A cozinha dos abades É preciso voltar no tempo para perceber que a culinária deles, simples, fresca e muito saborosa, pauta a discussão mais atual da gastronomia Por Luís Calmon* foto Henrique peron Sopa do rei (4 porções) Ingredientes 2 litros de caldo caseiro de carne 2 ovos 2 colheres de farinha de trigo 2 colheres de pão ralado 2 colheres de parmesão ralado 1 pitada de canela Azeite de oliva quanto baste Sal a gosto Preparo Colocar o caldo para ferver. Enquanto isso, bater os ovos com a farinha peneirada, o pão ralado, o queijo ralado, a canela e uma pitada de sal Quando a massa estiver homogênea, com o auxílio de uma colher, derramar pequenas quantidades sobre o azeite previamente aquecido, formando pequenas “almôndegas” deixando que dourem dos dois lados Secá-las sobre papel absorvente e servi-las acompanhadas pelo caldo M ais do que nunca, está na moda falar em cozinha de produto, na qual há uma constante busca pelo uso de ingredientes locais e frescos. O que não se conta é que tal movimento teve origem anos e anos atrás nas abadias, conventos e monastérios espalhados pela Europa. A história, como sempre, diz muito também neste caso. Num continente dividido por línguas, moedas e origens, as casas de abades, monges e freiras cumpriram importante papel no desenvolvimento humano. Não por acaso, começaram a se formar ao redor das mesmas comunidades que, por sua vez, se apoiavam no fato de terem como vizinhos esses centros 62 GULA religiosos carregados de autossuficiência. Monges e abades são, por vocação religiosa, obreiros da natureza, sendo responsáveis pela criação e perpetuação de diversas técnicas agrícolas e pecuárias. Assim, foram responsáveis pela criação e pelo desenvolvimento de várias receitas nas quais podiam usar todos os seus maravilhosos produtos recém-colhidos ou abatidos. Existem muitos motivos pelos quais se pode afirmar que a arte da culinária europeia e, por conseguinte, os modos à mesa originaram-se dentro dos muros dos monastérios e abadias medievais, que foram as primeiras comunidades a se ocupar em pensar e desenvolver o alimento, além de criar a dupla GULA 63 Língua de vitela em molho agridoce (8 porções) Ingredientes 1 língua de vitela 2 cebolas médias 4 talos de salsão 2 cenouras médias Salsinha picada 50 g de uvas-passas 30 g de cacau em pó 30 g de pinholi 50 g de açúcar 1 pitada de farinha de trigo ½ copo de vinagre de vinho tinto Azeite Sal e primenta a gosto Folhas de louro Preparo Primeiramente, ferver a língua muito lentamente em água com metade da cebola, da cenoura, do salsão e algumas folhas de louro Após estar completamente macia, retirar a língua da panela e imediatamente dar um choque térmico e retirar a pele Fritar a língua em azeite de oliva e reservar Na mesma panela, acrescentar o restante da cebola, da cenoura, do salsão e algumas folhas de louro e refogar ligeiramente Acrescentar a farinha de trigo e fritar por alguns minutos. Lentamente ir acrescentando um pouco da água do cozimento da língua, o vinagre e o açúcar Ferver em fogo baixo por aproximadamente 10 minutos. É preciso sobrar um molho levemente encorpado Coar numa peneira fina e, em outra panela, adicionar o cacau, as passas e o pinoli. Corrigir sal, pimenta e o açúcar Fatiar a língua e reaquecer lentamente neste molho. Salpicar a salsinha e servir imediatamente Monges e abades, por vocação religiosa, plantavam e criavam animais. Depois, cozinhavam o que haviam produzido função de hospedaria e casa de recuperação. A medicina “pertencia” ao clero e as “scriptoria”, salas reservadas à escrita e à pesquisa dos manuscritos, tinham importante papel nesta tarefa. Pobres, doentes, príncipes, leigos, clérigos, comerciantes e peregrinos frequentemente batiam às portas dos monastérios em busca de hospitalidade e ajuda (hospedarias eram ainda raras). Portanto, era indispensável a monastérios, conventos e abadias ter uma despensa muito bem abastecida e este abastecimento era feito tanto por insumos das próprias terras, principalmente, mas também por meio da cobrança de tributos “Le decime” das terras do condado (muito semelhante ao nosso Imposto de Renda), pelo qual cobrava-se dos donos das terras do condado 10% de tudo o que por lá se produzisse em favor da igreja. Nessas pequenas ilhas autônomas desenvolveram-se técnicas agrícolas, médicas e alimentares que deram vida à fundamental cozinha “local”. No que consistia a alimentação básica de um monge? Por exemplo, a “regola di San Benedetto”, ou regra de São Benedito, previa uma única refeição ao dia e, à noite, um ligeiro lanche ou “collazione” (de “collazioni”, o apanhado de 64 GULA textos lidos durante esta refeição, mas que também nos leva à origem do nome “colazione” ou café da manhã em italiano). Na prática, no entanto, já a partir do século 9, as quantidades de alimentos ingeridos tornaram-se notavelmente superiores por conta de uma aplicação mais elástica da regra que apregoava: “Tomamos a liberdade de deixar a cargo do abade a decisão quanto ao número de refeições”. Nos “dias festivos” o volume de alimento distribuído tornava-se ainda maior: um quarto a mais para os alimentos e metade a mais para as bebidas e, mesmo havendo momentos dedicados ao jejum e outros à austeridade alimentar, em alguns monastérios o número chegava a impressionantes 156 dias festivos em um ano. Vale ressaltar também a maneira heterogênea de composição dos membros e das tarefas de cada um deles nessas comunidades. Da nobreza provinham abades e abadessas, enquanto o cuidado com os campos, as cantinas e os estábulos cabia aos irmãos e aos leigos. A cozinha ficava a cargo dos monges e monjas que sabiam reelaborar as indicações dietéticas prescritas nos velhos manuscritos. Isso GULA 65 Pela regra de São Benedito, os religiosos deveriam seguir uma certa restrição alimentar, exceto em dias de festa – pois bem, havia 156 deles no ano é muito interessante, uma vez que se desejava que eles não apenas executassem, mas reelaborassem, ou seja, adaptassem e modernizassem o menu. Nasceram aí as primeiras observações por escrito e os receituários de cozinha. Inúmeras obras importantes para a gastronomia foram descobertas justamente nas bibliotecas desses antigos conventos, como, por exemplo, De Honesta Voluptate de Bartolomeo Sacchi e os importantes manuscritos do mosteiro de Fulda, na Alemanha, que deram origem à obra De Re Coquinaria de Apicius. Os monastérios, fazendo jus a seu papel de formação espiritual e de assistência médica, desenvolveram, quase como consequência, uma grande variedade de receitas da cozinha saudável. Suas hortas ricas de especiarias e ervas aromáticas, ladeadas por vinhedos e lagos, foram importante fonte de recursos alimentares – que davam origem a uma culinária simples, porém muito saborosa. Assim que o conhecimento sobre os efeitos salutares das ervas, foi se espalhando, elas foram sendo lentamente incorporadas à alimentação cotidiana e o hábito de adicioná-las às receitas com fins medicinais tornouse uma regra. As refeições até então insípidas tornaram-se cada vez mais interessantes e, consequentemente, apreciadas. E a centelha criativa gerada nesses lugares continua a ter efeito em boa parte do que comemos até hoje. ✣ Luís Calmon é chef e professor na Orbacco – Espaço Gastronômico – Rua Cuxiponés, 125, Sumarezinho, São Paulo – SP. Tel.: (11) 3873-0098 66 GULA Torta Mantovana (8 porções) Ingredientes 175 g de açúcar 1 ovo inteiro + 4 gemas 5 g de fermento químico 50 g de amêndoas sem pele laminadas 175 g de farinha de trigo 175 g de manteiga em temperatura ambiente Manteiga quanto baste para untar a assadeira Açúcar de confeiteiro a gosto para polvilhar Preparo Em um bowl, juntar o açúcar e a manteiga e bater com uma batedeira até obter um composto branco e espumoso. Juntar o ovo inteiro e colocar as gemas uma a uma. Bater até que se obtenha uma incorporação completa. Peneirar a farinha e o fermento e acrescentar à mistura Forrar uma assadeira de 26 cm com papel-manteiga. Despejar a massa na assadeira e cobrir a torta com as amêndoas laminadas Levar ao forno preaquecido a 160°C de 20 a 25 minutos Tirar do forno e polvilhar com açúcar de confeiteiro