Luiz Homero Groff RAÍZES DO BRASIL DE SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA COMO PÓLO DE RELAÇÕES DE INTERTEXTUALIDADE Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Letras – Mestrado, Área de Concentração em Leitura e Cognição, Universidade de Santa Cruz do Sul - UNISC, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Letras. Orientador: Prof. Dr. Jorge Alberto Molina Santa Cruz do Sul, novembro de 2007 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. 2 BANCA EXAMINADORA Prof. Dr. Jorge Alberto Molina (UNISC)(Orientador) Prof.ª Drª. Flávia B. ramos (UNISC) Prof. Dr. Arlei Sander Demo (UFRGS) 3 G874r Groff, Luiz Homero Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda como pólo de relações de intertextualidade / Luiz Homero Groff; Grof; orientador, orientador, Jorge Alberto Molina. - 2007. 105fl.: il. Dissertação (Mestrado) – Programa de Pós-graduação em Letras, Universidade de Santa Cruz do Sul, 2007. Bibliografia 1. Intertextualidade. 2. Sociologia na literatura. 3. Leitura. 4. Sérgio Buarque de Holanda. I. Molina, Jorge Alberto. II. Universidade de Santa Cruz do Sul. Programa de Pós-graduação em Letras. III. Título CDD : 401.41 Bibliotecária: Jorcenita Alves Vieira CRB 10/1319 4 AGRADECIMENTOS Agradeço a Adriane Arlete, minha paixão de todas as horas, aos meus familiares pelo incentivo, carinho e compreensão, aos professores e colegas do Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado, pelo ensinamento e amizade e, em especial ao professor orientador Dr. Jorge Alberto Molina, pela sabedoria transmitida, pela luz que acendeu e pela companhia indispensável na caminhada, pelo encorajamento e pelo interesse comigo na realização deste trabalho. 5 Pouco por força podemos, isso que é, por saber veio, todo mal jaz nos extremos, o bem todo jaz no meio. (Sá de Miranda) 6 SUMÁRIO INTRODUÇÃO...........................................................................................................12 1 O CONCEITO DE INTERTEXTUALIDADE............................................................17 2 A APROPRIAÇÃO DA NOÇÃO WEBERIANA DE TIPOS EM RAÍZES DO BRASIL......................................................................................................................24 2.1 Os tipos................................................................................................................24 2.2 Os tipos em “Raízes do Brasil”............................................................................28 2.2.1 Trabalhadores e aventureiros...........................................................................29 2.2.2 Semeador e ladrilhador.....................................................................................35 2.2.3 Um questionamento à dicotomia.......................................................................40 2.2.4 O homem cordial..............................................................................................43 2.2.5 “El hombre cordial”............................................................................................49 2.2.5.1 Intertextualidade implícita...............................................................................53 3 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E SUA RELAÇÃO COM SEUS ANTECESSORES E CONTEMPORÂNEOS............................................................55 3.1 Os naturalistas.....................................................................................................56 3.2 Euclides da Cunha...............................................................................................57 3.3 Alberto Torres......................................................................................................59 3.4 Oliveira Vianna.....................................................................................................62 3.5 Cassiano Ricardo: a miscigenação não deteriora as raças.................................66 3.6 O modernismo e Sérgio Buarque de Holanda.....................................................70 4 A APROPRIAÇÃO DE RAÍZES DO BRASIL........................................................ 76 4.1 Sérgio Buarque de Holanda e a historiografia européia:relacionando textos......76 7 4.2 Comparando dois textos: Raízes do Brasil e Marcha para Oeste.......................78 4.3 Bandeirantes e pioneiros......................................................................................83 4.4 Casa e Rua..........................................................................................................87 CONCLUSÃO............................................................................................................96 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................101 8 RESUMO O objetivo deste trabalho consistirá em analisar as relações de intertextualidade tecidas ao redor da obra Raízes do Brasil , de Sérgio Buarque de Holanda. Como é bem sabido, o autor deste texto se apropriou de noções e teorias provenientes da Sociologia alemã do começo do século XX, cujos representantes mais destacados foram Max Weber e Georg Simmel. Encontramos em Raízes do Brasil referências explícitas às obras de Max Weber de quem Sérgio Buarque adaptou a concepção de tipo sociológico. Parte do nosso trabalho foi identificar e comentar essas referências. Por isso as relações de Raízes do Brasil com a obra weberiana são bastante conhecidas, mas, menos o são, nos parece, os vínculos do texto de Sérgio Buarque de Holanda com a obra de seus antecessores brasileiros pertencentes a uma geração anterior. Há em Raízes do Brasil um diálogo implícito, um contraponto, com aqueles autores que, desde uma perpectiva naturalista, escreveram sobre nossa realidade social. Eles consideraram que as características de nossa sociedade dependiam de fatores como o clima, a topografia de nosso solo, as particularidades das raças que aqui habitaram, desdenhando, assim, aspectos culturais como a língua, a religião, as instituições políticas, em suma, nossa herança cultural ibérica, aspectos que o texto de Sérgio Buarque de Holanda considera como determinantes na formação da nossa sociedade. Ao construir Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda, não dialogou só com os autores alemães, nem com aqueles autores brasileiros pertencentes a uma geração anterior, como também com seus contemporâneos brasileiros pertencentes ao movimento modernista. Tentamos situar o autor dentro deste movimento e determinar como chegou a formar o conceito do “homem cordial”. Por último, tentamos estudar como os autores posteriores que escreveram sobre nossa realidade se apropriaram do texto de Sérgio Buarque. Apropriações que vão desde a alusão explícita até a implícita, más também, às vezes, o plágio. Nosso trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo dissertamos sobre o conceito de intertextualidade a partir das perspectivas de G. Genette e de J. Kristeva. No segundo capítulo, nos ocupamos 9 dos vínculos entre a obra de Sérgio Buarque de Holanda e a sociologia de Max Weber. No terceiro, escrevemos sobre as relações implícitas entre nosso autor e os autores naturalistas, e sobre sua relação com o movimento modernista. Por fim, no último capítulo nos ocupamos da repercussão de Raízes do Brasil sobre outros textos que abordaram a questão da formação de nossa sociedade. Palavras-chave: Intertextualidade, texto, Brasil, tipos, sociologia 10 RESUMEN El objetivo de este trabajo consistió en analizar las relaciones de intertextualidade tejidas en torno de la obra de Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasil. Como es bien sabido, el autor de ese texto se apropió de nociones y teorías provenientes de la Sociología alemana de comienzos del siglo XX, cujos representantes más destacados fueron Max Weber y Georg Simmel. Encontramos em Raízes do Brasil referencias explícitas a las obras de Max Weber de quien Sérgio Buarque adoptó el concepto de tipo sociológico. Parte de nuestro trabajo fue identificar y comentar esas referencias. Pero si las relaciones de Raizes do Brasil con la obra weberiana son bastante conocidas , menos lo vínculos del texto de Sérgio Buarque con son , nos parece, los la obra de sus antecesores brasileños pertenecientes a una generación anterior. Hay em Raizes do Brasil un diálogo implícito con aquellos autores que, desde uma perspectiva naturalista, escribieron sobre nuestra realidad social. Ellos consideraron que las características de nuestra sociedad dependían de factores como el clima, la topografía de nuestro suelo, las particularidades de las razas que lo habitaron, desdeñando así aspectos culturales como la lengua, la religión, las instituciones políticas, en suma nuestra herencia cultural ibérica, aspectos que el texto determinantes en la de Sérgio Buarque considera como conformación de nuestra sociedad. Al construir Raízes do Brasil, Sérgio Buarque no dialogó sólo com los autores alemanes, ni con aquellos autores brasileros pertenecientes a una genetración anterior, sino también con sus contemporáneos brasileños pertenecientes al moviemiento modernista. Intentamos situar al autor dentro de este movimiento y determinar cómo nuestro autor llegó a formar el concepto de “hombre cordial”. Por último intentamos estudiar como los autores posteriores que escribieron sobre nuestra realidad se apropiaron del texto de Sérgio Buarque. Apropiaciones que van desde la alusión explícita, hasta la implícita, más también, a veces, hasta el silencio o el plagio. Nuestro trabajo está divido em cuatro capítulos. En el primero disertamos sobre el concepto de intertextualidad a partir de las perspectivas de G. Genette e de J. Kristeva. En el segundo nos ocupamos de los vínculos entre la obra de Sérgio Buarque y la sociología de Max Weber. En el tercero escribimos sobre las relaciones implícitas 11 entre nuestro autor y los autores naturalistas, y sobre su relación con el movimiento modernista. Por fin, en el último capítulo nos ocupamos de la repercusión de Raizes do Brasil sobre otros textos posteriores que abordaron la cuestión de la conformación de nuestra sociedad. Palavras maestras: Intertextualidad, Brasil, sociología , texto, tipos 12 INTRODUÇÃO Através desta pesquisa objetivamos mostrar a possibilidade de identificar diversas relações de intertextualidade que têm como pólo ou termo uma obra não estritamente literária, análise esta realizada na maioria das vezes em textos literários que, tradicionalmente, são conhecidos como um universo de natureza ficcional com dimensões muito variáveis. Sendo constituídos por diversos níveis de expressão, os textos literários têm uma dimensão virtualmente intertextual porque permitem ser relacionados com outros textos que com eles dialogam e neles se manifestam. Porém, a intertextualidade abarca, também, os textos não literários porque toda palavra oral ou escrita, em grande ou pequena quantidade, pode ser citada, posta entre aspas e pode reiterar ou interagir com outras palavras. Desta forma, também os textos não literários podem romper com um dado contexto, engendrar ou modificar novos contextos até o infinito de maneira absolutamente não saturável. Assim sendo, entendemos a intertextualidade como uma característica também inerente aos textos científicos, técnicos, sociológicos, históricos, etc. Esta dissertação está vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Letras – Mestrado, Área de Concentração em Leitura e Cognição, dentro da linha de pesquisa – Processos Cognitivos e Textualidade – que investiga a leitura e seus processos cognitivos. O ato de ler entendido como compreensão do discurso verbal, envolve processos cognitivos semelhantes àqueles da criação num processamento inverso. Na leitura do texto, o leitor não apenas o memoriza, mas, também extrai da leitura seqüencial as proposições apresentadas pelo autor, tentando reconstruir mentalmente a estrutura do texto. Nessa tarefa, o leitor tenta, em geral, aplicar um esquema constituído pelas estruturas apreendidas em leituras anteriores, o que, por sua vez, facilita a tarefa, que, em última instância, é estabelecer o conceito ou significado. No momento que acontece este processo no qual o leitor recorre a outros textos para construir significados e, até, novos textos, podemos dizer que ocorre o evento da intertextualidade. 13 O processo que envolve a cognição é mais do que simplesmente a aquisição de conhecimento e conseqüentemente, a nossa melhor adaptação ao meio - mas é também um mecanismo de conversão do que é captado para o nosso modo de ser interno. Ela é um processo pelo qual o ser humano interage com os seus semelhantes e com o meio em que vive, sem perder a sua identidade existencial. Começa com a captação da realidade através dos sentidos e logo em seguida ocorre a percepção. É, portanto, um processo de conhecimento, que tem como material a informação do meio em que vivemos e o que já está registrado na nossa memória. A obra de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, se configura como um livro posicionado na metade do caminho entre o ensaio sociológico e a monografia histórica. Não seria reconhecido hoje como um trabalho de Sociologia ou de História stricto sensu, pelo fato de o autor não usar a metodologia e a forma de exposição que é padrão hoje nessas disciplinas. Vejamos o que diz a análise do crítico Evaldo Cabral de Mello1: “SBH abandonou o projeto de interpretação sociológica do passado brasileiro em favor de uma análise de cunho eminentemente histórico. [...] No cerne desta mutação do sociológico em historiador encontrou-se, suspeito, a consciência de uma antítese entre a explicação sociológica e a explicação histórica.” Esta obra, pela sua temática, também não seria classificada como um texto de literatura. Não sendo nem romance, nem conto, nem drama , nem poesia, Raízes do Brasil pertence a um gênero textual classificado como ensaio históricosociológico onde podemos situar obras como o Facundo de Sarmiento, a Rebelión de las Masas de Ortega y Gasset, Casa grande e Senzala de Gilberto Freyre , a Radiografia de la Pampa de Martínez Estrada e El Laberinto de la soledad do poeta mexicano Octavio Paz, entre outros. A sociologia latino-americana contemporânea teve como um dos seus objetivos superar esse tipo de ensaística apresentando suas Ver Evaldo Cabral de Mello. Raízes do Brasil e depois. In: Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 1 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. – São Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 269 ss. 14 pesquisas em forma de monografia, ou artigos científicos onde é feito um uso cada vez maior de ferramentas estatísticas. Em Raízes do Brasil reconhecemos referências explícitas a outros textos, e entre eles a obra A ética protestante e o espírito do capitalismo, de Max Weber. Discutiremos o uso que é feito por Sérgio Buarque de Holanda da noção weberiana de tipo, que é usada várias vezes no seu texto, algumas vezes na forma de pares antagônicos (trabalho e aventura, o semeador e o ladrilhador) ou como conceito individual quando nos deparamos com o tipo “homem cordial”, usado por SBH para descrever a identidade nacional brasileira. Além disso, buscamos identificar algumas relações de intertextualidade no ensaio de Sérgio Buarque de Holanda com outros textos anteriores e posteriores, que se ocupam também da realidade brasileira. Nossas análises tomarão por base a edição comemorativa dos 70 anos de Raízes do Brasil que contém a 2ª edição desta obra, do ano de 1947, com alterações abundantes onde foram retificados e ampliados alguns temas. Os capítulos 3 e 4 foram separados e tiveram novas denominações de conteúdos, entre eles, ”O semeador e o ladrilhador”; categorias sociológicas usadas para descrever as características dos colonizadores portugueses e espanhóis. A terceira edição saiu em outubro de 1955 e de novidade trouxe o debate sobre o “homem cordial”; conceito criado por Ribeiro Couto e interpretado de maneiras diferentes por SBH e Cassiano Ricardo. Nesta edição, então, encontram-se as objeções de CR e as respostas que lhe foram dadas pelo autor de Raízes do Brasil. O índice onomástico também passa a fazer parte da obra a partir da 3ª edição. As duas obras parecem ter borbulhado já na primeira metade do século XX quando muito se especulava a respeito da formação, diversidade e complexidade que envolvia a formação da sociedade brasileira. No capítulo 1, faremos uma revisão da literatura que possa reafirmar os conceitos de intertextualidade iniciados por Gérard Genette, onde este coloca o termo “transtextualidade” como o mais includente e que abarca os demais níveis de intertextualidade os quais ele divide em cinco, conforme veremos. No capítulo 2, 15 trabalharemos os conceitos de “tipo” baseados em teorias dos sociólogos lá citados e com ênfase na noção weberiana de tipos, da qual se apropria Sérgio Buarque de Holanda em sua obra, Raízes do Brasil. Estes conceitos facilitam a compreensão das individualidades humanas, das categorias sociológicas e do “homem cordial”, perfil sociológico que representa a imagem do brasileiro, suas virtudes e seus padrões de convívio humano. Nesse capítulo estudaremos o conceito do “homem cordial” e faremos um paralelo entre as classes sociológicas “trabalhadores e aventureiros” e “semeador e ladrilhador” que foram amplamente usadas na obra de SBH. No capítulo 3, faremos uma explanação sobre a relação de Sérgio Buarque de Holanda com seus antecessores e seus contemporâneos, com ênfase aos naturalistas, com os quais ele tinha algumas divergências. Citaremos Cassiano Ricardo para observar questões que dizem respeito à miscigenação racial e o bandeirismo no Brasil. Faremos, ainda, considerações sobre as relações de SBH com o modernismo. No capítulo 4, mostraremos algumas formas de apropriação de Raízes do Brasil, por parte de outros autores e obras, o que, de certa forma, deixa muito claro o evento da intertextualidade. Esta apropriação parece estar na forma de criar as categorias sociológicas e na maneira de usá-las ao se ocupar em estudos da realidade brasileira por parte de alguns autores contemporâneos. No contexto que envolve a produção e a percepção do ensaio de SBH temos obras que influenciaram sua composição, sua estrutura e seus argumentos, e, obras posteriores que foram influenciadas pelos estudos contidos em Raízes do Brasil, como podemos ver no seguinte diagrama: 16 Oliveira Vianna Max Weber A ética protestante e o espírito do capitalismo e Economia e sociedade Raça e assimilação e Evolução do povo brasileiro Euclides da Cunha Alberto Torres O problema nacional brasileiro Os sertões Sérgio Buarque de Holanda Raízes do Brasil Vianna Moog Roberto DaMatta O que é o Brasil? e A casa & a rua . Cassiano Ricardo Marcha para Oeste. (A influência da “Bandeira na formação social e política do Brasil) Bandeirantes e Pioneiros 17 1 O CONCEITO DE INTERTEXTUALIDADE A cada novo texto que construímos, escrito ou falado, fazemos referência a outros textos anteriormente lidos, com os quais tivemos contato e que acabaram por enriquecer o nosso conhecimento e que nos influenciam a cada nova construção textual. Estes conhecimentos vindos de diversas fontes comunicativas acabam por se cruzar uns com os outros numa tecitura nova em cada novo discurso ou manifestação comunicativa, como uma espécie de rede onde existem muitas ligações que tornam perfeita a nova peça discursiva. A este mecanismo de construir novos textos a partir de outros com os quais anteriormente tivemos contato, podemos chamar de intertextualidade. Vejamos a seguir o que dizem a respeito alguns autores, iniciando com Gérard Genette. Na sua obra Palimpseste, define intertextualidade como: uma relação de co-presença entre dois ou mais textos [...] como a presença efetiva de um texto noutro. Em sua forma mais explícita e mais literal trata-se da citação [...]. De forma menos explícita e menos canônica, do plágio, ou seja, um empréstimo ainda literal, mas não declarado. De forma ainda menos explícita e menos literal, trata-se da alusão, ou seja, de um enunciado[...] que pressupõe a percepção de uma relação com outro enunciado ao qual remete necessariamente uma ou outra de suas inflexões...2 Na análise da intertextualidade empreendida e aprofundada por Genette, vemos que a transcendência textual está definida como tudo aquilo que coloca o texto, explícita ou implicitamente, em relação com outros textos. Gérard Genette propõe o termo "transtextualidade" como um termo mais includente do que “ par une relation de coprésence entre deux ou plusieurs textes, c’est-à-dire, eidétiquement et le plus souvent, par la présence effective d’un texte dans un autre. Sous sa forme la plus explicite et la plus littérale, c’est la pratique traditionnelle de la citation; [...] Sous une forme moins explicite et moins canonique, celle du plagiat, qui est un emprunt non déclaré, mais encore littéral; sous forme encore moins explicite et moins littérale, celle de l’allusion, c’est-à-dire d’un énoncé dont la pleine intelligence suppose la perception d’un rapport entre lui et un autre auquel renvoie nécessairement telle ou telle de ses inflexions...” GENETTE, G. Palimpsestes: la littérature au second degré. Paris: Seuil, 1982, p. 8. (Tradução nossa) 2 18 intertextualidade englobando, assim, todos os níveis de interextualidade e outros tipos de relações transtextuais que distribui em em cinco categorias: Intertextualidade: a primeira categoria, explorada na década de 60 por Kristeva3, vimos que é definida por Genette como uma relação de co-presença entre dois ou mais textos, como a presença efetiva de um texto noutro como citação, plágio ou alusão. Podemos distinguir duas classes “puras” de intertextualidade: uma classe é a intertextualidade poética, própria do texto literário, onde um autor se apropria livremente de aspectos de outro texto, geralmente escrito antes. Assim Virgílio na Eneida, se apropriou da Odiséia de Homero, e Eça de Queirós se apropriou no primo Basílio de Madame Bovary, de Flaubert. Outra classe de intertextualidade é aquela que podemos chamar de crítica. Nesta classe o autor não se apropria livremente de outro texto, mas tenta colher o verdadeiro significado daquele texto. É o que acontece por exemplo com a Nervura do real, onde Marilena Chauí tenta interpretar a Ética, de Espinosa. Na intertextualidade crítica o autor tenta ser fiel àquele outro texto que está analisando. Paratextualidade: a segunda categoria de transtextualidade que é geralmente a relação menos explícita e mais distanciada que o texto mantém com seu paratexto, como o uso de um título, subtítulo, prefácios, notas de rodapé ou referência mais distante. Metatextualidade: a terceira categoria que, segundo Genette, se constitui num comentário crítico explícito ou implícito de um texto a respeito de outro texto, até mesmo, sem citá-lo. Isso é muito comum na Filosofia. São inúmeros os comentários sobre as obras clássicas dos grandes filósofos. Grandes textos da Filosofia nasceram como comentários, por exemplo os comentários de Santo Tomás de Aquino às obras de Aristóteles. 3 KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução Lúcia Helena França Ferraz. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 67. 19 Hipertextualidade: a quarta categoria de transtextualidade que Genette denomina, quando um texto B depende de texto anterior (A) para existir, mesmo não falando do hipotexto (A). É uma situação onde o hipotexto é condição de existência para o hipertexto. Quando um texto é derivado de outro pré-existente no qual se baseia, mas transformando-o, modificando-o, elaborando-o ou estendendo-o. Daí, que se origina a hipertextualidade utilizada na informática: trata-se de um texto que pode levar o leitor diretamente para outros textos. Arquitextualidade: quinto tipo de transtextualidade que é constituído por um caso muito abstrato de intertextualidade, é mais implícita e oculta do que as anteriores. É uma relação muda, eventualmente articulada por uma menção de título ou subtítulo, que pertence exclusivamente ao aspecto taxionômico, segundo o autor. Designação de um texto como parte de um gênero ou gêneros. Podemos citar como exemplo a obra Confissões, de Rousseau, na qual o título já indica que a obra de Rousseau pertence a um gênero literário do qual fazem parte as Confissões, de Santo Agostinho, e os Solilóquios, de Marco Aurélio. A transtextualidade, que podemos conceituar como transcendência textual do texto, ultrapassa a intertextualidade e abarca toda a amplitude envolvendo o conjunto das categorias gerais. Servirão, essas categorias como referencial teórico para que possamos propor uma análise das fronteiras intertextuais em Raízes do Brasil. Em seu livro Introdução à Semanálise, Kristeva4 afirma que todo texto se constrói como um mosáico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto, ou seja, faz a retomada explícita de textos históricos ou literários situados em tempo e espaço determinados. Isso significa que textos lidos ou construídos por nós anteriormente estão em constante interação, em constante diálogo com nossas construções textuais do presente. “O simples ato de folharmos um jornal já pode ser indicativo de uma maneira de ler não só o jornal, mas também Ibidem, p. 68. 4 20 a sociedade em que ele circula”5. Baseados nesta afirmação, podemos dizer que formamos conceitos e tiramos conclusões levando em conta nosso conhecimento de outros tantos textos já lidos ou construídos e que interagem na leitura que fazemos no presente. Além disso, os saberes prévios adquirido pelos leitores influenciam direta ou indiretamente todas as suas próximas leituras. Esta concepção parece estar clara na afirmação de Ângela Kleimann6, quando diz que sem o engajamento do saber prévio do leitor não haveria compreensão e, que o saber adquirido determina, durante a leitura, as inferências que o leitor fará com base nas informações do texto. Ao falar de crítica e intertextualidade Perrone-Moisés7, nos enfatiza que a intercomunicação dos discursos não é algo novo. Novo é que, a partir do século XIX, esse inter-relacionamento apareça como algo sistemático e assumido pelos escritores e falantes e que o recurso a textos alheios já é uma prática comum e necessária para a elaboração do sentido. Perrone-Moisés, ao falar dos seus próprios textos, diz, ainda, que o inter-relacionamento significativo das palavras é uma característica de qualquer fala. Bakhtin8 faz referência aos romances de Dostoievski, onde as palavras caracterizam-se por serem polivocais, e acentua que a multiplicidade de vozes e consciências independentes e imiscíveis e a autêntica polifonia de vozes diferentes – que mantém com as outras vozes do discurso uma relação de absoluta igualdade como participantes do grande diálogo – constituem, de fato, a peculiaridade fundamental dos romances de Dostoievski. Polifonia que entendemos como vozes diferentes, cantando diversamente o mesmo tema. A intertextualidade é uma condição básica para a construção do significado textual e da boa comunicação. Alba Olmi, usando expressão de Kristeva, na esteira de Bakhtin, assim explicita: “Todo texto é absorção e transformação de uma multiplicidade de outros textos”, e, ainda para complementar: 5 GRAÇA, P., WALTY, I., FONSECA, M. N., CURY, M. Z. Tipos de textos, modos de leitura. Belo Horizonte: Editorial, 2001, p. 45. 6 KLEIMANN, Ângela. Texto & leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas: Pontes, 1999, p.13. 7 PERRONE-MOISÉS, Leyla. Texto, crítica, escritura .São Paulo: Ática,1978, p. 59. 8 BAKHTIM, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 4. 21 Entende-se por intertextualidade este trabalho constante de cada texto com relação aos outros, esse imenso e incessante diálogo entre obras que constitui a literatura. Cada obra surge como uma nova voz (ou um novo conjunto de vozes) que fará soar diferente as vozes anteriores, arrancando-lhes novas entonações9. Alba Olmi em seu livro Uma escritora de ficção e a ficção de uma escritora cita Philippe Sollers, “todo texto situa-se na junção de mais textos onde ele é, ao mesmo tempo, a releitura, a acentuação, a condensação e o aprofundamento”.10 Ao estudar os aspectos e relações intertextuais em Janet Frame, Olmi cita em sua obra a conceituação de Roland Barthes que afirma que o texto redistribui a língua, o texto é de fato o campo dessa redistribuição. Um dos caminhos dessa desconstrução-reconstrução é o de permutar os textos, fragmentos de textos de textos que existiram ou existem ao redor do texto considerado e, finalmente, nele: todo texto é um intertexto; outros textos estão presentes nele, em níveis variáveis, sob formas mais ou menos reconhecíveis: os textos da cultura anterior e os da cultura circundante; todo texto é um tecido novo de citações revolvidas. Passam no texto, redistribuídos nele, pedaços de códigos, fórmulas, modelos rítmicos, fragmentos das línguas sociais, porque há sempre linguagem antes e ao redor do texto11 No universo da intertextualidade, acabamos sempre por fazer o uso da citação, recurso este que usamos implícita ou explicitamente e que, segundo Compagnon12 nada mais é que uma forma de repetição de pensamento. Este recurso já está embutido no saber do escritor que incorporou o saber ou as crenças daquele que ele cita. Em sua obra ele fez um enxerto do saber de outrem, assim, podemos dizer que citação e intertextualidade estão interligadas, vejamos o que diz Compagnon: A citação é um corpo estranho em meu texto, porque ela não me pertence, porque me aproprio dela.[...] O enxerto pega, a operação é um sucesso: conheço a alegria do artesão consciencioso ao se separar de um produto acabado que não traz o traço de seu trabalho, de suas invenções empíricas. Embora com um compromisso diferente, é o mesmo prazer do 9 OLMI, Alba. Uma escritora de ficção e a ficção de uma escritora. São Paulo: Scortecci, 2003, p. 266. 10 SOLLERS, P. Theorie d’ensemble, 75. (Cópia eletrostática) apud Olmi, 2003, p. 266. 11 BARTHES, Roland. Enciclopedie Universalis, Tome XV apud Olmi, 2003, p. 271. 12 COMPAGNON, Antoine. O trabalho da citação. Tradução de Cleonice P. B. Mourão. Belo Horizonte: UFMG, 1996, p. 17. 22 cirurgião ao inscrever seu saber e a técnica no corpo do paciente: seu talento é apreciado segundo a exatidão de seu trabalho, a beleza da cicatriz com que assina e autentica sua obra. A citação é uma cirurgia estética em que sou ao mesmo tempo o esteta, o cirurgião e o paciente: pinço trechos escolhidos que serão ornamentos, [...] enxerto-os no corpo do meu texto. A armação deve desaparecer sob o produto final, e a própria cicatriz(as aspas) será um adorno a mais.13 Para evidenciar sua idéia, o autor diz que o trabalho da escrita é uma reescrita já que se trata de converter elementos separados e descontinuos em um todo contínuo e coerente, de juntá-los, de compreendê-los. Reescrever, reproduzir um texto a partir de suas iscas, é organizá-las ou associá-las, fazer as ligações ou as transições que se impõem entre os elementos postos em presença de um outro: toda escrita é colagem e glosa, citação e comentário. Ao falar de intertextualidade, Remédios14 faz referência ao caráter interativo, bidimensional dos universos de publicação, novos meios de produção de imagens, novos alfabetos de luzes da computação gráfica que cada vez mais alteram e redimensionam, em bases radicalmente inéditas, a nossa noção de escrita e conseqüentemente da fala e de toda atividade comunicativa. Com esta afirmação notamos que não só os textos literários são o grande palco da intertextualidade, mas, também os não literários e que esta prática natural e necessária acontece nos textos de propaganda, marketing, jornalísticos e até científicos. Tanto, que segundo a autora, o texto, como hoje é percebido, perde sua afinidade com as idéias imutáveis que, supostamente, dominariam o mundo sensível e transforma-se num texto próximo a uma rede urdida de elementos que se interligam e que servem para criar o universo da comunicação humana. A criação textual, dentro dessa concepção, torna a vida um ciclo dinâmico com sua energia, vivendo, agindo pensando, tecendo o tecido mesmo da vida. A seguir, neste sentido, a autora faz mais afirmações: Quando a criação intertextual é declarada, imputa-se ao conceito de texto toda a concepção de linguagem caracterizada pela não linearidade, pela Ibidem, p. 56. REMÉDIOS, Maria Luíza Ritzel. Literatura Portuguesa: textualidade e intertextualidade. In: Marcia Helena Saldanha Barbosa; Graciela Ormezzano. (Org.). Questões de intertextualidade. 01 ed. Passo Fundo: Editora da Universidade de Passo Fundo, 2005, v. 01, p. 133 ss. 13 14 23 não seqüencialidade, enfim, pela dispersão textual,[...] A leitura linear é substituída por uma leitura de correlações, pois o texto se apresenta como o ponto de intersecção de diferentes extratos que vêm dos diferentes horizontes15 A concepção de linguagem caracterizada pela dispersão textual parece ser o sentido construído pelo novo texto baseado em vários outros lidos anteriormente. Destes vários textos dispersos acabamos por lapidar um novo, cheio de sentido e ao mesmo tempo coeso. Quando analisamos o texto pelo viés da intertextualidade passamos a fazer da sua leitura, uma leitura de correlações. Segundo a autora, esta é uma leitura que remete a outros textos, construídos em outros momentos e em outras situações, que vindos de outros horizontes têm pontos de intersecção com a nova produção textual. Enfim, a intertextualidade parece ser o fator de maior dinamicidade do universo da comunicação, e, vai sofrendo transformações a cada nova construção. Ibidem, p. 134. 15 24 2 A apropriação da noção weberiana de tipos em "Raízes do Brasil." 2.1 - Os tipos Em sua obra, “Raízes do Brasil”, Sérgio Buarque de Holanda, faz vasto uso da comparação entre o trabalhador e o aventureiro, e o semeador e o ladrilhador buscando mostrar características próprias de um e outro e as implicações sociológicas e históricas destes perfis aos quais se refere como “tipo”. Para que possamos entender melhor esta referência aos tipos nos apoiaremos em Ferrater Mora que nos traz o conceito geral e psicológico de “tipo”. Segundo ele, no contexto sociológico da palavra um tipo representa um modelo que permite produzir um número indeterminado de indivíduos que se reconhecem pertencentes a uma mesma classe com ares, até, de família dado à semelhança entre si. Desta forma, um indivíduo poderá representar esta classe pois proporciona uma imagem de acordo com a qual é possível discernir e conhecer os demais exemplares do grupo ao qual pertence, vejamos: - Um esquema representativo – como uma forma que proporciona a imagem de acordo com a qual é possível discernir e conhecer os demais exemplares de uma classe.[...] O uso consistente e sistemático desta noção (de tipo) dá lugar ao chamado pensar tipológico.16 Estas tipologias, segundo o autor, fazem possível a compreensão das individualidades humanas, de suas relações e de seus valores. 16 - Un esquema representativo – como una forma que proporciona la imagen de acuerdo con la cual es posible discernir y conocer los demás ejemplares de una clase. [...] El uso consistente y sistemático de esta noción (de tipo) da lugar al llamado pensar tipológico. FERRATER MORA, J. Dicionário de Filosofia. Tome IV, (Q – Z). Barcelona: Ariel S.A., 1994, p. 3512. Tradução nossa. 25 Dentro de outra concepção, em sua obra Tipos Psicológicos, Jung faz referência aos tipos psicológicos que descreveu em 1921. Ele mostrou que as pessoas têm características comportamentais diferentes, habilidades, aptidões, atitudes e motivações que vão caracterizar esses tipos. Pela herança genética, pelas influências familiares e pelas experiências que o indivíduo tem ao longo de sua vida se constituirá um modo preferencial de uma pessoa reagir ao mundo. Jung distinguiu dois tipos: a introversão e a extroversão. O sujeito extrovertido é aquele que prefere focar sua atenção no mundo externo de fatos e pessoas e, assim, ele emenda: “...seu íntimo submete-se às exigências externas, não sem luta; mas o final é sempre favorável às condições objetivas. Sua consciência toda olha para fora porque a determinação importante e decisiva sempre lhe vem de fora.”17 O introvertido é, segundo Jung18, o sujeito que foca sua atenção no mundo interno de representações e impressões psíquicas. O extrovertido deixa fluir sua energia de maneira natural e tem como característica a impulsividade, a sociabilidade, a expansividade e a facilidade de expressão oral. O sujeito introvertido se orienta pelo conteúdo subjetivo, direciona a atenção para o seu mundo interno e denota postura reservada, retenção das emoções e facilidade de expressão no campo da escrita. No seu texto Conceitos Fundamentais de Sociologia, Max Weber19 ao falar de tipo e tipo ideal deixa claro a necessidade de haver “um agir típico” e “uma regularidade do desenrolar”. Transmite-nos, também, que o material para a construção de um “tipo” é feito sob a forma de paradigmas. Para Weber, a construção de tipo ou [...] tipo ideal é particularmente uma tentativa de apreender indivíduos históricos, ou os diferentes elementos que os constituem, em conceitos genéticos. [...] o tipo ideal teórico construído para objetivos de conhecimento, decorre paralelamente, evidenciando a tendência 17 JUNG, C. G. Tipos psicológicos. Tradução: Lúcia Matilde Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 319-322. 18 Ibidem, p.354-356. 19 WEBER, Max. Conceitos fundamentais de sociologia. In: CRUZ, Manuel Braga da. Teorias sociológicas. Os fundadores e os clássicos. (antologia de textos) 1 vol. 4ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004, p. 592. 26 permanente para se interpenetrar. [...] como construção intelectual para medir e caracterizar de modo sistemático conexões individuais.[...] a qual, no domínio das manifestações culturais, o que é abstractamente típico seria idêntico ao que é abstractamente próprio do gênero.20 A apropriação, por parte de SBH, da categoria weberiana de tipo parece estar evidente no capítulo 3, de Raízes do Brasil21 quando SBH faz um paralelo entre a colonização portuguesa no Brasil, no século XVII e XVIII, e os processos de colonização da Antigüidade clássica, isto podemos registrar na seguinte passagem: Não admira, assim, que fossem eles (os senhores de engenho) praticamente os únicos verdadeiros “cidadãos” na colônia, e que nesta se tenha criado uma situação característica talvez da Antigüidade clássica mas que a Europa – e mesmo a Europa medieval – não conhecia. O cidadão típico da Antigüidade clássica foi sempre, de início, um homem que consumia os produtos de suas próprias terras, lavradas pelos seus escravos. Apenas não residia por hábito nelas. Em alguns lugares da bacia do Mediterrâneo, na Sicília, por exemplo – segundo informou Max Weber -, não residiam os lavradores, em hipótese nenhuma, fora dos muros das cidades, devido à insegurança e aos extraordinários perigos a que se achavam expostos constantemente os domínios rurais. As próprias “vilas” romanas eram, antes de mais nada, construções de luxo, e não serviam para residência habitual dos proprietários, mas para vilegiatura.22 O autor de Raízes do Brasil usa a informação e o conhecimento de Max Weber sobre sociedade e a economia do mundo antigo para mostrar que o contexto brasileiro na época da colonização teve características iguais à de algumas regiões da Europa, na época da colonização romana. Assim, num processo semelhante aos da Antigüidade clássica, as cidades brasileiras do Brasil colonial, segundo a passagem citada, serviam mais para mostrar a pujança dos senhores da Casa Grande e seus familiares. As casas, quase sempre luxuosas mantidas nas cidades serviam mais para vilegiatura e ostentação e eram freqüentadas poucas vezes por ano. Assim, como no início da colonização das terras na Antigüidade clássica, os colonizadores brasileiros, de início, consumiam os produtos de suas próprias terras, lavradas por seus escravos. 20 Ibidem, p. 644-649. Aqui temos uma relação de intertextualidade explícita que tem origem na obra Wirtschaft und Gesellschaft (Economia e Sociedade), II, Tübingen, 1925, de Max Weber, p. 520 ss. 22 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. Rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 90. 21 27 No capítulo 4 de Raízes do Brasil – O semeador e o ladrilhador – SBH faz uma oposição entre os colonizadores espanhóis e portugueses. Os espanhóis acentuam a valorização da metrópole em detrimento aos domínios rurais, estratégia esta que marca o jeito castelhano de expandir seu domínio. Mais uma vez a análise de SBH é feita nos moldes de Max Weber23 e a intertextualidade é explícita, vejamos: Max Weber mostra admiravelmente como a fundação de cidades representou, para o Oriente Próximo e particularmente para o mundo helenístico e para a Roma imperial, o meio específico de criação de órgãos locais de poder, acrescentando que o mesmo fenômeno se encontra na China, onde, ainda durante o século passado, a subjugação das tribos miaotse pôde ser identificada à urbanização de suas terras. E não foi sem boas razões que esses povos usaram de semelhante recurso, pois a experiência tem demonstrado que ele é, entre todos, o mais duradouro e eficiente. As fronteiras econômicas estabelecidas no tempo e no espaço pelas fundações de cidades no Império Romano tornaram-se também as fronteiras do mundo que mais tarde ostentaria a herança da cultura clássica.24 A apropriação da noção weberiana de tipos está também na formação do conceito do “homem cordial”, principalmente no que se refere às características que esse tem de confundir os domínios do público e do privado e a ser um funcionário patrimonial quando ocupante de cargo público. Observemos a definição do “funcionário patrimonial”25 usada por SBH: Não era fácil aos detentores das posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa o funcionário “patrimonial”, do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que O intertexto explícito feito por SBH tem origem na obra Wirtschaft und Gesellschaft (Economia e Sociedade), II, Tübingen, 1925, p.713, de Max Weber. 24 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 97. 25 O intertexto explícito feito por SBH tem origem na obra Wirtschaft und Gesellschaft (Economia e Sociedade), II, Tübingen, 1925, p. 795 ss., de Max Weber. 23 28 prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos.26 Esta matriz tipológica de Weber, da qual se apropriou SBH, é muito relevante dentro da obra “Raízes do Brasil” e consagra a concepção de que não existe texto que não incorpore outro em si e de que um texto é a releitura de vários outros textos anteriores, ou, como diria Genette, “uma relação de co-presença entre dois ou mais textos [...] a presença efetiva de um texto noutro.” Aí posto está a relevância da intertextualidade, instrumento de nosso estudo. 2.2 - Os tipos em “Raízes do Brasil” Podemos afirmar que Sérgio Buarque de Holanda, em seu ensaio de interpretações sociológicas sobre a formação do Brasil, parece estar fortemente influenciado por Max Weber pelo fato de ter lido e estudado várias de suas obras por ocasião de sua estada na Alemanha. SBH permaneceu naquele país de 1929 até 1931 a serviço de uma empresa jornalística brasileira e nas suas horas de folga assistia às aulas de sociologia numa universidade alemã, justamente, no meio acadêmico que evidenciava as teorias de Max Weber, o grande mestre alemão da sociologia, que morrera em junho de 1920. Entre as obras do sociólogo alemão as que estudou destacadamente foi Economia e sociedade e A ética protestante e o espírito do capitalismo. Vimos que para descrever o perfil do homem que desbravou este território e deixou suas marcas fundidas no conceito do povo brasileiro, o autor faz uma análise tipológica da sociedade brasileira usando os seguintes pares opostos de tipos: o trabalhador e o aventureiro; o semeador e o ladrilhador, apropriando-se do arcabouço metodológico do sociólogo alemão. O autor ressalta o perfil do trabalhador que busca a paz, a estabilidade e a segurança e busca esta 26 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 159. 29 condição mesmo que demande longo tempo. Já o aventureiro quer o proveito imediato das coisas, buscando sempre o bônus sem arcar com o ônus. Um homem imediatista e pouco precavido. Já o semeador vem caracterizar o colonizador português como aquele que até mesmo na construção de suas cidades dispensava qualquer zelo e planejamento, como aquele semeador a jogar suas sementes campo afora onde umas, caídas em bom lugar produziriam bons frutos, outras em lugar diverso nunca vingariam. Um tipo humano imprevidente, desleixado e para o qual o trabalho e a dedicação eram estranhos. O ladrilhador, como um par antagônico, vem descrever um colonizador providente, preocupado com o plano e a perfeição, dedicado à urbanização. Homem minucioso que quer ordenar o mundo e buscar a harmonia como aquele ladrilhador que tudo calcula e observa para dispor corretamente e com perfeição os ladrilhos de uma construção. 2.2.1 – Trabalhadores e aventureiros Em seu ensaio, Sérgio Buarque faz referências aos tipos opostos “trabalhador e aventureiro” para caracterizar os portugueses aos quais chama de aventureiros e por esta característica buscam concretizar desejos sempre colhendo os frutos sem plantar a árvore. Assinala que este tipo humano ignora as fronteiras, busca espaços ilimitados para viver, acredita em projetos vastos e em horizontes distantes. Sérgio Buarque assim descreve o aventureiro: Esse tipo humano ignora as fronteiras. No mundo tudo se apresenta a ele em generosa amplitude e, onde quer que se erija um obstáculo a seus propósitos ambiciosos, sabe transformar esse obstáculo em trampolim. Vive dos espaços ilimitados, dos projetos vastos, dos horizontes distantes.27 Na concepção de SBH, a povos como eles coube a obra da conquista e colonização dos novos mundos porque eram audaciosos e homens de grandes vôos, 27 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 34. 30 características estas, que eram valorizadas naquele período histórico. O autor faz uma oposição, como vimos, com o trabalhador que tem qualidades opostas e repulsa ao tipo aventureiro que é audacioso, imprevidente, irresponsável, instável e até vagabundo. O trabalhador, em oposição ao tipo aventureiro, é conceituado por Buarque de Holanda, como: ... aquele que enxerga primeiro a dificuldade a vencer, não o triunfo a alcançar. O esforço lento , pouco compensador e persistente, que, no entanto, mede todas as possibilidades de esperdício e sabe tirar o máximo proveito do insignificante tem sentido bem nítido para ele. Seu campo visual é naturalmente restrito. A parte maior que o todo.28 O trabalhador busca a paz, a estabilidade e a segurança e não a perspectiva de rápido proveito material. Acredita em compensações de longo prazo. Ao referir-se aos conquistadores e a colonização, o autor assinala que os portugueses vieram buscar, sem dúvida a riqueza, mas riqueza que custe ousadia, não riqueza que custe trabalho, caracterizando-os, desta forma, como aventureiros. Na obra da conquista e colonização dos novos mundos, como no caso do Brasil, o tipo aventureiro teve papel fundamental, segundo Sérgio Buarque: Na obra da conquista e colonização dos novos mundos coube ao trabalhador, no sentido aqui compreendido, papel muito limitado, quase nulo.A época predispunha aos gestos e façanhas audaciosos,galardoando bem os homens de grandes vôos.E não foi fortuita a circunstância de se terem encontrado neste continente, empenhadas nessa obra, principalmente as nações onde o tipo do trabalhador, tal como acaba de ser discriminado, encontrou ambiente menos propício”.29 Desta forma, podemos afirmar que fomos colonizados sob a ética da aventura e hoje levamos as marcas desse não projeto civilizador. Estas marcas do aventureirismo espontâneo que sobrevive nesta civilização tropical parece enfraquecer e levar ao amolecimento as instituições e as relações sociais e, sobretudo contribuir com o perfil do homem cordial que veremos em seguida. Ibidem, p. 34. Ibidem, p. 35. 28 29 31 Em O espírito e a letra, SBH, ao falar da vida no Brasil do Século XVII, demonstra o espírito aventureiro dos portugueses e sua paixão por atividades que pudessem lhes render dinheiro fácil. Naquela época os mercadores onzeneiros tornavam-se riquíssimos comprando gêneros nas vilas ou cidades e vendendo-os depois pelos engenhos ou fazendas distantes dali por um preço, muitas vezes, cem por cento maior. Buscavam os mercadores, ganhar tamanho dinheiro sem sair do lugar, de uma mão para outra, e sem que qualquer risco interviesse. Assim acabavam por acumular grossas fazendas de engenho e lavoura na própria terra onde moravam assistentes e alguns casados.30 O autor chega a conceituar os portugueses como adeptos de transações fraudulentas e trapaceiras ao chamá-los de bargantes, charlatões, embusteiros e vagabundos que, se preciso fosse, choravam para haver vantagens nos negócios e relações em que se metiam.31 No Brasil, as características do aventureiro tiveram aspectos positivos em termos de adaptação ao meio ambiente, visto a plasticidade do colonizador e sua capacidade de miscigenação racial que permitiram sua fixação ao meio tropical. Pela falta dessas características o projeto colonizador holandês fracassou. Em Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda caracterizava nestes termos o fracasso da colonização holandesa. Os holandeses não se miscigenaram com a população de cor, não se adaptaram ao clima tropical e aqui somente aportaram em busca apenas de fortunas impossíveis, sem imaginar criar fortes raízes na terra. Eram recrutados entre aventureiros de toda espécie, de todos os países da Europa – “homens cansados de perseguições.”32 O bom êxito da República Holandesa como comunidade nacional tinha alcançado tamanho grau de prosperidade na economia e na política que, para uma 30 Holanda, Sérgio Buarque de. O espírito e a letra: estudo e crítica literária, 1947-1958, organização, introdução e notas Antônio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 642. 31 Ibidem, p. 644. 32 Ibidem, p. 56. 32 nova vida em outras colônias, “só se anunciavam, à procura de passagem, soldados licenciados, que tinham ficado sem lar em virtude da Guerra dos Trinta Anos, [...] pequenos artesãos, aprendizes, comerciantes(em parte judeus de ascendência portuguesa), taberneiros, mestres-escolas, mulheres do mundo e ‘outros tipos perdidos’.33 Até mesmo o mais famoso general da nova colônia holandesa era um fugitivo, que fora obrigado a deixar a pátria devido as suas idéias socinianas34. Outro fator preponderante para o fracasso holandês era o fato de que a população se compunha de cosmopolitanos, instáveis, de caráter predominantemente urbano. Essa gente toda ia se aglomerar na capital, Recife, ou, em uma ilha próxima. Este contexto acabava por fazer uma divisão clássica entre colônia e cidade, entre o senhor rural e o mascate; divisão esta, que mais tarde, se generalizou em todo o Estado de Pernambuco. Com um Estado de colônia fraca e uma capital que era o “antro da perdição”, os conquistadores batavos limitaram-se a erigir uma grandeza de fachada, que só aos incautos podia mascarar a verdadeira, a dura realidade econômica na qual se debatiam. Em tese, a inaptidão que tiveram para construir a prosperidade na terra, nas suas bases naturais, como o fizeram os portugueses bem ou mal, foi a gota d’água para o malogro da colonização holandesa, apesar de que alguns antropologistas defendem que os europeus do Norte são incompatíveis com as regiões tropicais e, que esta raça, como um todo, não tem como se adaptar a este clima. Ao Estado colonial holandês no Brasil também faltou o contato íntimo e freqüente com a população de cor, não conseguiam ceder “com docilidade ao prestígio comunicativo dos costumes, da linguagem, e das seitas dos indígenas e Ibidem, p. 57. Referente ao monge Socino. Os socinianos faziam parte de um grupo religioso do século XVII que foi fundado por um monge italiano de nome Socino. Este grupo era contra o catolicismo e as religiões reformadas e saíram da Holanda sob pressão e clima de fuga no final do século XVI e início do século XVII. 33 34 33 negros. Não conseguiam se africanizar ou se americanizar como fosse necessário”.35 Não bastasse, o orgulho da raça os impedia de acometer a miscigenação. Finalmente, a capacidade e a pré-disposição para se submeterem à mestiçagem, que não os acompanhou, a não ser esporadicamente, e que seria um notável elemento de fixação, representou um dos maiores impeditivos para que eles (os holandeses) pudessem construir uma pátria longe da sua. Enquanto os naturalistas culpavam fatores climáticos e a geografia pelo fracasso, SBH mostrava que o insucesso dos holandeses se devia aos fatores culturais envolvendo a dificuldade das línguas nórdicas, idéias socinianas estranhas, espírito instável e caráter predominantemente urbano. O autor cita passagens da obra de Hermann Wätjen sobre a colonização holandesa que demonstram alguns destes fatores ao dizer que “o exército da Companhia, que lutava em Pernambuco, constava principalmente de alemães, franceses, ingleses, irlandeses e neerlandeses”.36 Ora, impossível manter coesão e unificar objetivos em um grupo social formado por uma diversidade tão grande de raças; nem no melhor clima do mundo isto seria plausível. Ainda posto, estava o fator crença37. Não tinham eles, (os holandeses) como os portugueses católicos, uma religião universal que os pudessem fazer se identificar com povos de outras raças. Os holandeses tinham, de certa forma, preconceito racial. Nesta passagem, no capítulo 2, de Raízes do Brasil, o autor faz uma intertextualidade implícita ao fazer uma alusão ao historiador Arnold Toynbee. Uma nova alusão volta à tona no capítulo 4 – O semeador e o ladrilhador – onde SBH alude a Toynbee para colher informações sobre a conquista castelhana no território da América Central.38 Ibidem, p. 60. Hermann Wätjen, Das Holländische Kolonialreich in Brasilien (O Estado Colonial Holandês no Brasil), Gotha ,1921, p. 240. Autor e obra que deram origem à alusão feita por SBH. Nesta obra, o autor faz um relato da colonização holandesa no Brasil onde este ressalva que os homens e mulheres que se anunciavam à procura de passagem para a colônia novo no Brasil eram apenas soldados licenciados, que tinham ficado sem lar em virtude da Guerra dos Trinta Anos, os germanorum profugi (fugitivos dos germanos) de Barlaeus, pequenos artesãos, aprendizes, comerciantes, taberneiros, mestres-escolas, mulheres do mundo e “outros tipos perdidos”. 37 Ibidem, p. 60. 38 Nesta passagem, SBH cita o historiador inglês Arnold J. Toynbee que na obra A study of history (Um estudo de história), I, Londres, 1935, pp 211-27, discorre sobre a tese das origens especificamente protestantes dos modernos preconceitos raciais e das teorias racistas. Esta citação é uma intertextualidade implícita. 35 36 34 O espírito aventureiro do português já fazia parte de sua cultura, estava incrustada na sua alma esta vocação de conquistar novas terras, enquanto que os holandeses “camponeses deixaram-se ficar, aferrados aos seus lares. Não os seduzia uma aventura que tinham boas razões para supor arriscada e duvidosa” 39 Esta sim é uma questão de ordem cultural, defendido por SBH como sendo uma das causas de malogro. Parece ser da cultura portuguesa este gosto e abertura às mudanças e esta facilidade em “ceder com docilidade ao prestígio comunicativo dos costumes, da linguagem e das seitas dos indígenas e negros. Americanizava-se ou africanizavase, conforme fosse preciso. Tornava-se negro, segundo expressão consagrada da costa da África.”40 Linguagem e língua são fatores preponderantes na cultura de um povo e se estes fatores contribuíram com o malogro da colonização holandesa podemos dizer que foram os fatores culturais que preconizaram esta sentença e não os fatores de ordem climática ou geográfica como defendiam os naturalistas. E aqui está posto o divisor de águas entre SBH e os naturalistas. Vejamos a passagem onde o nosso autor ressalta mais uma vez este fator, incluindo ainda o fator cultural religião: A própria língua portuguesa parece ter encontrado, em confronto com a holandesa, disposição particularmente simpática em muitos desses homens rudes. [...] para nossos índios, os idiomas nórdicos apresentam dificuldades fonéticas praticamente insuperáveis, ao passo que o português, como o castelhano, lhes é muito mais acessível[...] Os missionários protestantes, vindos em sua companhia, logo perceberam que o uso da língua neerlandesa na instrução religiosa prometia escasso êxito, não só entre os africanos como entre o gentio da terra. Os pretos velhos, esses positivamente não o aprendiam nunca. O português, ao contrário, era perfeitamente familiar a muitos deles. A experiência demonstrou, ao cabo, que seu emprego em sermões e prédicas dava resultados mais compensadores. [...] 39 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006,p. 60, nota 44, que faz referência ao sociólogo alemão Hermann Wätjen, 40 Eugen Fischer, Rasse und Rassenentstehung beim Menschen(Raça e surgimento das raças nos homens), Berlim, 1927, p. 32. Autor e obra da qual se valeu SBH para redigir a citação por nós feita. 35 Importante, além disso, é que, ao oposto do catolicismo, a religião reformada, trazida pelos invasores, não oferecia nenhuma espécie de excitação aos sentidos ou à imaginação dessa gente, e assim não proporcionava nenhum terreno de transição.41 2.2.2– Semeador e ladrilhador No capítulo IV, de Raízes do Brasil, Sérgio Buarque de Holanda faz uma oposição entre semeador e ladrilhador para caracterizar os portugueses e espanhóis quanto aos seus sistemas de colonização. A estratégia espanhola consistia em valorizar as cidades em detrimento aos domínios rurais. Nesta análise feita aos moldes de Max Weber, o intertexto é explícito, porque SBH usa , aplica à realidade brasileira o estudo aplicado pelo primeiro para mostrar como a fundação de cidades representou, para o Oriente Próximo e, particularmente, para o mundo helenístico e para a Roma imperial, o meio específico de criação de órgãos locais de poder, acrescentando que o mesmo fenômeno se encontra na China, onde, ainda durante o século passado, a subjugação das tribos miaotse pôde ser identificada à urbanização de suas terras. E não foi sem boas razões que esses povos usaram de semelhante recurso, pois a experiência tem demonstrado que ele é, entre todos, o mais duradouro e eficiente. As fronteiras econômicas estabelecidas no tempo e no espaço pelas fundações de cidades no Império Romano tornaram-se também as fronteiras do mundo que mais tarde ostentaria a herança da cultura clássica.42 O tipo espanhol caracterizado como ladrilhador parece denotar a preocupação com a urbanização, com os ângulos retos, com a organização, planejamento e busca do aperfeiçoamento como aquele ladrilhador que, ao colocar os azulejos em uma casa, busca a harmonia e perfeição na disposição das peças com uma dedicação sagrada. 41 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 59-60. 42 Ibidem, p. 98. 36 Os espanhóis com a concepção de um ladrilhador tinham a aspiração de dominar e ordenar o mundo conquistado. Eram adeptos do senso burocrático das minúcias. Esta deliberação está bem clara no uso do traço retilíneo que expressa a direção da vontade a um fim previsto e eleito.43 Dispensavam a fantasia e os caprichos pessoais e eram muito criteriosos. Em oposição, os portugueses formavam suas cidades como se fosse um amontoado de construções, as ruas eram sinuosas, estreitas e sem nenhum planejamento. Não havia critérios, nem ordenação na formação das cidades e as casas e prédios eram construídos de forma desordenada como que as sementes jogadas por um semeador a crescer umas amontoadas com as outras no local em que fossem jogadas. Assim, podemos exemplificar com a cidade de Salvador, na Bahia, que fora o maior centro urbano da colônia e que, ainda hoje, suas casas se acham dispostas segundo o capricho dos moradores. Vejamos a observação do autor: A cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental, não chega a contradizer o quadro da natureza, e sua silhueta se enlaça na linha da paisagem. Nenhum rigor, nenhum método, nenhuma providência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra desleixo.44 Tudo parece irregular. Os portugueses não tinham ordem em suas colônias. A liberalidade dos portugueses se assemelha à liberdade do semeador a jogar suas sementes que caem desordenadamente. Os portugueses, sem nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre num significativo abandono exprimem o verdadeiro desleixo como o semeador a semear em uma vasta área. A idéia de semeador está ligada antes ao desleixo, à liberdade, às fantasias e às facilidades e não à realidade que compõem os homens com trabalho, dedicação e organização como o faz um ladrilhador. 45 Ibidem, p. 99. Ibidem, p. 115. 45 Ibidem, p. 123. 43 44 37 Por acreditar que a concentração das povoações à margem do oceano facilitaria o escoamento das riquezas para Portugal e pela predominância de seu caráter de exploração comercial, nos moldes da colonização na Antigüidade clássica, os portugueses preferiram edificar seus centros e cidades na orla marítima. Fomentar a colonização portuguesa na costa e ter como objetivo apenas a busca de riquezas definiu os traços que marcaram o jeito português de povoar novas terras. SBH, nos deixa este fato muito claro na seguinte passagem: [...] os verdadeiros interesses do Estado: seu fim fora não somente evitar as guerras, mas também fomentar a povoação da costa; [...] não ignorava que d. João III tinha mandado fundar colônias em país tão remoto com o intuito de retirar proveitos para o Estado, mediante a exportação de gêneros de procedência brasileira: sabia que os gêneros produzidos junto ao mar podiam conduzir-se facilmente à Europa e que os do sertão, pelo contrário, demoravam a chegar aos portos onde fossem embarcados e, se chegassem, seria com tais despesas, que aos lavradores “não faria conta largá-los pelo preço por que se vendessem os da marinha”.46 Podemos citar, entre tantas, outra passagem que mostra a intervenção enérgica de Portugal nos negócios menos dirigida a edificar alguma coisa de permanente do que a absorver tudo quanto lhe fosse de imediato proveito. Estava nos portugueses cravada a crença de que relevante só eram as forças econômicas mobilizadas no sentido que lhes pudessem desfrutar, sem maior trabalho, os benefícios. O tipo desleixado que se configurava num traço cultural forte no perfil do colonizador português parece ter um fundo religioso. Observemos o que diz SBH nesta passagem: A ordem que aceita não é a que compõem os homens com trabalho, mas a que fazem com desleixo e certa liberdade; a ordem do semeador, não a do ladrilhador. É também a ordem em que estão postas as coisas divinas e naturais pois que, já o dizia Antônio Vieira, se as estrelas estão em 46 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.120. 38 ordem, “he ordem que faz influência, não he ordem que faça lavor. Não fez Deus o Céu em xadrez de estrelas [...]”.47 Nesta passagem, Buarque de Holanda faz uma intertextualidade explícita com o célebre “Sermão da Sexagésima” pronunciado em 1655 na capela real, em Lisboa, onde lembrou Antônio Vieira que o pregar é em tudo comparável ao semear, ‘porque o semear he hua arte que tem mays de natureza que de arte; caya onde cahir’.48 Pensamento cujas raízes parecem mergulhar no velho naturalismo português. Padre Manoel da Nóbrega, em carta no ano de 1552, já dizia que “de lá quantos vieram, nenhum tem amor a esta terra, todos querem fazer em seu proveito, ainda que seja a custa da terra, porque esperam de se ir”. Os colonizadores que para cá vieram não se desligavam de sua terra-mãe, tinham o pensamento voltado para a Europa. Não lhes perseguia a pensamento de edificar, permanecer, favorecer e se afeiçoar, mas sim, para aproveitarem-se de qualquer maneira daquilo que puderem. Este senso de mercantilismo e certa urgência em partir parece justificar o culto que tinham por aglomerarem-se na costa. Se para os portugueses o mar era a referência e o escudo, para os espanhóis o mar certamente não existia, salvo como um obstáculo a vencer. Nem existiam as terras do litoral, a não ser como acesso para o interior. Estava impregnado em suas almas o desejo de cultivar as terras frias e nelas construir seus espaços de vida. A maior amenidade do clima nos altiplanos atraía os espanhóis e foi neles que edificaram as primeiras construções. As cidades de México, Guatemala, Bogotá e Quito são exemplo de seus principais centros de colonização. As altitudes permitiam aos europeus desfrutar de um clima semelhante ao que lhes era habitual em seu país. Acreditavam que os lugares marítimos ofereciam perigos por não serem tão sadios e por abrigarem corsários, porque as gentes desses lugares não se dedicam em lavrar e cultivar a terra e lá são escassos os bons costumes. 47 Ibidem, p.122. Padre Antônio Vieira, Sermoens, I ª parte, Lisboa, 1679, fl. 41. Citação feita também em “Notas ao capítulo 4”, “ 4. Natureza e arte” na obra HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 148. 48 39 Os castelhanos, adeptos do conhecimento e da pesquisa, tratavam logo de instalar universidades em suas áreas conquistadas. Criaram grandes universidades como a de São Marcos, em Lima. Tinham eles o instinto do ensino superior e era esta uma das faces da colonização espanhola que serve para ilustrar a vontade criadora que os animava e que marcava sua cultura. Eram mais estáveis e as boas intenções tinham triunfo neles. A razão abstrata e não a rotina era o princípio que norteava os espanhóis. Ao contrário dos portugueses que construíram cidades na América que não se poderia considerar um produto mental, sem nenhum rigor, nenhum método, nenhuma providência, sempre num significativo abandono que exprimia a palavra “desleixo”, carregavam os espanhóis em sua personalidade o desejo de edificar algo permanente e que pudesse exprimir seu senso de organização, razão, zelo e planejamento. Algo que poderia retratar seu toque de “ladrilhador”. Um zelo minucioso e previdente dirigiu a fundação das cidades espanholas na América. Suas cidades eram um ato definido da vontade humana, segundo SBH49 “as ruas não se deixam modelar pela sinuosidade e pelas asperezas do solo; impõe-lhes antes o acento voluntário da linha reta”. Este tino parece ser o “triunfo de ordenar e dominar o mundo conquistado”. A vontade normativa aprendida pela prática assídua – “vendo, tratando, pelejando” - e não pela fantasia – “sonhando, imaginando ou estudando” aspirava à unidade das partes, à uniformidade e à simetria. “O traço retilíneo, em que se exprime a direção da vontade a um fim previsto e eleito, manifesta bem esta deliberação”. 50 2.2.3 - Um questionamento à dicotomia Ibidem, p. 98. O zelo urbanístico e a cidade como centro de dominação acrescido do triunfo da linha reta parecem ser características fortes dos espanhóis que marcam o tipo sociológico “ladrilhador”. 49 50 40 Para explicar a origem da sociedade brasileira e para diferenciar as características psíquicas entre os portugueses e espanhóis, Sérgio Buarque de Holanda usa, entre outros, duas categorias sociológicas de características opostas chamadas “semeador” e “ladrilhador” para caracterizar os portugueses e espanhóis quanto aos seus sistemas de colonização e características. SBH usa a figura do ladrilhador para caracterizar os colonizadores espanhóis e suas características psíquicas que orientavam para a preocupação com a urbanização, com o planejamento, com os ângulos retos, com a organização e busca do aperfeiçoamento. Com o zelo e perfeição de um ladrilhador a colocar os ladrilhos em sua obra, os espanhóis tinham a aspiração de dominar e organizar os espaços que conquistavam. Eles eram minuciosos e tinham grande apego à burocracia. O uso da linha reta parecia expressar a direção e a vontade deles para um fim previsto e eleito. Pareciam ser racionais, criteriosos,realistas e impessoais. Até ai tudo bem, não houvesse a postura respeitada de outro sociólogo que comprova não ser o bandeirante um exclusivo descendente luso e o espanhol não ser tão ladrilhador como demonstra SBH. Na obra Marcha para Oeste, Cassiano Ricardo, comprova que muitos líderes bandeirantes eram de estirpe espanhola, ao dizer que “Espinosa, que realiza a primeira expedição ao ouro (1553) partindo de Porto Seguro, é também outro grande “língua” e - como Anchieta e Navarro, é também espanhol.”51 Para associar a característica espanhola vinculada e marcada na bandeira o autor demonstra até a ligação mitológica e mística que há entre estes, vejamos: Só um espanhol e não um português podia ter escrito D. Quixote de La Mancha - tão característica é a cultura espanhola e tão diferente da de Portugal. E o bandeirante andejo, correndo atrás dos mitos, tem muito de D. Quixote – no sentido nobilitante da palavra – que trocasse os moinhos de vento pelo gosto de vencer os monstros de fábula. [...] 51 Ricardo, Cassiano. Marcha para Oeste. (A influência da “Bandeira na formação social e política do Brasil). Vol. II. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade de São Paulo, Livraria José Olímpio Editora, 1970, p. 422. 41 O bandeirante sofre dessa mesma “hipertrofia da dimensão” que caracteriza o espanhol – e daí, também pelo seu contacto com o mundo fantasmagórico do primitivo – lhe nasce o amor pelo fantástico.52 Tão forte é o espírito espanhol do bandeirante que cada vez que este desanda para a epopéia, recorre ao idioma castelhano. Emenda o autor dizendo que o maior criador de mitos no bandeirismo, foi justamente um mameluco híbrido de espanhol, o Anhanqüera. Cassiano Ricardo diz que as características psíquicas dos bandeirantes são um jogo de forças psicossociais entre espanhóis e portugueses ao resumir suas idéias na seguinte passagem: Em resumo: no jogo das forças psicossociais que explicam o fenômeno bandeirante não tem dúvida que a contribuição do espanhol, “rude e fantástico como todo filho do deserto” de mistura com a do selvagem, “mergulhado no seu mundo fantasmagórico”, é decisiva. Alvitrada a possibilidade dólico-loura por Oliveira Viana, ou a possibilidade semita por outros, as pesquisam provam que não; o fenômeno tem muito de espanhol e indígena; nada tem de dólico-louro, ou algo apenas de semita.53 Desta forma vamos percebendo que as bandeiras não eram exclusivamente formadas por portugueses e seus descendentes, mas, que em dose significativa continham a presença da raça espanhola. Notamos que ambas as etnias se confundiam no contexto do bandeirismo e isso nos mostra Cassiano Ricardo na seguinte passagem: A pouca ou nenhuma crueldade do bandeirante hispanodescendente, em confronto com a crueldade viva e dramática do conquistador espanhol, poderia explicar-se por um jôgo cordial de relações entre o grupo e o quadro físico em que se desenrola a sua ação, quando não se explicasse, como parece mais lógico, pela contribuição portuguêsa na bandeira, visto com a inocência, o lirismo e o idealismo sentimental português representam virtudes de extraordinária eficácia no jogo das forças psicossociais que caracterizam o fenômeno bandeirante. A contribuição portuguesa, será, pois, a mais bela de todas, embora a “menos bandeirante”; isto é, a que menos terá influído no dinamismo do grupo em marcha. Ibidem, p. 422-423. Ibidem, p. 424. 52 53 42 Então, se o homem de etnia hispânica era característico no contexto do bandeirismo não podemos afirmar que ele pertence exclusivamente à realidade que compõem os homens com trabalho, dedicação e organização como o faz um ladrilhador, ou seja, o espanhol não é assim tão ladrilhador como defende Sérgio Buarque de Holanda. A busca do conhecimento e a peculiaridade em instalar universidades nas terras que conquistavam, marcando o instinto do ensino superior e da pesquisa que tinham os espanhóis, parece não se adequar à realidade destes no Brasil. Ser estáveis, ter boa intenção e seguir os princípios da razão abstrata parece não combinar com estes espanhóis que fizeram do bandeirismo o berço de suas vidas. Então, não caberia a teoria de SBH sobre a cultura e características dos espanhóis, ao menos, dentro do contexto da formação da sociedade brasileira. A rotina dos bandeirantes parecia ser de uma busca incerta, de uma conquista fácil, da ausência de planejamento e da concepção da linha reta. A finalidade prevista e eleita parece não ser a característica forte que tiveram as bandeiras. Assim, a característica espanhola da seguinte passagem parece estar equivocada ao dizer que vontade normativa aprendida pela prática assídua – “vendo, tratando, pelejando” - e não pela fantasia – “sonhando, imaginando ou estudando” aspirava à unidade das partes, à uniformidade e à simetria. Errado também estaria a seguinte afirmação: “O traço retilíneo, em que se exprime a direção da vontade a um fim previsto e eleito, manifesta bem esta deliberação”.54 Marcha para Oeste é a obra de Cassiano Ricardo que contém significativos estudos sobre a formação da sociedade brasileira e foi publicado em 1940, apenas quatro anos após Raízes do Brasil e que mereceu do crítico americano Percy Alvin 54 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 88. 43 Martin a seguinte opinião: ‘Todos os estudos que já se fizeram sôbre o assunto ficam, definitivamente, seus devedores.’ 55 2.2.4 - O Homem cordial Sérgio Buarque de Holanda, ao referir-se a esse tipo do “homem cordial” remete à Mitologia Grega, mais precisamente, ao conflito entre Antígona e Creonte no intuito de marcar bem o antagonismo existente entre família e Estado. São duas realidades que pertencem a ordens diferentes em essência, pois o Estado nasceu justamente da transgressão da ordem familiar e doméstica. Existe uma incompatibilidade fundamental entre os dois princípios; o Estado se rege pela impessoalidade e a família por relações pessoais e interpessoais. Creonte marca esta verticalização ao encarnar a noção abstrata, impessoal da Cidade em luta contra essa realidade concreta e tangível que é a família. “Antígona, sepultando Polinice contra as ordenações do Estado, atrai sobre si a cólera do irmão, que não age em nome de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade geral dos cidadãos, da pátria”56 Na tragédia de Sófocles, Creonte segue a abstração e a impessoalidade que deve ter o Estado para resolver um conflito de normas. Em Antígona, é clara a oposição entre a lei da família e a do Estado. Esta alusão à tragédia de Sófocles se caracteriza como uma intertextualidade implícita. No Brasil, o Estado e a família têm se misturado pelo predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos 55 RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste. (A influência da “Bandeira na formação social e política do Brasil). Vol. I. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade de São Paulo, Livraria José Olímpio Editora, 1970. Citação extraída da Nota da Editora – Dados bibliográficos do autor, p. xviii. 56 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 154. 44 fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal, vejamos o que diz o autor: Dentre esses círculos, foi sem dúvida o da família aquele que se exprimiu com mais força e desenvoltura em nossa sociedade. E um dos efeitos decisivos da supremacia incontestável, absorvente, do núcleo familiar - a esfera por excelência dos chamados “contatos primários”, dos laços de sangue e de coração – está em que as relações que se criam na vida doméstica sempre forneceram o modelo obrigatório de qualquer composição social entre nós.57 Este contexto serviu de incubadora para o “homem cordial” de extrema polidez, hospitalidade, generosidade, traços que definem, segundo Sérgio Buarque, o caráter brasileiro. O homem cordial dá preeminência às relações familiares em detrimento às relações abstratas e impessoais. Característica que tem todas as influências do convívio humano rural e patriarcal fundado numa emoção rica e transbordante. Até nas relações comerciais exigimos relações familiares. Em muitos casos para se conquistar um freguês é necessário fazer dele antes um amigo.58 Esta forma de culto tem origem na península Ibérica. O “homem cordial” - dos laços de sangue e coração – é preso às relações que se criam na vida doméstica e tem dificuldade, ao deter posições públicas de responsabilidade, em compreender a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Esta característica o remete ao “patrimonialismo” e lhe deixa faltar a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida do Estado burocrático. A característica “patrimonial” dos funcionários públicos no Brasil parece estar explícita no “predomínio constante das vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal”. Com este perfil, se confirma a feliz expressão, segundo SBH, “que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial’. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão 57 Ibidem, p.160. Ibidem, p. 163. 58 45 gabadas por estrangeiros que nos visitam, representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de convívio humano, informados no meio rural e patriarcal”.59 O conceito contemporâneo de “homem cordial” de Sérgio Buarque de Holanda, definido no livro “Raízes do Brasil”, de 1936, não é o de alguém pacífico e cheio de bonomia, mas antes de alguém que prefere as ações íntimas, diretas, regidas por critérios pessoais, muitas vezes extensão da família, em lugar das mais complexas como as determinadas entre o cidadão e o Estado. Dentro deste viés, podemos entender que a “cordialidade” brasileira, por um lado significa acolhimento caloroso do grupo, e, por outro, em questões de contrariedade, a reação violenta e excludente do adversário. Em notas ao capítulo 5, em Raízes do Brasil, SBH bem define esta situação: Cumpre ainda acrescentar que essa cordialidade, estranha, por um lado, a todo formalismo e convencionalismo social, não abrange, por outro, apenas e obrigatoriamente, sentimentos positivos e de concórdia. A inimizade bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração, procedem, assim, da esfera do íntimo, do familiar, do privado. Pertencem, efetivamente, para recorrer a termo consagrado pela moderna sociologia, ao domínio dos "grupos primários”, cuja unidade, segundo observa o próprio elaborador do conceito, “não é somente de harmonia e amor”.60 O “tipo” homem brasileiro forjado por Sérgio Buarque de Holanda, em Raízes do Brasil, homem do coração, onde tudo parece ser familiar, este perfil que confunde domínio público e privado, que potencializa as relações pessoais e o compadrio parece recair sistematicamente em todos nós. Esta é a conclusão que nos passa o professor, tradutor e crítico literário, Lawrence Flores Pereira, em seu artigo publicado no Caderno Cultura, do Jornal Zero Hora, do dia 27 de maio de 2006. A matéria refere-se ao livro Drummond Cordial, escrito pelo jornalista Jerônimo Teixeira, crítico literário da revista Veja e ex-editor do Cultura. O jornalista aponta os traços de cordialidade presente no famoso escritor, segundo a já clássica 59 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 160. 60 Ibidem, p. 219. 46 definição de Sérgio Buarque de Holanda. Tanto na poesia como na postura do autor mineiro aparecem as características do “tipo sociológico” que emplaca aquele perfil brasileiro. Este homem cordial que é resquício da civilização familiar, dos clãs, ainda se perpetua na sociedade brasileira. O poeta Drummond, como homem cordial, só consegue fazer-se poeta social cantando a família. O crítico tira esta conclusão ao analisar os poemas de Drummond, em um deles, o poema de sete faces(1930) há um espontaneísmo que apresenta o coração do poeta como mais vasto que o mundo, vejamos: Poema de sete faces Quando nasci, um anjo torto desses que vivem na sombra disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida. As casas espiam os homens que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, não houvesse tantos desejos. O bonde passa cheio de pernas: pernas brancas pretas amarelas. Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração. Porém meus olhos não perguntam nada. O homem atrás do bigode é sério, simples e forte. Quase não conversa. Tem poucos, raros amigos o homem atrás dos óculos e do bigode, Meu Deus, por que me abandonaste se sabias que eu não era Deus se sabias que eu era fraco. Mundo mundo vasto mundo, se eu me chamasse Raimundo seria uma rima, não seria uma solução. Mundo mundo vasto mundo, mais vasto é meu coração. 47 Eu não devia te dizer mas essa lua mas esse conhaque botam a gente comovido como o diabo. Em Drummond, a individualidade autoreferente e emocional é equiparada a uma “pessoalidade” cordial e horror à formalidade. O crítico cita, para consumar o perfil cordial de Drummond, uma passagem onde o poeta e escritor rompe com a Revista de Antropofagia de Oswald de Andrade, afirmando, em defesa de seu amigo Mário de Andrade que “para mim toda a literatura não vale uma boa amizade.” Nas cartas que escrevia para o amigo Mário de Andrade, Drummond já fazia referências quanto ao valor por ele atribuído às relações pessoais de afeto e amizade. Isto, podemos perceber na passagem em que ele diz que “este prolongamento da relação intelectual em relação afetiva é das coisas mais lindas que a literatura pode oferecer.”61 Com isto posto, nós podemos afirmar que aí está estampado o “tipo” que identifica e que faz a caricatura do homem do Brasil. Aquele que lança a emoção em tudo que faz e principalmente nas suas relações. O perfil cordial que torna tudo íntimo, familiar e particular. Tanta cordialidade e laços afetivos tinha Drummond com seus amigos que foi um dos poucos que permaneceu no governo por ocasião do golpe do Estado Novo. O figurão descrito por Sérgio Buarque de Holanda se ocultava sob a suposta impessoalidade burocrática, e, protegida pela relação de amizade que tinha com seu amigo Capanema, permaneceu no seu posto demonstrando, assim, que as relações de amizade que mantinha com aquele antecederia qualquer consideração política ou moral. Dias mais, dias menos, a imprensa, os estudiosos e até alguns brasileiros comuns referem-se à figura do “homem cordial” porque, afinal, é esta figura a chave para o entendimento da personalidade do brasileiro. Recentemente, com o evento dos ataques coordenados pela organização criminosa, Primeiro Comando da Capital, do estado de São Paulo, que deixou a mais populosa cidade do País em pânico, feriu de forma nunca vista os símbolos da autoridade do Estado no Brasil e 61 PEREIRA, Lawrence Flores. O discreto charme do funcionário público. Jornal Zero Hora – Edição Caderno Cultura – Sábado, 27 de maio de 2006. 48 deixou um saldo de mais de uma centena de suspeitos mortos, trouxe de forma incisiva, para a pauta dos debates, a questão da segurança pública, dividindo a opinião pública entre os que aprovam a reação típica de guerra urbana e os que preferem alternativas mais amenas. O ocorrido que se configura num conflito de poder, segundo o sociólogo e professor José Vicente Tavares dos Santos, líder do grupo de estudos sobre Violência e Cidadania ligado ao Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da UFRGS, pode estar associado à revolta e ao terrorismo nacionalista à antiga, que passa a considerar a causa mais válida que a própria vida e vê aí uma perspectiva de certa dignidade heróica. Esta indoutrinação pode ser o lastro do terror moderno, conforme as palavras de Kathrin Rosenfield, filósofa e professora da UFRGS. Dentro desta perspectiva, e por uma necessidade de dar uma resposta ao crime organizado, muitos, levados pelo traço passional e íntimo que o brasileiro costuma associar à vida pública – o que Sérgio Buarque de Holanda conceituou como a característica “cordial” do brasileiro, que não se confunde com a característica “cordata”(afável e amistoso) – aprovam uma declaração de guerra aberta. Tão contemporâneo é o “homem cordial” que quase semanalmente vemos em discussão esta tão emblemática e complexa característica que move multidões e define atos, relações e fatos em meio à sociedade brasileira. 2.2.5 – “El hombre cordial” Parece muito relevante a afirmação de Kristeva62 quando diz que “todo texto se constrói como um mosáico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto”, ou seja, faz a retomada explícita de textos históricos ou literários 62 KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. Tradução Lúcia Helena França Ferraz. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2005, p. 68 49 situados em tempo e espaço determinados. Isso significa que textos lidos ou escritos por nós anteriormente estão em constante interação, em constante diálogo com outras construções textuais. Esta retomada explícita, que chamamos intertextualidade, aparece no conceito de “homerm cordial”, visto que este já foi usado antes do ensaio de SBH. Na concepção do leitor, o autor de Raízes do Brasil, recebe inteiramente o bônus de criador, autor desta matriz que desenha o perfil do homem brasileiro. Equívoco, porque Sérgio Buarque de Holanda tem apenas adornado, ou até mesmo, deturpado, desviado, reformulado e, em meio a discussão, se credenciado a ser o pai de o “homem cordial” que fora originalmente posto em discussão no meio literário por Rui Ribeiro Couto63 que, já, em 07 de março de 1931, apresentou um artigo em forma de tese sobre esse conceito. Este texto, no qual aparece pela primeira vez o conceito de “homem cordial”, foi publicado na Revista do Brasil, nº 6, com o sugestivo título de El hombre cordial, producto americano e defendia que o verdadeiro americanismo repele a idéia de um indianismo, de um purismo étnico local, de um primitivismo, mas chama a contribuição das raças primitivas ao homem ibérico; [...] É da fusão do homem ibérico com a terra nova e as raças primitivas que deve sair o ‘sentido americano’ (latino), a raça nova, produto de uma cultura e de uma intuição virgem, o homem cordial. Nossa América, a meu ver, está dando ao mundo isto: o homem cordial. [...] a família dos homens cordiais, esses que se distinguem do resto da humanidade por duas características essencialmente americanas: o espírito hospitaleiro e a tendência à credulidade.64 Portanto, em 1936, SBH apenas delimitava o território do homem cordial e polemizava sobre esse conceito. Para nosso estudo, relevante já é a identificação da intertextualidade, que aqui é literal, e isto o próprio SBH já a reconhece em sua carta a Cassiano Ricardo65 quando, ao falar sobre o termo “cordial” diz que “se dela me apropriei foi na falta de melhor”. Tanto usou a palavra de outrem porque nem uma que a substituisse encontrou. SBH se apoderou do conceito que Rui Ribeiro Escritor e criador do conceito de “homem cordial” modificado mais tarde por SBH. 63 64 COUTO, Rui Ribeiro. El hombre cordial, producto americano. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. ver. – São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 397. 65 Cassiano Ricardo. Carta de Sérgio Buarque de Holanda a Cassiano Ricardo. São Paulo, setembro de 1948. 50 Couto criou e ainda o quis modificar. Parece-nos que o conceito deste serviu de hipotexto para a nova conceituação que aquele deu ao “homem cordial”. O que SBH fez foi olhar com olhos novos aquele conceito existente. Seu ato foi assimilar um velho texto com uma nova disponibilidade critica. O poeta modernista, Cassiano Ricardo, escreveu uma carta, em julho de 1948, para SBH, fazendo algumas considerações a respeito do “homem cordial” e questionando aquele conceito baseado-se só no sentido etimológico da palavra e desconsiderando o sentido atual da palavra, no sistema da língua, que é para a sócio-lingüística e a pragmática o único que interessa na fixação do significado dos conceitos. Cassiano Ricardo refere-se às contribuições de SBH que tinha afirmado na primeira edição de Raízes do Brasil que “cordial” referia-se às virtudes gabadas por estrangeiros que nos visitam. Não só aos sentimentos de concórdia como até a generosidade, lhaneza no trato e hospitalidade; e dava esses atributos como o ‘traço definido’ do caráter do brasileiro” e na edição subseqüente acha que no conceito cordial “cabem a inimizade e outros sentimentos que não sejam obrigatoriamente os de concórdia, ou provenientes dessa ética de fundo emotivo”. 66 Ora, como quer, SBH, dizer que cordialidade pode ser ao mesmo tempo amizade e inimizade, argumenta Cassiano Ricardo, se o termo é usado no sentido de homem bom, benevolente e polido? Se este conceito tiver o seu significado dado apenas pela etimologia então não poderá responder pela imagem apenas dos brasileiros, pois se aplica a todos os homens. Segundo Cassiano Ricardo, Cordial, com quer Sérgio, é aplicável a todos os seres humanos, pois que não há notícia de grupo estudado por etnólogos que se tivessem mostrado incapazes de desenvolver cordialidade, no sentido etimológico, incluindo-se nela sentimentos e atitudes de amizade, inimizade e hostilidade.67 Cassiano Ricardo reforça sua opinião dizendo, ainda: O pior, porém, é que, pretendendo explicar a palavra, Sérgio alterou, descaracterizou o nosso “homem cordial”. Citação extraída da carta de Cassiano Ricardo a SBH, em julho de 1948, com o título de Variações sobre o “homem cordial”, p. 369. 67 Ibidem, p. 373. 66 51 Desde que a ‘inimizade bem pode ser tão cordial quanto a amizade (nisto que uma e outra nascem do coração)’, o que se conclui é que estamos diante de um fenômeno universal e não específico do brasileiro. Já não é o Brasil quem oferece ao mundo o homem cordial, como contribuição específicamente sua, representativa daquelas virtudes – lhaneza no trato, generosidade, etc.. - tão gabadas por estrangeiros que nos visitam. Estarão compreendidos na sua definição os homens de todas as latitudes; todos os seres que através da interação com os seus semelhantes desenvolveram natureza humana...68 Diz, ainda, Ricardo, que “o que identifica o brasileiro não é o inimigo cordial. É o não ter capacidade para ser inimigo, cordial ou não. Ao referir-se, finalmente, àquela carta que escrevera a SBH, ele observa que “homem bom” não significa elogio e que o que ele pretendeu foi apenas demonstrar que o conteúdo específico da expressão “homem cordial” calhava melhor em homem bom ou bom homem – denominação mais modesta e ... legal. Isto é, mais expressiva da bondade típica do brasileiro do que “homem cordial”, que de duas uma: ou serve para indicar atos do coração, inclusive inimizade, etc., e neste caso tanto se aplica ao brasileiro como ao português, ao italiano, etc., deixando de ser a nossa contribuição específica para a cultura do mundo; ou representa apenas a fácies do brasileiro, quer dizer justamente o contrário do que o brasileiro é, ou seja, quer dizer polido, convencional, ritual, educado, cortês, amável, diplomático, mundano, gentil, galanteador, formalista, simulador ou dissimulador, menos... homem de coração.69 Para as considerações finais nos basta, apenas, apontar o intertexto reconhecido pelo próprio autor de Raízes do Brasil, ao responder a carta que recebera de Cassiano Ricardo70, quando replicou: Agora peço licença para voltar um pouco ao homem cordial. Quando na primeira edição de meu livro recorri à expressão, já empregada, antes de mim, pelo nosso amigo Ribeiro Couto, estava implícito nas minhas palavras tudo quanto a respeito seria dito na nota de segunda edição que deu motivo ao seu(carta de Cassiano Ricardo) artigo. 71 No entendimento que podemos ter, notamos aqui que SBH se apropriou de um conceito alheio tentando modificá-lo e adorná-lo. Na sua resposta à Cassiano Ibidem, P. 375. Ibidem, p. 391. 70 Carta resposta de SBH para Cassiano Ricardo, em setembro de 1948,j São Paulo. Publicada na revista Colégio, nº 3, daquele ano. 71 Ibidem, p. 394. 68 69 52 Ricardo, SBH se justifica dizendo ter feito apenas uma ampliação do conceito de Ribeiro Couto, assim se manifestando: Não precisarei recorrer ao dicionário para lembrar que essa palavra – cordial -, em seu verdadeiro sentido, e não apenas no sentido etimológico, como v. quer presumir, se relaciona a coração e exprime justamente o que eu pretendi dizer. Como além disse se acreditou, mal ou bem, que o coração é sede dos sentimentos, e não apenas dos bons sentimentos, minha nova explicação, ao lembrar que a inimizade “bem pode ser tão cordial como a amizade, nisto que uma e outra nascem do coração”, seria se v. quiser, uma ampliação, não seria uma retratação. [...] Os seus dois sentidos a que aludi coexistiram sempre, ao que eu saiba. E não apenas no Brasil.72 Ibidem, p. 395. 72 53 2.2.5.1 - Intertextualidade implícita Justamente no conceito do “homem cordial” encontramos um caso de intertextualidade explícita envolvendo a obra Raízes do Brasil. Parece interessante o fato de SBH não citar o escritor Ribeiro Couto mesmo tendo admitido ser Ribeiro Couto o autor daquele. Esta omissão prova-se com base no ensaio Corpo e alma do Brasil que é uma espécie de síntese do que seria o livro Raízes do Brasil. Publicado na revista espelho, no Rio de Janeiro, em março de 1935, dirigida por Américo Facó, e com o subtítulo “Ensaio de psicologia social”. Corpo e alma do Brasil revelava as hesitações de SBH, que a essa altura ainda não havia escolhido o título da obra. Sua dúvida pairava entre escrever como título Teoria da América ou Corpo e Alma do Brasil. Naquele ensaio, que no espelho dera origem a obra Raízes do Brasil, Buarque de Holanda faz alusão a Ribeiro Couto, o que não acontece na versão definitiva da obra, observemos: O SR. RIBEIRO COUTO teve uma fórmula feliz, quando disse que a contribuição brasileira para a civilização será de cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas pelos estrangeiros que nos visitam, formam um aspecto bem definido do caráter nacional.73 O reconhecido crédito a Ribeiro Couto, que SBH negou na sua obra definitiva, faz com que se configure em Raízes do Brasil aquela ocorrência que Genette chama de paratextualidade: a segunda categoria de transtextualidade que é geralmente a relação menos explícita e mais distanciada que o texto mantém com seu paratexto, como o uso de um título, subtítulo, prefácios, notas de rodapé ou referência mais distante, mas podendo, também, ter um viés imitativo. Em, não havendo a citação a 73 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Corpo e alma do Brasil. Rio de Janeiro, março de 1935. Ensaio do que seria o livro Raízes do Brasil. In: Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. Rev. – São Paulo: Companhia das Letras, 2006. 54 transtextualidade é implícita; em havendo é explícita. Neste caso, apenas a nota de rodapé (nota 6. Capítulo 5) faz a referência e caracteriza a paratextualidade. 55 3 SÉRGIO BUARQUE DE HOLANDA E SUA RELAÇÃO COM SEUS ANTECESSORES E CONTEMPORÂNEOS As obras de SBH têm um ângulo especialmente fecundo que se reporta aos tempos coloniais, na dimensão da vida material. O seu conjunto de ensaios e monografias marcam a passagem da sociologia para a história enfatizando sempre uma grande variedade de temas e momentos em suas obras. Possui extraordinária riqueza e contribuição possuindo uma visão de unidade que é persistente e quase obsessiva na indagação do mesmo objeto quanto à questão de sermos “desterrados em nossa própria terra.” O autor sonda aí as estruturas mais profundas de nosso modo de ser para visualizar as possibilidades de modernização que nos reserva o futuro. Nesta trajetória se detém e estuda os aspectos da vida material, da terra, do clima e do meio geográfico. Nestas relações de estudos, comparações e análises seguidamente SBH correlaciona fatos históricos ou sociológicos. O autor que acredita no tipo historiador ideal, erudito e ao mesmo tempo compreensivo, investigador e também pensador, cheio de humildade e cheio de lúcido discernimento; um historiador cheio de material documentário, com rigor crítico, mas sem rancor dogmático.74 Fernando Novais ao fazer o prefácio de Caminhos e Fronteiras já deixa claro a incidência de fatores de intertextualidade entre as obras de SBH ao dizer que esta obra tem relações com Monções que é retomado e alargado em Caminhos e Fronteiras. Deixa claro a questão que envolve os naturalistas ao estudar a vida material. Ao falar sobre a obra Caminhos e Fronteiras, Sérgio Buarque de Holanda, já aborda situações surgidas do contato entre uma população adventícia e os antigos naturais da terra com a subseqüente adoção, por aquela, de certos padrões de conduta e, ainda mais, de utensílios e técnicas próprios dos últimos. A HOLANDA, Sérgio Buarque de. O espírito e a letra: estudo e crítica literária, 1947-1958, organização, introdução e notas Antônio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 236. 74 56 acentuação maior dos aspectos da vida material não se funda, aqui, em preferências particulares do autor por esses aspectos, mas em sua convicção de que neles o colono e seu descendente imediato se mostraram muito mais acessíveis a manifestações divergentes da tradição européia do que, por exemplo, no que se refere às instituições e sobretudo à vida social e familiar em que procuraram reter, tanto quanto possível, seu legado ancestral. 75 Estas passagens e tantas outras da obra, que ainda falam das técnicas rurais e da herança indígena parecem denotar uma ligação do autor com as questões da vida material. 3.1 - Os Naturalistas Marcados por uma apego quase excessivo aos fatores ligados à raça, importância do clima e meio geográfico, os naturalistas não priorizavam fatores culturais na explicação da realidade brasileira. No Brasil, podemos citar Euclides da Cunha como um dos escritores de concepção naturalista mais acentuda, cuja obra, Os sertões, se configura como o grande expoente literário dessa concepção. Os pensadores Alberto Torres e Oliveira Vianna representavam muito bem esta corrente na explicação da evolução de uma sociedade, respectivamente, com as obras O problema nacional brasileiro e Raça e assimilição SBH atacava sempre as teses defendidas pelos antropologistas76 de sua época que potencializavam o clima, o meio ambiente, a geografia, a raça; enquanto tinha e defendia uma concepção culturalista acreditando que a cultura e não a natureza é determinante para a interpretação de uma sociedade. No seu estudo da realidade brasileira colocava como causa principal na formação de nossa sociedade a predominância das características da cultura ibérica, mais precisamente da cultura portuguesa. SBH se opôs à concepção naturalista encontrada na obra Os sertões, 75 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Caminhos e Fronteiras. 3. Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1994, p. 12. 76 Dentre eles podemos citar os escritores de concepção naturalista Hermann Wätjen e Eugen Fischer. 57 de Euclides da Cunha, nas obras O problema nacional brasileiro de Alberto Torres e Aspectos da história e da cultura do Brasil, Raça e assimilação e a Evolução do povo brasileiro, de Oliveira Vianna. Aqui temos então um caso de intertextualidade implícita: a alusão às obras da geração de autores naturalistas que analisaram a realidade brasileira. 3.2 – Euclides da Cunha Militar, engenheiro e professor, Euclides da Cunha foi um estudioso dos caracteres morais das raças. Enquanto engenheiro, estudou etnologia que usaria mais tarde na obra Os Sertões na qual o autor trabalha a questão da mestiçagem e a influência do meio na luta dos jagunços contra o exército da república, tentando explicar, assim, a resistência heróica dos sertanejos às tropas tão mais numerosas e mais equipadas. Podemos notar seu enfoque naturalista ao analisar a cadeia lógica que construiu para consagrar suas idéias começando pelo reconhecimento da estrutura do solo e do clima, passando depois aos acidentes do solo, às variações do clima para estender-se às formas do ser vivo: a flora, a fauna e o homem. Estudou os tipos brasileiros levando em consideração os fatores naturais como a interação entre homem e natureza, raça e sociedade e acreditando que sua anatomia e fisiologia se devem tanto à herança quanto a seculares esforços de adaptação ao meio e aos outros organismos. O fato de considerar o meio; o espaço onde se dá a evolução marca a característica naturalista que esteve presente na obra de Euclides da Cunha. Construía ele sempre a noção do indivíduo como condensação extrema do meio social que, por sua vez, se explicara a partir da raça e das condições geográficas. Na seguinte passagem, podemos notoriamente observar o enlace, que faz o autor, do homem com o clima e a geografia atentando para os detalhes do relevo: 58 O caráter das rochas, exposto nas abas do cerros de quartezito, ou nas grimpas em que se empilham as placas do itacolomito avassalando as alturas, aviva todos os acidentes, desde os maciços que vão de Ouro Branco a Sabará, à zona diamantina expandindo-se para nordeste nas chapadas que se desenrolam nivelando-se às cimas da serra do Espinhaço; e esta, apesar da sugestiva denominação de Eschwege, mal sobressai, entre aquelas lombadas definidoras de uma situação dominante. Dali descem acachoantes, para levante, tombando em catadupas ou saltando travessões sucessivos, todos os rios que do Jequitinhonha ao Doce procuram os terraços inferiores do planalto arrimados à serra dos Aimorés; e volvem águas remansadas para o poente os que se destinam à bacia de captação do São Francisco, em cujo vale, depois de percorridas ao sul as interessantes formações calcárias do rio das Velhas, salpintadas de lagos, solapadas de sumidouros e ribeirões subterrâneos, onde se abrem as cavernas do homem pré-histórico de Lund, se acentuam outras transições na contextura superficial do solo.77 Ao referir-se ao homem, o autor classificou as raças brasileiras em três categorias: o mulato, o mameluco e o cafuz, ressaltando que, além do fator histórico, as disparidades climáticas têm ocasionado nestas raças reações adversas diversamente suportadas por elas. Na seguinte passagem Euclides da Cunha deixa evidente que a influência do meio é um definidor nas capacidades das raças. Convindo em que o meio não forma as raças, no nosso caso especial variou demais nos diversos pontos do território as dosagens de três elementos essenciais. Preparou o advento de sub-raças diferentes, pela própria diversidade das condições de adaptação. Além disto (é hoje fato inegável) as condições exteriores atuam gravemente sobre as próprias sociedades constituídas, que se deslocam em migrações seculares aparelhadas embora pelos recursos de uma cultura superior. Se isso se verifica nas raças de todo definidas abordando outros climas, protegidas pelo ambiente de uma civilização, que é como o plasma sangüíneo desses grandes organismos coletivos, que não diremos da nossa situação muito diversa? Neste caso – é evidente – a justaposição dos caracteres coincide com íntima transfusão de tendências e a longa fase de transformação correspondente erige-se como período de fraqueza, nas capacidades das raças que se cruzam, alteando o valor relativo da influência do meio.78 Euclides da Cunha construiu um conceito de que a mistura racial é um fator negativo e que neste processo sempre surgem vivíssimos estigmas da raça inferior. 77 CUNHA, Euclides da. Os sertões. Edição didática preparada pelo Prof. Alfredo Bosi, cotejo e estabelecimento do texto pelo Prof. Hersílio Ângelo. 2ª Ed. São Paulo: Cultrix, INL, 1975. P. 34. 78 Ibidem, p. 83. (grifo nosso) 59 O autor se refere a este tema com tom de irritação, o que podemos ver na seguinte passagem: A mistura de raças mui diversas é, na maioria dos casos, prejudicial. Ante as conclusões do evolucionismo, ainda quando reaja sobre o produto o influxo de uma raça superior, despontam vivíssimos estigmas da inferior. A mestiçagem extremada é um retrocesso.79 3.3 - Alberto Torres Brasileiro, de concepção naturalista, o estudioso Alberto Torres, editou em 1914, depois de dissertar muito sobre vários temas em jornais, a obra O problema nacional brasileiro, onde expressa a suma de seu pensamento. Fundado no psicologismo, podemos logo perceber uma das temáticas que também SBH iria desenvolver quando o autor se refere ao Brasil dizendo que “ nenhum outro povo tem tido, até hoje, vida mais descuidada que o nosso.” Nos remete assim ao desregramento que parece estar presente na figura do semeador ao dizer que “ no Brasil, destruídos os rudimentos de organização que já tivemos , lançados em mau terreno, nada ficou de definitivo e a fachada de nossa civilização oculta a realidade de uma completa desordem”. 80 O pesquisador, claramente, potencializa o fator clima ao analisar a disparidade da terra colonizada com a terra dos colonizadores, em ora, os portugueses: No Brasil, o resssecamento das terras e do ar, as secas periódicas, cada vez mais prolongadas, a alteração e irregularidade das estações - fato ordinário em vastíssimas regiões do território, e já patente em outras onde foram outrora abundantes as águas, manifestando-se no atraso das primaveras, relegadas, com quase certo sacrifício das semeaduras, para o 79 Ibidem, p. 96. Grifo nosso 80 60 começo do estio, na quase esterilização das pastagens e falta de foragens, durante longo período do ano, fruto principal das nossas devastações e da política colonial que temos feito – já se manifestam aos próprios olhos distraídos das afortunadas populações das grandes cidades, com as crises da “falta de água”, de ano para ano mais penosas. 81 Para ilustrar a importância dos meios geográficos e o clima, o autor chega afirmar que “as montanhas, os rios e as florestas são, em toda a parte, fontes e depósitos de fertilidade e de produção, e, portanto, de vida, [...]” 82 Diz ele, ainda, que os Estados Unidos tiveram sobre nós, imensas vantagens porque possuem um território de clima frio ou temperado, semelhante ao do País dos seus colonizadores, imediatamente adaptável, sem estudos especiais, nem devotados cuidados.83 Esta potencialização do clima marca o caráter naturalista de seu pensamento. Ao falar da nação, parece marcar como elemento vital a raça. Ao relacionar a raça à questão dos “tipos”, aos quais se refere também Sérgio Buarque de Holanda, o autor diz que “a raça é um tipo biológico e, particularmente, morfológico da espécie humana. Para que se possa determinar distinção étnica, é mister que se encontrem caracteres físicos e psíquicos, distintamente marcados, de identidade entre grande massa de indivíduos, e de divergência destes com outros grupos. Onde um ou alguns destes caracteres estiverem apagados ou confundidos, deixa de se dar a figura característica da raça, para surgir uma variedade compósita, que se pode estender a uma tribo, a uma classe, a uma nação, ou a uma sub-raça.84 A perspectiva culturalista na explicação da evolução das raças parece ser duramente condenada pelo estudioso, e é conceituada por este como vegetação maligna e que deve ser arrancada do cérebro do povo por ser vã e ter um ardor punitivo sobre os costumes, o espírito, a moral e a raça. Ao atentar reincidentemente para o fator “raça”, Alberto Torres, parece sustentar toda nossa história política, social e econômica sobre essa realidade e TORRES, Alberto. O problema nacional brasileiro. 3ª Ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional/MEC, 1978. p. 20. 82 Ibidem, p. 21. 83 Ibidem, p. 44. 81 Ibidem, p. 63. 84 61 deixou transparecer seu aval e a importância que deu a questão da miscigenação racial, a qual achou positiva apesar dos contratempos. Acredita o autor que teremos de reconhecer que membros de todas as raças trouxeram contribuições à história.85 Alberto Torres argumentava contra aqueles que condenavam a miscigenação racial e consideravam a raça banca superior às outras. Dizia que “a doutrina da desigualdade das raças perdeu, assim, todos os pontos de apoio, em todas as regiões da ciência. Cumpre, porém, não esquecer que, se esta doutrina não conta mais com a mesma autoridade científica, nem, talvez, com igual força política, mesmo na própria Alemanha.” 86 O autor assinalava que até mesmo na Alemanha, reduto onde se considerava que a raça branca fosse superior, já existia na época uma forte corrente de opiniões e interesses contra aqueles que alegavam títulos de superioridade étnica para os brancos. Nesta passagem, sacramentando sua teoria em todo o mundo intelectual, mostra que no Brasil o triunfo da miscigenação das raças e tipos contribuiu positivamente para a evolução da realidade brasileira. Quase ignora a questão da relativa superioridade da raça branca ao dizer que a pequena parcela de descendentes de sangue germânico nem fora estudada; o que denota desprezo àquela parcela da população. Vejamos a seguinte passagem: Há, contudo, um país – e a minha pena propende aqui a empregar um estilo de conto de fadas - em que essa teoria teve toda a força e autoridade do mundo intelectual, com o selo da Academia, a rubrica das congregações, a adesão dos governos, o assentimento do povo. Este país é o que possui a população mais mesclada do mundo; é um país onde, não só a mistura de tipos de quase todas as raças, como inúmeros casos de miscigenação, cruzados entre várias estirpes, mostram todos os matizes da cor e todos os modelos do aspecto, da gama étnica; e a parte mais “nobre” do povo, afora pequena parcela de sangue germânico, ainda não estudada, é formulada por gente das raças tidas por inferiores e menos puras da Europa.87 Impressiona a veemência com que o autor afirma o triunfo e a importância do fator étnico sobre todos os aspectos da vida do indivíduo e da nação influenciando diretamente no destino dessas realidades, vejamos: Ibidem, p. 60. Ibidem, p. 62. 87 Ibidem, p. 63. 85 86 62 A fidelidade ao sangue, ao laço tribal, o zelo pelo toten gentílico, precede a todos os outros sentimentos sociais do homem. Tão íntima, tão profunda, tão orgânica é a sua força – que se não tem a virtualidade dramática da voz do sangue, possui sempre o poder de reunir as primeiras hordas, ignorantes do mistério fisiológico da reprodução, em torno do instinto filial materno – que se lhe afirma, através de todas as vicissitudes e peripécias da História, como força permanente, o impulso vivaz das energias e dos sentimentos coletivos.88 O problema nacional brasileiro será então a organização nacional? Pois o autor diz que “a grande obra a realizar é a organização nacional; e para esta obra, uma das nossas melhores razões de confiança está nas próprias forças das nossas raças.”89 Nesta passagem o autor deixa transparecer que a mistura racial se configura como um fator positivo para o desenvolvimento da civilização no Brasil. Na obra, Raízes do Brasil, SBH faz uma alusão a Alberto Torres no capítulo 7 – Nossa revolução – chamando-o de publicista ilustre porque já havia Torres observado que ‘A separação da política e da vida social’, dizia, ‘atingiu em nossa pátria o máximo de distância[...].’90 Nesta passagem podemos denotar uma relação de intertextualidade implícita de SBH com os natualistas em forma de alusão. 3.4– Oliveira Vianna Estudioso e pesquisador, Oliveira Vianna, debruçou-se no estudo das particularidades das raças e sua teoria parece nortear-se pelos reflexos no Brasil das diversas e inúmeras raças para cá vindas. Colocou que no mundo americano outros elementos entraram como fatores de formação e elaboração dos grupos humanos. Fez referência ao problema racial do Brasil no sentido de que Ibidem, p. 65. Ibidem, p. 66. 90 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. ver. – São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 195. 88 89 63 No meio da confusão de tantos typos, trazidos pelas correntes emigratorias, sahidas dos centros aryanos, outros typos, inteiramente distinctos pela cultura e pela morphologia, tambem appareceram, tambem touxeram a sua parcella para formação das novas nacionalidades. E o negro com as suas varias modalidades de cultura e de typo. E o indio tambem com as suas differenciações de cultura e a sua diversidade de typos.91 No viés de associar a questão racial e a miscigenação como fator que possa influenciar no desenvolvimento da civilização brasileira, Oliveira Vianna parece estar influenciado por Alberto Torres que o antecedeu nestes estudos. Torres publicou sua obra em 1914 e Vianna em 1932. Raça e assimilação (1932) é o estudo que leva Oliveira Vianna a um mergulho profundo no estudo das raças, suas variações e seus reflexos na construção dos grupos sociais poliétnicos. Justifica seu estudo pelo fato de que nossa formação foi feita das diversas raças humanas, vindas de todos os continentes causando, assim, cruzamentos que ferem o olhar e se tornando, por excelência o centro dos estudos da “raça”. Os fenômenos da raça mostram-se aqui em estado de elaboração contínua, especialmente nos seus aspectos biológicos. Temos aqui dados fartos para estudar os fenômenos de hibridação com uma amplitude e uma precisão impossiveis no mundo europeu. O autor ressalta que, após, o fim do II Império na França, cessaram as pesquisas científicas no campo dos estudos etnográficos na Europa, provavelmente, para evitar qualquer dúvida em relação à superioridade racial dos povos germânicos, e observa que as teorias a este respeito eram tendenciosas e excessivas. Assim ele descreve, já no primeiro capítulo de sua obra: Ora, não é preciso grande esforço de penetração para comprehendermos que, para esta brusca parada, para esta cessação tão subita do interesse pelas pesquisas da raça, a causa determinante foi, sem duvida, a influencia exercida sobre o espirito dos nossos homens da scencia pelas theorias tendenciosas, construidas para contrabater a theoria da 91 VIANNA, F. J. Oliveira. Raça e assimilação. 3ª Ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1932, p. 18. 64 superioridade racial dos povos germanicos, desenvolvida principalmente pelos pensadores e anthropologistas allemães.92 Estudos mostravam, ná época, através da psicologia das raças, que cada uma possuia características psicológicas particulares, como, por exemplo, defendiase que a raça germânica se caracacterizava por ter: gênio inventivo, gênio guerreiro, instinto de independência, individualismo, fidelidade, migrabilidade, etc. Em seguida, descobriu-se que estas características não eram privativas da raça germânica e que também eram encontradas em outras raças. Os greco-romanos, com todas estas qualidades resplandesciam antes dos germânicos. Os naturalistas acreditavam profundamente que o fator “raça” pudesse mudar ou definir os rumos do desenvolvimento econômico e social de uma nação, bem como a evolução de seu povo. Seus estudos na área da etnologia eram infindávieis. Se esta tarefa não tem contribuído muito para a compreensão do desenvolvimento do Brasil, nos forneceu, porém, elementos úteis no que diz respeito ao perfil do tipo morfológico do negro, do índio, etc... “O negro é, em todas as cousas, um sensitivo, em que a fantasia domina. O fundo do seu temperamento é uma serenidade expansiva. É a esta fantasia sem freio que elle deve o seu amor aos enfeites e a sua frivolidade, assim como seu gosto pelos espectaculos e pela dança. [...] Vive, por assim dizer, au jour le jour; não se inquieta nem do futuro nem do passado; elle tem a mão e o coração abertos; partilha com elles a sua fortuna suppondo que farão o mesmo com elle. [...] A vida do negro se passa em contrastes; os sentimentos mais opostos acham logar no seu coração. Da alegria mais intensa e mais insensata elle passa ao mais amargo dos desesperos; da esperança sem limite ao extremo terror; da prodigalidade inconsiderável à avareza sordida”.93 O contrário se dá com o índio. O selvagem em geral é sombrio, reservado, recordando muito na sua constituição afetiva, o autista. Vejamos esta psicologia naturalista do índio: -“Para desgostar-se um destes qualquer cousa basta e sobeja: basta que o director o advirta que trate de fazer a sua casa onde mora; basta que o vigario o admoeste da obrigação que tem de aprender a doutrina para se baptizar; e basta, enfim, que, lá de si para si, chegue a Ibidem, p. 23. Ibidem, p. 44. 92 93 65 desconfiar de uma acção ou de um dito que elle não entenda; ao tudo accresce que, se chega a ver que adoece ou morre algum dos companheiros, desconfia então do logar da povoação, desconfia da qualidade do sustento, desconfia do remédio que lhes fazem e dos que o fazem”.94 O autor defende que o fator “raça” possa delimitar grupos sociais e que estes podem, dependendo de seu temperamento, torná-los nitidamente diferenciados um do outro. Assim exemplifica dizendo que por exemplo, um grupo em que sejam mais numerosos os individuos de temperamento irresoluto, fraca capacidade de acção, instabilidade nas deliberações e attitudes. Neste grupo – conclue elle – a actividade economica se revelará pouco efficiente, a pobreza se generalizará, o numero de indigentes não pode deixar de ser avultado.95 O pesquisador naturalista potencializa tanto a origem étnica chegando a dizer que “a conclusão é que a raça é, em ultima analyse, um factor determinante das actividades e dos destinos dos grupos humanos.96 Uma referência clara à relevância do clima para o pensamento naturalista está posto na obra de Oliveira Vianna quando este diz que diversas raças não têm a mesma capacidade de aclimatação nos climas tropicais. Acentua “o problema da influencia degenerativa do clima tropical sobre os grupos ethnicos de origem européa.” E daí a necessidade de destacar do grupo branco as “raças”, que o compõem, para poder determinar, com segurança, a aclimatabilidade diferencial de cada uma.97 3.5 - Cassiano Ricardo: a miscigenação não deteriora as raças Ibidem, p. 45. Ibidem, p. 53. 96 Ibidem, p. 54. (grifo nosso) 97 Ibidem, p. 64. 94 95 66 Ao estudar o contexto que envolveu o bandeirismo no Brasil, Cassiano Ricardo diz que a herança biológica da miscigenação euro-tupi em larga dose explica o que o bandeirante possui de “dinâmico”, o seu “ir e vir”; explica o nenhum estorvo com que caminhava duzentas léguas ou mais; bem como a “voz do Oeste” que ficou circulando em seu sangue; a voz que o endereçava para as regiões de onde os seus ascendentes tinham vindo. Uma espécie de nostalgia cósmica dinamizada pela cruza do sangue português, andejo do mar, com o seu sangue bugre, andejo da selva.98 Cassiano Ricardo segue dizendo que os bandeirantes são um grupo determinado étnicamente pelo sangue mameluco, que são eles um produto da mestiçagem que se opera vivamente em seu foco de propulsão. Numa oposição acentuada com as obras de Euclides da Cunha e Oliveira Vianna, Cassiano Ricardo diz que Roquette-Pinto contraria o primeiro ao dizer que ‘não faltam elementos para provar que aqueles homens (os bandeirantes) que, antes de tudo eram fortes, tinham farta gôta de sangue negro.’ Já aí ele demonstra que a mistrura racial é positiva pois contribuiu muito para o perfil sociológico e racial capaz de se moldar às necessidades e características dos homens que integravam as bandeiras. 99 Na sua obra ele cita, ainda, Gilberto Freire, para dizer que o Brasil sob muitos aspectos é o maior exemplo de conciliação humana que o mundo tem conhecido. Acrescenta que se no Brasil a miscigenação foi inevitável não será o caso de maldizê-la sem exame e sim atentar para os seus efeitos: a democratização social e a superiorização dos tipos étnicos modelados ao tipo racial apropriado ao estilo de convivência que nos envolve. O autor de Marcha para Oeste, diz que: há uma forma de democracia verdadeiramente humana, inalterável e profunda: é a que se processa no Brasil mestiço. Não foi sem razão, pois, que Lars Ringbom viu no mestiço a melhor solução aos extremos de individualismo ou de coletivismo nas grandes raças que ele considera puras. Esta renovação de valores humanos, nas condições em que se realiza entre nós, é uma revolução sem precedentes. Basta olhar a paisagem social, originalíssima, ...100 98 RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste. ( A influência da “Bandeira na formação social e política do Brasil). Vol. II. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade de São Paulo, Livraria José Olímpio Editora, 1970, p. 336. 99 Ibidem, p. 339. 100 Ibidem, p. 344. 67 Seguindo, o autor cita Rudiger Bilden para dizer que ‘ decerto que há muita coisa, na vida do Brasil, que não é satisfatória. Mais atribuir tais condições à composição racial do país ou à mistura de raças é completamente errado.’ Para enobrecer a miscigenação racial no Brasil o autor faz referência aos caboclos brasileiros como os únicos, ao lado dos bascos, a ter resistência física para uma tarefa de titãs com a de trabalhar noite e dia a 2.000 metros de profundidade nos trabalhos de mineração do Morro Velho, no Vale do São Francisco, onde até os japoneses fracassaram.101 Ressalta ainda que os mestiços em comparação com o elemento estrangeiro que formava a maior parte da população operária nos centros industriais do Sul tinha maior agilidade de compreensão e maior responsabilidade mental. Diz que a região onde habitam é a província de homens excepcionalmente dotados de resistência física e firmeza moral. Cassiano Ricardo cita Sílvio Romero para afirmar que ‘o mestiço é a condição da vitória do branco, fortificando-lhe o sangue para habilitá-lo aos rigores do nosso clima.’ Cita, ainda, Gilberto Freire para dizer que até o Egito chegou à sua riqueza extraordinária de civilização pela miscigenação profunda: sobre o fundo da raça mediterrânea o elemento negro, o armenóide e possivelmente o nórdico. Assinala que os japoneses surgiram da mais complexa mestiçagem. Os brancos, os amarelos e os mestiços foram as fontes raciais do grande Império.102 Atentar contra a mistura racial, que já existe desde o fim do período neolítico, serve apenas para engendrar ódios e até conflitos entre os povos, afirma Georges Henri Rivière, subdiretor de um Museu Etnográfico e ora citado por Cassiano Ricardo. Os próprios biólogos cruzam entre si raças e variedades e encontram resultados satisfatórios. O mesmo acontece com os mestiços humanos e não é de duvidar que essa melhoria atinja também as qualidades intelectuais e morais. Ibidem, p. 345. Ibidem, p. 346. 101 102 68 O autor cita Marcel Griaule, diretor do Laboratório de Etnologia da Escola de Altos Estudos de Paris para dizer que ‘a mestiçagem é o mais poderoso fator do progresso humano’. Já Jean Millot, professor da Universidade de Sorbonne, não foi de outro parecer ao afirmar que ‘a hibridação, na maioria dos casos, aumenta o vigor e a fecundação dos tipos étnicos e constitui um verdadeiro estimulante físico e intelectual’.103 Roquette-Pinto, com a autoridade que todos lhe reconhecem, afirma que o cruzamento não é fator de degeneração. Cassiano Ricardo diz que o mito da superioridade racial erigida em razão de Estado, em ideologia ou verdade científica, é hoje – ao que tudo indica – depois da última guerra, um mito caduco. Assim ele exara a sentença de que a miscigenação não deteriora a raça. O autor demonstra também que as características psíquicas não se explicam somente através de fatores raciais, mas, também se levando em conta os aspectos culturais, como o hábito alimentar, a educação, etc. Parece ser neste enfoque que o autor coincide suas idéias com SBH. Até, porque, às vezes, uma só direção psíquica aproveita tendências diametralmente opostas. A configuração psíquica envolve uma soma psicológica que é mais complexa do que de raças; é uma soma muito particular, mais cultural, mais contraditória, porque nela se fundem qualidades específicas de dois tipos específicos.104 Cassiano Ricardo sustenta que uma parte das características psíquicas estão ligadas à fatores hereditários, mas a outra, a mais importante, está relacionada com fatores ambientais: nutrição, meio, clima e influências sócio-culturais, que podem ser chamados de fatores ambientais. Foram esses fatores que estiveram ausentes na tese de Oliveira Vianna. Vejamos o que diz o autor a esse respeito: Não parece convincente a tese de OLIVEIRA VIANNA, segundo a qual os mestiços que vencem não vencem como tais; só triunfam quando deixam de ser psicologicamente mestiços; mas os mestiços que não vencem, esses não vencem porque são mestiços... Ora, tudo nos demonstra que o mestre não tem razão. Está provado que o mestiço vence justamente porque é Ibidem, p. 348. Ibidem, p. 350. 103 104 69 mestiço. O branco, o ariano puro, ou coisa semelhante, só pode dominar a terra e o clima porque se mestiçou com negro ou com índio. Quanto aos que não vencem, não deixam de ser mestiços porque não vencem. Esses são “indivíduos” que não vencem, em virtude de fatores sociais, regime econômico, ou taras hereditárias. Como acontece com qualquer outro indivíduo, seja mestiço ou não.105 A importância do hábito alimentar também influencia na característica psíquica, e, às vezes, o mal da deficiência alimentar é confundido com o sintoma da inferioridade racial pela mestiçagem. Vejamos o que diz o autor: Pode dar-se artificialmente certos caracteres aos seres humanos, assim como aos animais, submetendo-os a uma alimentação apropriada. Os que se alimentam de vegetais são dóceis, pacíficos; no mínimo, menos ferozes do que os que se alimentam de carne. [...] A alimentação explica a raça, dizem tratadistas modernos. O meio social explica a inferiorização ou a superiorização dos tipos étnicos, já afirmava Alberto Torres. [...] Não há dois indivíduos mais diferentes um do outro do que o mesmo indivíduo comparado a si próprio quando bem nutrido e quando sofrendo fome, quando instruído tecnicamente ou quando sem instrução de nenhuma espécie.106 Podemos notar no final da citação que o autor se refere a questões culturais como determinantes na formação das características psíquicas. Notamos, também, que o autor faz referências explícitas a outros autores ou pesquisadores caracterizando assim o feito da intertextualidade que está no ato de relacionar, contrapor, mencionar ou referir-se a outro fato, texto ou algo outro já existente. Para finalizar, Cassiano Ricardo diz que a bandeira é a glorificação da mestiçagem e, que duplicado em mestiço é que o branco conquistou e colonizou o Brasil, promovendo desta forma, uma das maiores revoluções da humanidade. Na explicação da origem da sociedade brasileira, Cassiano Ricardo aponta para divergências com os naturalistas ao demonstrar que as características psíquicas não se explicam somente através de fatores raciais, mas, muito mais e de uma maneira mais importante, relacionam-se com fatores ambientais, tais como, a nutrição, o clima e o meio onde vivem. Diz o autor que a importância do hábito alimentar influencia na característica psíquica e muitas vezes a deficiência desse hábito pode ser confundido com inferioridade racial por mestiçagem. Cassiano Ibidem, p. 351. (Nota de rodapé) Ibidem, p. 352. 105 106 70 Ricardo chega a dizer que a alimentação explica a raça, segundo os modernos tratadistas e que o meio pode determinar a inferiorização ou a superiorização dos tipos étnicos. O autor de Marcha para Oeste aponta para coincidências com Sérgio Buarque de Holanda em questões que dizem respeito a fatores culturais na explicação da origem da sociedade brasileira. Esta questão fica clara quando Cassiano Ricardo diz que as influências sócio-culturais são definidoras das qualidades psíquicas. Fala também na questão da educação que está diretamente ligada a fatores culturais tão defendidos, importantes e definidores das características psíquicas na explicação da origem da sociedade brasileira defendida por SBH. 3.6 – O modernismo e Sérgio Buarque de Holanda Com sua gênese na Europa, o Modernismo surgiu simultaneamente em vários países europeus e traduzia os efeitos da modernização sobre a vida social e cultural, sobre o comportamento e sobre a psicologia individual. A modernização tem se iniciado com a Segunda Revolução Industrial que resultou nos fenômenos da urbanização, da industrialização crescente, da ampliação de serviços, da escolarização e da valorização do ócio e do lazer. Várias e notáveis mudanças na área científica, tecnológica e ideológica também marcaram o início de uma nova era. No Brasil, o movimento foi organizado por jovens paulistas, mais especificamente entre os anos de 1922 e 1930 e revolucionou as estruturas tradicionais da arte brasileira e o grande manifesto se iniciou com a semana da Arte Moderna que foi marcada pela liberdade de expressão, pela visão apaixonada e crítica do cotidiano. O movimento tinha como características107 a liberdade de 107 GONZAGA, Sergius. Curso de literatura brasileira. Porto Alegre: Leitura XXI, 2004, p. 280. 71 expressão, a incorporação do cotidiano, a linguagem coloquial, as inovações técnicas e a ambigüidade. Com liberdade para expressar seus pensamentos, os artistas não precisariam guiar-se por outras leis que não as de sua própria interioridade e de seu próprio arbítrio. O espírito do modernismo internacional tinha como uma das maiores conquistas a valorização da vida cotidiana, o que deu à arte uma abertura temática sem precedentes. A linguagem coloquial misturava expressões da língua culta com termos populares. Existia uma forte aproximação com a fala, era uma língua sem erudição. Nas inovações técnicas se destacou a presença do verso livre. Este já não estava sujeito ao rigor métrico e às formas fixas de versificação. A coesão através dos nexos sintáticos fora abolida e a poesia moderna se tornou mais solta, descontínua e fragmentária. A polissemia passou a ser uma das características do discurso literário apresentando uma rede de significações que permitia múltiplas interpretações. Já antes da Semana de Arte Moderna, o tema do americanismo, segundo Arnoni Prado108, já aparece como um projeto interessado em romper com as interpretações do saber hegemônico. Na obra, O Espírito e a Letra, Sérgio Buarque de Holanda nos revelou o quanto era urgente para ele, naquela altura, converter em instrumento de análise objetiva o conjunto das reformulações retóricas que transformavam em imagens pujantes a fisionomia do nosso atraso. Na seguinte passagem, Arnoni Prado deixa claro o perfil modernista de SBH antes mesmo do modernismo:109 E aqui, ao se abrir para uma integração com o continente, a sua crítica se constitui num dos primeiros sintomas de consciência da modernidade anteriores ao modernismo. É o momento, por exemplo, em que vai buscar na colonização urbana da América hispânica um contraponto para o predomínio, no Brasil, da moral da senzala, velho apanágio do patriciado rural responsável pela submissão das cidades aos privilégios dos domínios agrários. PRADO, Antônio Arnoni. Raízes do Brasil e o modernismo.In: Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p.73. 109 Ibidem, p. 74. 108 72 Sérgio Buarque de Holanda apontava, já na primeira fase dos anos 20, para o interesse de desvincular as questões urbanas das classes dominantes. Esta idéia já podia ser observada nos poemas de alguns autores, como Lima Barreto e Oswald de Andrade que estavam interessados na deformação paródica dos patriarcas que a modernidade arruinava. Esses poemas denotavam o repúdio às classes dominantes em temas que tratavam por vezes no tratamento do desequilíbrio social mais agudo que acontecia nos subúrbios e nos desvãos que as cidades incorporavam. O modernista, Joaquim Manuel de Macedo, marcara o movimento harmônico de suas personagens com a “atmosfera da vida rural que as cidades apagavam” no quadro das “transformações inevitáveis da sociedade brasileira”, que SBH antecipava. Mudanças estas que se configurariam, primeiro, no abandono da vida rural: a cidade se tornaria um pólo oposto ao contexto agrário. Segundo, o provável desaparecimento ou a superação do “homem cordial”. Como diz SBH,110 Com a progressiva urbanização, que não consiste apenas no desenvolvimento das metrópoles, mas ainda e sobretudo na incorporação de áreas cada vez mais extensas à esfera da influência metropolitana, o homem cordial se acha fadado provavelmente a desaparecer, onde ainda não desapareceu de todo. Em terceiro ponto, a vocação autoritária do senhor de engenho passaria a estar presente na política, nas profissões liberais e na burocracia do dia a dia. Estes passaram a ter prioridade nas atividades citadinas. Se evidenciavam, então, as características do bacharelismo e a autoridade do senhor de engenho. Em sua análise, o crítico, Antônio Arnoni Prado, observa o traço modernista de SBH quando identifica nele traços do homem de 1936, em 1920, no prelúdio da arte moderna, vejamos: É na busca dessa originalidade (originalidade das diferenças culturais) que se antecipam nas reflexões do moço de 1920 as constatações do homem de 1936, ambos ao encalço de uma forma espontânea que nos livrasse da excelência das fórmulas teóricas e nos deixasse soltos para viver a plenitude da nossa vocação pouco especulativa.111 Trecho da carta na qual SBH faz a réplica a Cassiano Ricardo, em setembro de 1948. 110 111 Antônio Arnoni Prado. São Paulo, agosto de 2006. Ensaio No roteiro de Raízes que visa rastrear as primeiras sementes de Raízes do Brasil nas incursões jornalísticas do jovem Sérgio Buarque de Holanda entre 1920 e 1921 e examinar de que modo elas frutificaram no espírito revolucionário do modernista que ele foi entre 1922 e 1926. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 73 Arnoni Prado afirma que apesar de SBH não ter participado da Semana de Arte Moderna, levava consigo uma riquíssima percepção da modernidade que viria mudar o caráter das cidades, vejamos: Uma de suas variações mais lúcidas é a reflexão da qual extraía da oposição entre urbanismo e ruralismo o motivo para meditar sobre o novo caráter das cidades, agora transformadas pelo progressismo que se hiperbolizava, apagando as tradições e alterando a paisagem social e humana na pressa de pôr tudo abaixo e de “mudar os nomes de praças e ruas”.112 Esta nota via no Modernismo uma das variantes incontroláveis daquela hipérbole urbana que cindia definitivamente em pólos opostos o mundo rural e o mundo da cidade. SBH fazia parte da linha de frente do modernismo e sua missão era abrir fogo contra a mentalidade sobrevivente da velha lavoura que entrou em decadência com a vinda da corte, perdeu prestígio com a Abolição e a partir da República - como irá demonstrar em Raízes – se preparou para comandar as atividades citadinas, trazendo para a burocracia, a política e as profissões liberais o garbo rançoso do bacharelismo e a vocação autoritária do senhor de engenho.113 Prado, em seu texto acentua que a marca do modernismo em SBH era aquilo que reclamava para a atualização da nossa inteligência, era a projeção solta do futuro, a mais completa liberdade de ação, estética ou política, social ou histórica, sempre com a condição de que essa nova atitude viesse acompanhada de um privilégio intelectual que nunca tinha havido antes na história das nossas idéias, o da imaginação que brotasse inteiramente da fantasia ilimitada.114 A característica, ou o caráter do modernismo e seus seguidores era o de serem confusos, de, uns aos outros, não se entenderem com clareza pelo fato de não terem a plena consciência dos resultados da excessiva agitação interior que os Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. ver. – São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 297. 112 Antônio Arnoni Prado. São Paulo, agosto de 2006. Ensaio No roteiro de Raízes. In: HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 299. 113 Ibidem, p. 299. 114 Ibidem, p. 300. 74 perseguia, situação que lhes parecia perfeitamente natural. A visão modernista de SBH estava no ato de olhar em paralelo a historicidade dos temas poéticos e a poetização dos assuntos históricos. Arnoni Prado atesta que dentro dessa fantasia ilimitada foi pautada toda a atividade do jovem Sérgio Buarque de Holanda em sua militância modernista. SBH teria, nas incursões pelo terreno da ficção, feito inclusive uma previsão do futuro. Alguns lineamentos marcaram o timbre modernista do autor de Raízes e visavam a refazer o itinerário para o processo de dissolução das sobrevivências arcaicas: O primeiro mergulha nas conjecturas possíveis sobre o papel da literatura na definição de uma atitude independente frente ao legado espiritual da metrópole. O segundo aprofunda a transformação dos motivos estéticos dessa autonomia nos temas inaugurais de uma literatura já identificada com a nação. E o terceiro discute a atualização dessa literatura não apenas em face das influências da modernidade irradiada da Europa, mas principalmente em face da revogação definitiva da velha ordem colonial e patriarcal que nos fará, um dia, reencontrar a nossa verdadeira realidade.115 SBH iniciou o mergulho para uma ordem fluída de outra temporalidade na qual convivem as formas mais diversas e os arranjos temáticos mais inesperados, este talvez, seja o fato que o credencia a ser um modernista arcádico em busca da verdadeira expressão. Abertamente, defendia a liberdade estética e a fantasia ilimitada em detrimento do naturalismo, vejamos sua manifestação: Nós lembramos esse tão debatido fin-de-siècle como o mais esquisito na sua originalidade e o mais interessante na sua esquisitice. Mais interessante e mais digno de atenção. Resta entretanto muito ainda que fazer. Resta combater toda sorte de imbecilidades que continuam a infestar a Arte Moderna, como sejam o realismo, o naturalismo, o vulgarismo, o pedantismo, a fim de que se possa erguer bem alto o monumento que simbolizará a Arte do futuro e no qual se verá escrito em caracteres de fogo, o seu programa: Liberdade estética – Fantasia ilimitada.116 115 Ibidem, p. 307. 116 HOLANDA, Sérgio Buarbque de. O espírito e a letra: estudo e crítica literária 1, 1902-1947, organização, introdução, e notas Antônio Arnoni Prado. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 33. 75 Assim, SBH deixa evidente sua valorização dos fatores culturais em suas diversas formas e maneiras de manifestação para explicar o sepultamento do modelo arcaico que privilegiava as classes dominantes. As cidades passariam a ser o centro das transformações, da diversidade cultural e dos arranjos temáticos, da liberdade e da fantasia. 4 - A APROPRIAÇÃO DE "RAÍZES DO BRASIL" A contemporaneidade caracteriza-se por ser uma era em que a produção de bens culturais e a circulação de informação ocupa um papel de destaque na formação moral, psicológica e cognitiva do homem. É uma nova ordem social regulada por um universo cultural amplo, diversificado e fragmentado.Convivemos em uma formação social cujo paradigma cultural é globalizado mas conservamos perante a comunidade mundial elementos culturais únicos que nos identificam no 76 vasto campo do multiculturalismo. O mais forte destes elementos seja, talvez, a imagem que o mundo construiu do homem brasileiro, como sendo um indivíduo que tem lhaneza no trato, hospitalidade, generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam, e que se fundiram como um traço definido do caráter brasileiro. 4.1 Sérgio Buarque de Holanda e a historiografia européia: relacionando textos O fato de Buarque de Holanda comparar uma realidade social com outra, tomando por base as diferenças entre uma e outra, usando um arcabouço metodológico já usado por outro pesquisador, pode denotar intertextualidade porque neste ponto procura relacionar texto anterior com sua própria escrita. Esta prática, podemos perceber nas afirmações de Maria Odila Leite da Silva que ressalta a preocupação contínua de SBH em documentar diferenças e estudar textos sobre formação da sociedade brasileira que se caracterizou por um processo de concentração de renda em um nível muito maior do que o de outras sociedades contemporâneas. Isso fica evidente quando ela observa: “Dentro de seu enfoque preso ao relativismo cultural e ao devassar critico do capitalismo iniciado por Marx e por Weber, aproximou-se precocemente de uma tendência de crítica interpretativa dos fenômenos urbanos.” 117 Citar outrem ou tomar como suas as idéias ou conceitos daquele pode caracterizar uma intertextualidade explícita e isto está posto na seguinte passagem: A este respeito, Sérgio Buarque citava um historiador alemão, Theodor Schieder, para o qual “as necessidades do homem, assim como os valores e as normas que o homem estabeleceu, se sujeitam à lei da mudança histórica e, em suma, existem apenas em formas mutáveis”.118 117 DA SILVA, Maria Odila Leite. Política e sociedade na obra de Sergio Buarque de Holanda. In: Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 12. 118 Ibidem, p.22. 77 Poderíamos ainda dizer que a intertextualidade existe também na aprendizagem; penso assim por influência do outro, por ter aprendido com o outro. O meu conhecimento se completa e se enriquece com o saber de outrem. O saber do discípulo carrega em si a quase essência do saber do mestre. Tomar para si diretrizes do saber de alguém, que interativamente conviveu conosco, é sem dúvida uma intertextualidade implícita ou relativa, no mínimo. Ilana Blaj119 refere-se aos tipos que, segundo o conceito de Ferrater Mora (1994), representa um modelo que permite produzir um número indeterminado de indivíduos que se reconhecem pertencentes a uma mesma classe com ares, até, de família dado à semelhança entre si. Justamente no tocante a estes tipos é que reside fundamentalmente a correlação entre rua, bandeirante, aventureiro e semeador que contracenam respectivamente com casa, pioneiro, trabalhador e ladrilhador nos reporta ao esquema da sociologia de Max Weber. Todo o arcabouço metodológico de SBH está ancorado em Weber que é o autêntico criador dos tipos – indivíduo histórico construído para pesquisa. Este método está construído sobre uma seqüência de dualidades em torno de uma que é dominante; racional ou não racional.120 A criação do “homem cordial” por Holanda tem origem no método weberiano e caracteriza o tipo/perfil do sujeito que trata familiarmente os interlocutores pelo primeiro nome, abolindo o emprego dos sobrenomes. Sujeito que tem tendência de aparentar harmonia, de desfazer diferenças e de apelar para o emotivo. Com fundamentos na amizade e no parentesco, sempre prevalecendo o compadrio e os laços afetivos e pessoais, a figura do homem cordial conduz sua vida pessoal, seus negócios e sua conduta social. Esta figura não foi criada espontaneamente, mas, inserida na escrita de SBH a partir da obra de Max Weber. Realçando, ainda, a presença da historiografia alemã em SBH, Vainfas assinala o vínculo explícito entre Buarque de Holanda e Ernst Curtius; o último que é 119 BLAJ, Ilana. Sérgio Buarque de Holanda: historiador da cultura material. In: Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 45. 120 COHN, Gabrel. Crítica e resignação: Max Weber e a teoria social. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 9. 78 historiador alemão teve sua obra, Europäische Literatur und Lateinisches Mittlelalter (Literatura Européia e Idade Média Latina), de 1948, evocada na obra de SBH, Visão do Paraíso: Sérgio Buarque é explícito quanto à importância de Curtius em Visão do Paraíso, escrevendo o prefácio à 2ª edição da obra em 1968. Importância visível no recurso a uma Tópica capaz de articular a pesquisa heurística de textos literários com a investigação propriamente histórica.Pois é com base na reconstituição do processo de transmissão dos arquétipos do paraíso terrestre que constrói Visão do Paraíso.121 Embora este ato de evocar Curtius ocorra somente em Visão do Paraíso e não em Raízes do Brasil, podemos acentuar a ocorrência da intertextualidade, que nos propusemos mostrar. 4.2 Comparando dois textos: Raízes do Brasil e Marcha para Oeste A essência desse trabalho está em mostrar relações de intertextualidade entre Raízes do Brasil e outros textos. Ora, citaremos Cassiano Ricardo como interlocutor de SBH ao construir uma passagem de intertextualidade explícita na sua obra Marcha para Oeste quando escreve: o bandeirismo que ocorre como um sistema de vida e economia próprio de Piratininga, mercê de causas e concausas que só aí ocorrem. Além disso, em sua extensão, no espaço que vai conquistar, é fenômeno que só se justifica na América pelas suas conseqüências territoriais afinal marcadas pelo perfil geográfico do Brasil.122 121 VAINFAS, Ronaldo. Sérgio Buarque de Holanda: historiador das representações mentais. In: Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 50. 122 RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste. (A influência da “Bandeira na formação social e política do Brasil). Vol. I. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade de São Paulo, Livraria José Olímpio Editora, 1970, p. 47. 79 Para mostrar o quanto tem sido expressivo o perfil étnico e psicológico que havia formado o bandeirismo no Brasil, o autor cita o caso de Francisco José de Lacerda e Almeida que fez a travessia e a exploração do continente africano, por ser, este, paulista e descendente de mamelucos; a seguinte passagem caracterizase por uma intertextualidade explícita: Mas não deixará de ser muito expressivo, como nos mostra Sérgio Buarque de Holanda, o caso de Lacerda e Almeida na travessia e exploração do continente africano. Tão memorável foi a sua performance que – observa o autor de Raízes do Brasil -, passados muitos decênios, ainda se conserva na lembrança dos pretos selvagens, conforme o atestou Livingstone em seu diário.123 Podemos conferir agora a passagem da obra Raízes do Brasil, a qual alude o autor Cassiano Ricardo: E não será talvez por mera coincidência se o primeiro passo definitivo para a travessia e exploração do continente africano foi dado naquele século por um filho de São Paulo e neto de mamelucos, Francisco José de Lacerda e Almeida. Tão memorável tentativa foi a sua, que passados muitos decênios ainda se conservava na lembrança dos pretos selvagens, conforme o atestou Livingstone em seu diário.124 Parece que até aqui as obras estão interligadas e defendendo as mesmas concepções, mas, estas mudam quando o tema se volta mais profundamente para os bandeirantes. Cassiano Ricardo inicia a explicação do conceito de bandeirismo afirmando que costume de bandeirar é índio. Que a mestiçagem do índio, andejo por excelência é que esclarece a mobilidade que a bandeira tem. Em qualquer hipótese, a mobilidade da bandeira em seu ímpeto horizontal e psicológico é um fenômeno principalmente indígena. Que a nostalgia cósmica do índio que queria voltar pra sua taba entra na composição psicológica da mobilidade da bandeira, de maneira terminante. O autor afirma que o meio geográfico, étnico e econômico do bandeirismo só ocorreu no Planalto de Piratininga. Que só o homem coletivo é que realiza a bandeira e este perfil por mais rutilante que seja, pressupõe um tipo social, Ibidem, p. 47. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 142. 123 124 80 e este tipo é aquele que predominou em Piratininga; o berço do bandeirismo. 125 Ao falar de bandeiras o autor faz outra observação apontando para alguns sinais que a identificam, tais como: técnica do sertão, sistema de vida, organização sui generis do grupo social e localização geográfica. A bandeira constitui um grupo muito mais nítido na sua organização e tangido pela esperança, com uma direção e um comando que lhes condensam as energias para o objetivo a realizar.126 No Brasil, “bandeira” é o grupo que se deslocou do planalto de Piratininga, reunindo atributos próprios, particularidades e objetivos que se tornaram tipicamente seus e que, depois, serviu para designar um fenômeno social chamado bandeirismo. Seguindo, podemos ver que Cassiano Ricardo amplia o conceito da “bandeira” mostrando a amplitude que esta tem no contexto brasileiro: Chama-se, pois, “bandeira” a cada grupo social que se deslocou de São Paulo, em várias direções, mas principalmente a Oeste, conduzido por um chefe, organizado militarmente, e com govêrno próprio, em função econômica e de povoamento, dando em resultado a atual silhueta geográfica do Brasil. Mas a bandeira não é apenas o que está contido em tal tentativa de definição. É algo de mais complexo, com influência nítida no sistema da vida brasileira, nas suas instituições sociais e políticas e com reflexos – mais importantes do que se pensa – na vida do mundo moderno. 127 Cassiano Ricardo diz, ainda, que a bandeira é uma espécie de nomadismo dirigido e que sua principal diferença em relação ao outros movimentos “está na complexidade da organização, no comportamento cultural, que tornam o grupo bandeirante inconfundível em relação aos demais grupos da colônia e no fato de se tratar de um sistema de vida só enraizado em São Paulo.”128 Cita, ainda, na obra Marcha para Oeste, conceitos de outros autores que escreveram sobre as características políticas e a complexidade que adquiriu a bandeira, para se tornar inconfundível e mais originalmente nossa: 125 RICARDO, Cassiano. Marcha para Oeste. (A influência da “Bandeira na formação social e política do Brasil). Vol. I. 4. ed. Rio de Janeiro: Editora da Universidade de São Paulo, Livraria José Olímpio Editora, 1970, p. 28-29. 126 Ibidem, p. 38. 127 Ibidem, p. 40. 128 Ibidem, p. 43. 81 a) é uma cidade que viaja com os seus senhores e governadores – explica João Ribeiro; b) é uma pequena nação nômade, organizada sòlidamente sobre base autocrática e guerreira, adianta Oliveira Vianna; c) enfim, um pequeno Estado, ou Estado em miniatura, como aqui se pretende, levando usos e valôres culturais govêrno e organização social que o tornam uma antecipação do self-government brasileiro, ou ainda, sob vários aspectos - , d) uma democracia viva e andeja, com o seu regimento e as suas leis, a sua hierarquia social e – coisa notável – a sua independência política, não lhe faltando, sequer, a primeira experiência de democracia representativa, isto é, de uma eleição por conta própria pra escolha do seu governo, como aconteceu em Cuiabá.129 Raízes do Brasil e Marcha para Oeste se ocupam em estudar a formação da sociedade brasileira, mas em se tratando do tema “bandeirante” Sérgio Buarque de Holanda parece estar com seu conceito bem mais superficial ao dizer com brevidade que A obra das bandeiras paulistas não pode ser bem compreendida em toda sua extensão, se a não destacarmos um pouco do esforço português, como um empreendimento que encontra em si mesmo sua explicação, embora ainda não ouse desfazer-se de seus vínculos com a metrópole européia, e que, desafiando todas as leis e todos os perigos, vai dar ao Brasil sua atual silhueta geográfica.130 Sérgio Buarque de Holanda conceitua o acontecido na planalto de Piratininga como sendo uma expansão de pioneers paulistas que fizeram seus movimentos sem se importar com os interesses da metrópole européia e, que, eram audaciosos caçadores de índios, farejadores e exploradores de riqueza. Conceitua-os como puros aventureiros. Parece que o autor confunde as bandeiras com outras expedições de cunho particular ou com fins divergentes daqueles que se propunha o verdadeiro bandeirismo. Ambos os autores foram estudiosos da realidade brasileira na época, mas, Cassiano Ricardo parece ter de dedicado muito mais em alguns aspectos, como no Ibidem, p. 47. HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. Edição Comemorativa 70 anos; organização Ricardo Benzaquen de Araújo, Lilia Moritz Schwarcsz. Ed. rev. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p. 105. 129 130 82 caso do bandeirismo. Em sua obra cita SBH que lançara Raízes do Brasil em 1936; quatro danos antes de Marcha para Oeste, que teve sua segunda edição em 1942 com a versão revisada e em dois volumes. Em 1959 aconteceu a 3ª edição inteiramente revista e aumentada. A quarta edição, aumentada e revisada, foi em 1970 com o acréscimo de dois novos capítulos. Raízes do Brasil teve sua 2ª edição em 1947 com alterações abundantes onde foram retificados e ampliados alguns temas. Os capítulos 3 e 4 foram separados e tiveram novas denominações de conteúdos, entre eles, ”O semeador e o ladrilhador”; categorias sociológicas usadas para descrever as características dos colonizadores portugueses e espanhóis. A terceira edição saiu em outubro de 1955 e de novidade trouxe o debate sobre o “homem cordial”; conceito criado por Ribeiro Couto e interpretado de maneiras diferentes por SBH e Cassiano Ricardo. Nesta edição, então, encontram-se as objeções de CR e as respostas que lhe foram dadas pelo autor de Raízes do Brasil. O índice onomástico também passa a fazer parte da obra a partir da 3ª edição. As duas obras parecem ter borbulhado já na primeira metade do século XX quando muito se especulava a respeito da formação, diversidade e complexidade que envolvia a formação da sociedade brasileira. 4.3 Bandeirantes e Pioneiros Em sua obra, Bandeirantes e Pioneiros, Vianna Moog usa a matriz da oposição conceitual para analisar questões relativas à colonização americana e brasileira. Para caracterizar os colonizadores que povoaram os Estados Unidos da América usa o termo “pioneiro” e para construir a imagem do colonizador brasileiro usa o termo “bandeirante”. 83 Segundo Moog, o tipo anglo-saxão que era predominante entre os colonizadores dos EUA preservava a pureza racial, acreditava que a raça era símbolo de força, contava com uma geografia mais favorável em relação ao Brasil, abundância de carvão e petróleo. Aqui, os portugueses miscigenaram a raça. O colonizador americano acreditava que o fator econômico era preponderante para evidenciar o crescimento da nação e associavam tudo isso à religião, o protestantismo, especialmente o metodismo e o calvinismo, tinha relação estreita com o capitalismo. Trabalho, dinheiro e propriedade agradavam a Deus. Pelo contrário, no Brasil o catolicismo e o capitalismo se repeliam. Enquanto os protestantes criavam a concorrência, o juro, as letras de câmbio e o comércio de ações, os portugueses entregaram esta tarefa aos judeus para, desta forma, salvarem suas almas. Eis uma questão puramente influenciada pela religião, visto que o catolicismo condenava o rico, o detentor de grandes posses, que, para os calvinistas agradava a Deus. O apetite aquisitivo dos colonizadores americanos agradava a Deus, porque atestava trabalho. Eles acreditavam que tempo era dinheiro, eram pontuais. Ao contrário; o colonizador brasileiro, por uma questão de religiosidade era adepto da contemplação que induzia a impontualidade e desvalorizava o tempo. Estas concepções têm origem em Max Weber. Já no primeiro capítulo de sua obra, A ética protestante e o espírito do capitalismo, o autor afirma que nos congressos católicos, sobretudo na Alemanha, é muito discutido “o fato de que os homens de negócio e donos do capital, assim como os trabalhadores mais especializados e o pessoal habilitado técnica e comercialmente das modernas empresas é predominantemente protestante.”131 Quanto ao fator crença, segundo o autor, os católicos preferem uma formação humanística e não comercial, sendo esta, talvez, a razão do pequeno engajamento dos católicos nas empresas capitalistas. Ainda, a regra da Igreja Católica, ‘punindo o herege, mas perdoando o pecador’ inibia desde cedo a prática, por exemplo, da usura, da agiotagem, da transação com a moeda e da prática do juro, o que no Brasil tem travado em muito o 131 WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. Tradução. São Paulo: Martin Claret, 2004, p.37. 84 desenvolvimento da economia e em conseqüência, a evolução da nação como um todo. Outro fator preponderante de oposição entre os pioneiros e bandeirantes foi que os calvinistas vieram para os EUA para ficar, se orgulhavam em ser americanos e não queriam voltar para a Inglaterra. Tinham ideais próprios, otimizavam o tempo e acreditavam no enriquecimento pelo trabalho, na responsabilidade. E, deram as costas para a Europa. Os descendentes dos portugueses, chamados de mazombos, aqui considerados “bandeirantes” tinham ligação com o rei de Portugal, queriam conquistar, não colonizar, não pensavam em enriquecer com trabalho, mas, eram adeptos da busca rápida e fácil, não tinham sentimento nem ideais. Para eles a vida era só de direitos e privilégios, não de dever e responsabilidade. Moog descreve traços do bandeirante, termo que usa para identificar o colonizador brasileiro e seus descendentes então chamados de mazombos: A vida para ele, filho de algo, devia ser uma soma de direitos e de privilégios; nunca uma soma de trabalhos, responsabilidades de deveres. [...] só de uma coisa não era capaz o mazombo: de alegrar-se com o trabalho. [...] Ganhar no jogo, eis uma das boas alegrias do mazombo. Ora, não havia mundo menos moral que o da bandeira. Para começar, o seu móvel principal, senão único, era a cobiça. Cobiça e luxúria, caça ao índio e caça à fêmea, [...] Nelas o que imperava não era a lei moral, mas a lei do mais forte, [...] então virtude seria a poligamia de fato e não a monogamia ou a castidade.132 Na contra partida, temos a figura do pioneiro, tributo usado para identificar o colonizador americano e seus descendentes, termo este que denota estabilidade, imagem de quem veio para ficar, de quem cria, inventa, adapta, e, sobretudo, acredita no trabalho. O pioneiro acredita na possibilidade do aperfeiçoamento moral do homem. Moog faz algumas considerações mais sobre o pioneiro: 132 MOOG, Viana. Bandeirantes e Pioneiros – Paralelo entre duas culturas. Rio de Janeiro, Globo, 1954. p. 153-156. 85 [...] enquanto o elegante para o mazombo é ostentar desprezo pelo dinheiro, o americano atribui ao dinheiro um valor místico, fazendo de seus bancos verdadeiras catedrais do dólar; enquanto o hobby do mazombo é o jogo ou a caça à fêmea, ou ambos, o dele é a jardinagem, a oficina ou o laboratório de pesquisas.133 Enquanto o colonizador português tinha na mulher a imagem apenas de um objeto ou instrumento de prazer, eis o que era a mulher para o colonizador americano: Para o colonizador do Brasil, homem da Renascença,(bandeirante) a mulher é um objeto de presa. Para o puritano, homem da Reforma,(pioneiro) a mulher é a companheira de trabalho, chumbada como ele ao dever de ganhar o pão com o suor do próprio rosto. Na luta contra os índios, na derrubada da mata, na construção da cabana, na marcha para o Oeste, nas lides da roça e do campo, encontrá-la-eis sempre ao seu lado.134 Ao observar esta alternância de valores, parece-nos estar explícita a teoria dos tipos apropriada pelo autor para descrever o perfil dos colonizadores americanos e brasileiros, usando sempre a técnica da oposição. O autor busca diferenciar e tipificar o modo de colonização impresso pelos portugueses e pelos americanos através de “categorias sociológicas” baseadas em tipos característicos que denotam uma ou outra categoria. É no uso do conceito de tipo, recurso marcante de Weber, que podemos encontrar um vínculo entre Bandeirantes e Pioneiros e Raízes do Brasil. Moog, tendo escrito sua obra em 1954, dezoito anos após publicação de Raízes do Brasil, e, tendo citado um ensaio outro de SBH, parece omitir a fonte, ou pelo menos negar que usa a sistematização de Buarque. Quase urge dizer que Moog leva a influência do primeiro pela matriz com que faz o jogo dos pares antagônicos em “Bandeirantes e Pioneiros” que faz lembrar os pares opostos (ladrilhador e semeador; aventureiro e trabalhador). Como poderemos crer que Moog fosse pesquisar tanto Weber e não pesquisar Buarque de Holanda, posto que Ibidem, p. 162-164. Ibidem, p. 166. 133 134 86 Raízes do Brasil é um livro que sociólogo e historiador nenhum deixaria de ler. Mas, indaga-nos, questiona-nos o fato de que Moog não menciona tal obra de Buarque, seria uma omissão para potencializar sua credibilidade perante os leitores menos informados? O certo é que a tática usada por Viana Moog tem muito a ver com a de SBH, e, é aí que reside a intertextualidade. Fato atípico já acontecera quando Vianna Moog publicou sua obra, Bandeirantes e Pioneiros, em 1954, porém, fez referência apenas a uma obra de Sergio Buarque de Holanda – Prefácio às memórias de um colono no Brasil – datado de 1941 e não citou Raízes do Brasil, publicado em 1936. Moog, em sua obra parece seguir os passos de SBH apenas reinventando a problemática. Á primeira vista, não seria lógico Moog escrever sua obra sem ter lido e estudado Raízes do Brasil, porque usa naquela obra a estratégia e o método desta. É muita clara a importância da obra de SBH para a obra de Vianna Moog. A tática de recursos parece ser um evento claro de intertextualidade. 87 4.4 Casa e Rua Sérgio Buarque trabalha muito bem a questão das interpretações dualísticas do Brasil na sua obra de 1936, usando o que podemos chamar de pares antagônicos para identificar espaços, costumes, culturas e grupos sociais que se edificaram em situações opostas e até contraditórias em relações a outras. Este recurso metodológico está consagrado no uso dos conceitos “Trabalho & Aventura” e “o semeador e o ladrilhador.” Roberto DaMatta, em sua obra, A casa & a rua - Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil, editado em 1985, e, que se ocupa em estudar e analisar a realidade brasileira, vem recriar os conceitos metafóricos “casa e rua” e transforma-os em “categoria sociológica” para neles retratar supostas características da sociedade brasileira, demonstrando que existe apropriação da obra do pesquisador Sérgio Buarque de Holanda. Este recurso está presente no método, na estratégia, no uso da dualidade, na análise de pares antagônicos. Roberto DaMatta, ao criar os espaços opostos, casa e rua, poderá estar diretamente fazendo o mesmo confronto que faz Buarque de Holanda com a figura do trabalhador e do aventureiro. Roberto DaMatta não esteve tão próximo de Max Weber como esteve SBH. Entretanto esteve sim, bem próximo do pensamento de SBH. A obra Raízes do Brasil parece estar desde cedo muito à mão do jovem pesquisador. A “casa & a rua” parecem separar, mais claramente, contextos como os que envolvem “trabalho & aventura” e “o semeador e o ladrilhador”. O uso do “&” leva a imagem de Sérgio Buarque de Holanda, pois, esse símbolo aparece em sua obra. A influência de Max Weber sobre Roberto DaMatta parece estar ligada aos conceitos da ética e suas questões, e também na análise do capitalismo e da sociedade tradicional. As questões que envolvem os “tipos” e a recorrência do seu uso também parecem proceder de Weber, mas, a maneira de criar o protótipo, pode 88 ser considerada uma intertextualidade com a tática de Buarque. A seguir mostraremos os pares de conceitos opostos em O que é o Brasil e em Raízes do Brasil. Vejamos a tática usada por Buarque em “trabalho & aventura” e “o semeador e o ladrilhador”. Trabalhador •Tira o máximo proveito do insignificante •Tem •É visão restrita persistente •Considera a parte maior que o todo Aventureiro •Tem •É repulsa ao trabalho adepto do ócio •Não tolera compromisso •Colhe o fruto sem plantar a árvore •Pensa •Tem •É vontade determinada e enérgica comprometido •Tem •É que a riqueza custa trabalho amor ao trabalho voltado para a família •Tem pés no chão •Busca •Tem •Vê •É espaços ilimitados projetos vastos horizontes distantes adepto do desleixo e abandono •Vive na contemplação e amor •Tem vida de grande senhor •Não tem vontade determinada e enérgica •Vê no todo maior importância do que na parte Vejamos ainda as duas categorias sociológicas usadas por Buarque em sua obra, nos idos anos da década de 1930, quando criou as “categorias sociológicas” do “o semeador e o ladrilhador” fundado no antagonismo dos pares. 89 Ladrilhador •Valoriza • o traço retilíneo Tem direção da vontade •Denota Semeador •Não tem rigor e método •Não tem providência a preocupação com a urbanização, •Tem abandono e desleixo com os ângulos retos • Tem fim previsto e eleito • Tem fim desordenado • Tem rigor e planejamento • Trabalho não acabado • Tem cuidado com o detalhe • Valoriza traço sinuoso sem nenhum planejamento • É organização, tem planejamento e busca o aperfeiçoamento • Constrói de forma desordenada como que as sementes jogadas por um semeador a crescer umas amontoadas com as outras no local em que fossem jogadas • Busca harmonia e perfeição na disposição das peças com dedicação sagrada • Tem aspiração de dominar e ordenar o Seus feitos não são produto • mental • Parece tudo irregular mundo •Tem liberalidade desordenada Tem • fantasias e busca facilidades •É desorganizado Em uma dualidade, novamente marcada pela oposição, Roberto DaMata, em sua obra, O que é o Brasil?, usa os termos “casa” e “rua” para construir uma identidade nacional a partir de aspectos mais populares e conhecidos da nossa sociedade. Mais fortemente esta questão está marcada na sua obra específica “A casa e a rua”. Para mostrar o estilo e o “jeito” desta sociedade, ele faz uma oposição entre o “fora” e o “dentro” que estas palavras sugerem. Podemos observar um quase plágio dos pares antagônicos usados por SBH. Vejamos a tática usada por DaMatta em “casa e rua”. 90 Casa Rua •Dentro *Fora •Privado *Público •Predomínio •Local das relações pessoais privilegiado *Eixo das leis impessoais *Onde os discursos são muito mais rígidos •Ressalta a pessoa *É o idioma do decreto, da letra dura da lei, da emoção disciplinada •Intensidade emocional é alta *Permite a exclusão, a cassação, o banimento e a condenação •Fundado na família, na amizade, na *Baseado em leis universais, numa lealdade, na pessoa e no compadrio burocracia antiga e num formalismo jurídico legal •Local acolhedor, informalidade •Pessoas conhecidas •Estabilidade, •Lugar amor, respeito *Espaço das massas *Se move como um rio *Pessoas desconhecidas onde não se objetiva o lucro, sem *Um local perigoso e impositivo concorrência •Local onde as atitudes são humanas *Falho, subordina e explora *Descaso, aflições e sombrio *Lugar de luta e batalha *Lugar de contradições e surpresas *Lugar onde o tempo é medido pelo relógio, pelo calendário e pelas consideração, amor, agendas *Local sem respeito e amizade *Denota impessoalidade, igualdade e trabalho igualitário 91 •Dentro *Fora *Local de atitudes desumanas. (o “olho da rua.” Fiquei na rua da amargura.) Casa irá denotar as questões relacionadas ao privado; e rua, as questões relacionadas ao público. Diz ele que a casa provê uma leitura especial do mundo brasileiro. Observa que, num certo sentido, a casa, onde somos reis e donos, nos protege da rua, onde não somos nada. Aponta para uma particularidade brasileira dizendo que as nações modernas, casa e rua (público e privado) são regidas por critérios diferentes, mas, no Brasil, sua unidade básica não está baseada em indivíduos ou cidadãos, mas em relações e pessoas, famílias e grupos de parentes e amigos.135 O autor escreve a rua como um espaço das massas, que se move como um rio, num fluxo de pessoas indiferenciadas e desconhecidas. Lugar de luta e de batalha, de contradições e surpresas. Lugar onde o tempo é medido pelo relógio, pelo calendário e pelas agendas. Local sem consideração, amor, respeito e amizade. A rua denota impessoalidade, igualdade e trabalho, local do famoso “batente”. A casa, por sua vez, é descrita como um local onde existe hierarquia, onde as pessoas têm uma ordem de importância. É um espaço onde são negadas a impessoalidade, a igualdade e o trabalho igualitário. O local onde misturamos tarefa com amor, amizade. Onde as relações pessoais interferem nas relações de trabalho. No Brasil, os pares antagônicos “casa” e “rua” têm servido para fazer uma análise da nossa realidade, pois, metaforicamente constitui-se num espaço onde podemos traçar parâmetros sobre evolução de nossa sociedade que parece mais se identificar com o espaço da “casa”, onde tudo se mistura, onde as relações pessoais acabam prevalecendo. O diálogo entre os pesquisadores parece sempre ter sido evidente, até porque o conhecimento vai evoluindo sempre sobre uma base legal daquilo que já existe ou da bagagem cultural que temos. Sempre recorremos a outrem para buscar 135 DAMATTA, Roberto. A casa & a rua - Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. - 4ª Ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1991, p. 84. 92 um indício ou uma prova que possa sustentar o que de novo queremos dizer. Esta pesquisa também se apóia em algo já criado e dito, apoiado ainda, no já conhecido conceito de intertextualidade. O próprio processo de pesquisar parece ser tão dinâmico que tudo o que de novo podemos afirmar terá que ter base e sustentação em algo já provado, ou então, não teremos a credibilidade necessária. Pode ser esta uma das questões a mostrar que toda comunicação leva em si uma relação forte de intertextualidade. Nos trabalhos de Roberto DaMatta, ficam claros dois fatos. Primeiro, se evidencia a contemporaneidade de Sérgio Buarque de Holanda que fala através da voz desse pesquisador. Este evento está implícito quando o autor usa o forjado conceito de SBH - “homem cordial” - no discurso que incorpora quando se refere a questões sociais envolvendo o Brasil. A intertextualidade está presente em todos os momentos em que o pesquisador usa os termos relativos à criação de Holanda que marca seu “tipo” como aquele que familiariza tudo, que age sempre pela “corda” coração – e torna tudo familiar. Que fundamenta todas as relações em relações pessoais, traz tudo para a intimidade. Tudo parece ser ou familiar ou totalmente estranho. Podemos observar várias passagens onde invoca os conceitos de SBH ao falar do Brasil: ... pois da conversa formal para a intimidade a distância é tênue no Brasil. [...] Curioso país esse Brasil, feito de um credo liberal tão alardeado na base de suas instituições jurídicas, mas operando de modo a privilegiar as relações pessoais tão flagrantes. No Brasil, por contraste, a comunidade é necessariamente heterogênia, complementar e hierarquizada. Sua unidade básica não está baseada em indivíduos ou cidadãos, mas em relações e pessoas, famílias, e grupos de parentes e amigos. Assim, dentro de minha rede de parentesco, compadrio e amizade, dentro de casa, sou uma pessoa. Sou um ser dividido e relacional, cuja existência social se legitima pelos elos que mantenho com outras pessoas num sistema de transitividade e gradações.136 136 Ibidem, p. 79-99. 93 Isto posto, podemos deflagrar o diálogo do pesquisador com SBH e provar também que o escritor de Raízes do Brasil está presente nos nossos tempos e na mente dos nossos intelectuais em uma relação quase pessoal. 'Vainfas137 já identificara a presença do escritor francês Marc Bloch nas obras de SBH – Visão do Paraíso e Raízes do Brasil – sem que o mesmo fosse citado por Holanda, este apenas denunciou a intertextualidade no tocante à perícia da comparação histórica , a comprovar o que Bloch pensava sobre “a comparação como varinha de condão da história”. Temos aí o intertexto a esconder-se nas entrelinhas do conhecimento adquirido. Em Visão do Paraíso, obra de 1959, SBH mantém forte diálogo com a historiografia do século XIX que mantém crença na produtividade inexaurível do homem e da natureza. Buarque de Holanda também dialoga nesta obra com a historiografia oitocentista do italiano Arturo Graf , Mitti, Leggende e Supersticioni del Médio Evo, publicado em 1886. Este livro trata, segundo Vainfas, exatamente do tema de Visão do Paraíso, só muda o contexto. Usa a mesma técnica – a busca do paraíso terreal na literatura de viagens. Buarque de Holanda não cita Arturo Graf em sua obra, assim causando, uma ocorrência de intertexto implícito. Raimundo Faoro138 mostra espontaneamente em sua publicação uma apropriação intertextual implícita quando afirma que SBH escreveu supostamente apoiado numa citação de Max Weber ao falar na distinção fundamental entre os domínios do privado e do público, afirmando que o funcionário detentor de cargo público faz dessa gestão assunto de seu interesse particular. Nasce neste ponto a figura do “homem cordial”. 137 VAINFAS, Ronaldo. Sérgio Buarque de Holanda: historiador das representações mentais. In: Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 53. 138 FAORO, Raimundo. Sérgio Buarque de Holanda: analista das instiutições brasileiras. In:Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 61. 94 Antônio Arnoni Prado139 já afirma ser histórica a nossa alegada incapacidade de criar espontaneamente, e, uma das provas disto é a publicação de Raízes do Brasil em 1936, que se fundamenta no passado enquanto referência para compreender a cultura brasileira, usando um arcabouço metodológico de escritores que antecederam Holanda ou foram contemporâneos. E este copiar de idéias, táticas e manobras discursivas podemos chamar de intertextualidade. O processo da leitura é que nos conduz a este evento que se dá a partir do contato com inúmeros textos. O processo de leitura, entendido como compreensão do discurso verbal, envolve processos cognitivos semelhantes ao processo de criação num processamento inverso. Na leitura do texto, o leitor não memoriza o texto, mas, usando um modo cognitivo, extrai da leitura seqüencial as proposições apresentadas pelo autor, tentando reconstruir mentalmente a estrutura do texto, proposições essas que se relacionam localmente, isto é, no âmbito da frase e do parágrafo, bem como num nível global, que envolve todo o texto. Daí o vínculo deste trabalho com o processo de leitura e cognição; indispensáveis para a compreensão e percepção da intertextualidade. 139 PRADO, Antônio Arnoni. Raízes do Brasil e o modernismo.In: Sérgio Buarque de Holanda e o Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1998, p. 72. 95 CONCLUSÃO Este trabalho teve o objetivo de identificar relações de intertextualidades entre a obra Raízes do Brasil e outras obras que se ocuparam em analisar a realidade brasileira. Obras que antecederam e obras que sucederam o estudo de Sérgio Buarque de Holanda. Nessas obras identificamos algum tipo de relações de intertextualidade. Descobrimos que o conhecimento tem caráter interativo e bidimensional e que obras e estudiosos que se ocuparem de realidades afins acabam se configurando em vozes que convergem para o mesmo ponto. Quando estas se encontrarem no mesmo ponto de origem ou de chegada, embora com pequenas divergências semânticas, estarão se configurando como relações de intertextualidade porque, mesmo diferentes, conceituam ou opinam diversamente sobre o mesmo tema. 96 Na construção dos tipos e categorias sociológicas identificamos a presença da teoria weberiana que se manifestou através do arcabouço metodológico de alguns estudiosos. Ferrater Mora diz que “tipo” representa um modelo que permite produzir um número indeterminado de indivíduos que se reconhecem pertencentes a uma mesma classe com ares, até, de família dado à semelhança entre si. Max Weber ao falar de “tipo” deixa claro a necessidade de haver “um agir típico” e “uma regularidade no desenrolar” e que a construção de um “tipo” se baseia em paradigmas. Neste quesito, Raízes do Brasil evidencia relações de intertextualidade entre Sérgio Buarque de Holanda, Max Weber, Ribeiro Couto e Cassiano Ricardo quando vai tocar no tema do “homem cordial”. Primeiro ao expor a categoria sociológica capaz de descrever a imagem e o perfil do homem brasileiro; segundo, ao acirrar discussões e mostrar pontos de vista diferentes de um ou de outro escritor. Podemos dizer que temos um conjunto de vozes a falar sobre o ”homem cordial”. A terceira edição de Raízes do Brasil saiu em outubro de 1955 trazendo como novidade o debate sobre o “homem cordial”; conceito criado por Ribeiro Couto e interpretado de maneiras diferentes por SBH e Cassiano Ricardo. Nesta edição, então, encontram-se as objeções de CR e as respostas que lhe foram dadas pelo autor de Raízes do Brasil. No ano de 1959, o Ministério da Educação e Cultura manda publicar a obra de Cassiano Ricardo intitulada O Homem Cordial. Desta forma, Raízes do Brasil polarizou as discussões a respeito do conceito do “homem cordial”, criado como conceito por Ribeiro Couto, que por sua vez, ainda, fora título da obra de Cassiano Ricardo em 1959. O uso dos tipos, recurso marcante de Weber e que fora usado por SBH, para formar novas categorias sociológicas volta a aparecer em Vianna Moog na obra Bandeirantes e Pioneiros. O autor apela para o método do sociólogo alemão, usando a técnica da oposição, para identificar e diferenciar o modo de colonização impresso pelos portugueses e pelos americanos através de categorias sociológicas baseadas em tipos que marcam as características psíquicas de uma ou outra 97 categoria. O escritor Roberto DaMatta também recorre ao uso dos tipos quando analisa os pares antagônicos “casa e rua” e transforma-os em categorias sociológicas para neles retratar características da sociedade brasileira. Nos uso desses métodos é que está a intertextualidade forte da obra de Roberto DaMatta com as obras de Max Weber, Vianna Moog e, principalmente, Sérgio Buarque de Holanda. Observamos neste trabalho a forte influência de Raízes do Brasil sobre alguns escritores. Roberto DaMatta, ao criar os conceitos metafóricos “casa e rua” e transformá-los em “categoria sociológica” para neles retratar supostas características da sociedade brasileira, demonstra que existe apropriação da obra do pesquisador Sérgio Buarque de Holanda. Este recurso está presente no método, na estratégia, no uso de pares antagônicos. Roberto DaMatta, ao criar os espaços opostos, casa e rua, poderia certamente estar fazendo o mesmo confronto que faz Sérgio Buarque de Holanda com a figura do trabalhador e do aventureiro. O pesquisador deve ter estudado as obras de SBH com mais intensidade do que as obras de Max Weber, até porque o primeiro é brasileiro. A obra de Roberto DaMatta parece reproduzir táticas e métodos usados por SBH. Outrossim, é lógico que qualquer sociólogo brasileiro que vá ocupar-se em estudar a formação de nossa sociedade passe logo a debruçar-se sobre Raízes do Brasil, por ser esta uma das maiores obras acerca deste assunto. E, parece muito claro que Raízes do Brasil tenha estado sob a análise do pesquisador. A “casa & a rua” parece ter em si muito da sistematização de SBH, até mesmo nos detalhes do emprego de algumas letras e expressões. As relações de intertextualidade entre DaMatta e Max Weber parecem estar ligadas mais diretamente às questões que envolvem a criação dos “tipos” e a recorrência do seu uso. A estratégia em criar os pares antagônicos deixa muito clara a intertextualidade com o método de Sérgio Buarque de Holanda. Outro fato que observamos foi o de que Vianna Moog, tendo escrito sua obra em 1954, dezoito anos após publicação de Raízes do Brasil, citou apenas um outro 98 trabalho de SBH e omitiu a citação de Raízes do Brasil. Este fato parece influenciar Moog pela maneira como analisa as classes sociológicas em Bandeirantes e Pioneiros que logo traz a mente dos leitores os pares opostos criados por SBH. Deveria Vianna Moog ter citado Raízes do Brasil no corpus de Bandeirantes e Pioneiros já que esta obra contém uma intertextualidade explícita com a obra de Sérgio Buarque de Holanda. Sobre o tema que envolve o bandeirismo no Brasil observamos uma relação de intertextualidade de Raízes do Brasil com Marcha para Oeste e Bandeirantes e Pioneiros, embora nesta última não exista a citação de Raízes do Brasil como referência bibliográfica. Em sua obra, Cassiano Ricardo faz referências explícitas a Sérgio Buarque de Holanda embora, este, não tenha feito um estudo mais aprofundado sobre a importância das bandeiras na formação da sociedade brasileira. Cassiano Ricardo põe a prova o perfil sociológico do bandeirante e do ladrilhador provando que os espanhóis não eram tão “ladrilhadores” quanto dizia SBH e que os “bandeirantes” não eram tão portugueses como afirmara o autor de Raízes do Brasil. Tão forte e clara a afirmação que o autor demonstra que vários líderes bandeirantes eram de estirpe espanhola. Sobre as relações de Sérgio Buarque de Holanda com seus antecessores e com os contemporâneos podemos observar que havia uma discordância muito grande do sociólogo com os naturalistas da época. SBH atacava sempre as teses defendidas pelos antropologistas que potencializavam o clima, o meio ambiente, a geografia, a raça; enquanto tinha e defendia uma concepção culturalista acreditando que a cultura e não a natureza é determinante para a interpretação de uma sociedade. Ao estudar a realidade brasileira, SBH colocava como causa principal na formação de nossa sociedade a predominância das características da cultura ibérica, mais precisamente da cultura portuguesa. SBH se opôs à concepção naturalista encontrada na obra Os sertões, de Euclides da Cunha, nas obras O problema nacional brasileiro de Alberto Torres e Aspectos da história e da cultura do Brasil, Raça e assimilação e a Evolução do povo brasileiro, de Oliveira Vianna. SBH fora um estudioso influenciado pela corrente culturalista alemã e seu 99 mestre Max Weber parece ter implantado-lhe esta concepção de forma marcante e definitiva. Finalmente, podemos observar em Raízes do Brasil que SBH inicia como um ensaísta sociológico e passa para a monografia histórica ao analisar os fundamentos do nosso passado histórico. Isto já pode perceber no título de sua obra ao iniciar por “raízes”. O autor tem estudado o modo de ser do brasileiro, sua estrutura social e política para depois analisar o Brasil e seu povo. O homem cordial e o funcionário patrimonial parecem ser uma herança exclusivamente nossa e que nos foi mostrado muito claramente em Raízes do Brasil. Características muito marcantes na sociedade brasileira que sentimos bem de perto, no nosso jeito de ser, de conceber a realidade e de conduzir as relações humanas no ambiente familiar, nos negócios, no setor público e privado. O funcionário patrimonial do período colonial ainda está presente em todas as esferas da administração pública a nos surpreender negativamente com atos que sempre visam seus interesses particulares em detrimento dos interesses objetivos e impessoais que deveriam regem o Estado burocrático. Enfim, muito ainda há de se pesquisar e estudar sobre intertextualidade e os autores envolvidos. Raízes do Brasil tem sido neste trabalho um pólo, uma referência neste vasto campo das relações intertextuais que sempre terá algo para acrescentar a uma teoria já vasta e aprofundada. Não teve este estudo o intuito de dar respostas definitivas, mas, de mostrar relatividades e complexidades que envolvem o interminável estudo do texto, que em tese, se constrói a partir de vozes e fontes. 100 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra. 3ª ed.- Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. BLAJ, Ilana. 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