Luiz Homero Groff
RAÍZES DO BRASIL DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA COMO
PÓLO DE RELAÇÕES DE INTERTEXTUALIDADE
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras – Mestrado, Área de
Concentração
em
Leitura
e
Cognição,
Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC,
como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Letras.
Orientador: Prof. Dr. Jorge Alberto Molina
Santa Cruz do Sul, novembro de 2007
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2
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Jorge Alberto Molina (UNISC)(Orientador)
Prof.ª Drª. Flávia B. ramos (UNISC)
Prof. Dr. Arlei Sander Demo (UFRGS)
3
G874r Groff, Luiz Homero
Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda como pólo
de relações de intertextualidade / Luiz Homero Groff;
Grof; orientador,
orientador,
Jorge Alberto Molina. - 2007.
105fl.: il.
Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em
Letras, Universidade de Santa Cruz do Sul, 2007.
Bibliografia
1. Intertextualidade. 2. Sociologia na literatura. 3. Leitura. 4.
Sérgio Buarque de Holanda. I. Molina, Jorge Alberto. II.
Universidade de Santa Cruz do Sul. Programa de Pós-graduação
em Letras. III. Título
CDD : 401.41
Bibliotecária: Jorcenita Alves Vieira CRB 10/1319
4
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Adriane Arlete, minha paixão de todas as horas, aos meus
familiares pelo incentivo, carinho e compreensão, aos professores e colegas do
Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado, pelo ensinamento e amizade e,
em especial ao professor orientador Dr. Jorge Alberto Molina, pela sabedoria
transmitida, pela luz que acendeu e pela companhia indispensável na caminhada,
pelo encorajamento e pelo interesse comigo na realização deste trabalho.
5
Pouco por força podemos,
isso que é, por saber veio,
todo mal jaz nos extremos,
o bem todo jaz no meio.
(Sá de Miranda)
6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...........................................................................................................12
1 O CONCEITO DE INTERTEXTUALIDADE............................................................17
2 A APROPRIAÇÃO DA NOÇÃO WEBERIANA DE TIPOS EM RAÍZES DO
BRASIL......................................................................................................................24
2.1 Os tipos................................................................................................................24
2.2 Os tipos em “Raízes do Brasil”............................................................................28
2.2.1 Trabalhadores e aventureiros...........................................................................29
2.2.2 Semeador e ladrilhador.....................................................................................35
2.2.3 Um questionamento à dicotomia.......................................................................40
2.2.4 O homem cordial..............................................................................................43
2.2.5 “El hombre cordial”............................................................................................49
2.2.5.1 Intertextualidade implícita...............................................................................53
3
SÉRGIO
BUARQUE
DE
HOLANDA
E
SUA RELAÇÃO
COM
SEUS
ANTECESSORES E CONTEMPORÂNEOS............................................................55
3.1 Os naturalistas.....................................................................................................56
3.2 Euclides da Cunha...............................................................................................57
3.3 Alberto Torres......................................................................................................59
3.4 Oliveira Vianna.....................................................................................................62
3.5 Cassiano Ricardo: a miscigenação não deteriora as raças.................................66
3.6 O modernismo e Sérgio Buarque de Holanda.....................................................70
4 A APROPRIAÇÃO DE RAÍZES DO BRASIL........................................................ 76
4.1 Sérgio Buarque de Holanda e a historiografia européia:relacionando textos......76
7
4.2 Comparando dois textos: Raízes do Brasil e Marcha para Oeste.......................78
4.3 Bandeirantes e pioneiros......................................................................................83
4.4 Casa e Rua..........................................................................................................87
CONCLUSÃO............................................................................................................96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................101
8
RESUMO
O
objetivo
deste
trabalho
consistirá
em
analisar
as
relações
de
intertextualidade tecidas ao redor da obra Raízes do Brasil , de Sérgio Buarque de
Holanda. Como é bem sabido, o autor deste texto se apropriou de noções e teorias
provenientes da Sociologia alemã do começo do século XX, cujos representantes
mais destacados foram Max Weber e Georg Simmel. Encontramos em Raízes do
Brasil referências explícitas às obras de Max Weber de quem Sérgio Buarque
adaptou a concepção de tipo sociológico. Parte do nosso trabalho foi identificar e
comentar essas referências. Por isso as relações de Raízes do Brasil com a obra
weberiana são bastante conhecidas, mas, menos o são, nos parece, os vínculos do
texto de Sérgio Buarque de Holanda com a obra de seus antecessores brasileiros
pertencentes a uma geração anterior. Há em Raízes do Brasil um diálogo implícito,
um contraponto, com aqueles autores que, desde uma perpectiva naturalista,
escreveram sobre nossa realidade social. Eles consideraram que as características
de nossa sociedade dependiam de fatores como o clima, a topografia de nosso solo,
as particularidades das raças que aqui habitaram, desdenhando, assim, aspectos
culturais como a língua, a religião, as instituições políticas, em suma, nossa herança
cultural ibérica, aspectos que o texto de Sérgio Buarque de Holanda considera como
determinantes na formação da nossa sociedade. Ao construir Raízes do Brasil,
Sérgio Buarque de Holanda, não dialogou só com os autores alemães, nem com
aqueles autores brasileiros pertencentes a uma geração anterior, como também com
seus contemporâneos brasileiros pertencentes ao movimento modernista. Tentamos
situar o autor dentro deste movimento e determinar como chegou a formar o
conceito do “homem cordial”. Por último, tentamos estudar como os autores
posteriores que escreveram sobre nossa realidade se apropriaram do texto de
Sérgio Buarque. Apropriações que vão desde a alusão explícita até a implícita, más
também, às vezes, o plágio. Nosso trabalho está dividido em quatro capítulos. No
primeiro capítulo dissertamos sobre o conceito de intertextualidade a partir das
perspectivas de G. Genette e de J. Kristeva. No segundo capítulo, nos ocupamos
9
dos vínculos entre a obra de Sérgio Buarque de Holanda e a sociologia de Max
Weber. No terceiro, escrevemos sobre as relações implícitas entre nosso autor e os
autores naturalistas, e sobre sua relação com o movimento modernista. Por fim, no
último capítulo nos ocupamos da repercussão de Raízes do Brasil sobre outros
textos que abordaram a questão da formação de nossa sociedade.
Palavras-chave: Intertextualidade, texto, Brasil, tipos, sociologia
10
RESUMEN
El objetivo de este trabajo consistió en analizar las relaciones de
intertextualidade tejidas en torno de la obra de Sérgio Buarque de Holanda Raízes
do Brasil. Como es bien sabido, el autor de ese texto se apropió de nociones y
teorías provenientes de la Sociología alemana de comienzos del siglo XX, cujos
representantes más destacados fueron Max Weber y Georg Simmel. Encontramos
em Raízes do Brasil referencias explícitas a las obras de Max Weber de quien
Sérgio Buarque adoptó el concepto de tipo sociológico. Parte de nuestro trabajo fue
identificar y comentar esas referencias. Pero si las relaciones de Raizes do Brasil
con la obra weberiana son bastante conocidas , menos lo
vínculos del texto de Sérgio Buarque con
son , nos parece, los
la obra de sus antecesores brasileños
pertenecientes a una generación anterior. Hay em Raizes do Brasil un diálogo
implícito con aquellos autores que, desde uma perspectiva naturalista, escribieron
sobre nuestra realidad social. Ellos consideraron que las características de nuestra
sociedad dependían de factores como el clima, la topografía de nuestro suelo, las
particularidades de las razas que lo habitaron, desdeñando así aspectos culturales
como la lengua, la religión, las instituciones políticas, en suma nuestra herencia
cultural ibérica, aspectos que el texto
determinantes en la
de Sérgio Buarque considera como
conformación de nuestra sociedad. Al construir Raízes do
Brasil, Sérgio Buarque no dialogó sólo com los autores alemanes, ni con aquellos
autores brasileros pertenecientes a una genetración anterior, sino también con sus
contemporáneos brasileños pertenecientes al moviemiento modernista. Intentamos
situar al autor dentro de este movimiento y determinar cómo nuestro autor llegó a
formar el concepto de “hombre cordial”. Por último intentamos estudiar como los
autores posteriores que escribieron sobre nuestra realidad se apropiaron del texto
de Sérgio Buarque. Apropiaciones que van desde la alusión explícita, hasta la
implícita, más también, a veces, hasta el silencio o el plagio. Nuestro trabajo está
divido em cuatro capítulos. En el primero
disertamos sobre el concepto de
intertextualidad a partir de las perspectivas de G. Genette e de J. Kristeva. En el
segundo nos ocupamos de los vínculos entre la obra de Sérgio Buarque y la
sociología de Max Weber. En el tercero escribimos sobre las relaciones implícitas
11
entre nuestro autor y los autores naturalistas, y sobre su relación con el movimiento
modernista. Por fin, en el último capítulo nos ocupamos de la repercusión de Raizes
do Brasil sobre otros textos
posteriores que abordaron la cuestión de la
conformación de nuestra sociedad.
Palavras maestras: Intertextualidad, Brasil, sociología , texto, tipos
12
INTRODUÇÃO
Através desta pesquisa objetivamos mostrar a possibilidade de identificar
diversas relações de intertextualidade que têm como pólo ou termo uma obra não
estritamente literária, análise esta realizada na maioria
das vezes em
textos
literários que, tradicionalmente, são conhecidos como um universo de natureza
ficcional com dimensões muito variáveis. Sendo constituídos por diversos níveis de
expressão, os textos literários têm uma dimensão virtualmente intertextual porque
permitem ser relacionados com outros textos que com eles dialogam e neles se
manifestam. Porém, a intertextualidade abarca, também, os textos não literários
porque toda palavra oral ou escrita, em grande ou pequena quantidade, pode ser
citada, posta entre aspas e pode reiterar ou interagir com outras palavras. Desta
forma, também os textos não literários podem romper com um dado contexto,
engendrar ou modificar novos contextos até o infinito de maneira absolutamente não
saturável. Assim sendo, entendemos a intertextualidade como uma característica
também inerente aos textos científicos, técnicos, sociológicos, históricos, etc.
Esta dissertação está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Letras –
Mestrado, Área de Concentração em Leitura e Cognição, dentro da linha de pesquisa – Processos Cognitivos e Textualidade – que investiga a leitura e seus processos
cognitivos. O ato de ler entendido como compreensão do discurso verbal, envolve
processos cognitivos semelhantes àqueles da criação num processamento inverso.
Na leitura do texto, o leitor não apenas o memoriza, mas, também extrai da leitura
seqüencial as proposições apresentadas pelo autor, tentando reconstruir mentalmente a estrutura do texto. Nessa tarefa, o leitor tenta, em geral, aplicar um esquema constituído pelas estruturas apreendidas em leituras anteriores, o que, por sua
vez, facilita a tarefa, que, em última instância, é estabelecer o conceito ou significado. No momento que acontece este processo no qual o leitor recorre a outros textos
para construir significados e, até, novos textos, podemos dizer que ocorre o evento
da intertextualidade.
13
O processo que envolve a cognição é mais do que simplesmente a aquisição
de conhecimento e conseqüentemente, a nossa melhor adaptação ao meio - mas é
também um mecanismo de conversão do que é captado para o nosso modo de ser
interno. Ela é um processo pelo qual o ser humano interage com os seus
semelhantes e com o meio em que vive, sem perder a sua identidade existencial.
Começa com a captação da realidade através dos sentidos e logo em seguida
ocorre a percepção. É, portanto, um processo de conhecimento, que tem como
material a informação do meio em que vivemos e o que já está registrado na nossa
memória.
A obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, se configura como
um
livro posicionado na metade do caminho entre o ensaio sociológico e a
monografia histórica. Não seria reconhecido hoje como um trabalho de Sociologia ou
de História stricto sensu, pelo fato de o autor não usar a metodologia e a forma de
exposição que é padrão hoje nessas disciplinas. Vejamos o que diz a análise do
crítico Evaldo Cabral de Mello1:
“SBH abandonou o projeto de interpretação sociológica do passado
brasileiro em favor de uma análise de cunho eminentemente histórico. [...]
No cerne desta mutação do sociológico em historiador encontrou-se,
suspeito, a consciência de uma antítese entre a explicação sociológica e a
explicação histórica.”
Esta obra, pela sua temática, também não seria classificada como um
texto de literatura. Não sendo nem romance, nem conto, nem drama , nem poesia,
Raízes do Brasil pertence a um gênero textual classificado como ensaio históricosociológico onde podemos situar obras como o Facundo de Sarmiento, a Rebelión
de las Masas de Ortega y Gasset, Casa grande e Senzala de Gilberto Freyre , a
Radiografia de la Pampa de Martínez Estrada e El Laberinto de la soledad do poeta
mexicano Octavio Paz, entre outros. A sociologia latino-americana contemporânea
teve como um dos seus objetivos superar esse tipo de ensaística apresentando suas
Ver Evaldo Cabral de Mello. Raízes do Brasil e depois. In: Raízes do Brasil. Edição Comemorativa
1
70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. – São Paulo:
Companhia das Letras, 2006. p. 269 ss.
14
pesquisas em forma de monografia, ou artigos científicos onde é feito um uso cada
vez maior de ferramentas estatísticas.
Em Raízes do Brasil reconhecemos referências explícitas a outros textos, e
entre eles a obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber.
Discutiremos o uso que é feito por Sérgio Buarque de Holanda da noção weberiana
de tipo, que é usada várias vezes no seu texto, algumas vezes na forma de pares
antagônicos (trabalho e aventura, o semeador e o ladrilhador) ou como conceito
individual quando nos deparamos com o tipo “homem cordial”, usado por SBH para
descrever a identidade nacional brasileira.
Além disso, buscamos identificar algumas relações de intertextualidade no
ensaio de Sérgio Buarque de Holanda com outros textos anteriores e posteriores,
que se ocupam também da realidade brasileira. Nossas análises tomarão por base a
edição comemorativa dos 70 anos de Raízes do Brasil que contém a 2ª edição desta obra, do ano de 1947, com alterações abundantes onde foram retificados e ampliados alguns temas. Os capítulos 3 e 4 foram separados e tiveram novas denominações de conteúdos, entre eles, ”O semeador e o ladrilhador”; categorias sociológicas
usadas para descrever as características dos colonizadores portugueses e espanhóis. A terceira edição saiu em outubro de 1955 e de novidade trouxe o debate sobre o “homem cordial”; conceito criado por Ribeiro Couto e interpretado de maneiras
diferentes por SBH e Cassiano Ricardo. Nesta edição, então, encontram-se as objeções de CR e as respostas que lhe foram dadas pelo autor de Raízes do Brasil. O
índice onomástico também passa a fazer parte da obra a partir da 3ª edição. As
duas obras parecem ter borbulhado já na primeira metade do século XX quando
muito se especulava a respeito da formação, diversidade e complexidade que envolvia a formação da sociedade brasileira.
No capítulo 1, faremos uma revisão da literatura que possa reafirmar os
conceitos de intertextualidade iniciados por Gérard Genette, onde este coloca o
termo “transtextualidade” como o mais includente e que abarca os demais níveis de
intertextualidade os quais ele divide em cinco, conforme veremos. No capítulo 2,
15
trabalharemos os conceitos de “tipo” baseados em teorias dos sociólogos lá citados
e com ênfase na noção weberiana de tipos, da qual se apropria Sérgio Buarque de
Holanda em sua obra, Raízes do Brasil. Estes conceitos facilitam a compreensão
das individualidades humanas, das categorias sociológicas e do “homem cordial”,
perfil sociológico que representa a imagem do brasileiro, suas virtudes e seus
padrões de convívio humano. Nesse capítulo estudaremos o conceito do “homem
cordial” e faremos um paralelo entre as classes sociológicas “trabalhadores e
aventureiros” e “semeador e ladrilhador” que foram amplamente usadas na obra de
SBH.
No capítulo 3, faremos uma explanação sobre a relação de Sérgio Buarque
de Holanda com seus antecessores e seus contemporâneos, com ênfase aos
naturalistas, com os quais ele tinha algumas divergências. Citaremos Cassiano
Ricardo para observar questões que dizem respeito à miscigenação racial e o
bandeirismo no Brasil. Faremos, ainda, considerações sobre as relações de SBH
com o modernismo. No capítulo 4, mostraremos algumas formas de apropriação de
Raízes do Brasil, por parte de outros autores e obras, o que, de certa forma, deixa
muito claro o evento da intertextualidade. Esta apropriação parece estar na forma de
criar as categorias sociológicas e na maneira de usá-las ao se ocupar em estudos
da realidade brasileira por parte de alguns autores contemporâneos.
No contexto que envolve a produção e a percepção do ensaio de SBH temos
obras que influenciaram sua composição, sua estrutura e seus argumentos, e, obras
posteriores que foram influenciadas pelos estudos contidos em Raízes do Brasil,
como podemos ver no seguinte diagrama:
16
Oliveira Vianna
Max Weber
A ética protestante e
o espírito do
capitalismo e
Economia e
sociedade
Raça e assimilação e
Evolução do povo
brasileiro
Euclides da
Cunha
Alberto Torres
O problema
nacional
brasileiro
Os sertões
Sérgio Buarque de
Holanda
Raízes do Brasil
Vianna Moog
Roberto
DaMatta
O que é o Brasil?
e
A casa & a rua .
Cassiano Ricardo
Marcha para Oeste.
(A influência da
“Bandeira na
formação social e
política do Brasil)
Bandeirantes e
Pioneiros
17
1 O CONCEITO DE INTERTEXTUALIDADE
A cada novo texto que construímos, escrito ou falado, fazemos referência a
outros textos anteriormente lidos, com os quais tivemos contato e que acabaram por
enriquecer o nosso conhecimento e que nos influenciam a cada nova construção
textual. Estes conhecimentos vindos de diversas fontes comunicativas acabam por
se cruzar uns com os outros numa tecitura nova em cada novo discurso ou
manifestação comunicativa, como uma espécie de rede onde existem muitas
ligações que tornam perfeita a nova peça discursiva. A este mecanismo de construir
novos textos a partir de outros com os quais anteriormente tivemos contato,
podemos chamar de intertextualidade. Vejamos a seguir o que dizem a respeito
alguns autores, iniciando com Gérard Genette. Na sua obra Palimpseste, define
intertextualidade como:
uma relação de co-presença entre dois ou mais textos [...] como a
presença efetiva de um texto noutro. Em sua forma mais explícita e mais
literal trata-se da citação [...]. De forma menos explícita e menos canônica,
do plágio, ou seja, um empréstimo ainda literal, mas não declarado. De
forma ainda menos explícita e menos literal, trata-se da alusão, ou seja, de
um enunciado[...] que pressupõe a percepção de uma relação com outro
enunciado ao qual remete necessariamente uma ou outra de suas
inflexões...2
Na análise da intertextualidade empreendida e aprofundada por Genette,
vemos que a transcendência textual está definida como tudo aquilo que coloca o
texto, explícita ou implicitamente, em relação com outros textos. Gérard Genette
propõe o termo "transtextualidade" como um termo mais includente do que
“ par une relation de coprésence entre deux ou plusieurs textes, c’est-à-dire, eidétiquement et le plus
souvent, par la présence effective d’un texte dans un autre. Sous sa forme la plus explicite et la plus
littérale, c’est la pratique traditionnelle de la citation; [...] Sous une forme moins explicite et moins
canonique, celle du plagiat, qui est un emprunt non déclaré, mais encore littéral; sous forme encore
moins explicite et moins littérale, celle de l’allusion, c’est-à-dire d’un énoncé dont la pleine intelligence
suppose la perception d’un rapport entre lui et un autre auquel renvoie nécessairement telle ou telle
de ses inflexions...” GENETTE, G. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982,
p. 8. (Tradução nossa)
2
18
intertextualidade englobando, assim, todos os níveis de interextualidade e outros
tipos de relações transtextuais que distribui em em cinco categorias:
Intertextualidade: a primeira categoria, explorada na década de 60 por
Kristeva3, vimos que é definida por Genette como uma relação de co-presença entre
dois ou mais textos, como a presença efetiva de um texto noutro como citação,
plágio ou alusão.
Podemos distinguir duas classes “puras” de intertextualidade: uma classe é a
intertextualidade poética, própria do texto literário, onde um autor se apropria
livremente de aspectos de outro texto, geralmente escrito antes. Assim Virgílio na
Eneida, se apropriou da Odiséia de Homero, e Eça de Queirós se apropriou no
primo Basílio de Madame Bovary, de Flaubert.
Outra classe de intertextualidade é aquela que podemos chamar de crítica.
Nesta classe o autor não se apropria livremente de outro texto, mas tenta colher o
verdadeiro significado daquele texto. É o que acontece por exemplo com a Nervura
do real, onde Marilena Chauí tenta interpretar a Ética, de Espinosa. Na
intertextualidade crítica o autor tenta ser fiel àquele outro texto que está analisando.
Paratextualidade: a segunda categoria de transtextualidade que é geralmente
a relação menos explícita e mais distanciada que o texto mantém com seu
paratexto, como o uso de um título, subtítulo, prefácios, notas de rodapé ou
referência mais distante.
Metatextualidade: a terceira categoria que, segundo Genette, se constitui num
comentário crítico explícito ou implícito de um texto a respeito de outro texto, até
mesmo, sem citá-lo. Isso é muito comum na Filosofia. São inúmeros os comentários
sobre as obras clássicas dos grandes filósofos. Grandes textos da Filosofia
nasceram como comentários, por exemplo os comentários de Santo Tomás de
Aquino às obras de Aristóteles.
3
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução Lúcia Helena França Ferraz. 2ª ed. São
Paulo: Perspectiva, 2005, p. 67.
19
Hipertextualidade: a quarta categoria de transtextualidade que Genette
denomina, quando um texto B depende de texto anterior (A) para existir, mesmo não
falando do hipotexto (A). É uma situação onde o hipotexto é condição de existência
para o hipertexto. Quando um texto é derivado de outro pré-existente no qual se
baseia, mas transformando-o, modificando-o, elaborando-o ou estendendo-o. Daí,
que se origina a hipertextualidade utilizada na informática: trata-se de um texto que
pode levar o leitor diretamente para outros textos.
Arquitextualidade: quinto tipo de transtextualidade que é constituído por um
caso muito abstrato de intertextualidade, é mais implícita e oculta do que as
anteriores. É uma relação muda, eventualmente articulada por uma menção de título
ou subtítulo, que pertence exclusivamente ao aspecto taxionômico, segundo o autor.
Designação de um texto como parte de um gênero ou gêneros. Podemos citar como
exemplo a obra Confissões, de Rousseau, na qual o título já indica que a obra de
Rousseau pertence a um gênero literário do qual fazem parte as Confissões, de
Santo Agostinho, e os Solilóquios, de Marco Aurélio.
A transtextualidade, que podemos conceituar como transcendência textual do
texto, ultrapassa a intertextualidade e abarca toda a amplitude envolvendo o
conjunto das categorias gerais. Servirão, essas categorias como referencial teórico
para que possamos propor uma análise das fronteiras intertextuais em Raízes do
Brasil.
Em seu livro Introdução à Semanálise, Kristeva4 afirma que todo texto se
constrói como um mosáico de citações, todo texto é absorção e transformação de
um outro texto, ou seja, faz a retomada explícita de textos históricos ou literários
situados em tempo e espaço determinados. Isso significa que textos lidos ou
construídos por nós anteriormente estão em constante interação, em
constante
diálogo com nossas construções textuais do presente. “O simples ato de folharmos
um jornal já pode ser indicativo de uma maneira de ler não só o jornal, mas também
Ibidem, p. 68.
4
20
a sociedade em que ele circula”5. Baseados nesta afirmação, podemos dizer que
formamos conceitos e tiramos conclusões levando em conta nosso conhecimento de
outros tantos textos já lidos ou construídos e que interagem na leitura que fazemos
no presente. Além disso, os saberes prévios adquirido pelos leitores influenciam
direta ou indiretamente todas as suas próximas leituras. Esta concepção parece
estar clara na afirmação de Ângela Kleimann6, quando diz que sem o engajamento
do saber prévio do leitor não haveria compreensão e, que o saber
adquirido
determina, durante a leitura, as inferências que o leitor fará com base nas
informações do texto.
Ao falar de crítica e intertextualidade Perrone-Moisés7, nos enfatiza que a
intercomunicação dos discursos não é algo novo. Novo é que, a partir do século
XIX, esse inter-relacionamento apareça como algo sistemático e assumido pelos
escritores e falantes e que o recurso a textos alheios já é uma prática comum e
necessária para a elaboração do sentido. Perrone-Moisés, ao falar dos seus
próprios textos, diz, ainda, que o inter-relacionamento significativo das palavras é
uma característica de qualquer fala. Bakhtin8 faz referência aos romances de
Dostoievski, onde as palavras caracterizam-se por serem polivocais, e acentua que
a multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica
polifonia de vozes diferentes – que mantém com as outras vozes do discurso uma
relação de absoluta igualdade como participantes do grande diálogo – constituem,
de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski. Polifonia que
entendemos como vozes diferentes, cantando diversamente o mesmo tema.
A intertextualidade é uma condição básica para a construção do significado
textual e da boa comunicação. Alba Olmi, usando expressão de Kristeva, na esteira
de Bakhtin, assim explicita: “Todo texto é absorção e transformação de uma
multiplicidade de outros textos”, e, ainda para complementar:
5
GRAÇA, P., WALTY, I., FONSECA, M. N., CURY, M. Z. Tipos de textos, modos de leitura. Belo
Horizonte: Editorial, 2001, p. 45.
6
KLEIMANN, Ângela. Texto & leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1999, p.13.
7
PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura .São Paulo: Ática,1978, p. 59.
8
BAKHTIM, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. 3ª ed. Rio
de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 4.
21
Entende-se por intertextualidade este trabalho constante de cada texto
com relação aos outros, esse imenso e incessante diálogo entre obras que
constitui a literatura. Cada obra surge como uma nova voz (ou um novo
conjunto de vozes) que fará soar diferente as vozes anteriores,
arrancando-lhes novas entonações9.
Alba Olmi em seu livro Uma escritora de ficção e a ficção de uma escritora
cita Philippe Sollers, “todo texto situa-se na junção de mais textos onde ele é, ao
mesmo tempo, a releitura, a acentuação, a condensação e o aprofundamento”.10 Ao
estudar os aspectos e relações intertextuais em Janet Frame, Olmi cita em sua obra
a conceituação de Roland Barthes que afirma que
o texto redistribui a língua, o texto é de fato o campo dessa redistribuição.
Um dos caminhos dessa desconstrução-reconstrução é o de permutar os
textos, fragmentos de textos de textos que existiram ou existem ao redor
do texto considerado e, finalmente, nele: todo texto é um intertexto; outros
textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou
menos reconhecíveis: os textos da cultura anterior e os da cultura
circundante; todo texto é um tecido novo de citações revolvidas. Passam
no texto, redistribuídos nele, pedaços de códigos, fórmulas, modelos
rítmicos, fragmentos das línguas sociais, porque há sempre linguagem
antes e ao redor do texto11
No universo da intertextualidade, acabamos sempre por fazer o uso da
citação, recurso este
que usamos implícita ou explicitamente e que, segundo
Compagnon12 nada mais é que uma forma de repetição de pensamento. Este
recurso já está embutido no saber do escritor que incorporou o saber ou as crenças
daquele que ele cita. Em sua obra ele fez um enxerto do saber de outrem, assim,
podemos dizer que citação e intertextualidade estão interligadas, vejamos o que diz
Compagnon:
A citação é um corpo estranho em meu texto, porque ela não me
pertence, porque me aproprio dela.[...] O enxerto pega, a operação é um
sucesso: conheço a alegria do artesão consciencioso ao se separar de um
produto acabado que não traz o traço de seu trabalho, de suas invenções
empíricas. Embora com um compromisso diferente, é o mesmo prazer do
9
OLMI, Alba. Uma escritora de ficção e a ficção de uma escritora. São Paulo: Scortecci, 2003, p.
266.
10
SOLLERS, P. Theorie d’ensemble, 75. (Cópia eletrostática) apud Olmi, 2003, p. 266.
11
BARTHES, Roland. Enciclopedie Universalis, Tome XV apud Olmi, 2003, p. 271.
12
COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução de Cleonice P. B. Mourão. Belo
Horizonte: UFMG, 1996, p. 17.
22
cirurgião ao inscrever seu saber e a técnica no corpo do paciente: seu
talento é apreciado segundo a exatidão de seu trabalho, a beleza da
cicatriz com que assina e autentica sua obra. A citação é uma cirurgia
estética em que sou ao mesmo tempo o esteta, o cirurgião e o paciente:
pinço trechos escolhidos que serão ornamentos, [...] enxerto-os no corpo
do meu texto. A armação deve desaparecer sob o produto final, e a própria
cicatriz(as aspas) será um adorno a mais.13
Para evidenciar sua idéia, o autor diz que o trabalho da escrita é uma
reescrita já que se trata de converter elementos separados e descontinuos em um
todo contínuo e coerente, de juntá-los, de compreendê-los. Reescrever, reproduzir
um texto a partir de suas iscas, é organizá-las ou associá-las, fazer as ligações ou
as transições que se impõem entre os elementos postos em presença de um outro:
toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário.
Ao falar de intertextualidade, Remédios14 faz referência ao caráter interativo,
bidimensional dos universos de publicação, novos meios de produção de imagens,
novos alfabetos de luzes da computação gráfica que cada vez mais alteram e
redimensionam, em bases radicalmente inéditas, a nossa noção de escrita e
conseqüentemente da fala e de toda atividade comunicativa. Com esta afirmação
notamos que não só os textos literários são o grande palco da intertextualidade,
mas, também os não literários e que esta prática natural e necessária acontece nos
textos de propaganda, marketing, jornalísticos e até científicos. Tanto, que segundo
a autora, o texto, como hoje é percebido, perde sua afinidade com as idéias
imutáveis que, supostamente, dominariam o mundo sensível e transforma-se num
texto próximo a uma rede urdida de elementos que se interligam e que servem para
criar o universo da comunicação humana. A criação textual, dentro dessa
concepção, torna a vida um ciclo dinâmico com sua energia, vivendo, agindo
pensando, tecendo o tecido mesmo da vida. A seguir, neste sentido, a autora faz
mais afirmações:
Quando a criação intertextual é declarada, imputa-se ao conceito de texto
toda a concepção de linguagem caracterizada pela não linearidade, pela
Ibidem, p. 56.
REMÉDIOS, Maria Luíza Ritzel. Literatura Portuguesa: textualidade e intertextualidade. In:
Marcia Helena Saldanha Barbosa; Graciela Ormezzano. (Org.). Questões de intertextualidade. 01 ed.
Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2005, v. 01, p. 133 ss.
13
14
23
não seqüencialidade, enfim, pela dispersão textual,[...] A leitura linear é
substituída por uma leitura de correlações, pois o texto se apresenta como
o ponto de intersecção de diferentes extratos que vêm dos diferentes
horizontes15
A concepção de linguagem caracterizada pela dispersão textual parece ser o sentido
construído pelo novo texto baseado em vários outros lidos anteriormente. Destes
vários textos dispersos acabamos por lapidar um novo, cheio de sentido e ao
mesmo tempo coeso. Quando analisamos o texto pelo viés da intertextualidade
passamos a fazer da sua leitura, uma leitura de correlações. Segundo a autora, esta
é uma leitura que remete a outros textos, construídos em outros momentos e em
outras situações, que vindos de outros horizontes têm pontos de intersecção com a
nova produção textual. Enfim, a intertextualidade parece ser o fator de maior
dinamicidade do universo da comunicação, e, vai sofrendo transformações a cada
nova construção.
Ibidem, p. 134.
15
24
2 A apropriação da noção weberiana de tipos em "Raízes do
Brasil."
2.1 - Os tipos
Em sua obra, “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda, faz vasto uso
da comparação entre o trabalhador e o aventureiro, e o semeador e o ladrilhador
buscando mostrar características próprias de um e outro e as implicações
sociológicas e históricas destes perfis aos quais se refere como “tipo”.
Para que possamos entender melhor esta referência aos tipos nos
apoiaremos em Ferrater Mora que nos traz o conceito geral e psicológico de “tipo”.
Segundo ele, no contexto sociológico da palavra um tipo representa um modelo que
permite produzir um número indeterminado de indivíduos que se reconhecem
pertencentes a uma mesma classe com ares, até, de família dado à semelhança
entre si. Desta forma, um indivíduo poderá representar esta classe pois proporciona
uma imagem de acordo com a qual é possível discernir e conhecer os demais
exemplares do grupo ao qual pertence, vejamos:
- Um esquema representativo – como uma forma que proporciona a
imagem de acordo com a qual é possível discernir e conhecer os demais
exemplares de uma classe.[...] O uso consistente e sistemático desta
noção (de tipo) dá lugar ao chamado pensar tipológico.16
Estas tipologias, segundo o autor, fazem possível a compreensão das
individualidades humanas, de suas relações e de seus valores.
16
- Un esquema representativo – como una forma que proporciona la imagen de acuerdo con la
cual es posible discernir y conocer los demás ejemplares de una clase. [...] El uso consistente y
sistemático de esta noción (de tipo) da lugar al llamado pensar tipológico. FERRATER MORA,
J. Dicionário de Filosofia. Tome IV, (Q – Z). Barcelona: Ariel S.A., 1994, p. 3512. Tradução
nossa.
25
Dentro de outra concepção, em sua obra Tipos Psicológicos, Jung faz
referência aos tipos psicológicos que descreveu em 1921. Ele mostrou que as
pessoas têm características comportamentais diferentes, habilidades, aptidões,
atitudes e motivações que vão caracterizar esses tipos. Pela herança genética,
pelas influências familiares e pelas experiências que o indivíduo tem ao longo de
sua vida se constituirá um modo preferencial de uma pessoa reagir ao mundo. Jung
distinguiu dois tipos: a introversão e a extroversão. O sujeito extrovertido é aquele
que prefere focar sua atenção no mundo externo de fatos e pessoas e, assim, ele
emenda: “...seu íntimo submete-se às exigências externas, não sem luta; mas o
final é sempre favorável às condições objetivas. Sua consciência toda olha para fora
porque a determinação importante e decisiva sempre lhe vem de fora.”17
O introvertido é, segundo Jung18, o sujeito que foca sua atenção no mundo
interno de representações e impressões psíquicas. O extrovertido deixa fluir sua
energia de maneira natural e tem como característica a impulsividade, a
sociabilidade, a expansividade e a facilidade de expressão oral. O sujeito introvertido
se orienta pelo conteúdo subjetivo, direciona a atenção para o seu mundo interno e
denota postura reservada, retenção das emoções e facilidade de expressão no
campo da escrita.
No seu texto Conceitos Fundamentais de Sociologia, Max Weber19 ao falar de
tipo e tipo ideal deixa claro a necessidade de haver “um agir típico” e “uma
regularidade do desenrolar”.
Transmite-nos, também, que o material para a
construção de um “tipo” é feito sob a forma de paradigmas. Para Weber, a
construção de tipo ou
[...] tipo ideal é particularmente uma tentativa de apreender indivíduos
históricos, ou os diferentes elementos que os constituem, em conceitos
genéticos.
[...] o tipo ideal teórico construído para objetivos de
conhecimento, decorre paralelamente, evidenciando a tendência
17
JUNG, C. G. Tipos psicológicos. Tradução: Lúcia Matilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 1991, p.
319-322.
18
Ibidem, p.354-356.
19
WEBER, Max. Conceitos fundamentais de sociologia. In: CRUZ, Manuel Braga da. Teorias
sociológicas. Os fundadores e os clássicos. (antologia de textos) 1 vol. 4ª ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 2004, p. 592.
26
permanente para se interpenetrar. [...] como construção intelectual para
medir e caracterizar de modo sistemático conexões individuais.[...] a qual,
no domínio das manifestações culturais, o que é abstractamente típico seria
idêntico ao que é abstractamente próprio do gênero.20
A apropriação, por parte de SBH, da categoria weberiana de tipo parece estar
evidente no capítulo 3, de Raízes do Brasil21 quando SBH faz um paralelo entre a
colonização portuguesa no Brasil, no século XVII e XVIII, e os processos de
colonização da Antigüidade clássica, isto podemos registrar na seguinte passagem:
Não admira, assim, que fossem eles (os senhores de engenho)
praticamente os únicos verdadeiros “cidadãos” na colônia, e que nesta se
tenha criado uma situação característica talvez da Antigüidade clássica mas
que a Europa – e mesmo a Europa medieval – não conhecia. O cidadão
típico da Antigüidade clássica foi sempre, de início, um homem que
consumia os produtos de suas próprias terras, lavradas pelos seus
escravos. Apenas não residia por hábito nelas. Em alguns lugares da bacia
do Mediterrâneo, na Sicília, por exemplo – segundo informou Max Weber -,
não residiam os lavradores, em hipótese nenhuma, fora dos muros das
cidades, devido à insegurança e aos extraordinários perigos a que se
achavam expostos constantemente os domínios rurais. As próprias “vilas”
romanas eram, antes de mais nada, construções de luxo, e não serviam
para residência habitual dos proprietários, mas para vilegiatura.22
O autor de Raízes do Brasil usa a informação e o conhecimento de Max Weber
sobre sociedade e a economia do mundo antigo para mostrar que o contexto
brasileiro na época da colonização teve características iguais à de algumas regiões
da Europa, na época da colonização romana. Assim, num processo semelhante aos
da Antigüidade clássica, as cidades brasileiras do Brasil colonial, segundo a
passagem citada, serviam mais para mostrar a pujança dos senhores da Casa
Grande e seus familiares. As casas, quase sempre luxuosas mantidas nas cidades
serviam mais para vilegiatura e ostentação e eram freqüentadas poucas vezes por
ano. Assim, como no início da colonização das terras na Antigüidade clássica, os
colonizadores brasileiros, de início, consumiam os produtos de suas próprias terras,
lavradas por seus escravos.
20
Ibidem, p. 644-649.
Aqui temos uma relação de intertextualidade explícita que tem origem na obra Wirtschaft und
Gesellschaft (Economia e Sociedade), II, Tübingen, 1925, de Max Weber, p. 520 ss.
22
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. Rev. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 90.
21
27
No capítulo 4 de Raízes do Brasil – O semeador e o ladrilhador – SBH faz
uma oposição entre os colonizadores espanhóis e portugueses. Os espanhóis
acentuam a valorização da metrópole em detrimento aos domínios rurais, estratégia
esta que marca o jeito castelhano de expandir seu domínio. Mais uma vez a análise
de SBH é feita nos moldes de Max Weber23 e a intertextualidade é explícita,
vejamos:
Max Weber mostra admiravelmente como a fundação de cidades
representou, para o Oriente Próximo e particularmente para o mundo
helenístico e para a Roma imperial, o meio específico de criação de órgãos
locais de poder, acrescentando que o mesmo fenômeno se encontra na
China, onde, ainda durante o século passado, a subjugação das tribos
miaotse pôde ser identificada à urbanização de suas terras. E não foi sem
boas razões que esses povos usaram de semelhante recurso, pois a
experiência tem demonstrado que ele é, entre todos, o mais duradouro e
eficiente. As fronteiras econômicas estabelecidas no tempo e no espaço
pelas fundações de cidades no Império Romano tornaram-se também as
fronteiras do mundo que mais tarde ostentaria a herança da cultura
clássica.24
A apropriação da noção weberiana de tipos está também na formação do
conceito do “homem cordial”, principalmente no que se refere às características que
esse tem de confundir os domínios do público e do privado e a ser um funcionário
patrimonial quando ocupante de cargo público. Observemos a definição do
“funcionário patrimonial”25 usada por SBH:
Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade,
formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre
os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam
justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial”, do puro burocrata
conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a
própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse
particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere
relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses
objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que
O intertexto explícito feito por SBH tem origem na obra Wirtschaft und Gesellschaft (Economia e
Sociedade), II, Tübingen, 1925, p.713, de Max Weber.
24
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 97.
25
O intertexto explícito feito por SBH tem origem na obra Wirtschaft und Gesellschaft (Economia e
Sociedade), II, Tübingen, 1925, p. 795 ss., de Max Weber.
23
28
prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem
garantias jurídicas aos cidadãos.26
Esta matriz tipológica de Weber, da qual se apropriou SBH, é muito relevante
dentro da obra “Raízes do Brasil” e consagra a concepção de que não existe texto
que não incorpore outro em si e de que um texto é a releitura de vários outros textos
anteriores, ou, como diria Genette, “uma relação de co-presença entre dois ou mais
textos [...] a presença efetiva de um texto noutro.” Aí posto está a relevância da
intertextualidade, instrumento de nosso estudo.
2.2 - Os tipos em “Raízes do Brasil”
Podemos afirmar que Sérgio Buarque de Holanda, em seu ensaio de
interpretações sociológicas sobre a formação do Brasil, parece estar fortemente
influenciado por Max Weber pelo fato de ter lido e estudado várias de suas obras por
ocasião de sua estada na Alemanha. SBH permaneceu naquele país de 1929 até
1931 a serviço de uma empresa jornalística brasileira e nas suas horas de folga
assistia às aulas de sociologia numa universidade alemã, justamente, no meio
acadêmico que evidenciava as teorias de Max Weber, o grande mestre alemão da
sociologia, que morrera em junho de 1920. Entre as obras do sociólogo alemão as
que estudou destacadamente foi Economia e sociedade e A ética protestante e o
espírito do capitalismo. Vimos que para descrever o perfil do homem que desbravou
este território e deixou suas marcas fundidas no conceito do povo brasileiro, o autor
faz uma análise tipológica da sociedade brasileira usando os seguintes pares
opostos de tipos: o trabalhador e o aventureiro; o semeador e o ladrilhador,
apropriando-se do arcabouço metodológico do sociólogo alemão. O autor ressalta o
perfil do trabalhador que busca a paz, a estabilidade e a segurança e busca esta
26
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 159.
29
condição mesmo que demande longo tempo. Já o aventureiro quer o proveito
imediato das coisas, buscando sempre o bônus sem arcar com o ônus. Um homem
imediatista e pouco precavido. Já o semeador vem caracterizar o colonizador
português como aquele que até mesmo na construção de suas cidades dispensava
qualquer zelo e planejamento, como aquele semeador a jogar suas sementes
campo afora onde umas, caídas em bom lugar produziriam bons frutos, outras em
lugar diverso nunca vingariam. Um tipo humano imprevidente, desleixado e para o
qual o trabalho e a dedicação eram estranhos. O ladrilhador, como um par
antagônico, vem descrever um colonizador providente, preocupado com o plano e a
perfeição, dedicado à urbanização. Homem minucioso que quer ordenar o mundo e
buscar a harmonia como aquele ladrilhador que tudo calcula e observa para dispor
corretamente e com perfeição os ladrilhos de uma construção.
2.2.1 – Trabalhadores e aventureiros
Em seu ensaio, Sérgio Buarque faz referências aos tipos opostos “trabalhador
e aventureiro” para caracterizar os portugueses aos quais chama de aventureiros e
por esta característica buscam concretizar desejos sempre colhendo os frutos sem
plantar a árvore. Assinala que este tipo humano ignora as fronteiras, busca espaços
ilimitados para viver, acredita em projetos vastos e em horizontes distantes. Sérgio
Buarque assim descreve o aventureiro:
Esse tipo humano ignora as fronteiras. No mundo tudo se apresenta a ele
em generosa amplitude e, onde quer que se erija um obstáculo a seus
propósitos ambiciosos, sabe transformar esse obstáculo em trampolim. Vive
dos espaços ilimitados, dos projetos vastos, dos horizontes distantes.27
Na concepção de SBH, a povos como eles coube a obra da conquista e colonização
dos novos mundos porque eram audaciosos e homens de grandes vôos,
27
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 34.
30
características estas, que eram valorizadas naquele período histórico. O autor faz
uma oposição, como vimos, com o trabalhador que tem qualidades opostas e
repulsa ao tipo aventureiro que é audacioso, imprevidente, irresponsável, instável e
até vagabundo.
O trabalhador, em oposição ao tipo aventureiro, é conceituado por Buarque
de Holanda, como:
... aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a
alcançar. O esforço lento , pouco compensador e persistente, que, no
entanto, mede todas as possibilidades de esperdício e sabe tirar o máximo
proveito do insignificante tem sentido bem nítido para ele. Seu campo
visual é naturalmente restrito. A parte maior que o todo.28
O trabalhador busca a paz, a estabilidade e a segurança e não a perspectiva de
rápido proveito material. Acredita em compensações de longo prazo. Ao referir-se
aos conquistadores e a colonização, o autor assinala que os portugueses vieram
buscar, sem dúvida a riqueza, mas riqueza que custe ousadia, não riqueza que custe
trabalho, caracterizando-os, desta forma, como aventureiros. Na obra da conquista e
colonização dos novos mundos, como no caso do Brasil, o tipo aventureiro teve
papel fundamental, segundo Sérgio Buarque:
Na obra da conquista e colonização dos novos mundos coube ao
trabalhador, no sentido aqui compreendido, papel muito limitado, quase
nulo.A época predispunha aos gestos e façanhas audaciosos,galardoando
bem os homens de grandes vôos.E não foi fortuita a circunstância de se
terem encontrado neste continente, empenhadas nessa obra,
principalmente as nações onde o tipo do trabalhador, tal como acaba de ser
discriminado, encontrou ambiente menos propício”.29
Desta forma, podemos afirmar que fomos colonizados sob a ética da aventura
e hoje levamos as marcas desse não projeto civilizador. Estas marcas do
aventureirismo espontâneo que sobrevive nesta civilização tropical parece
enfraquecer e levar ao amolecimento as instituições e as relações sociais e,
sobretudo contribuir com o perfil do homem cordial que veremos em seguida.
Ibidem, p. 34.
Ibidem, p. 35.
28
29
31
Em O espírito e a letra, SBH, ao falar da vida no Brasil do Século XVII,
demonstra o espírito aventureiro dos portugueses e sua paixão por atividades que
pudessem lhes render dinheiro fácil. Naquela época os mercadores onzeneiros
tornavam-se riquíssimos comprando gêneros nas vilas ou cidades e vendendo-os
depois pelos engenhos ou fazendas distantes dali por um preço, muitas vezes, cem
por cento maior. Buscavam os mercadores, ganhar tamanho dinheiro sem sair do
lugar, de uma mão para outra, e sem que qualquer risco interviesse. Assim
acabavam por acumular grossas fazendas de engenho e lavoura na própria terra
onde moravam assistentes e alguns casados.30
O autor chega a conceituar os portugueses como adeptos de transações
fraudulentas e trapaceiras ao chamá-los de bargantes, charlatões, embusteiros e
vagabundos que, se preciso fosse, choravam para haver vantagens nos negócios e
relações em que se metiam.31
No Brasil, as características do aventureiro tiveram aspectos positivos em
termos de adaptação ao meio ambiente, visto a plasticidade do colonizador e sua
capacidade de miscigenação racial que permitiram sua fixação ao meio tropical.
Pela falta dessas características o projeto colonizador holandês fracassou.
Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda caracterizava nestes termos
o fracasso da colonização holandesa. Os holandeses não se miscigenaram com a
população de cor, não se adaptaram ao clima tropical e aqui somente aportaram em
busca apenas de fortunas impossíveis, sem imaginar criar fortes raízes na terra.
Eram recrutados entre aventureiros de toda espécie, de todos os países da Europa
– “homens cansados de perseguições.”32
O bom êxito da República Holandesa como comunidade nacional tinha
alcançado tamanho grau de prosperidade na economia e na política que, para uma
30
Holanda, Sérgio Buarque de. O espírito e a letra: estudo e crítica literária, 1947-1958, organização,
introdução e notas Antônio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 642.
31
Ibidem, p. 644.
32
Ibidem, p. 56.
32
nova vida em outras colônias, “só se anunciavam, à procura de passagem, soldados
licenciados, que tinham ficado sem lar em virtude da Guerra dos Trinta Anos, [...]
pequenos artesãos, aprendizes, comerciantes(em parte judeus de ascendência
portuguesa), taberneiros, mestres-escolas, mulheres do mundo e ‘outros tipos
perdidos’.33 Até mesmo o mais famoso general da nova colônia holandesa era um
fugitivo, que fora obrigado a deixar a pátria devido as suas idéias socinianas34.
Outro fator preponderante para o fracasso holandês era o fato de que a
população
se
compunha
de
cosmopolitanos,
instáveis,
de
caráter
predominantemente urbano. Essa gente toda ia se aglomerar na capital, Recife, ou,
em uma ilha próxima. Este contexto acabava por fazer uma divisão clássica entre
colônia e cidade, entre o senhor rural e o mascate; divisão esta, que mais tarde, se
generalizou em todo o Estado de Pernambuco.
Com um Estado de colônia fraca e uma capital que era o “antro da perdição”,
os conquistadores batavos limitaram-se a erigir uma grandeza de fachada, que só
aos incautos podia mascarar a verdadeira, a dura realidade econômica na qual se
debatiam. Em tese, a inaptidão que tiveram para construir a prosperidade na terra,
nas suas bases naturais, como o fizeram os portugueses bem ou mal, foi a gota
d’água para o malogro da colonização holandesa, apesar de que alguns
antropologistas defendem que os europeus do Norte são incompatíveis com as
regiões tropicais e, que esta raça, como um todo, não tem como se adaptar a este
clima.
Ao Estado colonial holandês no Brasil também faltou o contato íntimo e
freqüente com a população de cor, não conseguiam ceder “com docilidade ao
prestígio comunicativo dos costumes, da linguagem, e das seitas dos indígenas e
Ibidem, p. 57.
Referente ao monge Socino. Os socinianos faziam parte de um grupo religioso do século XVII que
foi fundado por um monge italiano de nome Socino. Este grupo era contra o catolicismo e as religiões
reformadas e saíram da Holanda sob pressão e clima de fuga no final do século XVI e início do
século XVII.
33
34
33
negros. Não conseguiam se africanizar ou se americanizar como fosse
necessário”.35 Não bastasse, o orgulho da raça os impedia de acometer a
miscigenação. Finalmente, a capacidade e a pré-disposição para se submeterem à
mestiçagem, que não os acompanhou, a não ser esporadicamente, e que seria um
notável elemento de fixação, representou um dos maiores impeditivos para que eles
(os holandeses) pudessem construir uma pátria longe da sua. Enquanto os
naturalistas culpavam fatores climáticos e a geografia pelo fracasso, SBH mostrava
que o insucesso dos holandeses se devia aos fatores culturais envolvendo a
dificuldade das línguas nórdicas, idéias socinianas estranhas, espírito instável e
caráter predominantemente urbano. O autor cita passagens da obra de Hermann
Wätjen sobre a colonização holandesa que demonstram alguns destes fatores ao
dizer que “o exército da Companhia, que lutava em Pernambuco, constava
principalmente de alemães, franceses, ingleses, irlandeses e neerlandeses”.36 Ora,
impossível manter coesão e unificar objetivos em um grupo social formado por uma
diversidade tão grande de raças; nem no melhor clima do mundo isto seria plausível.
Ainda posto, estava o fator crença37. Não tinham eles, (os holandeses) como os
portugueses católicos, uma religião universal que os pudessem fazer se identificar
com povos de outras raças. Os holandeses tinham, de certa forma, preconceito
racial. Nesta passagem, no capítulo 2, de Raízes do Brasil, o autor faz uma
intertextualidade implícita ao fazer uma alusão ao historiador Arnold Toynbee. Uma
nova alusão volta à tona no capítulo 4 – O semeador e o ladrilhador – onde SBH
alude a Toynbee para colher informações sobre a conquista castelhana no território
da América Central.38
Ibidem, p. 60.
Hermann Wätjen, Das Holländische Kolonialreich in Brasilien (O Estado Colonial Holandês no
Brasil), Gotha ,1921, p. 240. Autor e obra que deram origem à alusão feita por SBH. Nesta obra, o
autor faz um relato da colonização holandesa no Brasil onde este ressalva que os homens e
mulheres que se anunciavam à procura de passagem para a colônia novo no Brasil eram apenas
soldados licenciados, que tinham ficado sem lar em virtude da Guerra dos Trinta Anos, os
germanorum profugi (fugitivos dos germanos) de Barlaeus, pequenos artesãos, aprendizes,
comerciantes, taberneiros, mestres-escolas, mulheres do mundo e “outros tipos perdidos”.
37
Ibidem, p. 60.
38
Nesta passagem, SBH cita o historiador inglês Arnold J. Toynbee que na obra A study of history
(Um estudo de história), I, Londres, 1935, pp 211-27, discorre sobre a tese das origens
especificamente protestantes dos modernos preconceitos raciais e das teorias racistas. Esta citação é
uma intertextualidade implícita.
35
36
34
O espírito aventureiro do português já fazia parte de sua cultura, estava
incrustada na sua alma esta vocação de conquistar novas terras, enquanto que os
holandeses “camponeses deixaram-se ficar, aferrados aos seus lares. Não os
seduzia uma aventura que tinham boas razões para supor arriscada e duvidosa” 39
Esta sim é uma questão de ordem cultural, defendido por SBH como sendo uma das
causas de malogro.
Parece ser da cultura portuguesa este gosto e abertura às mudanças e esta
facilidade em “ceder com docilidade ao prestígio comunicativo dos costumes, da
linguagem e das seitas dos indígenas e negros. Americanizava-se ou africanizavase, conforme fosse preciso. Tornava-se negro, segundo expressão consagrada da
costa da África.”40
Linguagem e língua são fatores preponderantes na cultura de um povo e se
estes fatores contribuíram com o malogro da colonização holandesa podemos dizer
que foram os fatores culturais que preconizaram esta sentença e não os fatores de
ordem climática ou geográfica como defendiam os naturalistas. E aqui está posto o
divisor de águas entre SBH e os naturalistas. Vejamos a passagem onde o nosso
autor ressalta mais uma vez este fator, incluindo ainda o fator cultural religião:
A própria língua portuguesa parece ter encontrado, em confronto com a
holandesa, disposição particularmente simpática em muitos desses homens
rudes. [...] para nossos índios, os idiomas nórdicos apresentam dificuldades
fonéticas praticamente insuperáveis, ao passo que o português, como o
castelhano, lhes é muito mais acessível[...] Os missionários protestantes,
vindos em sua companhia, logo perceberam que o uso da língua
neerlandesa na instrução religiosa prometia escasso êxito, não só entre os
africanos como entre o gentio da terra. Os pretos velhos, esses
positivamente não o aprendiam nunca. O português, ao contrário, era
perfeitamente familiar a muitos deles. A experiência demonstrou, ao cabo,
que seu emprego em sermões e prédicas dava resultados mais
compensadores. [...]
39
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras,
2006,p. 60, nota 44, que faz referência ao sociólogo alemão Hermann Wätjen,
40
Eugen Fischer, Rasse und Rassenentstehung beim Menschen(Raça e surgimento das raças nos
homens), Berlim, 1927, p. 32. Autor e obra da qual se valeu SBH para redigir a citação por nós feita.
35
Importante, além disso, é que, ao oposto do catolicismo, a religião
reformada, trazida pelos invasores, não oferecia nenhuma espécie de
excitação aos sentidos ou à imaginação dessa gente, e assim não
proporcionava nenhum terreno de transição.41
2.2.2– Semeador e ladrilhador
No capítulo IV, de Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda faz
uma oposição entre semeador e ladrilhador para caracterizar os portugueses e
espanhóis quanto aos seus sistemas de colonização. A estratégia espanhola
consistia em valorizar as cidades em detrimento aos domínios rurais. Nesta análise
feita aos moldes de Max Weber, o intertexto é explícito, porque SBH usa , aplica à
realidade brasileira o estudo aplicado pelo primeiro para mostrar como a fundação
de cidades representou, para o Oriente Próximo e, particularmente, para o mundo
helenístico e para a Roma imperial, o meio específico de criação de órgãos locais de
poder, acrescentando que o mesmo fenômeno se encontra na China, onde, ainda
durante o século passado, a subjugação das tribos miaotse pôde ser identificada à
urbanização de suas terras. E não foi sem boas razões que esses povos usaram de
semelhante recurso, pois a experiência tem demonstrado que ele é, entre todos, o
mais duradouro e eficiente. As fronteiras econômicas estabelecidas no tempo e no
espaço pelas fundações de cidades no Império Romano tornaram-se também as
fronteiras do mundo que mais tarde ostentaria a herança da cultura clássica.42
O
tipo
espanhol
caracterizado
como
ladrilhador
parece
denotar
a
preocupação com a urbanização, com os ângulos retos, com a organização,
planejamento e busca do aperfeiçoamento como aquele ladrilhador que, ao colocar
os azulejos em uma casa, busca a harmonia e perfeição na disposição das peças
com uma dedicação sagrada.
41
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 59-60.
42
Ibidem, p. 98.
36
Os espanhóis com a concepção de um ladrilhador tinham a aspiração de
dominar e ordenar o mundo conquistado. Eram adeptos do senso burocrático das
minúcias. Esta deliberação está bem clara no uso do traço retilíneo que expressa a
direção da vontade a um fim previsto e eleito.43 Dispensavam a fantasia e os
caprichos pessoais e eram muito criteriosos.
Em oposição, os portugueses formavam suas cidades como se fosse um
amontoado de construções, as ruas eram sinuosas, estreitas e sem nenhum
planejamento. Não havia critérios, nem ordenação na formação das cidades e as
casas e prédios eram construídos de forma desordenada como que as sementes
jogadas por um semeador a crescer umas amontoadas com as outras no local em
que fossem jogadas. Assim, podemos exemplificar com a cidade de Salvador, na
Bahia, que fora o maior centro urbano da colônia e que, ainda hoje, suas casas se
acham dispostas segundo o capricho dos moradores. Vejamos a observação do
autor:
A cidade que os portugueses construíram na América não é produto
mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se
enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma
providência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra
desleixo.44
Tudo parece irregular. Os portugueses não tinham ordem em suas colônias. A
liberalidade dos portugueses se assemelha à liberdade do semeador a jogar suas
sementes que caem desordenadamente. Os portugueses, sem nenhum rigor,
nenhum método, nenhuma previdência, sempre num significativo abandono
exprimem o verdadeiro desleixo como o semeador a semear em uma vasta área. A
idéia de semeador está ligada antes ao desleixo, à liberdade, às fantasias e às
facilidades e não à realidade que compõem os homens com trabalho, dedicação e
organização como o faz um ladrilhador. 45
Ibidem, p. 99.
Ibidem, p. 115.
45
Ibidem, p. 123.
43
44
37
Por acreditar que a concentração das povoações à margem do oceano
facilitaria o escoamento das riquezas para Portugal e pela predominância de seu
caráter de exploração comercial, nos moldes da colonização na Antigüidade
clássica, os portugueses preferiram edificar seus centros e cidades na orla
marítima.
Fomentar a colonização portuguesa na costa e ter como objetivo apenas a
busca de riquezas definiu os traços que marcaram o jeito português de povoar
novas terras. SBH, nos deixa este fato muito claro na seguinte passagem:
[...] os verdadeiros interesses do Estado: seu fim fora não somente
evitar as guerras, mas também fomentar a povoação da costa; [...] não
ignorava que d. João III tinha mandado fundar colônias em país tão remoto
com o intuito de retirar proveitos para o Estado, mediante a exportação de
gêneros de procedência brasileira: sabia que os gêneros produzidos junto
ao mar podiam conduzir-se facilmente à Europa e que os do sertão, pelo
contrário, demoravam a chegar aos portos onde fossem embarcados e, se
chegassem, seria com tais despesas, que aos lavradores “não faria conta
largá-los pelo preço por que se vendessem os da marinha”.46
Podemos citar, entre tantas, outra passagem que mostra a intervenção
enérgica de Portugal nos negócios menos dirigida a edificar alguma coisa de
permanente do que a absorver tudo quanto lhe fosse de imediato proveito. Estava
nos portugueses cravada a crença de que relevante só eram as forças econômicas
mobilizadas no sentido que lhes pudessem desfrutar, sem maior trabalho, os
benefícios.
O tipo desleixado que se configurava num traço cultural forte no perfil do
colonizador português parece ter um fundo religioso. Observemos o que diz SBH
nesta passagem:
A ordem que aceita não é a que compõem os homens com trabalho,
mas a que fazem com desleixo e certa liberdade; a ordem do semeador,
não a do ladrilhador. É também a ordem em que estão postas as coisas
divinas e naturais pois que, já o dizia Antônio Vieira, se as estrelas estão em
46
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p.120.
38
ordem, “he ordem que faz influência, não he ordem que faça lavor. Não fez
Deus o Céu em xadrez de estrelas [...]”.47
Nesta passagem, Buarque de Holanda faz uma intertextualidade explícita
com o célebre “Sermão da Sexagésima” pronunciado em 1655 na capela real, em
Lisboa, onde lembrou Antônio Vieira que o pregar é em tudo comparável ao
semear, ‘porque o semear he hua arte que tem mays de natureza que de arte; caya
onde cahir’.48 Pensamento cujas raízes parecem mergulhar no velho naturalismo
português.
Padre Manoel da Nóbrega, em carta no ano de 1552, já dizia que “de lá
quantos vieram, nenhum tem amor a esta terra, todos querem fazer em seu
proveito, ainda que seja a custa da terra, porque esperam de se ir”. Os
colonizadores que para cá vieram não se desligavam de sua terra-mãe, tinham o
pensamento voltado para a Europa. Não lhes perseguia a pensamento de edificar,
permanecer, favorecer e se afeiçoar, mas sim, para aproveitarem-se de qualquer
maneira daquilo que puderem. Este senso de mercantilismo e certa urgência em
partir parece justificar o culto que tinham por aglomerarem-se na costa.
Se para os portugueses o mar era a referência e o escudo, para os espanhóis
o mar certamente não existia, salvo como um obstáculo a vencer. Nem existiam as
terras do litoral, a não ser como acesso para o interior. Estava impregnado em suas
almas o desejo de cultivar as terras frias e nelas construir seus espaços de vida. A
maior amenidade do clima nos altiplanos atraía os espanhóis e foi neles que
edificaram as primeiras construções. As cidades de México, Guatemala, Bogotá e
Quito são exemplo de seus principais centros de colonização. As altitudes
permitiam aos europeus desfrutar de um clima semelhante ao que lhes era habitual
em seu país. Acreditavam que os lugares marítimos ofereciam perigos por não
serem tão sadios e por abrigarem corsários, porque as gentes desses lugares não
se dedicam em lavrar e cultivar a terra e lá são escassos os bons costumes.
47
Ibidem, p.122.
Padre Antônio Vieira, Sermoens, I ª parte, Lisboa, 1679, fl. 41. Citação feita também em “Notas ao
capítulo 4”, “ 4. Natureza e arte” na obra HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição
Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 148.
48
39
Os castelhanos, adeptos do conhecimento e da pesquisa, tratavam logo de
instalar universidades em suas áreas conquistadas. Criaram grandes universidades
como a de São Marcos, em Lima.
Tinham eles o instinto do ensino superior e era esta uma das faces da
colonização espanhola que serve para ilustrar a vontade criadora que os animava e
que marcava sua cultura.
Eram mais estáveis e as boas intenções tinham triunfo
neles. A razão abstrata e não a rotina era o princípio que norteava os espanhóis. Ao
contrário dos portugueses que construíram cidades na América que não se poderia
considerar um produto mental, sem nenhum rigor, nenhum método, nenhuma
providência, sempre num significativo abandono que exprimia a palavra “desleixo”,
carregavam os espanhóis em sua personalidade o desejo de edificar algo
permanente e que pudesse exprimir seu senso de organização, razão, zelo e
planejamento. Algo que poderia retratar seu toque de “ladrilhador”. Um zelo
minucioso e previdente dirigiu a fundação das cidades espanholas na América.
Suas cidades eram um ato definido da vontade humana, segundo SBH49 “as ruas
não se deixam modelar pela sinuosidade e pelas asperezas do solo; impõe-lhes
antes o acento voluntário da linha reta”. Este tino parece ser o “triunfo de ordenar e
dominar o mundo conquistado”.
A vontade normativa aprendida pela prática assídua – “vendo, tratando,
pelejando” - e não pela fantasia – “sonhando, imaginando ou estudando” aspirava à
unidade das partes, à uniformidade e à simetria. “O traço retilíneo, em que se
exprime a direção da vontade a um fim previsto e eleito, manifesta bem esta
deliberação”. 50
2.2.3 - Um questionamento à dicotomia
Ibidem, p. 98.
O zelo urbanístico e a cidade como centro de dominação acrescido do triunfo da linha reta parecem
ser características fortes dos espanhóis que marcam o tipo sociológico “ladrilhador”.
49
50
40
Para explicar a origem da sociedade brasileira e para diferenciar as
características psíquicas entre os portugueses e espanhóis, Sérgio Buarque de
Holanda usa, entre outros, duas categorias sociológicas de características opostas
chamadas “semeador” e “ladrilhador” para caracterizar os portugueses e espanhóis
quanto aos seus sistemas de colonização e características.
SBH usa a figura do ladrilhador para caracterizar os colonizadores espanhóis
e suas características psíquicas que orientavam para a preocupação com a
urbanização, com o planejamento, com os ângulos retos, com a organização e
busca do aperfeiçoamento. Com o zelo e perfeição de um ladrilhador a colocar os
ladrilhos em sua obra, os espanhóis tinham a aspiração de dominar e organizar os
espaços que conquistavam. Eles eram minuciosos e tinham grande apego à
burocracia. O uso da linha reta parecia expressar a direção e a vontade deles para
um fim previsto e eleito. Pareciam ser racionais, criteriosos,realistas e impessoais.
Até ai tudo bem, não houvesse a postura respeitada de outro sociólogo que
comprova não ser o bandeirante um exclusivo descendente luso e o espanhol não
ser tão ladrilhador como demonstra SBH. Na obra Marcha para Oeste, Cassiano
Ricardo, comprova que muitos líderes bandeirantes eram de estirpe espanhola, ao
dizer que “Espinosa, que realiza a primeira expedição ao ouro (1553) partindo de
Porto Seguro, é também outro grande “língua” e - como Anchieta e Navarro, é
também espanhol.”51
Para associar a característica espanhola vinculada e marcada na bandeira o
autor demonstra até a ligação mitológica e mística que há entre estes, vejamos:
Só um espanhol e não um português podia ter escrito D. Quixote de
La Mancha - tão característica é a cultura espanhola e tão diferente da de
Portugal. E o bandeirante andejo, correndo atrás dos mitos, tem muito de D.
Quixote – no sentido nobilitante da palavra – que trocasse os moinhos de
vento pelo gosto de vencer os monstros de fábula.
[...]
51
Ricardo, Cassiano. Marcha para Oeste. (A influência da “Bandeira na formação social e
política do Brasil). Vol. II. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade de São Paulo, Livraria José
Olímpio Editora, 1970, p. 422.
41
O bandeirante sofre dessa mesma “hipertrofia da dimensão” que
caracteriza o espanhol – e daí, também pelo seu contacto com o mundo
fantasmagórico do primitivo – lhe nasce o amor pelo fantástico.52
Tão forte é o espírito espanhol do bandeirante que cada vez que este
desanda para a epopéia, recorre ao idioma castelhano. Emenda o autor dizendo que
o maior criador de mitos no bandeirismo, foi justamente um mameluco híbrido de
espanhol, o Anhanqüera.
Cassiano Ricardo diz que as características psíquicas dos bandeirantes são
um jogo de forças psicossociais entre espanhóis e portugueses ao resumir suas
idéias na seguinte passagem:
Em resumo: no jogo das forças psicossociais que explicam o
fenômeno bandeirante não tem dúvida que a contribuição do espanhol,
“rude e fantástico como todo filho do deserto” de mistura com a do
selvagem, “mergulhado no seu mundo fantasmagórico”, é decisiva.
Alvitrada a possibilidade dólico-loura por Oliveira Viana, ou a
possibilidade semita por outros, as pesquisam provam que não; o fenômeno
tem muito de espanhol e indígena; nada tem de dólico-louro, ou algo
apenas de semita.53
Desta forma vamos percebendo que as bandeiras não eram exclusivamente
formadas por portugueses e seus descendentes, mas, que em dose significativa
continham a presença da raça espanhola. Notamos que ambas as etnias se
confundiam no contexto do bandeirismo e isso nos mostra Cassiano Ricardo na
seguinte passagem:
A pouca ou nenhuma crueldade do bandeirante hispanodescendente, em confronto com a crueldade viva e dramática do
conquistador espanhol, poderia explicar-se por um jôgo cordial de relações
entre o grupo e o quadro físico em que se desenrola a sua ação, quando
não se explicasse, como parece mais lógico, pela contribuição portuguêsa
na bandeira, visto com a inocência, o lirismo e o idealismo sentimental
português representam virtudes de extraordinária eficácia no jogo das
forças psicossociais que caracterizam o fenômeno bandeirante.
A contribuição portuguesa, será, pois, a mais bela de todas,
embora a “menos bandeirante”; isto é, a que menos terá influído no
dinamismo do grupo em marcha.
Ibidem, p. 422-423.
Ibidem, p. 424.
52
53
42
Então, se o homem de etnia hispânica era característico no contexto do
bandeirismo não podemos afirmar que ele pertence exclusivamente à realidade que
compõem os homens com trabalho, dedicação e organização como o faz um
ladrilhador, ou seja, o espanhol não é assim tão ladrilhador como defende Sérgio
Buarque de Holanda.
A busca do conhecimento e a peculiaridade em instalar universidades nas
terras que conquistavam, marcando o instinto do ensino superior e da pesquisa que
tinham os espanhóis, parece não se adequar à realidade destes no Brasil. Ser
estáveis, ter boa intenção e seguir os princípios da razão abstrata parece não
combinar com estes espanhóis que fizeram do bandeirismo o berço de suas vidas.
Então, não caberia a teoria de SBH sobre a cultura e características dos espanhóis,
ao menos, dentro do contexto da formação da sociedade brasileira.
A rotina dos bandeirantes parecia ser de uma busca incerta, de uma
conquista fácil, da ausência de planejamento e da concepção da linha reta. A
finalidade prevista e eleita parece não ser a característica forte que tiveram as
bandeiras. Assim, a característica espanhola da seguinte passagem parece estar
equivocada ao dizer que vontade normativa aprendida pela prática assídua –
“vendo, tratando, pelejando” - e não pela fantasia – “sonhando, imaginando ou
estudando” aspirava à unidade das partes, à uniformidade e à simetria. Errado
também estaria a seguinte afirmação: “O traço retilíneo, em que se exprime a
direção da vontade a um fim previsto e eleito, manifesta bem esta deliberação”.54
Marcha para Oeste é a obra de Cassiano Ricardo que contém significativos
estudos sobre a formação da sociedade brasileira e foi publicado em 1940, apenas
quatro anos após Raízes do Brasil e que mereceu do crítico americano Percy Alvin
54
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 88.
43
Martin a seguinte opinião: ‘Todos os estudos que já se fizeram sôbre o assunto
ficam, definitivamente, seus devedores.’ 55
2.2.4 - O Homem cordial
Sérgio Buarque de Holanda, ao referir-se a esse tipo do “homem cordial”
remete à Mitologia Grega, mais precisamente, ao conflito entre Antígona e Creonte
no intuito de marcar bem o antagonismo existente entre família e Estado. São duas
realidades que pertencem a ordens diferentes em essência, pois o Estado nasceu
justamente da transgressão da ordem familiar e doméstica. Existe uma
incompatibilidade fundamental entre os dois princípios; o Estado se rege pela
impessoalidade e a família por relações pessoais e interpessoais. Creonte marca
esta verticalização ao encarnar a noção abstrata, impessoal da Cidade em luta
contra essa realidade concreta e tangível que é a família. “Antígona, sepultando
Polinice contra as ordenações do Estado, atrai sobre si a cólera do irmão, que não
age em nome de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade geral dos cidadãos,
da pátria”56
Na tragédia de Sófocles, Creonte segue a abstração e a impessoalidade que
deve ter o Estado para resolver um conflito de normas. Em Antígona, é clara a
oposição entre a lei da família e a do Estado. Esta alusão à tragédia de Sófocles se
caracteriza como uma intertextualidade implícita.
No Brasil, o Estado e a família têm se misturado pelo predomínio constante
das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos
55
RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste. (A influência da “Bandeira na formação social e
política do Brasil). Vol. I. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade de São Paulo, Livraria José
Olímpio Editora, 1970. Citação extraída da Nota da Editora – Dados bibliográficos do autor, p. xviii.
56
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 154.
44
fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal, vejamos o que diz o
autor:
Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu
com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos
decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar - a
esfera por excelência dos chamados “contatos primários”, dos laços de
sangue e de coração – está em que as relações que se criam na vida
doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer
composição social entre nós.57
Este contexto serviu de incubadora para o “homem cordial” de extrema polidez,
hospitalidade, generosidade, traços que definem, segundo Sérgio Buarque, o
caráter brasileiro. O homem cordial dá preeminência às relações familiares em
detrimento às relações abstratas e impessoais. Característica que tem todas as
influências do convívio humano rural e patriarcal fundado numa emoção rica e
transbordante. Até nas relações comerciais exigimos relações familiares. Em muitos
casos para se conquistar um freguês é necessário fazer dele antes um amigo.58 Esta
forma de culto tem origem na península Ibérica.
O “homem cordial” - dos laços de sangue e coração – é preso às relações
que se criam na vida doméstica e tem dificuldade, ao deter posições públicas de
responsabilidade, em compreender a distinção fundamental entre os domínios do
privado e do público. Esta característica o remete ao “patrimonialismo” e lhe deixa
faltar a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida do Estado burocrático.
A característica “patrimonial” dos funcionários públicos no Brasil parece estar
explícita no “predomínio constante das vontades particulares que encontram seu
ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação
impessoal”.
Com este perfil, se confirma a feliz expressão, segundo SBH, “que a
contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o
“homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão
57
Ibidem, p.160.
Ibidem, p. 163.
58
45
gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço
definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e
fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio
rural e patriarcal”.59
O conceito contemporâneo de “homem cordial” de Sérgio Buarque de
Holanda, definido no livro “Raízes do Brasil”, de 1936, não é o de alguém pacífico e
cheio de bonomia, mas antes de alguém que prefere as ações íntimas, diretas,
regidas por critérios pessoais, muitas vezes extensão da família, em lugar das mais
complexas como as determinadas entre o cidadão e o Estado. Dentro deste viés,
podemos entender que a “cordialidade” brasileira, por um lado significa acolhimento
caloroso do grupo, e, por outro, em questões de contrariedade, a reação violenta e
excludente do adversário. Em notas ao capítulo 5, em Raízes do Brasil, SBH bem
define esta situação:
Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a
todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas
e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem
pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do
coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado.
Pertencem, efetivamente, para recorrer a termo consagrado pela moderna
sociologia, ao domínio dos "grupos primários”, cuja unidade, segundo
observa o próprio elaborador do conceito, “não é somente de harmonia e
amor”.60
O “tipo” homem brasileiro forjado por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes
do Brasil, homem do coração, onde tudo parece ser familiar, este perfil que
confunde domínio público e privado, que potencializa as relações pessoais e o
compadrio parece recair sistematicamente em todos nós. Esta é a conclusão que
nos passa o professor, tradutor e crítico literário, Lawrence Flores Pereira, em seu
artigo publicado no Caderno Cultura, do Jornal Zero Hora, do dia 27 de maio de
2006. A matéria refere-se ao livro Drummond Cordial, escrito pelo jornalista
Jerônimo Teixeira, crítico literário da revista Veja e ex-editor do Cultura. O jornalista
aponta os traços de cordialidade presente no famoso escritor, segundo a já clássica
59
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 160.
60
Ibidem, p. 219.
46
definição de Sérgio Buarque de Holanda. Tanto na poesia como na postura do autor
mineiro aparecem as características do “tipo sociológico” que emplaca aquele perfil
brasileiro.
Este homem cordial que é resquício da civilização familiar, dos clãs, ainda se
perpetua na sociedade brasileira. O poeta Drummond, como homem cordial, só
consegue fazer-se poeta social cantando a família. O crítico tira esta conclusão ao
analisar os poemas de Drummond, em um deles, o poema de sete faces(1930) há
um espontaneísmo que apresenta o coração do poeta como mais vasto que o
mundo, vejamos:
Poema de sete faces
Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.
O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.
O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode,
Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.
Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.
47
Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.
Em Drummond, a individualidade autoreferente e emocional é
equiparada a uma “pessoalidade” cordial e horror à formalidade. O crítico cita, para
consumar o perfil cordial de Drummond, uma passagem onde o poeta e escritor
rompe com a Revista de Antropofagia de Oswald de Andrade, afirmando, em defesa
de seu amigo Mário de Andrade que “para mim toda a literatura não vale uma boa
amizade.” Nas cartas que escrevia para o amigo Mário de Andrade, Drummond já
fazia referências quanto ao valor por ele atribuído às relações pessoais de afeto e
amizade. Isto, podemos perceber na passagem em que ele diz que
“este
prolongamento da relação intelectual em relação afetiva é das coisas mais lindas
que a literatura pode oferecer.”61 Com isto posto, nós podemos afirmar que aí está
estampado o “tipo” que identifica e que faz a caricatura do homem do Brasil. Aquele
que lança a emoção em tudo que faz e principalmente nas suas relações. O perfil
cordial que torna tudo íntimo, familiar e particular.
Tanta cordialidade e laços
afetivos tinha Drummond com seus amigos que foi um dos poucos que permaneceu
no governo por ocasião do golpe do Estado Novo. O figurão descrito por Sérgio
Buarque de Holanda se ocultava sob
a suposta impessoalidade burocrática, e,
protegida pela relação de amizade que tinha com seu amigo Capanema,
permaneceu no seu posto demonstrando, assim, que as relações de amizade que
mantinha com aquele antecederia qualquer consideração política ou moral.
Dias mais, dias menos, a imprensa, os estudiosos e até alguns brasileiros
comuns referem-se à figura do “homem cordial” porque, afinal, é esta figura a chave
para o entendimento da personalidade do brasileiro. Recentemente, com o evento
dos ataques coordenados pela organização criminosa, Primeiro Comando da
Capital, do estado de São Paulo, que deixou a mais populosa cidade do País em
pânico, feriu de forma nunca vista os símbolos da autoridade do Estado no Brasil e
61
PEREIRA, Lawrence Flores. O discreto charme do funcionário público. Jornal Zero Hora –
Edição Caderno Cultura – Sábado, 27 de maio de 2006.
48
deixou um saldo de mais de uma centena de suspeitos mortos, trouxe de forma
incisiva, para a pauta dos debates, a questão da segurança pública, dividindo a
opinião pública entre os que aprovam a reação típica de guerra urbana e os que
preferem alternativas mais amenas. O ocorrido que se configura num conflito de
poder, segundo o sociólogo e professor José Vicente Tavares dos Santos, líder do
grupo de estudos sobre Violência e Cidadania ligado ao Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da UFRGS, pode estar associado à revolta e ao terrorismo
nacionalista à antiga, que passa a considerar a causa mais válida que a própria vida
e vê aí uma perspectiva de certa dignidade heróica. Esta indoutrinação pode ser o
lastro do terror moderno, conforme as palavras de Kathrin Rosenfield, filósofa e
professora da UFRGS.
Dentro desta perspectiva, e por uma necessidade de dar uma resposta ao
crime organizado, muitos, levados pelo traço passional e íntimo que o brasileiro
costuma associar à vida pública – o que Sérgio Buarque de Holanda conceituou
como a característica “cordial” do brasileiro, que não se confunde com a
característica “cordata”(afável e amistoso) – aprovam uma declaração de guerra
aberta.
Tão contemporâneo é o “homem cordial” que quase semanalmente vemos
em discussão esta tão emblemática e complexa característica que move multidões e
define atos, relações e fatos em meio à sociedade brasileira.
2.2.5 – “El hombre cordial”
Parece muito relevante a afirmação de Kristeva62 quando diz que “todo texto
se constrói como um mosáico de citações, todo texto é absorção e transformação de
um outro texto”, ou seja, faz a retomada explícita de textos históricos ou literários
62
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução Lúcia Helena França Ferraz. 2ª ed. São
Paulo: Perspectiva, 2005, p. 68
49
situados em tempo e espaço determinados. Isso significa que textos lidos ou
escritos por nós anteriormente estão em constante interação, em constante diálogo
com outras construções textuais. Esta retomada explícita, que chamamos
intertextualidade, aparece no conceito de “homerm cordial”, visto que este já foi
usado antes do ensaio de SBH. Na concepção do leitor, o autor de Raízes do Brasil,
recebe inteiramente o bônus de criador, autor desta matriz que desenha o perfil do
homem brasileiro. Equívoco, porque Sérgio Buarque de Holanda tem apenas
adornado, ou até mesmo, deturpado, desviado, reformulado e, em meio a discussão,
se credenciado a ser o pai de o “homem cordial” que fora originalmente posto em
discussão no meio literário por Rui Ribeiro Couto63 que, já, em 07 de março de 1931,
apresentou um artigo em forma de tese sobre esse conceito. Este texto, no qual
aparece pela primeira vez o conceito de “homem cordial”, foi publicado na Revista
do Brasil, nº 6, com o sugestivo título de El hombre cordial, producto americano e
defendia que
o verdadeiro americanismo repele a idéia de um indianismo, de um
purismo étnico local, de um primitivismo, mas chama a contribuição das
raças primitivas ao homem ibérico; [...] É da fusão do homem ibérico com a
terra nova e as raças primitivas que deve sair o ‘sentido americano’ (latino),
a raça nova, produto de uma cultura e de uma intuição virgem, o homem
cordial. Nossa América, a meu ver, está dando ao mundo isto: o homem
cordial. [...] a família dos homens cordiais, esses que se distinguem do resto
da humanidade por duas características essencialmente americanas: o
espírito hospitaleiro e a tendência à credulidade.64
Portanto, em 1936, SBH apenas delimitava o território do homem cordial e
polemizava sobre esse conceito. Para nosso estudo, relevante já é a identificação
da intertextualidade, que aqui é literal, e isto o próprio SBH já a reconhece em sua
carta a Cassiano Ricardo65 quando, ao falar sobre o termo “cordial” diz que “se dela
me apropriei foi na falta de melhor”. Tanto usou a palavra de outrem porque nem
uma que a substituisse encontrou. SBH se apoderou do conceito que Rui Ribeiro
Escritor e criador do conceito de “homem cordial” modificado mais tarde por SBH.
63
64
COUTO, Rui Ribeiro. El hombre cordial, producto americano. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de.
Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia
Moritz Schwarcsz. Ed. ver. – São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 397.
65
Cassiano Ricardo. Carta de Sérgio Buarque de Holanda a Cassiano Ricardo. São Paulo, setembro
de 1948.
50
Couto criou e ainda o quis modificar. Parece-nos que o conceito deste serviu de
hipotexto para a nova conceituação que aquele deu ao “homem cordial”. O que SBH
fez foi olhar com olhos novos aquele conceito existente. Seu ato foi assimilar um
velho texto com uma nova disponibilidade critica.
O poeta modernista, Cassiano Ricardo, escreveu uma carta, em julho de
1948, para SBH, fazendo algumas considerações a respeito do “homem cordial” e
questionando aquele conceito baseado-se só no sentido etimológico da palavra e
desconsiderando o sentido atual da palavra, no sistema da língua, que é para a
sócio-lingüística e a pragmática o único que interessa na fixação do significado dos
conceitos. Cassiano Ricardo refere-se às contribuições de SBH que tinha afirmado
na primeira edição de Raízes do Brasil que “cordial” referia-se às virtudes gabadas
por estrangeiros que nos visitam. Não só aos sentimentos de concórdia como até a
generosidade, lhaneza no trato e hospitalidade; e dava esses atributos como o ‘traço
definido’ do caráter do brasileiro” e na edição subseqüente acha que no conceito
cordial “cabem a inimizade e outros sentimentos que não sejam obrigatoriamente os
de concórdia, ou provenientes dessa ética de fundo emotivo”.
66
Ora, como quer,
SBH, dizer que cordialidade pode ser ao mesmo tempo amizade e inimizade,
argumenta Cassiano Ricardo, se o termo é usado no sentido de homem bom,
benevolente e polido? Se este conceito tiver o seu significado dado apenas pela
etimologia então não poderá responder pela imagem apenas dos brasileiros, pois se
aplica a todos os homens. Segundo Cassiano Ricardo,
Cordial, com quer Sérgio, é aplicável a todos os seres humanos, pois que
não há notícia de grupo estudado por etnólogos que se tivessem mostrado
incapazes de desenvolver cordialidade, no sentido etimológico, incluindo-se
nela sentimentos e atitudes de amizade, inimizade e hostilidade.67
Cassiano Ricardo reforça sua opinião dizendo, ainda:
O pior, porém, é que, pretendendo explicar a palavra, Sérgio alterou,
descaracterizou o nosso “homem cordial”.
Citação extraída da carta de Cassiano Ricardo a SBH, em julho de 1948, com o título de Variações
sobre o “homem cordial”, p. 369.
67
Ibidem, p. 373.
66
51
Desde que a ‘inimizade bem pode ser tão cordial quanto a amizade
(nisto que uma e outra nascem do coração)’, o que se conclui é que
estamos diante de um fenômeno universal e não específico do brasileiro. Já
não é o Brasil quem oferece ao mundo o homem cordial, como contribuição
específicamente sua, representativa daquelas virtudes – lhaneza no trato,
generosidade, etc.. - tão gabadas por estrangeiros que nos visitam. Estarão
compreendidos na sua definição os homens de todas as latitudes; todos os
seres que através da interação com os seus semelhantes desenvolveram
natureza humana...68
Diz, ainda, Ricardo, que “o que identifica o brasileiro não é o inimigo cordial. É o não
ter capacidade para ser inimigo, cordial ou não. Ao referir-se, finalmente, àquela
carta que escrevera a SBH, ele observa que “homem bom” não significa elogio e
que o que ele pretendeu foi
apenas demonstrar que o conteúdo específico da expressão “homem
cordial” calhava melhor em homem bom ou bom homem – denominação
mais modesta e ... legal. Isto é, mais expressiva da bondade típica do
brasileiro do que “homem cordial”, que de duas uma: ou serve para indicar
atos do coração, inclusive inimizade, etc., e neste caso tanto se aplica ao
brasileiro como ao português, ao italiano, etc., deixando de ser a nossa
contribuição específica para a cultura do mundo; ou representa apenas a
fácies do brasileiro, quer dizer justamente o contrário do que o brasileiro é,
ou seja, quer dizer polido, convencional, ritual, educado, cortês, amável,
diplomático, mundano, gentil, galanteador, formalista, simulador ou
dissimulador, menos... homem de coração.69
Para as considerações finais nos basta, apenas, apontar o intertexto
reconhecido pelo próprio autor de Raízes do Brasil,
ao responder a carta que
recebera de Cassiano Ricardo70, quando replicou:
Agora peço licença para voltar um pouco ao homem cordial.
Quando na primeira edição de meu livro recorri à expressão, já empregada,
antes de mim, pelo nosso amigo Ribeiro Couto, estava implícito nas minhas
palavras tudo quanto a respeito seria dito na nota de segunda edição que
deu motivo ao seu(carta de Cassiano Ricardo) artigo. 71
No entendimento que podemos ter, notamos aqui que SBH se apropriou de um
conceito alheio tentando modificá-lo e adorná-lo. Na sua resposta à Cassiano
Ibidem, P. 375.
Ibidem, p. 391.
70
Carta resposta de SBH para Cassiano Ricardo, em setembro de 1948,j São Paulo. Publicada na
revista Colégio, nº 3, daquele ano.
71
Ibidem, p. 394.
68
69
52
Ricardo, SBH se justifica dizendo ter feito apenas uma ampliação do conceito de
Ribeiro Couto, assim se manifestando:
Não precisarei recorrer ao dicionário para lembrar que essa palavra –
cordial -, em seu verdadeiro sentido, e não apenas no sentido etimológico,
como v. quer presumir, se relaciona a coração e exprime justamente o que
eu pretendi dizer. Como além disse se acreditou, mal ou bem, que o
coração é sede dos sentimentos, e não apenas dos bons sentimentos,
minha nova explicação, ao lembrar que a inimizade “bem pode ser tão
cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração”, seria
se v. quiser, uma ampliação, não seria uma retratação. [...] Os seus dois
sentidos a que aludi coexistiram sempre, ao que eu saiba. E não apenas no
Brasil.72
Ibidem, p. 395.
72
53
2.2.5.1 - Intertextualidade implícita
Justamente no conceito do “homem cordial” encontramos um caso de
intertextualidade explícita envolvendo a obra Raízes do Brasil. Parece interessante o
fato de SBH não citar o escritor Ribeiro Couto mesmo tendo admitido ser Ribeiro
Couto o autor daquele. Esta omissão prova-se com base no ensaio Corpo e alma do
Brasil que é uma espécie de síntese do que seria o livro Raízes do Brasil. Publicado
na revista espelho, no Rio de Janeiro, em março de 1935, dirigida por Américo Facó,
e com o subtítulo “Ensaio de psicologia social”. Corpo e alma do Brasil revelava as
hesitações de SBH, que a essa altura ainda não havia escolhido o título da obra.
Sua dúvida pairava entre escrever como título Teoria da América ou Corpo e Alma
do Brasil. Naquele ensaio, que no espelho dera origem a obra Raízes do Brasil,
Buarque de Holanda faz alusão a Ribeiro Couto, o que não acontece na versão
definitiva da obra, observemos:
O SR. RIBEIRO COUTO teve uma fórmula feliz, quando disse que a
contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao
mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a
generosidade, virtudes tão gabadas pelos estrangeiros que nos visitam,
formam um aspecto bem definido do caráter nacional.73
O reconhecido crédito a Ribeiro Couto, que SBH negou na sua obra definitiva,
faz com que se configure em Raízes do Brasil aquela ocorrência que Genette chama
de paratextualidade: a segunda categoria de transtextualidade que é geralmente a
relação menos explícita e mais distanciada que o texto mantém com seu paratexto,
como o uso de um título, subtítulo, prefácios, notas de rodapé ou referência mais
distante, mas podendo, também, ter um viés imitativo. Em, não havendo a citação a
73
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Corpo e alma do Brasil. Rio de Janeiro, março de 1935. Ensaio do
que seria o livro Raízes do Brasil. In: Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. Rev. – São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
54
transtextualidade é implícita; em havendo é explícita. Neste caso, apenas a nota de
rodapé (nota 6. Capítulo 5) faz a referência e caracteriza a paratextualidade.
55
3
SÉRGIO
BUARQUE
DE
HOLANDA
E
SUA RELAÇÃO
COM
SEUS
ANTECESSORES E CONTEMPORÂNEOS
As obras de SBH têm um ângulo especialmente fecundo que se reporta aos
tempos coloniais, na dimensão da vida material. O seu conjunto de ensaios e
monografias marcam a passagem da sociologia para a história enfatizando sempre
uma grande variedade de temas e momentos em suas obras. Possui extraordinária
riqueza e contribuição possuindo uma visão de unidade que é persistente e quase
obsessiva na indagação do mesmo objeto quanto à questão de sermos “desterrados
em nossa própria terra.” O autor sonda aí as estruturas mais profundas de nosso
modo de ser para visualizar as possibilidades de modernização que nos reserva o
futuro. Nesta trajetória se detém e estuda os aspectos da vida material, da terra, do
clima e do meio geográfico. Nestas relações de estudos, comparações e análises
seguidamente SBH correlaciona fatos históricos ou sociológicos. O autor que
acredita no tipo historiador ideal, erudito e ao mesmo tempo compreensivo,
investigador e também pensador, cheio de humildade e cheio de lúcido
discernimento; um historiador cheio de material documentário, com rigor crítico, mas
sem rancor dogmático.74
Fernando Novais ao fazer o prefácio de Caminhos e Fronteiras já deixa claro
a incidência de fatores de intertextualidade entre as obras de SBH ao dizer que esta
obra tem relações com Monções que é retomado e alargado em Caminhos e
Fronteiras. Deixa claro a questão que envolve os naturalistas ao estudar a vida
material. Ao falar sobre a obra Caminhos e Fronteiras, Sérgio Buarque de Holanda,
já aborda
situações surgidas do contato entre uma população adventícia e os antigos
naturais da terra com a subseqüente adoção, por aquela, de certos padrões
de conduta e, ainda mais, de utensílios e técnicas próprios dos últimos. A
HOLANDA, Sérgio Buarque de. O espírito e a letra: estudo e crítica literária, 1947-1958,
organização, introdução e notas Antônio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.
236.
74
56
acentuação maior dos aspectos da vida material não se funda, aqui, em
preferências particulares do autor por esses aspectos, mas em sua
convicção de que neles o colono e seu descendente imediato se mostraram
muito mais acessíveis a manifestações divergentes da tradição européia do
que, por exemplo, no que se refere às instituições e sobretudo à vida social
e familiar em que procuraram reter, tanto quanto possível, seu legado
ancestral. 75
Estas passagens e tantas outras da obra, que ainda falam das técnicas rurais e da
herança indígena parecem denotar uma ligação do autor com as questões da vida
material.
3.1 - Os Naturalistas
Marcados por uma apego quase excessivo aos fatores ligados à raça,
importância do clima e meio geográfico, os naturalistas não priorizavam fatores
culturais na explicação da realidade brasileira. No Brasil, podemos citar Euclides da
Cunha como um dos escritores de concepção naturalista mais acentuda, cuja obra,
Os sertões, se configura como o grande expoente literário dessa concepção. Os
pensadores Alberto Torres e Oliveira Vianna representavam muito bem esta
corrente na explicação da evolução de uma sociedade, respectivamente, com as
obras O problema nacional brasileiro e Raça e assimilição
SBH atacava sempre as teses defendidas pelos antropologistas76 de sua
época que potencializavam o clima, o meio ambiente, a geografia, a raça; enquanto
tinha e defendia uma concepção culturalista acreditando que a cultura e não a
natureza é determinante para a interpretação de uma sociedade. No seu estudo da
realidade brasileira colocava como causa principal na formação de nossa sociedade
a predominância das características da cultura ibérica, mais precisamente da cultura
portuguesa. SBH se opôs à concepção naturalista encontrada na obra Os sertões,
75
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras,
1994, p. 12.
76
Dentre eles podemos citar os escritores de concepção naturalista Hermann Wätjen e Eugen
Fischer.
57
de Euclides da Cunha, nas obras O problema nacional brasileiro de Alberto Torres e
Aspectos da história e da cultura do Brasil, Raça e assimilação e a Evolução do
povo brasileiro, de Oliveira Vianna. Aqui temos então um caso de intertextualidade
implícita: a alusão às obras da geração de autores naturalistas que analisaram a
realidade brasileira.
3.2 – Euclides da Cunha
Militar, engenheiro e professor, Euclides da Cunha foi um estudioso dos
caracteres morais das raças. Enquanto engenheiro, estudou etnologia que usaria
mais tarde na obra Os Sertões na qual o autor trabalha a questão da mestiçagem e
a influência do meio na luta dos jagunços contra o exército da república, tentando
explicar, assim, a resistência heróica dos sertanejos às tropas tão mais numerosas e
mais equipadas. Podemos notar seu enfoque naturalista ao analisar a cadeia lógica
que construiu para consagrar suas idéias começando pelo reconhecimento da
estrutura do solo e do clima, passando depois aos acidentes do solo, às variações
do clima para estender-se às formas do ser vivo: a flora, a fauna e o homem.
Estudou os tipos brasileiros levando em consideração os fatores naturais
como a interação entre homem e natureza, raça e sociedade e acreditando que sua
anatomia e fisiologia se devem tanto à herança quanto a seculares esforços de
adaptação ao meio e aos outros organismos. O fato de considerar o meio; o espaço
onde se dá a evolução marca a característica naturalista que esteve presente na
obra de Euclides da Cunha. Construía ele sempre a noção do indivíduo como
condensação extrema do meio social que, por sua vez, se explicara a partir da raça
e das condições geográficas.
Na seguinte passagem, podemos notoriamente observar o enlace, que faz o
autor, do homem com o clima e a geografia atentando para os detalhes do relevo:
58
O caráter das rochas, exposto nas abas do cerros de quartezito, ou nas
grimpas em que se empilham as placas do itacolomito avassalando as
alturas, aviva todos os acidentes, desde os maciços que vão de Ouro
Branco a Sabará, à zona diamantina expandindo-se para nordeste nas
chapadas que se desenrolam nivelando-se às cimas da serra do
Espinhaço; e esta, apesar da sugestiva denominação de Eschwege, mal
sobressai, entre aquelas lombadas definidoras de uma situação dominante.
Dali descem acachoantes, para levante, tombando em catadupas ou
saltando travessões sucessivos, todos os rios que do Jequitinhonha ao
Doce procuram os terraços inferiores do planalto arrimados à serra dos
Aimorés; e volvem águas remansadas para o poente os que se destinam à
bacia de captação do São Francisco, em cujo vale, depois de percorridas
ao sul as interessantes formações calcárias do rio das Velhas, salpintadas
de lagos, solapadas de sumidouros e ribeirões subterrâneos, onde se
abrem as cavernas do homem pré-histórico de Lund, se acentuam outras
transições na contextura superficial do solo.77
Ao referir-se ao homem, o autor classificou as raças brasileiras em três
categorias: o mulato, o mameluco e o cafuz, ressaltando que, além do fator histórico,
as disparidades climáticas têm ocasionado nestas raças reações adversas
diversamente suportadas por elas. Na seguinte passagem Euclides da Cunha deixa
evidente que a influência do meio é um definidor nas capacidades das raças.
Convindo em que o meio não forma as raças, no nosso caso especial
variou demais nos diversos pontos do território as dosagens de três
elementos essenciais. Preparou o advento de sub-raças diferentes, pela
própria diversidade das condições de adaptação. Além disto (é hoje fato
inegável) as condições exteriores atuam gravemente sobre as próprias
sociedades constituídas, que se deslocam em migrações seculares
aparelhadas embora pelos recursos de uma cultura superior. Se isso se
verifica nas raças de todo definidas abordando outros climas, protegidas
pelo ambiente de uma civilização, que é como o plasma sangüíneo desses
grandes organismos coletivos, que não diremos da nossa situação muito
diversa? Neste caso – é evidente – a justaposição dos caracteres coincide
com íntima transfusão de tendências e a longa fase de transformação
correspondente erige-se como período de fraqueza, nas capacidades das
raças que se cruzam, alteando o valor relativo da influência do meio.78
Euclides da Cunha construiu um conceito de que a mistura racial é um fator
negativo e que neste processo sempre surgem vivíssimos estigmas da raça inferior.
77
CUNHA, Euclides da. Os sertões. Edição didática preparada pelo Prof. Alfredo Bosi, cotejo e
estabelecimento do texto pelo Prof. Hersílio Ângelo. 2ª Ed. São Paulo: Cultrix, INL, 1975. P. 34.
78
Ibidem, p. 83. (grifo nosso)
59
O autor se refere a este tema com tom de irritação, o que podemos ver na seguinte
passagem:
A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial.
Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o
influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A
mestiçagem extremada é um retrocesso.79
3.3 - Alberto Torres
Brasileiro, de concepção naturalista, o estudioso Alberto Torres, editou em
1914, depois de dissertar muito sobre vários temas em jornais, a obra O problema
nacional brasileiro, onde expressa a suma de seu pensamento. Fundado no
psicologismo, podemos logo perceber uma das temáticas que também SBH iria
desenvolver quando o autor se refere ao Brasil dizendo que “ nenhum outro povo
tem tido, até hoje, vida mais descuidada que o nosso.” Nos remete assim ao
desregramento que parece estar presente na figura do semeador ao dizer que “ no
Brasil, destruídos os rudimentos de organização que já tivemos , lançados em mau
terreno, nada ficou de definitivo e a fachada de nossa civilização oculta a realidade
de uma completa desordem”. 80
O pesquisador, claramente, potencializa o fator clima ao analisar a
disparidade da terra colonizada com a terra dos colonizadores, em ora, os
portugueses:
No Brasil, o resssecamento das terras e do ar, as secas periódicas,
cada vez mais prolongadas, a alteração e irregularidade das estações - fato
ordinário em vastíssimas regiões do território, e já patente em outras onde
foram outrora abundantes as águas, manifestando-se no atraso das
primaveras, relegadas, com quase certo sacrifício das semeaduras, para o
79
Ibidem, p. 96.
Grifo nosso
80
60
começo do estio, na quase esterilização das pastagens e falta de foragens,
durante longo período do ano, fruto principal das nossas devastações e da
política colonial que temos feito – já se manifestam aos próprios olhos
distraídos das afortunadas populações das grandes cidades, com as crises
da “falta de água”, de ano para ano mais penosas. 81
Para ilustrar a importância dos meios geográficos e o clima, o autor chega
afirmar que “as montanhas, os rios e as florestas são, em toda a parte, fontes e
depósitos de fertilidade e de produção, e, portanto, de vida, [...]” 82 Diz ele, ainda,
que os Estados Unidos tiveram sobre nós, imensas vantagens porque possuem um
território de clima frio ou temperado, semelhante ao do País dos seus colonizadores,
imediatamente adaptável, sem estudos especiais, nem devotados cuidados.83 Esta
potencialização do clima marca o caráter naturalista de seu pensamento.
Ao falar da nação, parece marcar como elemento vital a raça. Ao relacionar a
raça à questão dos “tipos”, aos quais se refere também Sérgio Buarque de Holanda,
o autor diz que
“a raça é um tipo biológico e, particularmente, morfológico da
espécie humana. Para que se possa determinar distinção étnica, é mister
que se encontrem caracteres físicos e psíquicos, distintamente marcados,
de identidade entre grande massa de indivíduos, e de divergência destes
com outros grupos. Onde um ou alguns destes caracteres estiverem
apagados ou confundidos, deixa de se dar a figura característica da raça,
para surgir uma variedade compósita, que se pode estender a uma tribo, a
uma classe, a uma nação, ou a uma sub-raça.84
A perspectiva culturalista na explicação da evolução das raças parece ser
duramente condenada pelo estudioso, e é conceituada por este como vegetação
maligna e que deve ser arrancada do cérebro do povo por ser vã e ter um ardor
punitivo sobre os costumes, o espírito, a moral e a raça.
Ao atentar reincidentemente para o fator “raça”, Alberto Torres, parece
sustentar toda nossa história política, social e econômica sobre essa realidade e
TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro. 3ª Ed. São Paulo: Companhia Editora
Nacional/MEC, 1978. p. 20.
82
Ibidem, p. 21.
83
Ibidem, p. 44.
81
Ibidem, p. 63.
84
61
deixou transparecer seu aval e a importância que deu a questão da miscigenação
racial, a qual achou positiva apesar dos contratempos. Acredita o autor que teremos
de reconhecer que membros de todas as raças trouxeram contribuições à história.85
Alberto Torres argumentava contra aqueles que condenavam a miscigenação racial
e consideravam a raça banca superior às outras. Dizia que
“a doutrina da desigualdade das raças perdeu, assim, todos os pontos de
apoio, em todas as regiões da ciência. Cumpre, porém, não esquecer que,
se esta doutrina não conta mais com a mesma autoridade científica, nem,
talvez, com igual força política, mesmo na própria Alemanha.” 86
O autor assinalava que até mesmo na Alemanha, reduto onde se considerava
que a raça branca fosse superior, já existia na época uma forte corrente de opiniões
e interesses contra aqueles que alegavam títulos de superioridade étnica para os
brancos. Nesta passagem, sacramentando sua teoria em todo o mundo intelectual,
mostra que no Brasil o triunfo da
miscigenação das raças e tipos contribuiu
positivamente para a evolução da realidade brasileira. Quase ignora a questão da
relativa superioridade da raça branca ao dizer que a pequena parcela de
descendentes de sangue germânico nem fora estudada; o que denota desprezo
àquela parcela da população. Vejamos a seguinte passagem:
Há, contudo, um país – e a minha pena propende aqui a empregar
um estilo de conto de fadas - em que essa teoria teve toda a força e
autoridade do mundo intelectual, com o selo da Academia, a rubrica das
congregações, a adesão dos governos, o assentimento do povo. Este país é
o que possui a população mais mesclada do mundo; é um país onde, não
só a mistura de tipos de quase todas as raças, como inúmeros casos de
miscigenação, cruzados entre várias estirpes, mostram todos os matizes da
cor e todos os modelos do aspecto, da gama étnica; e a parte mais “nobre”
do povo, afora pequena parcela de sangue germânico, ainda não estudada,
é formulada por gente das raças tidas por inferiores e menos puras da
Europa.87
Impressiona a veemência com que o autor afirma o triunfo e a importância do
fator étnico sobre todos os aspectos da vida do indivíduo e da nação influenciando
diretamente no destino dessas realidades, vejamos:
Ibidem, p. 60.
Ibidem, p. 62.
87
Ibidem, p. 63.
85
86
62
A fidelidade ao sangue, ao laço tribal, o zelo pelo toten gentílico,
precede a todos os outros sentimentos sociais do homem. Tão íntima, tão
profunda, tão orgânica é a sua força – que se não tem a virtualidade
dramática da voz do sangue, possui sempre o poder de reunir as primeiras
hordas, ignorantes do mistério fisiológico da reprodução, em torno do
instinto filial materno – que se lhe afirma, através de todas as vicissitudes e
peripécias da História, como força permanente, o impulso vivaz das
energias e dos sentimentos coletivos.88
O problema nacional brasileiro será então a organização nacional? Pois o
autor diz que “a grande obra a realizar é a organização nacional; e para esta obra,
uma das nossas melhores razões de confiança está nas próprias forças das nossas
raças.”89 Nesta passagem o autor deixa transparecer que a mistura racial se
configura como um fator positivo para o desenvolvimento da civilização no Brasil.
Na obra, Raízes do Brasil, SBH faz uma alusão a Alberto Torres no capítulo 7
– Nossa revolução – chamando-o de publicista ilustre porque já havia Torres
observado que ‘A separação da política e da vida social’, dizia, ‘atingiu em nossa
pátria o máximo de distância[...].’90 Nesta passagem podemos denotar uma relação
de intertextualidade implícita de SBH com os natualistas em forma de alusão.
3.4– Oliveira Vianna
Estudioso e pesquisador, Oliveira Vianna, debruçou-se no estudo das
particularidades das raças e sua teoria parece nortear-se pelos reflexos no Brasil
das diversas e inúmeras raças para cá vindas. Colocou que no mundo americano
outros elementos entraram como fatores de formação e elaboração dos grupos
humanos. Fez referência ao problema racial do Brasil no sentido de que
Ibidem, p. 65.
Ibidem, p. 66.
90
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. ver. – São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 195.
88
89
63
No meio da confusão de tantos typos, trazidos pelas correntes
emigratorias, sahidas dos centros aryanos, outros typos, inteiramente
distinctos pela cultura e pela morphologia, tambem appareceram, tambem
touxeram a sua parcella para formação das novas nacionalidades. E o
negro com as suas varias modalidades de cultura e de typo. E o indio
tambem com as suas differenciações de cultura e a sua diversidade de
typos.91
No viés de associar a questão racial e a miscigenação como fator que possa
influenciar no desenvolvimento da civilização brasileira, Oliveira Vianna parece estar
influenciado por Alberto Torres que o antecedeu nestes estudos. Torres publicou
sua obra em 1914 e Vianna em 1932.
Raça e assimilação (1932) é o estudo que leva Oliveira Vianna a um
mergulho profundo no estudo das raças, suas variações e seus reflexos na
construção dos grupos sociais poliétnicos. Justifica seu estudo pelo fato de que
nossa formação foi feita das diversas raças humanas, vindas de todos os
continentes causando, assim, cruzamentos que ferem o olhar e se tornando, por
excelência o centro dos estudos da “raça”. Os fenômenos da raça mostram-se aqui
em estado de elaboração contínua, especialmente nos seus aspectos biológicos.
Temos aqui dados fartos para estudar os fenômenos de hibridação com uma
amplitude e uma precisão impossiveis no mundo europeu.
O autor ressalta que, após, o fim do II Império na França, cessaram as
pesquisas científicas no campo dos estudos etnográficos na Europa, provavelmente,
para evitar qualquer dúvida em relação à superioridade racial dos povos
germânicos,
e observa que as teorias a este respeito eram tendenciosas e
excessivas. Assim ele descreve, já no primeiro capítulo de sua obra:
Ora, não é preciso grande esforço de penetração para
comprehendermos que, para esta brusca parada, para esta cessação tão
subita do interesse pelas pesquisas da raça, a causa determinante foi, sem
duvida, a influencia exercida sobre o espirito dos nossos homens da scencia
pelas theorias tendenciosas, construidas para contrabater a theoria da
91
VIANNA, F. J. Oliveira. Raça e assimilação. 3ª Ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1932, p. 18.
64
superioridade racial dos povos germanicos, desenvolvida principalmente
pelos pensadores e anthropologistas allemães.92
Estudos mostravam, ná época, através da psicologia das raças, que cada
uma possuia características psicológicas particulares, como, por exemplo, defendiase que a raça germânica se caracacterizava por ter: gênio inventivo, gênio guerreiro,
instinto de independência, individualismo, fidelidade, migrabilidade, etc. Em seguida,
descobriu-se que estas características não eram privativas da raça germânica e que
também eram encontradas em outras raças. Os greco-romanos, com todas estas
qualidades resplandesciam antes dos germânicos.
Os naturalistas acreditavam profundamente que o fator “raça” pudesse mudar
ou definir os rumos do desenvolvimento econômico e social de uma nação, bem
como a evolução de seu povo. Seus estudos na área da etnologia eram infindávieis.
Se esta tarefa não tem contribuído muito para a compreensão do desenvolvimento
do Brasil, nos forneceu, porém, elementos úteis no que diz respeito ao perfil do tipo
morfológico do negro, do índio, etc...
“O negro é, em todas as cousas, um sensitivo, em que a fantasia
domina. O fundo do seu temperamento é uma serenidade expansiva. É a
esta fantasia sem freio que elle deve o seu amor aos enfeites e a sua
frivolidade, assim como seu gosto pelos espectaculos e pela dança. [...]
Vive, por assim dizer, au jour le jour; não se inquieta nem do futuro nem do
passado; elle tem a mão e o coração abertos; partilha com elles a sua
fortuna suppondo que farão o mesmo com elle. [...] A vida do negro se
passa em contrastes; os sentimentos mais opostos acham logar no seu
coração. Da alegria mais intensa e mais insensata elle passa ao mais
amargo dos desesperos; da esperança sem limite ao extremo terror; da
prodigalidade inconsiderável à avareza sordida”.93
O contrário se dá com o índio. O selvagem em geral é sombrio, reservado,
recordando muito na sua constituição afetiva, o autista. Vejamos esta psicologia
naturalista do índio:
-“Para desgostar-se um destes qualquer cousa basta e sobeja:
basta que o director o advirta que trate de fazer a sua casa onde mora;
basta que o vigario o admoeste da obrigação que tem de aprender a
doutrina para se baptizar; e basta, enfim, que, lá de si para si, chegue a
Ibidem, p. 23.
Ibidem, p. 44.
92
93
65
desconfiar de uma acção ou de um dito que elle não entenda; ao tudo
accresce que, se chega a ver que adoece ou morre algum dos
companheiros, desconfia então do logar da povoação, desconfia da
qualidade do sustento, desconfia do remédio que lhes fazem e dos que o
fazem”.94
O autor defende que o fator “raça” possa delimitar grupos sociais e que estes
podem, dependendo de seu temperamento, torná-los nitidamente diferenciados um
do outro. Assim exemplifica dizendo que
por exemplo, um grupo em que sejam mais numerosos os individuos de
temperamento irresoluto, fraca capacidade de acção, instabilidade nas
deliberações e attitudes. Neste grupo – conclue elle – a actividade
economica se revelará pouco efficiente, a pobreza se generalizará, o
numero de indigentes não pode deixar de ser avultado.95
O pesquisador naturalista potencializa tanto a origem étnica chegando a dizer
que “a conclusão é que a raça é, em ultima analyse, um factor determinante
das actividades e dos destinos dos grupos humanos.96
Uma referência clara à relevância do clima para o pensamento naturalista
está posto na obra de Oliveira Vianna quando este diz que diversas raças não têm a
mesma capacidade de aclimatação nos climas tropicais. Acentua “o problema da
influencia degenerativa do clima tropical sobre os grupos ethnicos de origem
européa.” E daí a necessidade de destacar do grupo branco as “raças”, que o
compõem, para poder determinar, com segurança, a aclimatabilidade diferencial de
cada uma.97
3.5 - Cassiano Ricardo: a miscigenação não deteriora as raças
Ibidem, p. 45.
Ibidem, p. 53.
96
Ibidem, p. 54. (grifo nosso)
97
Ibidem, p. 64.
94
95
66
Ao estudar o contexto que envolveu o bandeirismo no Brasil, Cassiano
Ricardo diz que
a herança biológica da miscigenação euro-tupi em larga dose explica o que
o bandeirante possui de “dinâmico”, o seu “ir e vir”; explica o nenhum
estorvo com que caminhava duzentas léguas ou mais; bem como a “voz do
Oeste” que ficou circulando em seu sangue; a voz que o endereçava para
as regiões de onde os seus ascendentes tinham vindo. Uma espécie de
nostalgia cósmica dinamizada pela cruza do sangue português, andejo do
mar, com o seu sangue bugre, andejo da selva.98
Cassiano Ricardo segue dizendo que os bandeirantes são um grupo
determinado étnicamente pelo sangue mameluco, que são eles um produto da
mestiçagem que se opera vivamente em seu foco de propulsão. Numa oposição
acentuada com as obras de Euclides da Cunha e Oliveira Vianna, Cassiano Ricardo
diz que Roquette-Pinto contraria o primeiro ao dizer que ‘não faltam elementos para
provar que aqueles homens (os bandeirantes) que, antes de tudo eram fortes,
tinham farta gôta de sangue negro.’ Já aí ele demonstra que a mistrura racial é
positiva pois contribuiu muito para o perfil sociológico e racial capaz de se moldar às
necessidades e características dos homens que integravam as bandeiras.
99
Na sua
obra ele cita, ainda, Gilberto Freire, para dizer que o Brasil sob muitos aspectos é o
maior exemplo de conciliação humana que o mundo tem conhecido. Acrescenta que
se no Brasil a miscigenação foi inevitável não será o caso de maldizê-la sem exame
e sim atentar para os seus efeitos: a democratização social e a superiorização dos
tipos étnicos modelados ao tipo racial apropriado ao estilo de convivência que nos
envolve.
O autor de Marcha para Oeste, diz que:
há uma forma de democracia verdadeiramente humana, inalterável e
profunda: é a que se processa no Brasil mestiço. Não foi sem razão, pois,
que Lars Ringbom viu no mestiço a melhor solução aos extremos de
individualismo ou de coletivismo nas grandes raças que ele considera
puras. Esta renovação de valores humanos, nas condições em que se
realiza entre nós, é uma revolução sem precedentes. Basta olhar a
paisagem social, originalíssima, ...100
98
RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste. ( A influência da “Bandeira na formação social e
política do Brasil). Vol. II. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade de São Paulo, Livraria José
Olímpio Editora, 1970, p. 336.
99
Ibidem, p. 339.
100
Ibidem, p. 344.
67
Seguindo, o autor cita Rudiger Bilden para dizer que ‘ decerto que há muita
coisa, na vida do Brasil, que não é satisfatória. Mais atribuir tais condições à
composição racial do país ou à mistura de raças é completamente errado.’ Para
enobrecer a miscigenação racial no Brasil o autor faz referência aos caboclos
brasileiros como os únicos, ao lado dos bascos, a ter resistência física para uma
tarefa de titãs com a de trabalhar noite e dia a 2.000 metros de profundidade nos
trabalhos de mineração do Morro Velho, no Vale do São Francisco, onde até os
japoneses fracassaram.101 Ressalta ainda que os mestiços em comparação com o
elemento estrangeiro que formava a maior parte da população operária nos centros
industriais do Sul tinha maior agilidade de compreensão e maior responsabilidade
mental. Diz que a região onde habitam é a província de homens excepcionalmente
dotados de resistência física e firmeza moral.
Cassiano Ricardo cita Sílvio Romero para afirmar que ‘o mestiço é a condição
da vitória do branco, fortificando-lhe o sangue para habilitá-lo aos rigores do nosso
clima.’ Cita, ainda, Gilberto Freire para dizer que até o Egito chegou à sua riqueza
extraordinária de civilização pela miscigenação profunda: sobre o fundo da raça
mediterrânea o elemento negro, o armenóide e possivelmente o nórdico. Assinala
que os japoneses surgiram da mais complexa mestiçagem. Os brancos, os amarelos
e os mestiços foram as fontes raciais do grande Império.102
Atentar contra a mistura racial, que já existe desde o fim do período neolítico,
serve apenas para engendrar ódios e até conflitos entre os povos, afirma Georges
Henri Rivière, subdiretor de um Museu Etnográfico e ora citado por Cassiano
Ricardo. Os próprios biólogos cruzam entre si raças e variedades e encontram
resultados satisfatórios. O mesmo acontece com os mestiços humanos e não é de
duvidar que essa melhoria atinja também as qualidades intelectuais e morais.
Ibidem, p. 345.
Ibidem, p. 346.
101
102
68
O autor cita Marcel Griaule, diretor do Laboratório de Etnologia da Escola de
Altos Estudos de Paris para dizer que ‘a mestiçagem é o mais poderoso fator do
progresso humano’. Já Jean Millot, professor da Universidade de Sorbonne, não foi
de outro parecer ao afirmar que ‘a hibridação, na maioria dos casos, aumenta o
vigor e a fecundação dos tipos étnicos e constitui um verdadeiro estimulante físico e
intelectual’.103
Roquette-Pinto, com a autoridade que todos lhe reconhecem, afirma que o
cruzamento não é fator de degeneração. Cassiano Ricardo diz que o mito da
superioridade racial erigida em razão de Estado, em ideologia ou verdade científica,
é hoje – ao que tudo indica – depois da última guerra, um mito caduco. Assim ele
exara a sentença de que a miscigenação não deteriora a raça.
O autor demonstra também que as características psíquicas não se explicam
somente através de fatores raciais, mas, também se levando em conta os aspectos
culturais, como o hábito alimentar, a educação, etc. Parece ser neste enfoque que o
autor coincide suas idéias com SBH. Até, porque, às vezes, uma só direção psíquica
aproveita tendências diametralmente opostas. A configuração psíquica envolve uma
soma psicológica que é mais complexa do que de raças; é uma soma muito
particular, mais cultural, mais contraditória, porque nela se fundem qualidades
específicas de dois tipos específicos.104
Cassiano Ricardo sustenta que uma parte das características psíquicas estão
ligadas à fatores hereditários, mas a outra, a mais importante, está relacionada com
fatores ambientais: nutrição, meio, clima e influências sócio-culturais, que podem ser
chamados de fatores ambientais. Foram esses fatores que estiveram ausentes na
tese de Oliveira Vianna. Vejamos o que diz o autor a esse respeito:
Não parece convincente a tese de OLIVEIRA VIANNA, segundo a qual os
mestiços que vencem não vencem como tais; só triunfam quando deixam de
ser psicologicamente mestiços; mas os mestiços que não vencem, esses
não vencem porque são mestiços... Ora, tudo nos demonstra que o mestre
não tem razão. Está provado que o mestiço vence justamente porque é
Ibidem, p. 348.
Ibidem, p. 350.
103
104
69
mestiço. O branco, o ariano puro, ou coisa semelhante, só pode dominar a
terra e o clima porque se mestiçou com negro ou com índio. Quanto aos
que não vencem, não deixam de ser mestiços porque não vencem. Esses
são “indivíduos” que não vencem, em virtude de fatores sociais, regime
econômico, ou taras hereditárias. Como acontece com qualquer outro
indivíduo, seja mestiço ou não.105
A importância do hábito alimentar também influencia na característica
psíquica, e, às vezes, o mal da deficiência alimentar é confundido com o sintoma da
inferioridade racial pela mestiçagem. Vejamos o que diz o autor:
Pode dar-se artificialmente certos caracteres aos seres humanos, assim
como aos animais, submetendo-os a uma alimentação apropriada. Os que
se alimentam de vegetais são dóceis, pacíficos; no mínimo, menos ferozes
do que os que se alimentam de carne. [...] A alimentação explica a raça,
dizem tratadistas modernos. O meio social explica a inferiorização ou a
superiorização dos tipos étnicos, já afirmava Alberto Torres. [...]
Não há dois indivíduos mais diferentes um do outro do que o
mesmo indivíduo comparado a si próprio quando bem nutrido e quando
sofrendo fome, quando instruído tecnicamente ou quando sem instrução de
nenhuma espécie.106
Podemos notar no final da citação que o autor se refere a questões culturais como
determinantes na formação das características psíquicas. Notamos, também, que o
autor faz referências explícitas a outros autores ou pesquisadores caracterizando
assim o feito da intertextualidade que está no ato de relacionar, contrapor,
mencionar ou referir-se a outro fato, texto ou algo outro já existente. Para finalizar,
Cassiano Ricardo diz que a bandeira é a glorificação da mestiçagem e, que
duplicado em mestiço é que o branco conquistou e colonizou o Brasil, promovendo
desta forma, uma das maiores revoluções da humanidade.
Na explicação da origem da sociedade brasileira, Cassiano Ricardo aponta
para divergências com os naturalistas ao demonstrar que as características
psíquicas não se explicam somente através de fatores raciais, mas, muito mais e de
uma maneira mais importante, relacionam-se com fatores ambientais, tais como, a
nutrição, o clima e o meio onde vivem. Diz o autor que a importância do hábito
alimentar influencia na característica psíquica e muitas vezes a deficiência desse
hábito pode ser confundido com inferioridade racial por mestiçagem. Cassiano
Ibidem, p. 351. (Nota de rodapé)
Ibidem, p. 352.
105
106
70
Ricardo chega a dizer que a alimentação explica a raça, segundo os modernos
tratadistas e que o meio pode determinar a inferiorização ou a superiorização dos
tipos étnicos.
O autor de Marcha para Oeste aponta para coincidências com Sérgio
Buarque de Holanda em questões que dizem respeito a fatores culturais na
explicação da origem da sociedade brasileira. Esta questão fica clara quando
Cassiano Ricardo diz que as influências sócio-culturais são definidoras das
qualidades psíquicas. Fala também na questão da educação que está diretamente
ligada a fatores culturais tão defendidos, importantes e definidores das
características psíquicas na explicação da origem da sociedade brasileira defendida
por SBH.
3.6 – O modernismo e Sérgio Buarque de Holanda
Com sua gênese na Europa, o Modernismo surgiu simultaneamente em
vários países europeus e traduzia os efeitos da modernização sobre a vida social e
cultural, sobre o comportamento e sobre a psicologia individual. A modernização
tem se iniciado com a Segunda Revolução Industrial que resultou nos fenômenos da
urbanização, da industrialização crescente, da ampliação de serviços, da
escolarização e da valorização do ócio e do lazer. Várias e notáveis mudanças na
área científica, tecnológica e ideológica também marcaram o início de uma nova era.
No Brasil, o movimento foi organizado por jovens paulistas, mais
especificamente entre os anos de 1922 e 1930 e revolucionou as estruturas
tradicionais da arte brasileira e o grande manifesto se iniciou com a semana da Arte
Moderna que foi marcada pela liberdade de expressão, pela visão apaixonada e
crítica do cotidiano. O movimento tinha como características107 a liberdade de
107
GONZAGA, Sergius. Curso de literatura brasileira. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004, p. 280.
71
expressão, a incorporação do cotidiano, a linguagem coloquial, as inovações
técnicas e a ambigüidade. Com liberdade para expressar seus pensamentos, os
artistas não precisariam guiar-se por outras leis que não as de sua própria
interioridade e de seu próprio arbítrio. O espírito do modernismo internacional tinha
como uma das maiores conquistas a valorização da vida cotidiana, o que deu à arte
uma abertura temática sem precedentes. A linguagem coloquial misturava
expressões da língua culta com termos populares. Existia uma forte aproximação
com a fala, era uma língua sem erudição. Nas inovações técnicas se destacou a
presença do verso livre. Este já não estava sujeito ao rigor métrico e às formas fixas
de versificação. A coesão através dos nexos sintáticos fora abolida e a poesia
moderna se tornou mais solta, descontínua e fragmentária. A polissemia passou a
ser uma das características do discurso literário apresentando uma rede de
significações que permitia múltiplas interpretações.
Já antes da Semana de Arte Moderna, o tema do americanismo, segundo
Arnoni Prado108, já aparece como um projeto interessado em romper com as
interpretações do saber hegemônico. Na obra, O Espírito e a Letra, Sérgio Buarque
de Holanda nos revelou o quanto era urgente para ele, naquela altura, converter em
instrumento de análise objetiva o conjunto das reformulações retóricas que
transformavam em imagens pujantes a fisionomia do nosso atraso.
Na seguinte passagem, Arnoni Prado deixa claro o perfil modernista de SBH
antes mesmo do modernismo:109
E aqui, ao se abrir para uma integração com o continente, a sua crítica se
constitui num dos primeiros sintomas de consciência da modernidade
anteriores ao modernismo. É o momento, por exemplo, em que vai buscar
na colonização urbana da América hispânica um contraponto para o
predomínio, no Brasil, da moral da senzala, velho apanágio do patriciado
rural responsável pela submissão das cidades aos privilégios dos domínios
agrários.
PRADO, Antônio Arnoni. Raízes do Brasil e o modernismo.In: Sérgio Buarque de Holanda e o
Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p.73.
109
Ibidem, p. 74.
108
72
Sérgio Buarque de Holanda apontava, já na primeira fase dos anos 20, para o
interesse de desvincular as questões urbanas das classes dominantes. Esta idéia já
podia ser observada nos poemas de alguns autores, como Lima Barreto e Oswald
de Andrade que estavam interessados na deformação paródica dos patriarcas que a
modernidade arruinava. Esses poemas denotavam o repúdio às classes dominantes
em temas que tratavam por vezes no tratamento do desequilíbrio social mais agudo
que acontecia nos subúrbios e nos desvãos que as cidades incorporavam. O
modernista, Joaquim Manuel de Macedo, marcara o movimento harmônico de suas
personagens com a “atmosfera da vida rural que as cidades apagavam” no quadro
das “transformações inevitáveis da sociedade brasileira”, que SBH antecipava.
Mudanças estas que se configurariam, primeiro, no abandono da vida rural: a cidade
se
tornaria
um
pólo
oposto
ao
contexto
agrário.
Segundo,
o
provável
desaparecimento ou a superação do “homem cordial”. Como diz SBH,110
Com a progressiva urbanização, que não consiste apenas no
desenvolvimento das metrópoles, mas ainda e sobretudo na incorporação
de áreas cada vez mais extensas à esfera da influência metropolitana, o
homem cordial se acha fadado provavelmente a desaparecer, onde ainda
não desapareceu de todo.
Em terceiro ponto, a vocação autoritária do senhor de engenho passaria a
estar presente na política, nas profissões liberais e na burocracia do dia a dia. Estes
passaram a ter prioridade nas atividades citadinas. Se evidenciavam, então, as
características do bacharelismo e a autoridade do senhor de engenho.
Em sua análise, o crítico, Antônio Arnoni Prado, observa o traço
modernista de SBH quando identifica nele traços do homem de 1936, em 1920, no
prelúdio da arte moderna, vejamos:
É na busca dessa originalidade (originalidade das diferenças
culturais) que se antecipam nas reflexões do moço de 1920 as constatações
do homem de 1936, ambos ao encalço de uma forma espontânea que nos
livrasse da excelência das fórmulas teóricas e nos deixasse soltos para
viver a plenitude da nossa vocação pouco especulativa.111
Trecho da carta na qual SBH faz a réplica a Cassiano Ricardo, em setembro de 1948.
110
111
Antônio Arnoni Prado. São Paulo, agosto de 2006. Ensaio No roteiro de Raízes que visa rastrear as
primeiras sementes de Raízes do Brasil nas incursões jornalísticas do jovem Sérgio Buarque de
Holanda entre 1920 e 1921 e examinar de que modo elas frutificaram no espírito revolucionário do
modernista que ele foi entre 1922 e 1926. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil.
73
Arnoni Prado afirma que apesar de SBH não ter participado da Semana de
Arte Moderna, levava consigo uma riquíssima percepção da modernidade que viria
mudar o caráter das cidades, vejamos:
Uma de suas variações mais lúcidas é a reflexão da qual extraía da
oposição entre urbanismo e ruralismo o motivo para meditar sobre o novo
caráter das cidades, agora transformadas pelo progressismo que se
hiperbolizava, apagando as tradições e alterando a paisagem social e
humana na pressa de pôr tudo abaixo e de “mudar os nomes de praças e
ruas”.112
Esta nota via no Modernismo uma das variantes incontroláveis daquela hipérbole
urbana que cindia definitivamente em pólos opostos o mundo rural e o mundo da
cidade. SBH fazia parte da linha de frente do modernismo e sua missão
era abrir fogo contra a mentalidade sobrevivente da velha lavoura que
entrou em decadência com a vinda da corte, perdeu prestígio com a
Abolição e a partir da República - como irá demonstrar em Raízes – se
preparou para comandar as atividades citadinas, trazendo para a
burocracia, a política e as profissões liberais o garbo rançoso do
bacharelismo e a vocação autoritária do senhor de engenho.113
Prado, em seu texto acentua que a marca do modernismo em SBH era aquilo
que reclamava para a atualização da nossa inteligência, era a projeção solta
do futuro, a mais completa liberdade de ação, estética ou política, social ou
histórica, sempre com a condição de que essa nova atitude viesse
acompanhada de um privilégio intelectual que nunca tinha havido antes na
história das nossas idéias, o da imaginação que brotasse inteiramente da
fantasia ilimitada.114
A característica, ou o caráter do modernismo e seus seguidores era o de serem
confusos, de, uns aos outros, não se entenderem com clareza pelo fato de não
terem a plena consciência dos resultados da excessiva agitação interior que os
Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz.
Ed. ver. – São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 297.
112
Antônio Arnoni Prado. São Paulo, agosto de 2006. Ensaio No roteiro de Raízes. In: HOLANDA,
Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo
Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.
299.
113
Ibidem, p. 299.
114
Ibidem, p. 300.
74
perseguia, situação que lhes parecia perfeitamente natural. A visão modernista de
SBH estava no ato de olhar em paralelo a historicidade dos temas poéticos e a
poetização dos assuntos históricos. Arnoni Prado atesta que dentro dessa fantasia
ilimitada foi pautada toda a atividade do jovem Sérgio Buarque de Holanda em sua
militância modernista. SBH teria, nas incursões pelo terreno da ficção, feito inclusive
uma previsão do futuro.
Alguns lineamentos marcaram o timbre modernista do autor de Raízes e
visavam a refazer o itinerário para o processo de dissolução das sobrevivências
arcaicas:
O primeiro mergulha nas conjecturas possíveis sobre o papel da literatura
na definição de uma atitude independente frente ao legado espiritual da
metrópole. O segundo aprofunda a transformação dos motivos estéticos
dessa autonomia nos temas inaugurais de uma literatura já identificada com
a nação. E o terceiro discute a atualização dessa literatura não apenas em
face das influências da modernidade irradiada da Europa, mas
principalmente em face da revogação definitiva da velha ordem colonial e
patriarcal que nos fará, um dia, reencontrar a nossa verdadeira realidade.115
SBH iniciou o mergulho para uma ordem fluída de outra temporalidade na qual
convivem as formas mais diversas e os arranjos temáticos mais inesperados, este
talvez, seja o fato que o credencia a ser um modernista arcádico em busca da
verdadeira expressão. Abertamente, defendia a liberdade estética e a fantasia
ilimitada em detrimento do naturalismo, vejamos sua manifestação:
Nós lembramos esse tão debatido fin-de-siècle como o mais esquisito na
sua originalidade e o mais interessante na sua esquisitice. Mais interessante
e mais digno de atenção. Resta entretanto muito ainda que fazer. Resta
combater toda sorte de imbecilidades que continuam a infestar a Arte
Moderna, como sejam o realismo, o naturalismo, o vulgarismo, o
pedantismo, a fim de que se possa erguer bem alto o monumento que
simbolizará a Arte do futuro e no qual se verá escrito em caracteres de fogo,
o seu programa: Liberdade estética – Fantasia ilimitada.116
115
Ibidem, p. 307.
116
HOLANDA, Sérgio Buarbque de. O espírito e a letra: estudo e crítica literária 1, 1902-1947,
organização, introdução, e notas Antônio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p.
33.
75
Assim, SBH deixa evidente sua valorização dos fatores culturais em suas
diversas formas e maneiras de manifestação para explicar o sepultamento do
modelo arcaico que privilegiava as classes dominantes. As cidades passariam a ser
o centro das transformações, da diversidade cultural e dos arranjos temáticos, da
liberdade e da fantasia.
4 - A APROPRIAÇÃO DE "RAÍZES DO BRASIL"
A contemporaneidade caracteriza-se por ser uma era em que a produção de
bens culturais e a circulação de informação ocupa um papel de destaque na
formação moral, psicológica e cognitiva do homem. É uma nova ordem social
regulada por um universo cultural amplo, diversificado e fragmentado.Convivemos
em uma formação social cujo paradigma cultural é globalizado mas conservamos
perante a comunidade mundial elementos culturais únicos que nos identificam no
76
vasto campo do multiculturalismo. O mais forte destes elementos seja, talvez, a
imagem que o mundo construiu do homem brasileiro, como sendo um indivíduo que
tem lhaneza no trato, hospitalidade, generosidade, virtudes tão gabadas por
estrangeiros que nos visitam, e que se fundiram como um traço definido do caráter
brasileiro.
4.1 Sérgio Buarque de Holanda e a historiografia européia: relacionando
textos
O fato de Buarque de Holanda comparar uma realidade social com outra,
tomando por base as diferenças entre uma e outra, usando um arcabouço
metodológico já usado por outro pesquisador, pode denotar intertextualidade porque
neste ponto procura relacionar texto anterior com sua própria escrita. Esta prática,
podemos perceber nas afirmações de Maria Odila Leite da Silva que ressalta a
preocupação contínua de SBH em documentar diferenças e estudar textos sobre
formação da sociedade brasileira que se caracterizou por um processo de
concentração de renda em um nível muito maior do que o de outras sociedades
contemporâneas. Isso fica evidente quando ela observa: “Dentro de seu enfoque
preso ao relativismo cultural e ao devassar critico do capitalismo iniciado por Marx e
por Weber, aproximou-se precocemente de uma tendência de crítica interpretativa
dos fenômenos urbanos.” 117
Citar outrem ou tomar como suas as idéias ou conceitos daquele pode
caracterizar uma intertextualidade explícita e isto está posto na seguinte passagem:
A este respeito, Sérgio Buarque citava um historiador alemão,
Theodor Schieder, para o qual “as necessidades do homem, assim como os
valores e as normas que o homem estabeleceu, se sujeitam à lei da
mudança histórica e, em suma, existem apenas em formas mutáveis”.118
117
DA SILVA, Maria Odila Leite. Política e sociedade na obra de Sergio Buarque de Holanda. In:
Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 12.
118
Ibidem, p.22.
77
Poderíamos ainda dizer que a intertextualidade existe também na
aprendizagem; penso assim por influência do outro, por ter aprendido com o outro.
O meu conhecimento se completa e se enriquece com o saber de outrem. O saber
do discípulo carrega em si a quase essência do saber do mestre. Tomar para si
diretrizes do saber de alguém, que interativamente conviveu conosco, é sem dúvida
uma intertextualidade implícita ou relativa, no mínimo.
Ilana Blaj119 refere-se aos tipos que, segundo o conceito de Ferrater Mora
(1994), representa um modelo que permite produzir um número indeterminado de
indivíduos que se reconhecem pertencentes a uma mesma classe com ares, até, de
família dado à semelhança entre si. Justamente no tocante a estes tipos é que
reside fundamentalmente a correlação entre rua, bandeirante, aventureiro e
semeador que contracenam respectivamente com casa, pioneiro, trabalhador e
ladrilhador nos reporta ao esquema da sociologia de Max Weber. Todo o arcabouço
metodológico de SBH está ancorado em Weber que é o autêntico criador dos tipos –
indivíduo histórico construído para pesquisa. Este método está construído sobre
uma seqüência de dualidades em torno de uma que é dominante; racional ou não
racional.120 A criação do “homem cordial” por Holanda tem origem no método
weberiano e caracteriza o tipo/perfil do sujeito que trata familiarmente os
interlocutores pelo primeiro nome, abolindo o emprego dos sobrenomes. Sujeito que
tem tendência de aparentar harmonia, de desfazer diferenças e de apelar para o
emotivo. Com fundamentos na amizade e no parentesco, sempre prevalecendo o
compadrio e os laços afetivos e pessoais, a figura do homem cordial conduz sua
vida pessoal, seus negócios e sua conduta social. Esta figura não foi criada
espontaneamente, mas, inserida na escrita de SBH a partir da obra de Max Weber.
Realçando, ainda, a presença da historiografia alemã em SBH, Vainfas
assinala o vínculo explícito entre Buarque de Holanda e Ernst Curtius; o último que é
119
BLAJ, Ilana. Sérgio Buarque de Holanda: historiador da cultura material. In: Sérgio Buarque de
Holanda e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 45.
120
COHN, Gabrel. Crítica e resignação: Max Weber e a teoria social. 2ª ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2003, p. 9.
78
historiador alemão teve sua obra, Europäische Literatur und Lateinisches Mittlelalter
(Literatura Européia e Idade Média Latina), de 1948, evocada na obra de SBH,
Visão do Paraíso:
Sérgio Buarque é explícito quanto à importância de Curtius em Visão do
Paraíso, escrevendo o prefácio à 2ª edição da obra em 1968. Importância
visível no recurso a uma Tópica capaz de articular a pesquisa heurística de
textos literários com a investigação propriamente histórica.Pois é com base
na reconstituição do processo de transmissão dos arquétipos do paraíso
terrestre que constrói Visão do Paraíso.121
Embora este ato de evocar Curtius ocorra somente em Visão do Paraíso e
não em Raízes do Brasil, podemos acentuar a ocorrência da intertextualidade, que
nos propusemos mostrar.
4.2 Comparando dois textos: Raízes do Brasil e Marcha para Oeste
A essência desse trabalho está em mostrar relações de intertextualidade
entre Raízes do Brasil e outros textos. Ora, citaremos Cassiano Ricardo como
interlocutor de SBH ao construir uma passagem de intertextualidade explícita na sua
obra Marcha para Oeste quando escreve:
o bandeirismo que ocorre como um sistema de vida e economia próprio de
Piratininga, mercê de causas e concausas que só aí ocorrem. Além disso,
em sua extensão, no espaço que vai conquistar, é fenômeno que só se
justifica na América pelas suas conseqüências territoriais afinal marcadas
pelo perfil geográfico do Brasil.122
121
VAINFAS, Ronaldo. Sérgio Buarque de Holanda: historiador das representações mentais. In:
Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 50.
122
RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste. (A influência da “Bandeira na formação social e
política do Brasil). Vol. I. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade de São Paulo, Livraria José
Olímpio Editora, 1970, p. 47.
79
Para mostrar o quanto tem sido expressivo o perfil étnico e psicológico que
havia formado o bandeirismo no Brasil, o autor cita o caso de Francisco José de
Lacerda e Almeida que fez a travessia e a exploração do continente africano, por
ser, este, paulista e descendente de mamelucos; a seguinte passagem caracterizase por uma intertextualidade explícita:
Mas não deixará de ser muito expressivo, como nos mostra Sérgio Buarque
de Holanda, o caso de Lacerda e Almeida na travessia e exploração do
continente africano. Tão memorável foi a sua performance que – observa o
autor de Raízes do Brasil -, passados muitos decênios, ainda se conserva
na lembrança dos pretos selvagens, conforme o atestou Livingstone em seu
diário.123
Podemos conferir agora a passagem da obra Raízes do Brasil, a qual alude o
autor Cassiano Ricardo:
E não será talvez por mera coincidência se o primeiro passo definitivo para
a travessia e exploração do continente africano foi dado naquele século por
um filho de São Paulo e neto de mamelucos, Francisco José de Lacerda e
Almeida. Tão memorável tentativa foi a sua, que passados muitos decênios
ainda se conservava na lembrança dos pretos selvagens, conforme o
atestou Livingstone em seu diário.124
Parece que até aqui as obras estão interligadas e defendendo as mesmas
concepções, mas, estas mudam quando o tema se volta mais profundamente para
os bandeirantes. Cassiano Ricardo inicia a explicação do conceito de bandeirismo
afirmando que costume de bandeirar é índio. Que a mestiçagem do índio, andejo
por excelência é que esclarece a mobilidade que a bandeira tem. Em qualquer
hipótese, a mobilidade da bandeira em seu ímpeto horizontal e psicológico é um
fenômeno principalmente indígena. Que a nostalgia cósmica do índio que queria
voltar pra sua taba entra na composição psicológica da mobilidade da bandeira, de
maneira terminante. O autor afirma que o meio geográfico, étnico e econômico do
bandeirismo só ocorreu no Planalto de Piratininga. Que só o homem coletivo é que
realiza a bandeira e este perfil por mais rutilante que seja, pressupõe um tipo social,
Ibidem, p. 47.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 142.
123
124
80
e este tipo é aquele que predominou em Piratininga; o berço do bandeirismo. 125 Ao
falar de bandeiras o autor faz outra observação apontando para alguns sinais que a
identificam, tais como: técnica do sertão, sistema de vida, organização sui generis
do grupo social e localização geográfica. A bandeira constitui um grupo muito mais
nítido na sua organização e tangido pela esperança, com uma direção e um
comando que lhes condensam as energias para o objetivo a realizar.126 No Brasil,
“bandeira” é o grupo que se deslocou do planalto de Piratininga, reunindo atributos
próprios, particularidades e objetivos que se tornaram tipicamente seus e que,
depois, serviu para designar um fenômeno social chamado bandeirismo.
Seguindo, podemos ver que Cassiano Ricardo amplia o conceito da
“bandeira” mostrando a amplitude que esta tem no contexto brasileiro:
Chama-se, pois, “bandeira” a cada grupo social que se deslocou de
São Paulo, em várias direções, mas principalmente a Oeste, conduzido por
um chefe, organizado militarmente, e com govêrno próprio, em função
econômica e de povoamento, dando em resultado a atual silhueta
geográfica do Brasil.
Mas a bandeira não é apenas o que está contido em tal tentativa de
definição. É algo de mais complexo, com influência nítida no sistema da
vida brasileira, nas suas instituições sociais e políticas e com reflexos –
mais importantes do que se pensa – na vida do mundo moderno. 127
Cassiano Ricardo diz, ainda, que a bandeira é uma espécie de nomadismo
dirigido e que sua principal diferença em relação ao outros movimentos “está na
complexidade da organização, no comportamento cultural, que tornam o grupo
bandeirante inconfundível em relação aos demais grupos da colônia e no fato de se
tratar de um sistema de vida só enraizado em São Paulo.”128
Cita, ainda, na obra Marcha para Oeste, conceitos de outros autores que
escreveram sobre as características políticas e a complexidade que adquiriu a
bandeira, para se tornar inconfundível e mais originalmente nossa:
125
RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste. (A influência da “Bandeira na formação social e
política do Brasil). Vol. I. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade de São Paulo, Livraria José
Olímpio Editora, 1970, p. 28-29.
126
Ibidem, p. 38.
127
Ibidem, p. 40.
128
Ibidem, p. 43.
81
a) é uma cidade que viaja com os seus senhores e governadores –
explica João Ribeiro;
b) é uma pequena nação nômade, organizada sòlidamente sobre
base autocrática e guerreira, adianta Oliveira Vianna;
c) enfim, um pequeno Estado, ou Estado em miniatura, como aqui se
pretende, levando usos e valôres culturais govêrno e organização
social que o tornam uma antecipação do self-government brasileiro,
ou ainda, sob vários aspectos - ,
d) uma democracia viva e andeja, com o seu regimento e as suas
leis, a sua hierarquia social e – coisa notável – a sua independência
política, não lhe faltando, sequer, a primeira experiência de
democracia representativa, isto é, de uma eleição por conta própria
pra escolha do seu governo, como aconteceu em Cuiabá.129
Raízes do Brasil e Marcha para Oeste se ocupam em estudar a formação da
sociedade brasileira, mas em se tratando do tema “bandeirante” Sérgio Buarque de
Holanda parece estar com seu conceito bem mais superficial ao dizer com brevidade
que
A obra das bandeiras paulistas não pode ser bem compreendida em toda
sua extensão, se a não destacarmos um pouco do esforço português, como
um empreendimento que encontra em si mesmo sua explicação, embora
ainda não ouse desfazer-se de seus vínculos com a metrópole européia, e
que, desafiando todas as leis e todos os perigos, vai dar ao Brasil sua atual
silhueta geográfica.130
Sérgio Buarque de Holanda conceitua o acontecido na planalto de Piratininga
como sendo uma expansão de pioneers paulistas que fizeram seus movimentos
sem se importar com os interesses da metrópole européia e, que, eram audaciosos
caçadores de índios, farejadores e exploradores de riqueza. Conceitua-os como
puros aventureiros. Parece que o autor confunde as bandeiras com outras
expedições de cunho particular ou com fins divergentes daqueles que se propunha o
verdadeiro bandeirismo.
Ambos os autores foram estudiosos da realidade brasileira na época, mas,
Cassiano Ricardo parece ter de dedicado muito mais em alguns aspectos, como no
Ibidem, p. 47.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização
Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras,
2006, p. 105.
129
130
82
caso do bandeirismo. Em sua obra cita SBH que lançara Raízes do Brasil em 1936;
quatro danos antes de Marcha para Oeste, que teve sua segunda edição em 1942
com a versão revisada e em dois volumes. Em 1959 aconteceu a 3ª edição
inteiramente revista e aumentada. A quarta edição, aumentada e revisada, foi em
1970 com o acréscimo de dois novos capítulos.
Raízes do Brasil teve sua 2ª edição em 1947 com alterações abundantes
onde foram retificados e ampliados alguns temas. Os capítulos 3 e 4 foram
separados e tiveram novas denominações de conteúdos, entre eles, ”O semeador e
o ladrilhador”; categorias sociológicas usadas para descrever as características dos
colonizadores portugueses e espanhóis. A terceira edição saiu em outubro de 1955
e de novidade trouxe o debate sobre o “homem cordial”; conceito criado por Ribeiro
Couto e interpretado de maneiras diferentes por SBH e Cassiano Ricardo. Nesta
edição, então, encontram-se as objeções de CR e as respostas que lhe foram dadas
pelo autor de Raízes do Brasil. O índice onomástico também passa a fazer parte da
obra a partir da 3ª edição. As duas obras parecem ter borbulhado já na primeira
metade do século XX quando muito se especulava a respeito da formação,
diversidade e complexidade que envolvia a formação da sociedade brasileira.
4.3 Bandeirantes e Pioneiros
Em sua obra, Bandeirantes e Pioneiros, Vianna Moog usa a matriz da
oposição conceitual para analisar questões relativas à colonização americana e
brasileira. Para caracterizar os colonizadores que povoaram os Estados Unidos da
América usa o termo “pioneiro” e para construir a imagem do colonizador brasileiro
usa o termo “bandeirante”.
83
Segundo Moog, o tipo anglo-saxão que era predominante entre os
colonizadores dos EUA preservava a pureza racial, acreditava que a raça era
símbolo de força, contava com uma geografia mais favorável em relação ao Brasil,
abundância de carvão e petróleo. Aqui, os portugueses miscigenaram a raça. O
colonizador americano acreditava que o fator econômico era preponderante para
evidenciar o crescimento da nação e associavam tudo isso à religião, o
protestantismo, especialmente o metodismo e o calvinismo, tinha relação estreita
com o capitalismo. Trabalho, dinheiro e propriedade agradavam a Deus.
Pelo
contrário, no Brasil o catolicismo e o capitalismo se repeliam. Enquanto os
protestantes criavam a concorrência, o juro, as letras de câmbio e o comércio de
ações, os portugueses entregaram esta tarefa aos judeus para, desta forma,
salvarem suas almas. Eis uma questão puramente influenciada pela religião, visto
que o catolicismo condenava o rico, o detentor de grandes posses, que, para os
calvinistas agradava a Deus. O apetite aquisitivo dos colonizadores americanos
agradava a Deus, porque atestava trabalho. Eles acreditavam que tempo era
dinheiro, eram pontuais. Ao contrário; o colonizador brasileiro, por uma questão de
religiosidade era adepto da contemplação que induzia a impontualidade e
desvalorizava o tempo. Estas concepções têm origem em Max Weber. Já no
primeiro capítulo de sua obra, A ética protestante e o espírito do capitalismo, o autor
afirma que nos congressos católicos, sobretudo na Alemanha, é muito discutido “o
fato de que os homens de negócio e donos do capital, assim como os trabalhadores
mais especializados e o pessoal habilitado técnica e comercialmente das modernas
empresas é predominantemente protestante.”131 Quanto ao fator crença, segundo o
autor, os católicos preferem uma formação humanística e não comercial, sendo
esta, talvez, a razão do pequeno engajamento dos católicos nas empresas
capitalistas. Ainda, a regra da Igreja Católica, ‘punindo o herege, mas perdoando o
pecador’ inibia desde cedo a prática, por exemplo, da usura, da agiotagem, da
transação com a moeda e da prática do juro, o que no Brasil tem travado em muito o
131
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução. São Paulo:
Martin Claret, 2004, p.37.
84
desenvolvimento da economia e em conseqüência, a evolução da nação como um
todo.
Outro fator preponderante de oposição entre os pioneiros e bandeirantes foi
que os calvinistas vieram para os EUA para ficar, se orgulhavam em ser americanos
e não queriam voltar para a Inglaterra. Tinham ideais próprios, otimizavam o tempo
e acreditavam no enriquecimento pelo trabalho, na responsabilidade. E, deram as
costas para a Europa. Os descendentes dos portugueses, chamados de mazombos,
aqui considerados “bandeirantes” tinham ligação com o rei de Portugal, queriam
conquistar, não colonizar, não pensavam em enriquecer com trabalho, mas, eram
adeptos da busca rápida e fácil, não tinham sentimento nem ideais. Para eles a vida
era só de direitos e privilégios, não de dever e responsabilidade.
Moog descreve traços do bandeirante, termo que usa para identificar o
colonizador brasileiro e seus descendentes então chamados de mazombos:
A vida para ele, filho de algo, devia ser uma soma de direitos e de
privilégios; nunca uma soma de trabalhos, responsabilidades de deveres.
[...] só de uma coisa não era capaz o mazombo: de alegrar-se com o
trabalho. [...] Ganhar no jogo, eis uma das boas alegrias do mazombo. Ora,
não havia mundo menos moral que o da bandeira. Para começar, o seu
móvel principal, senão único, era a cobiça. Cobiça e luxúria, caça ao índio e
caça à fêmea, [...] Nelas o que imperava não era a lei moral, mas a lei do
mais forte, [...] então virtude seria a poligamia de fato e não a monogamia
ou a castidade.132
Na contra partida, temos a figura do pioneiro, tributo usado para identificar o
colonizador americano e seus descendentes, termo este que denota estabilidade,
imagem de quem veio para ficar, de quem cria, inventa, adapta, e, sobretudo,
acredita no trabalho. O pioneiro acredita na possibilidade do aperfeiçoamento moral
do homem. Moog faz algumas considerações mais sobre o pioneiro:
132
MOOG, Viana. Bandeirantes e Pioneiros – Paralelo entre duas culturas. Rio de Janeiro, Globo,
1954. p. 153-156.
85
[...] enquanto o elegante para o mazombo é ostentar desprezo pelo
dinheiro, o americano atribui ao dinheiro um valor místico, fazendo de seus
bancos verdadeiras catedrais do dólar; enquanto o hobby do mazombo é o
jogo ou a caça à fêmea, ou ambos, o dele é a jardinagem, a oficina ou o
laboratório de pesquisas.133
Enquanto o colonizador português tinha na mulher a imagem apenas
de um objeto ou instrumento de prazer, eis o que era a mulher para o colonizador
americano:
Para o colonizador do Brasil, homem da Renascença,(bandeirante) a
mulher é um objeto de presa. Para o puritano, homem da
Reforma,(pioneiro) a mulher é a companheira de trabalho, chumbada
como ele ao dever de ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Na luta
contra os índios, na derrubada da mata, na construção da cabana, na
marcha para o Oeste, nas lides da roça e do campo, encontrá-la-eis
sempre ao seu lado.134
Ao observar esta alternância de valores, parece-nos estar explícita a teoria
dos tipos apropriada pelo autor para descrever o perfil dos colonizadores
americanos e brasileiros, usando sempre a técnica da oposição. O autor busca
diferenciar e tipificar o modo de colonização impresso pelos portugueses e pelos
americanos através de “categorias sociológicas” baseadas em tipos característicos
que denotam uma ou outra categoria. É no uso do conceito de tipo, recurso
marcante de Weber, que podemos encontrar um vínculo entre Bandeirantes e
Pioneiros e Raízes do Brasil.
Moog, tendo escrito sua obra em 1954, dezoito anos após publicação de
Raízes do Brasil, e, tendo citado um ensaio outro de SBH, parece omitir a fonte, ou
pelo menos negar que usa a sistematização de Buarque. Quase urge dizer que
Moog
leva a influência do primeiro pela matriz com que faz o jogo dos pares
antagônicos em “Bandeirantes e Pioneiros” que faz lembrar os pares opostos
(ladrilhador e semeador; aventureiro e trabalhador). Como poderemos crer que
Moog fosse pesquisar tanto Weber e não pesquisar Buarque de Holanda, posto que
Ibidem, p. 162-164.
Ibidem, p. 166.
133
134
86
Raízes do Brasil é um livro que sociólogo e historiador nenhum deixaria de ler. Mas,
indaga-nos, questiona-nos o fato de que Moog não menciona tal obra de Buarque,
seria uma omissão para potencializar sua credibilidade perante os leitores menos
informados? O certo é que a tática usada por Viana Moog tem muito a ver com a de
SBH, e, é aí que reside a intertextualidade.
Fato atípico já acontecera quando Vianna Moog publicou sua obra,
Bandeirantes e Pioneiros, em 1954, porém, fez referência apenas a uma obra de
Sergio Buarque de Holanda – Prefácio às memórias de um colono no Brasil –
datado de 1941 e não citou Raízes do Brasil, publicado em 1936. Moog, em sua
obra parece seguir os passos de SBH apenas reinventando a problemática. Á
primeira vista, não seria lógico Moog escrever sua obra sem ter lido e estudado
Raízes do Brasil, porque usa naquela obra a estratégia e o método desta. É muita
clara a importância da obra de SBH para a obra de Vianna Moog. A tática de
recursos parece ser um evento claro de intertextualidade.
87
4.4 Casa e Rua
Sérgio Buarque trabalha muito bem a questão das interpretações dualísticas
do Brasil na sua obra de 1936, usando o que podemos chamar de pares
antagônicos para identificar espaços, costumes, culturas e grupos sociais que se
edificaram em situações opostas e até contraditórias em relações a outras. Este
recurso metodológico está consagrado no uso dos conceitos “Trabalho & Aventura”
e “o semeador e o ladrilhador.”
Roberto DaMatta, em sua obra, A casa & a rua - Espaço, cidadania, mulher e
morte no Brasil, editado em 1985, e, que se ocupa em estudar e analisar a realidade
brasileira, vem recriar os conceitos metafóricos “casa e rua” e transforma-os em
“categoria sociológica” para neles retratar supostas características da sociedade
brasileira, demonstrando que existe apropriação da obra do pesquisador Sérgio
Buarque de Holanda. Este recurso está presente no método, na estratégia, no uso
da dualidade, na análise de pares antagônicos. Roberto DaMatta, ao criar os
espaços opostos, casa e rua, poderá estar diretamente fazendo o mesmo confronto
que faz Buarque de Holanda com a figura do trabalhador e do aventureiro.
Roberto DaMatta não esteve tão próximo de Max Weber como esteve SBH.
Entretanto esteve sim, bem próximo do pensamento de SBH. A obra Raízes do
Brasil parece estar desde cedo muito à mão do jovem pesquisador. A “casa & a rua”
parecem separar, mais claramente, contextos como os que envolvem “trabalho &
aventura” e “o semeador e o ladrilhador”. O uso do “&” leva a imagem de Sérgio
Buarque de Holanda, pois, esse símbolo aparece em sua obra.
A influência de Max Weber sobre Roberto DaMatta parece estar ligada aos
conceitos da ética e suas questões, e também na análise do capitalismo e da
sociedade tradicional. As questões que envolvem os “tipos” e a recorrência do seu
uso também parecem proceder de Weber, mas, a maneira de criar o protótipo, pode
88
ser considerada uma intertextualidade com a tática de Buarque. A seguir
mostraremos os pares de conceitos opostos em O que é o Brasil e em Raízes do
Brasil.
Vejamos a tática usada por Buarque em “trabalho & aventura” e “o semeador
e o ladrilhador”.
Trabalhador
•Tira
o máximo proveito do insignificante
•Tem
•É
visão restrita
persistente
•Considera
a parte maior que o todo
Aventureiro
•Tem
•É
repulsa ao trabalho
adepto do ócio
•Não
tolera compromisso
•Colhe
o fruto sem plantar a
árvore
•Pensa
•Tem
•É
vontade determinada e enérgica
comprometido
•Tem
•É
que a riqueza custa trabalho
amor ao trabalho
voltado para a família
•Tem
pés no chão
•Busca
•Tem
•Vê
•É
espaços ilimitados
projetos vastos
horizontes distantes
adepto do desleixo e abandono
•Vive
na contemplação e amor
•Tem
vida de grande senhor
•Não
tem vontade determinada e
enérgica
•Vê
no todo maior importância do
que na parte
Vejamos ainda as duas categorias sociológicas usadas por Buarque em sua
obra, nos idos anos da década de 1930, quando criou as “categorias sociológicas”
do “o semeador e o ladrilhador” fundado no antagonismo dos pares.
89
Ladrilhador
•Valoriza
•
o traço retilíneo
Tem direção da vontade
•Denota
Semeador
•Não
tem rigor e método
•Não
tem providência
a preocupação com a urbanização, •Tem abandono e desleixo
com os ângulos retos
•
Tem fim previsto e eleito
•
Tem fim desordenado
•
Tem rigor e planejamento
•
Trabalho não acabado
•
Tem cuidado com o detalhe
•
Valoriza traço sinuoso sem
nenhum planejamento
•
É organização, tem planejamento e busca o
aperfeiçoamento
•
Constrói de forma desordenada
como que as sementes jogadas
por um semeador a crescer umas
amontoadas com as outras no
local em que fossem jogadas
•
Busca harmonia e perfeição na disposição
das peças com dedicação sagrada
•
Tem aspiração de dominar e ordenar o
Seus feitos não são produto
•
mental
•
Parece tudo irregular
mundo
•Tem
liberalidade desordenada
Tem
•
fantasias
e
busca
facilidades
•É
desorganizado
Em uma dualidade, novamente marcada pela oposição, Roberto DaMata, em
sua obra, O que é o Brasil?, usa os termos “casa” e “rua” para construir uma
identidade nacional a partir de aspectos mais populares e conhecidos da nossa
sociedade. Mais fortemente esta questão está marcada na sua obra específica “A
casa e a rua”. Para mostrar o estilo e o “jeito” desta sociedade, ele faz uma oposição
entre o “fora” e o “dentro” que estas palavras sugerem. Podemos observar um quase
plágio dos pares antagônicos usados por SBH.
Vejamos a tática usada por DaMatta em “casa e rua”.
90
Casa
Rua
•Dentro
*Fora
•Privado
*Público
•Predomínio
•Local
das relações pessoais
privilegiado
*Eixo das leis impessoais
*Onde os discursos são muito mais
rígidos
•Ressalta
a pessoa
*É o idioma do decreto, da letra dura
da lei, da emoção disciplinada
•Intensidade
emocional é alta
*Permite a exclusão, a cassação, o
banimento e a condenação
•Fundado
na família, na amizade, na *Baseado em leis universais, numa
lealdade, na pessoa e no compadrio
burocracia antiga e num formalismo
jurídico legal
•Local
acolhedor, informalidade
•Pessoas
conhecidas
•Estabilidade,
•Lugar
amor, respeito
*Espaço das massas
*Se move como um rio
*Pessoas desconhecidas
onde não se objetiva o lucro, sem *Um local perigoso e impositivo
concorrência
•Local
onde as atitudes são humanas
*Falho, subordina e explora
*Descaso, aflições e sombrio
*Lugar de luta e batalha
*Lugar de contradições e surpresas
*Lugar onde o tempo é medido pelo
relógio,
pelo
calendário
e
pelas
consideração,
amor,
agendas
*Local
sem
respeito e amizade
*Denota impessoalidade, igualdade e
trabalho igualitário
91
•Dentro
*Fora
*Local de atitudes desumanas. (o
“olho da rua.” Fiquei na rua da
amargura.)
Casa irá denotar as questões relacionadas ao privado; e rua, as questões
relacionadas ao público. Diz ele que a casa provê uma leitura especial do mundo
brasileiro. Observa que, num certo sentido, a casa, onde somos reis e donos, nos
protege da rua, onde não somos nada. Aponta para uma particularidade brasileira
dizendo que as nações modernas, casa e rua (público e privado) são regidas por
critérios diferentes, mas, no Brasil, sua unidade básica não está baseada em
indivíduos ou cidadãos, mas em relações e pessoas, famílias e grupos de parentes
e amigos.135 O autor escreve a rua como um espaço das massas, que se move
como um rio, num fluxo de pessoas indiferenciadas e desconhecidas. Lugar de luta
e de batalha, de contradições e surpresas. Lugar onde o tempo é medido pelo
relógio, pelo calendário e pelas agendas. Local sem consideração, amor, respeito e
amizade.
A rua denota impessoalidade, igualdade e trabalho, local do famoso
“batente”. A casa, por sua vez, é descrita como um local onde existe hierarquia,
onde as pessoas têm uma ordem de importância. É um espaço onde são negadas a
impessoalidade, a igualdade e o trabalho igualitário. O local onde misturamos tarefa
com amor, amizade. Onde as relações pessoais interferem nas relações de
trabalho. No Brasil, os pares antagônicos “casa” e “rua” têm servido para fazer uma
análise da nossa realidade, pois, metaforicamente constitui-se num espaço onde
podemos traçar parâmetros sobre evolução de nossa sociedade que parece mais se
identificar com o espaço da “casa”, onde tudo se mistura, onde as relações pessoais
acabam prevalecendo.
O diálogo entre os pesquisadores parece sempre ter sido evidente, até
porque o conhecimento vai evoluindo sempre sobre uma base legal daquilo que já
existe ou da bagagem cultural que temos. Sempre recorremos a outrem para buscar
135
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua - Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. - 4ª Ed. Rio
de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991, p. 84.
92
um indício ou uma prova que possa sustentar o que de novo queremos dizer. Esta
pesquisa também se apóia em algo já criado e dito, apoiado ainda, no já conhecido
conceito de intertextualidade. O próprio processo de pesquisar parece ser tão
dinâmico que tudo o que de novo podemos afirmar terá que ter base e sustentação
em algo já provado, ou então, não teremos a credibilidade necessária. Pode ser
esta uma das questões a mostrar que toda comunicação leva em si uma relação
forte de intertextualidade.
Nos trabalhos de Roberto DaMatta, ficam claros dois fatos. Primeiro, se
evidencia a contemporaneidade de Sérgio Buarque de Holanda que fala através da
voz desse pesquisador. Este evento está implícito quando o autor usa o forjado
conceito de SBH - “homem cordial” - no discurso que incorpora quando se refere a
questões sociais envolvendo o Brasil. A intertextualidade está presente em todos os
momentos em que o pesquisador usa os termos relativos à criação de Holanda que
marca seu “tipo” como aquele que familiariza tudo, que age sempre pela “corda” coração – e torna tudo familiar. Que fundamenta todas as relações em relações
pessoais, traz tudo para a intimidade. Tudo parece ser ou familiar ou totalmente
estranho. Podemos observar várias passagens onde invoca os conceitos de SBH ao
falar do Brasil:
... pois da conversa formal para a intimidade a distância é tênue no Brasil.
[...] Curioso país esse Brasil, feito de um credo liberal tão alardeado na
base de suas instituições jurídicas, mas operando de modo a privilegiar as
relações pessoais tão flagrantes.
No Brasil, por contraste, a comunidade é necessariamente heterogênia,
complementar e hierarquizada. Sua unidade básica não está baseada em
indivíduos ou cidadãos, mas em relações e pessoas, famílias, e grupos de
parentes e amigos.
Assim, dentro de minha rede de parentesco, compadrio e amizade, dentro
de casa, sou uma pessoa. Sou um ser dividido e relacional, cuja existência
social se legitima pelos elos que mantenho com outras pessoas num
sistema de transitividade e gradações.136
136
Ibidem, p. 79-99.
93
Isto posto, podemos deflagrar o diálogo do pesquisador com SBH e provar
também que o escritor de Raízes do Brasil está presente nos nossos tempos e na
mente dos nossos intelectuais em uma relação quase pessoal.
'Vainfas137 já identificara a presença do escritor francês Marc Bloch nas obras
de SBH – Visão do Paraíso e Raízes do Brasil – sem que o mesmo fosse citado por
Holanda, este apenas denunciou a intertextualidade no tocante à perícia da
comparação histórica , a comprovar o que Bloch pensava sobre “a comparação
como varinha de condão da história”. Temos aí o intertexto a esconder-se nas
entrelinhas do conhecimento adquirido.
Em Visão do Paraíso, obra de 1959, SBH mantém forte diálogo com a
historiografia do século XIX que mantém crença na produtividade inexaurível do
homem e da natureza. Buarque de Holanda também dialoga nesta obra com a
historiografia oitocentista do italiano Arturo Graf , Mitti, Leggende e Supersticioni del
Médio Evo, publicado em 1886. Este livro trata, segundo Vainfas, exatamente do
tema de Visão do Paraíso, só muda o contexto. Usa a mesma técnica – a busca do
paraíso terreal na literatura de viagens. Buarque de Holanda não cita Arturo Graf em
sua obra, assim causando, uma ocorrência de intertexto implícito.
Raimundo Faoro138 mostra espontaneamente em sua publicação uma
apropriação intertextual implícita quando afirma que SBH escreveu supostamente
apoiado numa citação de Max Weber ao falar na distinção fundamental entre os
domínios do privado e do público, afirmando que o funcionário detentor de cargo
público faz dessa gestão assunto de seu interesse particular. Nasce neste ponto a
figura do “homem cordial”.
137
VAINFAS, Ronaldo. Sérgio Buarque de Holanda: historiador das representações mentais. In:
Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 53.
138
FAORO, Raimundo. Sérgio Buarque de Holanda: analista das instiutições brasileiras. In:Sérgio
Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 61.
94
Antônio Arnoni Prado139 já afirma ser histórica a nossa alegada
incapacidade de criar espontaneamente, e, uma das provas disto é a publicação de
Raízes do Brasil em 1936, que se fundamenta no passado enquanto referência para
compreender a cultura brasileira, usando um arcabouço metodológico de escritores
que antecederam Holanda ou foram contemporâneos. E este copiar de idéias,
táticas e manobras discursivas podemos chamar de intertextualidade. O processo da
leitura é que nos conduz a este evento que se dá a partir do contato com inúmeros
textos. O processo de leitura, entendido como compreensão do discurso verbal,
envolve
processos
cognitivos
semelhantes
ao
processo
de
criação
num
processamento inverso. Na leitura do texto, o leitor não memoriza o texto, mas,
usando um modo cognitivo, extrai da leitura seqüencial as proposições apresentadas
pelo autor, tentando reconstruir mentalmente a estrutura do texto, proposições essas
que se relacionam localmente, isto é, no âmbito da frase e do parágrafo, bem como
num nível global, que envolve todo o texto. Daí o vínculo deste trabalho com o
processo de leitura e cognição; indispensáveis para a compreensão e percepção da
intertextualidade.
139
PRADO, Antônio Arnoni. Raízes do Brasil e o modernismo.In: Sérgio Buarque de Holanda e o
Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 72.
95
CONCLUSÃO
Este trabalho teve o objetivo de identificar relações de intertextualidades entre
a obra Raízes do Brasil e outras obras que se ocuparam em analisar a realidade
brasileira. Obras que antecederam e obras que sucederam o estudo de Sérgio
Buarque de Holanda. Nessas obras identificamos algum tipo de relações de
intertextualidade.
Descobrimos que o conhecimento tem caráter interativo e bidimensional e
que obras e estudiosos que se ocuparem de realidades afins acabam se
configurando em vozes que convergem para o mesmo ponto. Quando estas se
encontrarem no mesmo ponto de origem ou de chegada, embora com pequenas
divergências
semânticas,
estarão
se
configurando
como
relações
de
intertextualidade porque, mesmo diferentes, conceituam ou opinam diversamente
sobre o mesmo tema.
96
Na construção dos tipos e categorias sociológicas identificamos a presença
da teoria weberiana que se manifestou através do arcabouço metodológico de
alguns estudiosos. Ferrater Mora diz que “tipo” representa um modelo que permite
produzir um número indeterminado de indivíduos que se reconhecem pertencentes a
uma mesma classe com ares, até, de família dado à semelhança entre si. Max
Weber ao falar de “tipo” deixa claro a necessidade de haver “um agir típico” e “uma
regularidade no desenrolar” e que a construção de um “tipo” se baseia em
paradigmas. Neste quesito, Raízes do Brasil evidencia relações de intertextualidade
entre Sérgio Buarque de Holanda, Max Weber, Ribeiro Couto e Cassiano Ricardo
quando vai tocar no tema do “homem cordial”. Primeiro ao expor a categoria
sociológica capaz de descrever a imagem e o perfil do homem brasileiro; segundo,
ao acirrar discussões e mostrar pontos de vista diferentes de um ou de outro
escritor.
Podemos dizer que temos um conjunto de vozes a falar sobre o ”homem
cordial”. A terceira edição de Raízes do Brasil saiu em outubro de 1955 trazendo
como novidade o debate sobre o “homem cordial”; conceito criado por Ribeiro Couto
e interpretado de maneiras diferentes por SBH e Cassiano Ricardo. Nesta edição,
então, encontram-se as objeções de CR e as respostas que lhe foram dadas pelo
autor de Raízes do Brasil. No ano de 1959, o Ministério da Educação e Cultura
manda publicar a obra de Cassiano Ricardo intitulada O Homem Cordial. Desta
forma, Raízes do Brasil polarizou as discussões a respeito do conceito do “homem
cordial”, criado como conceito por Ribeiro Couto, que por sua vez, ainda, fora título
da obra de Cassiano Ricardo em 1959.
O uso dos tipos, recurso marcante de Weber e que fora usado por SBH, para
formar novas categorias sociológicas volta a aparecer em Vianna Moog na obra
Bandeirantes e Pioneiros.
O autor apela para o método do sociólogo alemão,
usando a técnica da oposição, para identificar e diferenciar o modo de colonização
impresso pelos portugueses e pelos americanos através de categorias sociológicas
baseadas em tipos que marcam as características psíquicas de uma ou outra
97
categoria. O escritor Roberto DaMatta também recorre ao uso dos tipos quando
analisa os pares antagônicos “casa e rua” e transforma-os em categorias
sociológicas para neles retratar características da sociedade brasileira. Nos uso
desses métodos é que está a intertextualidade forte da obra de Roberto DaMatta
com as obras de Max Weber, Vianna Moog e, principalmente, Sérgio Buarque de
Holanda.
Observamos neste trabalho a forte influência de Raízes do Brasil sobre
alguns escritores. Roberto DaMatta, ao criar os conceitos metafóricos “casa e rua” e
transformá-los
em
“categoria
sociológica”
para
neles
retratar
supostas
características da sociedade brasileira, demonstra que existe apropriação da obra
do pesquisador Sérgio Buarque de Holanda. Este recurso está presente no método,
na estratégia, no uso de pares antagônicos. Roberto DaMatta, ao criar os espaços
opostos, casa e rua, poderia certamente estar fazendo o mesmo confronto que faz
Sérgio Buarque de Holanda com a figura do trabalhador e do aventureiro.
O
pesquisador deve ter estudado as obras de SBH com mais intensidade do que as
obras de Max Weber, até porque o primeiro é brasileiro. A obra de Roberto DaMatta
parece reproduzir táticas e métodos usados por SBH. Outrossim, é lógico que
qualquer sociólogo brasileiro que vá ocupar-se em estudar a formação de nossa
sociedade passe logo a debruçar-se sobre Raízes do Brasil, por ser esta uma das
maiores obras acerca deste assunto. E, parece muito claro que Raízes do Brasil
tenha estado sob a análise do pesquisador. A “casa & a rua” parece ter em si muito
da sistematização de SBH, até mesmo nos detalhes do emprego de algumas letras
e expressões.
As relações de intertextualidade entre DaMatta e Max Weber parecem estar
ligadas mais diretamente às questões que envolvem a criação dos “tipos” e a
recorrência do seu uso. A estratégia em criar os pares antagônicos deixa muito clara
a intertextualidade com o método de Sérgio Buarque de Holanda.
Outro fato que observamos foi o de que Vianna Moog, tendo escrito sua obra
em 1954, dezoito anos após publicação de Raízes do Brasil, citou apenas um outro
98
trabalho de SBH e omitiu a citação de Raízes do Brasil. Este fato parece influenciar
Moog pela maneira como analisa as classes sociológicas em Bandeirantes e
Pioneiros que logo traz a mente dos leitores os pares opostos criados por SBH.
Deveria Vianna Moog ter citado Raízes do Brasil no corpus de Bandeirantes e
Pioneiros já que esta obra contém uma intertextualidade explícita com a obra de
Sérgio Buarque de Holanda.
Sobre o tema que envolve o bandeirismo no Brasil observamos uma relação
de intertextualidade de Raízes do Brasil com Marcha para Oeste e Bandeirantes e
Pioneiros, embora nesta última não exista a citação de Raízes do Brasil como
referência bibliográfica. Em sua obra, Cassiano Ricardo faz referências explícitas a
Sérgio Buarque de Holanda embora, este, não tenha feito um estudo mais
aprofundado sobre a importância das bandeiras na formação da sociedade
brasileira. Cassiano Ricardo põe a prova o perfil sociológico do bandeirante e do
ladrilhador provando que os espanhóis não eram tão “ladrilhadores” quanto dizia
SBH e que os “bandeirantes” não eram tão portugueses como afirmara o autor de
Raízes do Brasil. Tão forte e clara a afirmação que o autor demonstra que vários
líderes bandeirantes eram de estirpe espanhola.
Sobre as relações de Sérgio Buarque de Holanda com seus
antecessores e com os contemporâneos podemos observar que havia uma
discordância muito grande do sociólogo com os naturalistas da época. SBH atacava
sempre as teses defendidas pelos antropologistas que potencializavam o clima, o
meio ambiente, a geografia, a raça; enquanto tinha e defendia uma concepção
culturalista acreditando que a cultura e não a natureza é determinante para a
interpretação de uma sociedade. Ao estudar a realidade brasileira, SBH colocava
como causa principal na formação de nossa sociedade a predominância das
características da cultura ibérica, mais precisamente da cultura portuguesa. SBH se
opôs à concepção naturalista encontrada na obra Os sertões, de Euclides da Cunha,
nas obras O problema nacional brasileiro de Alberto Torres e Aspectos da história e
da cultura do Brasil, Raça e assimilação e a Evolução do povo brasileiro, de Oliveira
Vianna. SBH fora um estudioso influenciado pela corrente culturalista alemã e seu
99
mestre Max Weber parece ter implantado-lhe esta concepção de forma marcante e
definitiva.
Finalmente, podemos observar em Raízes do Brasil que SBH inicia como um
ensaísta sociológico e passa para a monografia histórica ao analisar os
fundamentos do nosso passado histórico. Isto já pode perceber no título de sua obra
ao iniciar por “raízes”. O autor tem estudado o modo de ser do brasileiro, sua
estrutura social e política para depois analisar o Brasil e seu povo.
O homem cordial e o funcionário patrimonial parecem ser uma herança
exclusivamente nossa e que nos foi mostrado muito claramente em Raízes do
Brasil. Características muito marcantes na sociedade brasileira que sentimos bem
de perto, no nosso jeito de ser, de conceber a realidade e de conduzir as relações
humanas no ambiente familiar, nos negócios, no setor público e privado. O
funcionário patrimonial do período colonial ainda está presente em todas as esferas
da administração pública a nos surpreender negativamente com atos que sempre
visam seus interesses particulares em detrimento dos interesses objetivos e
impessoais que deveriam regem o Estado burocrático.
Enfim, muito ainda há de se pesquisar e estudar sobre intertextualidade e os
autores envolvidos. Raízes do Brasil
tem sido neste trabalho um pólo, uma
referência neste vasto campo das relações intertextuais que sempre terá algo para
acrescentar a uma teoria já vasta e aprofundada. Não teve este estudo o intuito de
dar respostas definitivas, mas, de mostrar relatividades e complexidades que
envolvem o interminável estudo do texto, que em tese, se constrói a partir de vozes
e fontes.
100
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