permitindo a possibilidade de uma produção autônoma e significativa de argumentos por parte dos alunos, que facilitaria um refinamento das idéias destes. Assim, visões docentes menos estereotipadas e mais próximas das concepções modernas da filosofia da ciência que levam o professor a admitir a provisoriedade do saber científico, a não-linearidade de sua produção e a entender que um argumento, para ganhar status de conhecimento científico, necessita passar por estágios que vão desde a obtenção de dados experimentais até sua legitimação por uma comunidade Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 445-449, 2005. [ 447 / 449 ] científica, propiciariam o desencadeamento de um processo de ensino/aprendizagem que facilitaria ao aluno compreender não só o significado de conceitos científicos como também a maneira como são produzidos. 4 – Inconscientemente, reforçam-se os estereótipos de aula, professor e alunos, ainda que de maneira disfarçada, ao mesmo tempo em que, contrariamente, se revela a sua mutabilidade, pois a experiência, que, aparentemente, propiciaria a realização de uma aula bakhtiniana, marcada pela interação dialógica, não garantiu à aula a “aura” de “diferente” e “especial”, como desejavam as professoras apegadas ao “mito científico” ao assim classificarem previamente para os seus alunos as atividades que realizariam em sala. 5 - Pelo desempenho e nível de participação dos alunos que se mostraram mais críticos, autônomos e independentes na aula da professora que não se limitou à experiência como recurso único e efetivo para a aprendizagem dos alunos , quando comparados aos alunos das outras duas professoras, que se manifestaram, em grande parte da aula, de forma monossilábica, imitativa e silenciosa, a maneira como a primeira docente conduziu a aula permitiu aos seus alunos que participassem de uma forma mais atuante e produtiva. O uso que a primeira professora fez do seu discurso durante a plenária pela aparente flexibilidade e segurança ao agir como mediadora, gerenciando os conflitos em vez de tentar abafá-los no intuito de manter o controle do sentido, como as outras o fizeram conferiu-lhe, ao nosso ver, um status de autor diferente das outras. Considerações finais Os dados obtidos em nosso trabalho nos levam à seguinte ponderação: embora todas as professoras estejam inscritas na posição de função-autor, os resultados alcançados com relação à produção de seus alunos foram distintos; logo, ao nosso ver, a assunção da autoria do sujeito-professor se dá em diferentes graus, portanto requer mais do que o reconhecimento e responsabilidade social pelo sentido do dizer. A partir desse nosso ponto de vista, emprestando o conceito de autor de Foucault para o âmbito da sala de aula, consideramos que ser autor, em se tratando de sujeito-professor em situação de interlocução, é, sobretudo, partilhar a autoria com o outro. Portanto, a autoria do sujeito-professor é mais afetada pelo contato com o social não unicamente em razão de ser uma função específica do sujeito e representação de unidade, mas no sentido de constituir-se como tal à medida que o outro torna-se capaz de representar-se como autor. Dessa forma, acreditamos ser possível falar em professor-autor, uma vez que ser autor (referindo-nos à concepção de Foucault) não é necessariamente uma garantia de que o professor conseguirá promover uma aula dialógica. E não raro isso tem se confirmado no diaa-dia ao depararmo-nos com autores que, quando inscritos na posição de sujeito-professor, desfazem a imagem que projetamos deles como professor a partir da imagem que temos deles como autor. Com isso, entendemos que o sujeito-professor apresenta status de professorautor na medida em que ele se vale da atribuição social de um indivíduo que medeia o conhecimento científico, a fim de atender as necessidades de seus alunos, construindo, assim, um discurso que não é nem científico, próprio dos cientistas, e nem de senso comum, como o é o do aluno, mas genuinamente pedagógico, cuja autoria é atribuída única e exclusivamente ao professor. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 445-449, 2005. [ 448 / 449 ] Assim, a professora cujos alunos obtiveram um maior êxito no que diz respeito à autonomia para construir a argumentação, assumiria um grau de função-autor mais elevado, ou seja, estaria mais próxima do referencial autor do que as outras duas. Daí poder se falar, estando professor e alunos investidos de um grau de função-autor elevado, em autoria partilhada ao referirmo-nos à aula da primeira professora, e, pela ordem hierárquica com que se processaram os discursos nas aulas das outras duas professoras, em autoria imposta. Dessa conclusão é importante que se esclareça um ponto: falar em autoria partilhada não significa dizer que o professor abdica de seu papel em sala de aula, delegando-o ao aluno, ou tampouco que este ocupa a mesma posição do professor, estando em pé de igualdade com ele. O que ocorre é que ambos estão investidos da função-autor, sem, contudo, perderem suas identidades, ou seja, professor e alunos jamais se confundem. Seus papéis se definem mutuamente e estão de tal modo interligados e interdependentes que o sucesso ou o fracasso de um implica necessariamente o êxito ou não do outro, pelo menos quando considerados na posição de função-autor numa interação dialógica em situação de interlocução em sala de aula. Referências FOUCAULT, M. A ordem do discurso. 2ª Ed. São Paulo: Loyola, 1996. 79p. MONTEIRO, M. A. A. Interações dialógicas em aulas de ciências nas séries iniciais: um estudo do discurso do professor e as argumentações construídas pelos alunos. Bauru, 2002. Dissertação (mestrado em Educação para a Ciência) – Faculdade de Ciências Unesp – Campus de Bauru. ORLANDI, E. P. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas: Pontes, 2000.100p. Estudos Lingüísticos XXXIV, p. 445-449, 2005. [ 449 / 449 ]