A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA Artigo TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009) A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009) 1 Josie de Menezes Barros2 RESUMO: Partindo da categoria de esfera pública habermasiana e de sua tradução ao contexto de construção do Estado Democrático de Direito brasileiro, este trabalho objetiva, por meio do estudo do Conselho Municipal de Cultura de Santo André (CMC/SA), desvendar as potencialidades e entraves desse espaço institucionalizado de participação da sociedade civil na Administração Pública. Nestes termos, investiga o perfil dos conselheiros que integram o CMC e o padrão das deliberações no período de transição do governo municipal (2008-2009). Como fatores norteadores dessa investigação, adotou-se a noção de cultura política da sociedade civil e a de projeto político da gestão municipal, entendidos como elementos capazes de indicar as razões para a sua efetividade ou inaptidão para democratizar as decisões sobre políticas públicas e para o exercício de controle social. Palavras-chave: Conselho de política. Mudança de gestão. Projeto político. Cultura política. ABSTRACT: Based on the Habermasian category of public sphere and its translation into the context of building the democratic rule-of-law State of Brazil, this paper aims at revealing the potentialities and the barriers of that institutionalized space for civil society participation in public administration through the study of the Municipal Council for Culture of Santo André (CMC / SA). Accordingly, this paper investigates Este artigo se origina de monografia apresentada à Pontifícia Universidade Católica de São Paulo como trabalho de conclusão do curso de Direito nesta instituição, sob a orientação do Prof. Dr. Marcelo da Costa Pinto Neves. 2 Advogada formada pela Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo. 1 Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 81 BARROS, J. M. the backgrounds of the advisers who are part of the CMC and the standard of the deliberations during the transitional period of the municipal government (2008-2009). As factors guiding this research, the concept of political culture of civil society and the political project of municipal management have been adopted, defined as any evidence that is able to indicate the reasons for its effectiveness or inability to democratize the public policy decisions and the exercise of social control. Keywords: Policy Council. Change of government. Policy design. Political culture. 1. Democracia Deliberativa, Participação social no Brasil e os conselhos de políticas públicas Instalou-se no Brasil além de em vários países da América Latina, com maior intensidade na década de 1970, um sério debate sobre as limitações do modelo democrático liberal3, partindo dos movimentos sociais o anseio de reverter o velho padrão oligárquico alojado na política e conquistar maior espaço na gestão da coisa pública. No campo teórico, esse movimento dá força às teorias não-hegemônicas que entendem a democracia como uma nova gramática social e cultural e não meramente como obra de engenharia institucional (Santos; Avritzer, 2003, p. 51). Dentre elas, destaca-se a teoria discursiva da democracia, contribuição ao debate promovida por Jürgen Habermas, na qual é dada relevância primordial à ideia de esfera pública, estrutura de comunicação enraizada no mundo da vida (Habermas, 2003, v. II, p. 91) responsável por levar ao centro político opiniões, problemas e pautas originadas na esfera privada e nas esferas informais da sociedade civil. A esfera pública constitui-se, assim, como uma “caixa de ressonância” dotada de sensores capazes de detectar os fluxos comunicacionais existentes em toda a sociedade e filtrá-los, a fim de influir nos problemas, temas e questões a serem assumidos e elaborados pelo sistema político (Habermas, idem, caps. 7-8). Com efeito, a categoria pro82 posta por Habermas caracteriza-se como espaço irrestrito de comunicação realizado por formas não institucionalizadas no qual atores da sociedade civil não exercem poder político, mas apenas influência (Habermas, idem, p. 95). Esse conceito, todavia, não é afastado de críticas. Teóricos latinos, além de outros autores que pensam a democracia “pós-terceira onda”, identificam no conceito de esfera pública habermasiana uma resposta parcial à tensão entre complexidade e soberania popular, posto que, para eles, as decisões comunicativamente acordadas não podem ser meramente traduzidas em influência política, mas sim em decisões políticas propriamente ditas. Dentre as traduções da idéia de esfera pública ao contexto político vivido no Brasil, destaca-se a noção de p articipatory publics, desenvolvida por Leonardo Avritzer. De acordo com Avritzer e Costa (2004), a pulverização dos deliberative ou participatory publics no Brasil delineia-se como meio indispensável para que a esfera pública apresente posições, temas e argumentos ao sistema político, pois, diferentemente dos Estados que foram a base empírica para a formulação habermasiana de espaço público, nos quais existem estruturas eficientes de intermediação entre a sociedade civil e o sistema político, na América Latina, os partidos não representam a diversidade encontrada na sociedade, mas historicamente se apropriam do público, travando relações insistentemente clientelistas e privatistas no interior do sistema político4. Daí a necessidade de uma ênfase distinta no modo de os atores civis se relacionarem aos processos de tomada de decisões políticas. Somente a institucionalização do debate travado na esfera pública política garantiria a penetração do Estado para democratizá-lo e nele exercer controle social com eficiência (Avritzer; Costa, idem, p. 723). Para Avritzer (2002), portanto, a esfera pública se tornar ofensiva no momento em que se torna deliberativa e produz decisões no interior do sistema político, condição que só se viabiliza por meio de métodos institucionais que não reduzam o consenso público a uma mera influência política. É proposta então uma “forma intermediária de desenho” entre a esfera pública e o sistema político a fim de ofe- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009) recer uma dimensão institucional ao processo de deliberação pública. Esse espaço seria capaz de compatibilizar as demandas participativas com a racionalidade administrativa. Tendo em vista essa construção teórica, este trabalho busca apresentar uma breve contribuição a já rica e abrangente literatura que cuida dos “públicos participativos” no Brasil, mais especificamente, dos conselhos gestores de políticas públicas. A forma conselhista é uma experiência recente no país, construída a partir dos conselhos populares e das comissões de fábrica criados no fim da década de 70 para atuar junto à gestão municipal, dentre os quais se destacaram os Conselhos Populares de Campinas, que deram gênese ao movimento “assembleia do povo”, e o Conselho de Saúde da Zona Leste de São Paulo, criado em 1976, a partir do trabalho de sanitaristas que trabalhavam nos postos de saúde desta localidade (Gohn, 2000, p. 175). Assim como outras experiências participativas surgidas no Brasil, os conselhos resultaram de uma intensa transformação da sociedade civil, fator que dentre outros relevantes determinou a derrocada do regime militar e conferiu especificidades ao processo de democratização brasileiro. O amadurecimento destes movimentos populares, cada vez mais reconhecidos como interlocutores válidos frente ao poder público, foi consagrada pela Assembleia Constituinte, por meio das chamadas “emendas populares”, experiência que resultou na absorção pelo sistema jurídico de reivindicações da sociedade civil, a teor do parágrafo único do artigo 1° da Constituição de 19885-6. Neste quadro, já na década de 80 e, principalmente nos anos 90, pulverizaram-se pelo país e em todos os níveis de governo um número significativo de conselhos, conferências, fóruns e ouvidorias voltados a diversos setores da atuação estatal, sendo ampliado de modo inédito o número de intervenientes na discussão de políticas. Os conselhos de políticas públicas, objeto dessa pesquisa, podem ser entendidos como desenhos institucionais de partilha do poder e são constituídos pelo próprio Estado, com re- presentação mista de atores da sociedade civil e atores estatais (Avritzer, 2008, p. 44). Em sintonia com os apontamentos de estudos empíricos anteriores voltados à análise de conselhos gestores, parte-se da constatação de que tais arranjos não vêm atendendo às expectativas de formular políticas públicas em parceria com a Administração Pública, ainda havendo um importante descompasso entre a retórica participacionista e o que realmente é concretizado (Tatagiba, 2003, 2008; Fuks, 2004, Faria; 2005; Baquero, 2008). De um lado, verifica-se que a operalização incompleta dessas novas instâncias, implicativa na permanência de uma relação assimétrica entre Estado e sociedade civil, ocorre, dentre outros fatores, pela falta de experiência da população em espaços de gestão pública (Gohn, idem, p. 180). Explanando sobre o tema, Tatagiba (2003) aponta ainda outros fatores: a) o protagonismo que o Estado assume na elaboração da pauta de discussão das reuniões, impondo unilateralmente os seus interesses temáticos7, b) a falta de capacitação e déficit de representatividade dos conselheiros civis, c) a dificuldade de lidar com a multiplicidade de atores e d) a manutenção de padrões clientelistas, fatores que, unidos, representam ainda uma falta de amadurecimento da cultura política. Os problemas apontados variam de natureza e extensão de acordo com o conselho gestor estudado. Para essa pesquisa importa, porém, duas variáveis fundamentais: o caráter do projeto político da gestão municipal e o perfil da sociedade civil quanto à sua maior ou menor capacidade de mobilização e cultura política. Nesse prisma, vale destacar que o caráter da administração municipal é fundamental para que os conselhos não sejam meros aparelhos paralelos à burocracia, legitimadores de decisões tomadas de modo verticalizado (top-down). Faz-se necessária a superação do antagonismo entre sociedade civil/Estado, devendo este relacionamento se dar “em termos de sinergia, complementaridade e conflituosidade animadas pela lógica política do governo da ocasião, e não pelas características estruturais do Estado” (Lavalle, 2004, p. 109). Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 83 BARROS, J. M. Essa sinergia exige a um só tempo a capacidade de mobilização dos atores civis - que devem levar ao conselho as demandas apresentadas pela rede social que lhes dão base e legitimidade - e a presença de gestores públicos comprometidos com o projeto de partilha de poder de decisão e sujeitos ao controle social na implementação das políticas. Importa, portanto, que governos e secretários tenham na formulação de seu projeto político e em sua agenda a visão dos conselhos como espaços efetivos de participação. Compromisso, no sentido ora empregado, não significa a mera adesão discursiva à participação. O governo deve ter uma prática condizente com seu discurso democratizante e isso se faz através do efetivo respeito às deliberações resultantes do processo participativo. É relevante também que a gestão tenha competência institucional para viabilizar esses processos, vale dizer, que não apenas tenha um arcabouço jurídico sólido e bem determinado, como também recursos orçamentários e materiais aptos a viabilizar as determinações e políticas tomadas no âmbito do conselho. Com o exposto pretende-se declarar que o projeto político adotado pela gestão, em outros termos, a orientação política tomada pela Administração em seu relacionamento com os demais atores que participam do conselho, é relevante para determinar qual o papel atribuído a essa institucionalidade, de forma mediata quando analisadas as diretrizes gerais da gestão (“projeto político macro”) e, de modo imediato, no que se refere às decisões tomadas pelo secretário (“projeto político micro”). Como uma moeda com duas faces, objetiva-se também reafirmar que o perfil da sociedade civil, vale dizer, a cultura participativa da sociedade e, mais especificamente, de seus representantes eleitos para integrarem o conselho, terá maior impacto na dinâmica de formulação de políticas públicas quanto mais apresentarem autonomia e poder de mobilização. A cidadania que se requer desses atores é a cidadania ativa (Dagnino, 1994), aquela que se apropria dos espaços institucionalizados com a consciência de ter direito a ter direitos, como agentes dispostos a construir uma nova gramática social e não a manter o status quo. Esse caráter deve sobrepor-se às intrínsecas ambiguidades 84 e contradições da sociedade civil, complexa e diversificada, que “convive com uma incivilidade cotidiana feita de violência, preconceitos e discriminações; em que existe uma espantosa confusão entre direitos e privilégios (...); em que a demanda por direitos se faz muitas vezes numa combinação aberta ou encoberta com práticas renovadas de clientelismo e favoritismo que repõem diferenças onde deveriam prevalecer critérios públicos igualitários.” (Telles, p. 93, 1994). Há sem dúvida um sem número de clivagens e questões transversais que circundam e determinam o grau de institucionalidade de um conselho de políticas, entende-se, porém que a existência do binômio projeto político/cultura política é o alicerce para a construção de um diálogo construtivo, verdadeiro pressuposto para a construção de um agir comunicativo. 2. Santo André e o projeto político pós-Constituição de 1988 O município de Santo André está localizado na Região Metropolitana de São Paulo (RMSP) e possui uma população estimada de 673.234 mil habitantes (IBGE, 2006), que vive em uma área de 174,38 km² (IBGE, Censo 2000). O município possui uma taxa de natalidade de 13,83/mil habitantes, considerada baixa para os padrões nacionais, havendo um progressivo envelhecimento da população. É o 22º PIB do país (IBGE, 2005). A partir dos anos 1950, fomentada pela inserção de dinheiro público e capitais estrangeiros, a industrialização da região do ABC e também a de Santo André, é intensificada pela instalação do setor automobilístico, e, por conseqüência, de empresas fornecedoras de autopeças, responsáveis por dar nova característica ao seu parque industrial. No período compreendido entre 1978 e 1989 – contemporâneo à luta pela (re)democratização do país – o Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo se destaca por defender a liberdade e autonomia sindical (Rodrigues, 2002, p. 142). Neste momento é inserida na esfera pública novos padrões de fala, pois a classe proletária antes atuante de forma defensiva Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009) passa para uma ação de caráter amplo, influindo fortemente o sistema político, principalmente nos anos 1980, quando a ditadura já apresentava sérios sintomas de derrocada. A influência desse movimento sindical sobre o sistema político não foi apenas regional. A eclosão do movimento grevista no ano de 1978, resultado de um novo movimento sindical organizado desde o início da década, espalhou-se do ABC para o país inteiro, denunciando as difíceis condições de vida e de trabalho a que as camadas assalariadas foram submetidas no regime militar. Nesse período é eleito o primeiro governo petista (1989-1992), com uma postura de governo próxima da concepção do projeto “democrático-participativo” (Dagnino, Olvera e Panfichi, 2006)8. Já no primeiro mandato a participação popular foi implementada através de diversas políticas municipais, entre as quais o processo de orçamento participativo (OP). Tal projeto foi retomado pelo segundo mandato do mesmo prefeito petista (1997-2000), após a derrota nas eleições de 1992 para a gestão petebista de Brandão. Em estudo sobre o tema, Carvalho e Felgueiras (2000) destacam que a experiência do governo na primeira gestão foi utilizada para aperfeiçoar os mecanismos do OP, agora mais dinâmico e inclusivo, além de haver sido criado o Núcleo de Participação Popular (NPP), ponte necessária para o diálogo e convergência entre as diversas experiências participativas criadas no município. O Partido dos Trabalhadores (PT) permanece à frente da prefeitura municipal até o ano de 2008, momento em que assume o governo o então vereador Aidan Ravin (PTB), médico, numa surpreendente conquista no segundo turno das eleições9. Dentre as principais plataformas do governo petebista está a reforma administrativa, marco importante para desenhar-se o novo projeto político macro instalado na cidade10, indicador de uma menor disposição da gestão em viabilizar uma participação popular ativa. Cuida-se da reforma administrativa proposta pelo Executivo municipal que, além da criação de três novas secretarias (Áreas de Mananciais, Planejamento e Segurança Pública e Trânsito) e do Fundo Social de Solidariedade, previu a criação de dois conselhos gestores – o de trânsito e o de transporte (responsáveis pela gestão dos respectivos fundos), com representação exclusiva da Administração Municipal, com membros a serem indicados pela Prefeitura. Outra modificação que importa para o objeto dessa pesquisa foi a empreendida nas competências do Conselho Municipal de Orçamento (CMO). Nos termos da Lei n° 9.126, de 26 de maio de 2009, o orçamento participativo, base fundamental para todo o projeto participativo pretérito, perde espaço na gestão e passa a ter função meramente opinativa, de modo que toda a dotação orçamentária municipal passa a ser do arbítrio exclusivo do Poder Executivo e Legislativo. É este momento político-institucional que serve de pano de fundo para a presente discussão e importa do ponto de vista de nosso argumento em dois sentidos básicos. Por primeiro, destacase a importância, no município de Santo André, do projeto democrático-participativo de gestão como modelo que viabilizou a institucionalização de diversos canais de participação; por outro lado, ao se apresentar o histórico de lutas sociais, representado sobretudo pelo novo sindicalismo, buscou-se demonstrar a existência de uma mobilização da sociedade civil, responsável por dar os contornos de uma esfera pública forte ou que tinha o potencial de sê-lo. A ideia de corresponsabilidade permeou o período compreendido pelas duas primeiras gestões petistas, embora certamente acompanhada por obstáculos e ambiguidades, mas responsável por determinar uma “infraestrutura” de participação, que perdeu muito de seus matizes ao curso das novas gestões petistas e hoje, com o governo petebista, já apresenta pontos de tensão e possibilidade de modificações restritivas. 3. O Conselho Municipal de Cultura de Santo André (CMC/SA) 3.1 Metodologia Importa para essa pesquisa determinar em que medida o projeto político adotado pelo governo e a cultura política da sociedade civil Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 85 BARROS, J. M. determina o grau de institucionalidade de um conselho gestor, aqui estudado com especificidade o Conselho Municipal de Cultura de Santo André (CMC/SA). Com este objetivo esta pesquisa focaliza a dinâmica de tal instância no período de mudança da gestão municipal ocorrida em janeiro de 2009. Para dar maior verossimilhança aos resultados apresentados, foi relevante analisar não só o padrão de relacionamento entre a sociedade civil e a nova gestão petebista (fev/dez 2009), como também o relacionamento dos mesmos atores civis com os antigos gestores presentes no conselho (maio/dez 2008), traçando-se um paralelo comparativo entre os dois momentos. A análise documental foi composta pela consulta às atas das reuniões mensais do CMC/ SA. Embora este material não represente toda a riqueza da reunião, apontando eventuais discórdias mais incisivas, subentendidos etc., é um documento legitimado pelo assentimento de todos os participantes da discussão. Em consonância com a problemática trazida por essa pesquisa, foi destacado o estudo das atas a partir de maio de 2008, mês em que foram eleitos os conselheiros da sociedade civil e ainda membros do CMC/ SA. A segunda abordagem documental foi sobre os diplomas jurídicos que tornaram possível a existência do CMC/SA. A observação participante (Haguette, 1994), foi instrumento de coleta de dados indispensável para a compreensão da dinâmica interna do conselho. As entrevistas foram o último referencial empírico utilizado11. Em virtude do reduzido número de membros do conselho e da natureza deste estudo, escolheu-se a entrevista qualitativa em detrimento do survey. Dividida em dois blocos, a entrevista pretendeu diagnosticar primeiramente qual o perfil dos conselheiros em seu aspecto objetivo (dados etários, econômicos, de gênero etc.) e subjetivo (engajamento) por meio de alternativas fixas, e, num segundo momento, através de um roteiro estruturado, descobrir a impressão pessoal de cada um deles sobre aspectos previamente determinados, a chamada entrevista focalizada. 86 3.2 Histórico e atribuições do CMC/SA A Lei Orgânica do município de Santo André, em seu artigo 270 previu, já em 1988, a criação de um Conselho Municipal de Cultura (CMC/SA)12, entretanto, sua concretização contou com uma importante mobilização social. De acordo com documentação histórica, foi no âmbito da segunda plenária temática do Orçamento Participativo (OP) da cidade, responsável pela discussão do orçamento municipal de 1999, que foi definida como prioridade para a área cultural a criação do CMC/SA. De fato, a gênese do CMC/SA foi estabelecida num ambiente político muito favorável: de um lado, um governo com um projeto político permeável à participação popular e, no outro polo, uma sociedade civil organizada em torno de um projeto de partilha do poder. Após esse processo de construção coletiva do novo órgão, criou-se o Conselho Provisório e, em 2000 o Conselho, agora com a lei aprovada, passa a ter existência e formato definitivos. O CMC/SA é órgão colegiado, criado pela Lei Municipal n° 7905, de 13 de outubro de 1999 (regulamentada pelo Decreto 14.485/00 e alterações), com a participação paritária sociedade civil e do poder público, em um total de doze conselheiros titulares e doze conselheiros suplentes – doze representantes do governo e doze representantes da sociedade civil. Dentre os 24 conselheiros do CMC/SA, os 12 representantes do governo são escolhidos pelo Secretário de Cultura13. Como instância permanente de diálogo entre sociedade civil e governo, o CMC/SA tem por finalidade institucionalizar a relação entre a Administração Municipal e os seis setores ligados à cultura na cidade, a fim de que eles, conjuntamente, elaborem a política cultural de Santo André. Nota-se das competências atribuídas ao CMC/SA atividades que podem se adequar a todas as fases de uma política pública, indo desde a formulação de estudos e pesquisas na área de cultura, passando pela tomada de decisões, sua implementação, até posterior controle dos resultados. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009) 3.3 Quem são os conselheiros: aspectos objetivos e subjetivos Vários trabalhos empíricos destacam a importância de determinar a cultura política dos conselheiros, dentre os quais a pesquisa de Fuks (2005) que analisa o conselho municipal de saúde de Curitiba. O universo de estudo escolhido conta com o total de 24 conselheiros dos quais 23 foram entrevistados14, portanto, 95,83% dos conselheiros que ocupavam essa função em fevereiro de 2009, mês da eleição dos novos conselheiros do governo. Tratemos dos aspectos objetivos. Dos dados coletados, os resultados para a faixa etária dos conselheiros demonstram que há pouca participação dos jovens, havendo uma concentração do número de conselheiros na faixa entre 31 e 50 anos, quase dois terços do conselho. Quanto ao sexo, verifica-se que a presença masculina equivale ao dobro da participação feminina. Essa mesma característica é diagnosticada por Carvalho e Felgueiras (2000) na participação de gênero no Conselho Municipal de Orçamento de Santo André. Relativamente à escolaridade, os dados colhidos indicam que os participantes do CMC/ SA possuem maior estudo em relação à média da população brasileira, sendo que 56,5% dos conselheiros possuem ensino superior completo e 17,3%, pós-graduação. Também esse número é expressivamente superior à média municipal. Segundo dados da Fundação SEADE (2000), os responsáveis pelos lares andreenses tinham em 2000, em média, 7,4 anos de estudo, 50,0% deles completaram o ensino fundamental, e 5,2% eram analfabetos. No CMC/SA, os conselheiros da sociedade civil e do governo têm perfil escolar próximo, predominando em ambos os segmentos os membros com ensino superior completo – 41,7% da sociedade civil e 72,7% do governo. Todavia, enquanto 91% dos conselheiros do governo ficam na faixa entre ensino superior completo e pós-graduação, somente 58,3% dos representantes da sociedade civil ficam neste patamar. De acordo com dados da Fundação SEADE (2000), o estudo das condições de vida dos habitantes de Santo André demonstra que os responsáveis pelos domicílios auferiam, em média, no ano 2000, R$ 1.091,00/mês, sendo que 36,8% ganhavam no máximo três salários mínimos. Esses dados, novamente, colidem com os rendimentos dos conselheiros do CMC/SA, pois 52,3% de seus membros possuem renda individual superior a cinco salários mínimos. Ao analisar os dados em segmentos, verifica-se que os conselheiros representantes da sociedade civil possuem renda mais próxima da média municipal. Dentre eles, um aufere renda menor que dois salários mínimos (8,3%) e há outros que possuem renda oscilante, variável mensalmente na casa entre dois e cinco salários mínimos. Vê-se que os conselheiros da sociedade civil se concentram na faixa de rendimento entre dois a cinco salários mínimos (66,7%) e nenhum deles aufere mais que dez salários mínimos. Quanto aos conselheiros do governo, estes se concentram na faixa entre cinco e dez salários mínimos (60%) e 30% têm renda acima de dez salários. Os dados até aqui apresentados, permitem diagnosticar um problema na distribuição da cultura política no município, posto que os conselheiros ainda possuem como perfil alta escolaridade e rendimentos muito acima da média municipal. Há também uma desigualdade no perfil socioeconômico intra CMC/SA, destacando-se os membros do governo, como sujeitos com alta escolaridade e renda - 90% possuí renda superior a cinco salários mínimos e 91% possuí ensino superior completo e pós-graduação -, enquanto os membros da sociedade civil, embora estejam acima da média municipal, apresentam menor grau de escolaridade e de rendimentos. Agora, verifiquemos os aspectos subjetivos. Ao traçar alguns aspectos da participação social no ABC paulista, adiantou-se um panorama mais abrangente de qual espécie de arenas públicas podem ser localizadas nesta região e, reflexivamente, em Santo André. Entretanto, analisar um conselho específico demanda descobrir qual o poder de mobilização dos representantes dessa mesma sociedade civil, buscando por meio de sua rede de filiação a movimentos associati- Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 87 BARROS, J. M. vos, diagnosticar qual o seu grau de habilitação para participar do CMC/SA. Mapear o grau de associativismo do conselheiro, aqui adotado de modo amplo, significa, portanto, descobrir em quais bases se funda a sua representação no conselho e sua capacidade de traduzir nesta instância as questões, anseios e pleitos de uma coletividade organizada de modo formal ou informal. De acordo com os dados coletados, os aspectos socioeconômicos e subjetivos se distribuem de modo distinto. Dentre os conselheiros governamentais, 25% são sindicalizados – dois são membros do sindicato de servidores públicos e um membro do sindicato de professores - e somente um conselheiro participa de outro espaço coletivo – atividades ligadas ao teatro. Quanto aos conselheiros civis, estes apresentam um grau maior de engajamento, concentrando suas atividades em associações (58,5%), dentre as quais associações de bairro, profissional e cultural; 25% dos conselheiros civis participam de organizações não-governamentais e o mesmo percentual é engajado em outro espaço participativo – cooperativa profissional e movimentos artísticos. A análise preliminar dos dados demonstra um baixo grau de engajamento dos conselheiros governamentais. Dados da pesquisa IBGE realizada em 199615, apontaram que 31% das 22,5 milhões de pessoas pesquisadas, com 18 anos ou mais, tinham vínculo associativo na proporção de 31%, dos quais 53% eram sindicalizados, 39% eram membros de órgãos comunitários e 8% eram filiados a órgãos de classe. Tal pesquisa, portanto, indicou um baixo grau de associativismo do brasileiro, pois somente 31% da população participa ao menos formalmente das atividades associativas tipificadas pela pesquisa. Todavia, se comparados estes números aos vínculos associativos dos gestores no CMC/SA, tem-se que estes possuem engajamento menor do que a população nacional. Dos onze conselheiros entrevistados, sete (63,6%) não possuem no presente participação em nenhuma esfera coletiva, quer sindicato, associação filantrópica, religiosa, cultural ou social, ONG ou partido político. Se, em princípio, o baixo pertencimento dos gestores a 88 outras esferas públicas pode ser encarada com naturalidade, já que os mesmos não são eleitos, mas nomeados pelo secretário de cultura, por outro lado, pode indicar a burocratização de sua participação no CMC/SA que, em detrimento de ser um local de diálogo entre atores políticos, passa a ser encarado pelos conselheiros do governo como mais um de seus encargos como servidor público. Quanto à sociedade civil, existe um grau maior de associativismo em relação à população brasileira. Dentre os conselheiros entrevistados, somente uma não possui no presente qualquer envolvimento com outras instâncias coletivas, prevalecendo no grupo a participação em associações de diversos matizes, dentre as quais de difusão literária; profissional (os dois membros da comissão de artesanato), de bairro, ligada ao movimento LGBT, além de cooperativa profissional (de teatro), sindicato e em organizações não-governamentais. Tais dados demonstram que hoje, além de integrarem o CMC/SA e as respectivas comissões temáticas, os conselheiros civis têm pouca ligação com espaços associativos, revelando um engajamento fraco, ao inverso de outras pesquisas realizadas, que apontam para um alto índice de vínculo associativo dos membros não-governamentais (Almeida, 2007; Fuks, 2005; Fuks, Perissinoto e Ribeiro, 2003; Tonella, 2004). Isso pode demonstrar, em termos ainda não conclusivos, o pouco poder de articulação e de mobilização constatado durante a observação participante. Entretanto, embora estes indicadores sejam reveladores, não dão conta de toda a dinâmica de relações que circundam os conselheiros. Como apontam Carvalho e Felgueiras (2000), no ano de 1999, dentre os participantes das plenárias do Orçamento Participativo em Santo André, 70% não eram filiados a entidades, 11% eram ligados a associação de moradores, 9% a sindicatos, 3% a associação religiosa e somente 1% tinha ligação com partido político. Ao invés de apontar como negativo o baixo grau de engajamento dos participantes do OP, as autoras destacam que eles indicam, com efeito, a capacidade de este espaço atrair a participação do cidadão comum, independentemente de sua Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009) experiência pretérita. Portanto, é necessário observar com parcimônia a deficiência nas redes sociais apresentadas pelos representantes da sociedade civil. Isso porque se as comissões temáticas, âmbitos criados para fazer ressoar a comunicação de uma pluralidade importante de atores, possuírem efetividade e forem de fato locus de formulação de pautas e debates, relativiza-se a importância do grau de associativismo dos conselheiros. Vale dizer, se as comissões são sensíveis aos fluxos comunicacionais que partem da periferia da esfera pública e os transformam em pauta para o CMC/ SA, não existiria um déficit dos conselheiros com pouco grau de associativismo, já que eles se comunicariam diretamente com atores plurais em suas comissões. Entretanto, no que toca às comissões temáticas - artesanato, artes visuais, artes cênicas, audiovisual, literatura, música – do CMC/ SA, diagnostica-se um sério abstencionismo da sociedade civil nas reuniões. Salvo as comissões de artes cênicas, que conseguiu concretizar a única deliberação do CMC/SA e possibilitar, em conjunto com a Administração, a sua viabilidade, as demais comissões enfrentam hoje uma procura débil dos movimentos sociais e agentes culturais ligados à cultura. Comissões como as de artes visuais e música não se reúnem desde fevereiro de 2009. Os conselheiros não-governamentais reconhecem este “desinteresse” como problemático. De acordo com vários deles, os membros das comissões ainda encaram os conselheiros como seus representantes dotados de capacidade para determinar melhorias e mudanças nos moldes como eles determinaram, ou, ainda, encaram com desconfiança o papel desses sujeitos, muitas vezes vistos como pessoas cooptadas pela Administração e, portanto, ilegítimos para defenderem suas demandas. Pelo depoimento dado pelos conselheiros da sociedade civil, ainda existe entre os artistas e produtores da cidade a falta de noção do coletivo e dos constantes revezes do jogo democrático que muitas vezes determinam a consecução de resultados a longo prazo. Espera-se a solução imediata de demandas e mesmo de interesses egoísticos e, tomada ciência de que este locus não se propõe a tutelar tais interesses, há o afastamento e esvaziamento das comissões. Esse é só um aspecto dentre outros que podem ser apontados. Observou-se no estudo de campo uma séria vinculação das comissões às escolas livres da cidade, sendo este fórum ocupado em grande número pelos corpo discente desses aparelhos culturais locais, situados no centro da cidade e muitas vezes ocupado por integrantes não munícipes. Há, portanto, um grave problema de integração e dificuldade de os conselheiros buscarem a aproximação das esferas públicas mais afastadas, localizadas na periferia ou mesmo que morem no centro da cidade mas que não frequentem esses equipamentos. O perigo de tal conduta é o esvaziamento da legitimidade dos conselheiros civis e a prática de políticas sistematicamente autorreferentes. 3.4 Entre as duas gestões: quadro comparativo das reuniões e deliberações do CMC/SA no período de maio de 2008 a setembro de 2009 Nesta fase, com base nas atas do conselho e pretende-se conhecer com especificidade as reuniões do CMC/SA desde maio de 2008, mês em que tomaram posse os conselheiros da sociedade civil e, de modo comparativo, observar a relação desses atores com as duas gestões com as quais dialogaram – a petista entre maio de 2008 e dezembro de 2008 – e a petebista, entre os meses de fevereiro de 2009 e setembro de 2009. Afinal, quando muda a gestão, muda também o padrão das deliberações? Se houve modificação, foi de caráter ampliativo ou restritivo? Em que medida um governo comprometido ou não com ideário participacionista influencia o real papel de um conselho? São essas questões-base dessa pesquisa. O primeiro ponto será investigar o conteúdo das reuniões com a gestão anterior. Entre os meses de maio de 2008 a dezembro do mesmo ano, houve um total de onze reuniões do CMC/ SA – duas assembléias gerais (AG), duas reuniões extraordinárias (RE) e sete reuniões ordinárias (RO). Durante todo o período, há expressiva presença dos gestores e da sociedade civil nas Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 89 BARROS, J. M. reuniões, estando a secretária de cultura, como presidente do CMC/SA, presente em todas as oportunidades. Sublinha-se este aspecto em razão de o mesmo não ocorrer nas formações anteriores do conselho, oportunidades nas quais, embora a gestão fosse do mesmo partido (PT), havia uma grande abstenção dos secretários de cultura que raramente disponibilizavam tempo para frequentar as reuniões. Conforme o Gráfico 1, verifica-se que a assiduidade dos conselheiros variou para menos nas duas reuniões extraordinárias realizadas nos meses de julho e outubro. Houve variação também a partir de novembro, com uma progressiva queda na participação dos conselheiros do governo. Pode-se apontar como fator justificador desse fenômeno o resultado das eleições municipais e o processo de transmissão dos trabalhos ao novo secretariado. Gráfico 2: Número de conselheiros presentes nas reuniões de Maio 2008/Dezembro2008 N úm e ro de P res e nt es 14 12 10 8 6 4 2 0 AG (M) 1a RO 2a RO 1a RE 3a RO 4a RO Sociedade Civil 5a RO 2a RE 6a RO 7a RO ˙˛˙ ˙˙˙ No que tange à participação dos conselheiros nos debates promovidos nas reuniões, nota-se um equilíbrio quantitativo entre conselheiros da sociedade civil e do governo. Contabilizando o número de “atos de fala”, vale dizer, de intervenção no debate em algum dos pontos da pauta, verifica-se que em média 67,4% dos conselheiros não-governamentais presentes à reunião participaram do debate. Há picos de participação nas 1ª, 3ª, 5ª reuniões ordinárias, com atos de fala de mais de 80% dos presentes e de 100% na 2ª reunião extraordinária, ocasião em que somente 50% dos conselheiros civis estiveram presentes. Quanto aos atos de fala do governo estes ocorreram em menor número em relação aos conselheiros da sociedade civil, havendo no todo participação de 64% dos conselheiros presentes. No geral, vê-se que em média 60% dos presentes participam com atos de fala na reunião. 90 Quanto à pauta do CMC/SA no período, a Tabela 1 demonstra que a atividade dos conselheiros se concentrou nos planos da “construção da agenda” (34,5%) e das “questões procedimentais” (42%). Verificou-se que o período é propositivo; durante as reuniões existe a formulação de propostas e ideias e a discussão das mesmas, a fim de criar-se a agenda de políticas públicas para a cidade. No nível da construção da agenda também está a articulação com os aparelhos ligados à secretaria de cultura e com outros espaços participativos como os conselhos de comunicação e de educação. Durante os primeiros meses da nova formação, os conselheiros visitaram os CESAS (Centro de Educação de Santo André) e ouviram durante as reuniões sujeitos responsáveis pela estrutura de cultura da cidade,. Nota-se que o objetivo desse conjunto de ações é integrar a sociedade civil aos assuntos e estruturas que envolvem a secretaria de cultura e, ao mesmo tempo, articular estes espaços com o CMC/SA, a fim de criar-se uma pauta coerente com as necessidades da cidade. Também este período é marcado pelas questões procedimentais, entendidas como o estabelecimento de regras internas, tais como datas de reuniões, horário, formação de comissões para a delegação de tarefas, esclarecimentos sobre as regras já estipuladas na lei e no regulamento ou quanto às questões do cotidiano da secretaria. Classificou-se também como procedimental a atividade de os conselheiros prestarem contas aos seus pares sobre atividades realizadas e compromissos assumidos. Com menor destaque quantitativo, apresenta-se o plano de “formulação de políticas”, porém, esta é uma fase que demanda maiores cuidados, é o momento de maturar e tornar exequível a política pública proposta anteriormente. Esta atividade, junto à de “tomada de decisão” teve destaque na primeira reunião extraordinária do conselho convocada para a aprovação da 1ª Mostra de Artes Cênicas de Santo André, idealizada pela comissão de artes cênicas. Tal mostra, que tomou o nome de “EnCASA”, é objeto da primeira deliberação do CMC/SA em toda a sua história. Além do EnCASA foi objeto de deliberação no CMC/SA a criação de unidades Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009) administrativas, proposta que tinha por finalidade perenizar as escolas livres, com a contratação de um funcionalismo especificamente escalonado para cada unidade de cultura da cidade, além de outras medidas, a fim de distanciar essas estruturas de possíveis ingerências governamentais. Ainda no plano da formulação de políticas, é interessante a discussão entre os conselheiros das ações que poderiam ser tomadas em uma política pública já consolidada na cidade, o chamado “Canja com Canja”, evento mensal agregador de músicos da região em que costumeiramente é servido um prato de canja aos participantes. Tabela 1: Perfil da Pauta na etapa maio 2008/dezembro 2008 ATRIBUIÇÕES 1. Construção da Agenda - propor políticas - incentivar estudos, eventos e atividades permanentes - estudar e sugerir medidas para a expansão e aperfeiçoamento das atividades da SCEL - buscar articulação com outros conselhos gestores e entidades afins 2. Formulação de - analisar políticas de geração, captação e alocação de recursos Políticas - colaborar na articulação público-˙˙˙ - definir diretrizes - emitir e analisar pareceres sobre questões culturais 3. Tomada de Decisões - deliberações - aprovação de políticas da gestão pública Quant. 37 % 34,5% 13,2% 14 03 2,8% 4. Implementação - definir critérios para estabelecimento de convênios entre administração e organizações públicas ou de Políticas privadas, no âmbito da implementação de políticas - definir a política pública proposta - executar da política pública - avaliar e fiscalizar ações de políticas 5. Avaliação de Políticas - ouvidoria e conferências de cultura - Regimento Interno e Lei 6. Outras - solução de dúvidas/esclarecimentos - Prestação de Contas da gestão municipal - Informes _ _ 08 7,5% 45 42% Total 107 100% Quanto à “avaliação de políticas”, incluiuse nessa categoria o processo de fiscalização do CMC/SA sobre as atividades da secretaria de cultura, a avaliação de políticas públicas já executadas e a formulação de seminários e conferências, eventos preordenados a permitir a avaliação e fiscalização das políticas culturais implementadas pela administração pública e pelo próprio CMC/SA. Nessa etapa destaca-se, sobretudo, a Assembleia Geral promovida em dezembro de 2008, já no contexto de mudança de gestão, com a finalidade de analisar as atividades realizadas pelo CMC/SA desde a eleição dos conselheiros, apontando de modo plural as suas realizações e falhas. Em fevereiro de 2009, na oitava reunião ordinária do conselho tomam posse os novos conselheiros do governo, escolhidos pelo secretário de cultura. Há uma grande platéia nessa oportunidade, cerca de setenta pessoas entre produtores culturais, artistas, aprendizes das escolas livres e ex-conselheiros; entre todos há a expectativa de conhecer o projeto de governo proposto pelo novo secretário e as possíveis conseqüências sobre as suas atividades. Nesta reunião, o novo projeto político para a cultura é apresentado, pautado pela manutenção das políticas culturais bem sucedidas já implementadas pela gestão anterior e pela política de visibilidade, entendida como a aproximação da iniciativa privada (para o aporte de recursos em regime de parceria) e a promoção de eventos atrativos de toda a população andreense. Esses esclarecimentos oferecidos pelo secretário de cultura, além de publicizar as novas diretrizes da gestão cultural da cidade, é espécie de “ato convalidador” de reuniões anteriormente feitas com os conselheiros da sociedade civil que tinham por papel proeminente o exercício do controle social, no sentido de persuadir a nova secretaria a continuar políticas e programas da gestão anterior, e evitar que as novas metas e racionalidade tivessem por decorrência a descontinuidade de progressos feitos anteriormente. No gráfico 2, nota-se que esta reunião teve a participação massiva da sociedade civil. Exceto pela ausência de um conselheiro, todos se dirigiram para esta que seria a consolidação de conversas já anteriormente feitas entre sociedade civil e o novo secretário. Apesar do clima de tensão, já que mudanças sempre quebram a previsibilidade das ações, existia a crença de que a nova gestão da secretaria seria permeável à participação popular. Essa participação expressiva da sociedade civil foi vista até abril de 2009, quando sua a participação progressivamente decaiu, agora sem mais representatividade nas comissões de música e de artes visuais – sem conselheiros titulares ou suplentes -, que acabaram por ser desligados do CMC/SA em razão de suas ausências constantes. A partir de maio, frente a esse enfraquecimento quantitativo, os conselheiros da sociedade civil decidem reunirem-se em reuniões prévias como estratégia para afinar o discurso e superar os entraves no debate ocorrido no âmbito do CMC. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 91 Núm ero de P res ent es BARROS, J. M. Gráfico 2: Número de conselheiros presentes nas reuniões de Fevereiro 2009/Setembro 2009 14 12 10 8 6 4 2 0 8º RO (F) 9º RO (M) 10º RO (A) 11º RO (M) Sociedade Civil 12º RO (J) 13º RO (J) 14º RO (A) ˙˙˙ Nota-se que em todas as reuniões do período há a maior freqüência dos representantes do governo em relação a participação dos conselheiros da sociedade civil, fenômeno diferente do visualizado no Gráfico 2. O secretário de cultura, como presidente do CMC/SA, é assíduo às reuniões, ausentando-se, porém, nas reuniões de julho e setembro, sendo que neste último não houve reunião do CMC/SA em razão da falta de quórum para abertura. Este esvaziamento do CMC/SA tem reflexos também nas dinâmicas das reuniões. Conforme a Tabela 2, vê-se que o perfil da pauta passa de propositiva, concentrada na construção da agenda, para a implementação de políticas (executiva) e, principalmente, para a discussão de questões internas ao conselho. Quanto à discussão sobre “tomada de decisão” e “implementação de políticas”, diz ela respeito ao compromisso assumido pelo novo secretário de dar prosseguimento às deliberações anteriormente feitas no âmbito do CMC/SA. Nesse período, como já apontado, o CMC/SA funcionou como espaço estabilizador da cultura da cidade, vale dizer, como fórum que ajudou a garantir a permanência da estrutura cultural da cidade no momento de transição política. As discussões sobre a execução do EnCASA passam a tomar grande espaço nas reuniões, entre elas a formação de comissão eleitoral, espaços que receberão o evento, divulgação à população do projeto etc. Quanto ao momento de “construção da agenda”, a proposição de políticas é verificada principalmente nas primeiras reuniões do CMC/ SA e cuidam basicamente da criação de conselhos gestores nas unidades administrativas e a criação de um comitê de ética interno. Ambas as propostas não foram acatadas pelo conselho. Neste ponto, é oportuno apontar que nestas discussões as divergências apresentam-se latentes. 92 Há um debate/discussão sobre a impossibilidade da implementação de tais medidas com uma tendência à polarização do debate, vale dizer, divisa de opiniões entre conselheiros da sociedade civil e do poder público. E isso é apontado pelos conselheiros nas entrevistas realizadas. A atividade de fiscalização da sociedade civil/ prestação de contas da gestão, por sua vez, é pauta quantitativamente relevante nas reuniões. Não se cuida da fiscalização quanto ao emprego de verbas ou alocação de recursos – atividade esta que, por sinal, foi pouquíssimo exercida pela sociedade civil no período de análise -, mas sim quanto à questões pontuais, como a segurança nos equipamentos – principalmente nas feiras de artesanato ocorridas em parques da cidade, Teatro Conchita de Moraes e Casa da Palavra. Há um alto grau de eficiência nestes debates, pois há de fato a realização das medidas necessárias para a superação das dificuldades apontadas. Tabela 2: Perfil da Pauta na etapa fevereiro 2009/setembro 2009 ATRIBUIÇÕES ˙˙˙ % 1. Construção da Agenda 07 13% 2. Formulação de Políticas 03 5,5% 3. Tomada de Decisões 01 1,8% 4. Implementação de Políticas 05 9,2% 5. Avaliação de Políticas 09 16,7% 6. Outras 29 53,7% Total 54 100% Essas questões também se refletem na disposição da sociedade civil em debater questões no âmbito do CMC/SA. Quantificando-se os “atos de fala” dos conselheiros não-governamentais, verifica-se que em média, durante o período de fevereiro2009/ setembro2009, 57% participou das discussões propostas. Esse número é inferior ao número de intervenções feitas no período anteriormente estudado (no qual a média era de 67,4%), com o agravante de que durante essa fase houve a presença de um número inferior de conselheiros nas reuniões (a média de 10 conselheiros passou para a de 7). Quanto ao governo, por sua vez, há uma média geral (conselheiros presentes X conselheiros que debatem) de atos Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009) de fala na faixa de 48% (contra 64% no período anterior), embora o número de presentes (11 conselheiros/reunião) seja superior à do período anterior, quando em média 8 conselheiros governamentais estavam presentes na reunião. Desses dados já é possível inferir da análise quantitativa dos “atos de fala” que houve a intervenção de menos conselheiros nas reuniões da nova gestão municipal, logo, menor número de intervenientes nos debates que se sucederam no período. 4. Análise Conclusiva Os dados analisados permitem apontar para o baixo grau de institucionalidade do CMC/ SA, vale dizer, para a sua baixa efetividade na construção de políticas culturais locais e na construção do controle social sobre as decisões administrativas. Por primeiro, vê que o CMC/SA congrega, na mesma linha de conselhos antes analisados pela literatura, uma parcela minoritária da população andreense dotada de condições econômicas e educacionais superiores aos de grande parcela dos munícipes. Quanto à cultura política, os conselheiros civis sofrem com o abstencionismo nas comissões, além de terem baixo engajamento em associações, sindicatos e outros espaços de participação social, o que justifica o seu menor grau de mobilização. O projeto político foi crucial nessa análise. Todavia, não se aderiu à ideia de que os governos são monolíticos e, portanto, todas as diretrizes tomadas pelo chefe do executivo repercutem diretamente no comportamento do secretariado e dos conselheiros integrantes do conselho. Para a tomada de conclusões é necessário distinguir um projeto político “macro” com relevância mediata sobre os rumos do conselho e um projeto levado a cabo de modo específico em cada secretaria e que dá as características da participação governamental de modo direto no conselho – o projeto político “micro”. Se tomado todo o histórico do CMC, o projeto petista apregoado foi o democráticoparticipativo. Esse discurso foi práxis no período de implementação do conselho, entretanto, entre o ano de 2000, quando de fato foi dada existência legal ao CMC e o ano de 2008, todo esse período foi marcado pela administração petista, mas com um grau distinto de diálogo dentro dessa instância. Daí também porque afirmar-se que o papel do secretário e a sua capacidade de escolher bons conselheiros governamentais é fundamental para o sucesso do CMC. Dos dados examinados acima, vê-se que o CMC/SA no período de maio 2008/dezembro 2008, com relação ao governo, este é ativo no debate, tanto por meio dos conselheiros quanto pela participação de outros agentes culturais, que durante as reuniões fazem a apresentação da estrutura da cultura na cidade e permitem a formação de um debate mais consciente sobre a formulação de políticas públicas. Há um enriquecimento progressivo da cultura política dos membros integrantes da sociedade civil e uma posição institucional voltada para o debate. Isso se reflete no número de presentes nas reuniões do CMC/SA. Adequando tal fenômeno à tipologia de conselhos proposta por Draibe (1998, p. 14)16, pode-se dizer que o conselho apresenta uma postura pautada pela negociação, cujas características são o diálogo e a prática de aprovação por consenso. Há um progressivo crescimento do poder de fala de ambos os lados, a prática da comunicação produtiva. O projeto político “micro” é, no período, fator crucial para dar seguimento às atividades do conselho e a sociedade civil responde a isto com uma participação constante e importante em todas as reuniões realizadas. Todavia, com a mudança de gestão há uma mudança no padrão de relacionamento entre a sociedade civil e o governo, o que diminui grandemente este caráter propositivo das reuniões. Embora o secretário apresente um discurso de continuidade dos bons projetos e da legitimidade do conselho como fórum para a formulação de políticas culturais, falta ao gestor a mesma habilidade para articular áreas ligadas à cultura e dialogar com a sociedade civil. Por essa razão, há um progressivo esvaziamento do conselho. Quanto à pauta, na opinião da maioria dos conselheiros da sociedade civil e do governo, Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 93 BARROS, J. M. o CMC/SA é pautado por “questões pontuais”, que não alcançam a verdadeira tarefa de planejar políticas macro para a cidade, há também um papel deficiente de controle social e fiscalizador da sociedade civil. As reuniões do CMC/ SA passam a apresentar um quorum reduzido, e essa é a resposta da sociedade civil, já sem a presença de representantes das comissões de música e de artes visuais, e com a pauta voltada para questões procedimentais e para a execução da política pública deliberada na gestão anterior. Na tipologia proposta por Draibe, pode-se dizer que o CMC/SA passa a se pautar pelo conflito, pela desconfiança mútua entre a sociedade e o governo. Tal quadro tem por conseqüência a paralisia. O debate em torno das poucas propostas trazidas ao CMC neste período é em alguns momentos tenso – com forte polarização entre membros da sociedade civil e do governo – e, em outras ocasiões, apresenta um “marasmo” definido pela solução de questões pontuais e que não geram discussões. Para somar a isso, ao longo do período foram sendo manifestados pontos de tensão entre a secretaria de cultura e coletividades de equipamentos públicos. Assim, chegou-se à conclusão que de fato essa institucionalidade ainda possui um potencial relevante de democratização das decisões políticas ainda não utilizados pelos atores que a compõe, seja pela inexperiência da gestão no compartilhamento de decisões políticas, seja pela falta de mobilização da sociedade civil que não se apropriou devidamente deste canal. Nota na discussão dos dados analisados que, com a eleição do novo governo e a nova composição governamental do CMC/SA, houve uma sensível diminuição no poder de articulação entre os conselheiros, em razão da formação de uma relação receosa mútua. Verifica-se, da análise das atas anteriores, sobretudo a partir de maio de 2008, quando foram eleitos os conselheiros civis, um esfriamento no debate, no sentido de serem postos em pauta temas pontuais, mais relacionados à preocupação da manutenção dos aparelhos culturais já existentes na cidade do que de fato a procura por tomar novas decisões no sentido de ampliar a cultura local. Há em ambos os lados uma falta de entendimento, não por um 94 abafamento da voz, mas, em certa medida, pela ideia dos próprios conselheiros de que o CMC/ SA não é apto a formar uma relação de parceria entre a sociedade civil e os novos atores estatais. Essa constatação, porém, não pode ser interpretada como conservadora, ou apontar para a deslegitimação do CMC/SA como um espaço de disputa e discussão entre os dois setores. O CMC/SA, assim como os demais conselhos gestores locais, tem o mérito histórico de dar maior transparência às decisões tomadas pelo governo bem como caminha para a formulação conjunta de decisões para a cultura da cidade, a exemplo do EnCasa, política voltada às artes cênicas debatida nessa pesquisa. Falta, porém, a compreensão de que a mera criação desse espaço institucionalizado não democratiza a gestão, nem a participação é uma finalidade em si mesma. A mobilização da sociedade é o motor capaz de garantir que este espaço passe efetivamente a exercer controle social, sua faceta mais importante, e induzir o Estado a realmente pensar a alocação dos recursos públicos em ações socialmente relevantes. Notas 3 4 O chamado “modelo liberal” é integrado por teorias da democracia que guardam como característica comum a ideia de que a representação política é a solução adequada para responder à tensão entre a complexidade social e a soberania popular. Destacam-se nessa categoria as teorias de Schumpeter, que entende a democracia como “um método político, isto é, certo arranjo institucional para se chegar a decisões políticas e administrativas”, atribuindo ao povo o papel de formar um governo (1961, p. 328); Bobbio, para quem a democracia se constitui como um conjunto de regras para a formação de maiorias e Dahl, para quem o tamanho da unidade – número de pessoas e espaço físico - e o tempo são fatores que determinam a limitação dos mecanismos participativos, devendo a inclusão política realizar-se mediante a representação política qualificada por um processo eleitoral livre, justo e habitual (Santos; Avritzer, 2002). Fazendo uma referência à experiência brasileira como Estado Democrático de Direito, Marcelo Neves aponta o caráter instrumental do direito no país, que abre margem à restrições complexas “’à ‘autonomia privada’ e à ‘autonomia pública’ no sentido habermasiano, ou seja, não se desenvolvem, respectivamente, os direitos humanos e a soberania do povo (...). Na medida em que os direitos humanos constitucionalmente estabelecidos como fundamentais Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA PARTICIPAÇÃO: O CONSELHO MUNICIPAL DE CULTURA DE SANTO ANDRÉ NA TRANSIÇÃO DA GESTÃO MUNICIPAL (2008/2009) não se concretizam, fortifica-se o significado dos favores e do clientelismo. Com esse problema relaciona-se a fragilidade dos procedimentos constitucionais de legitimação das decisões políticas e da produção normativo-jurídica. No lugar da legitimação por procedimentos democráticos, em torno dos quais se estruturaria uma esfera pública pluralista, verifica-se uma tendência à ‘privatização’ do Estado”’. (Neves, 2008, p. 247). 5 Art. 1°, parágrafo único. “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição”. 6 A participação popular como elemento da organização da Administração Pública, também influiu na estruturação da máquina administrativa e na divisão de competências decisórias, por meio da institucionalização de diversos canais de participação direta da sociedade civil na tomada de decisões e na divisão de tarefas. Sua concretização se encontra em diversas regras do texto constitucional, dentre as quais: i) o art. 14 que legitima a iniciativa popular como provocadora do processo legislativo; ii) a definição da obrigatoriedade da participação popular na elaboração de diversas políticas sociais, tais como as de seguridade social (que engloba as ações da assistência social, previdência social e saúde - artigo 194, VII), educação (206, VI), de comunicação social (224) e de criança e adolescente (227, caput). Regulamentados por leis ordinárias, esses dispositivos constitucionais deram gênese aos conselhos de políticas. 7 Em muitos casos a paridade entre os membros da sociedade civil e do governo representa uma mera igualdade numérica e não em uma igualdade política, vale dizer, não há equilíbrio na disposição dos interesses em conflito. Tal desigualdade pode estar relacionada à assimetria na obtenção de informações dos órgãos públicos, poucos recursos subjetivos dos conselheiros – engajamento -, pouca capacidade de mobilização que insula os conselheiros civis, formadores de poucas redes sociais, dificuldade de a sociedade civil se dedicar com tempo e recursos financeiros aos projetos e atribuições desse espaço ou de os conselheiros do governo encararem tal espaço como de partilha de poder e não mais uma de seus encargos como servidor público. 8 Este projeto político tem por núcleo a radicalização e o aprofundamento da democracia por meio da emergência de democracia participativa, utilizada para superar as lacunas e fragilidades das modalidades de democracia liberal. 9 Aidan Ravin (PTB) conquistou 214.810 votos (55%), contra 175.513 votos (44%) de seu adversário, Vanderlei Siraque (PT). No primeiro turno, o petebista havia somado 21% dos votos válidos, contra 48,9% do candidato petista. 10 Em seu discurso de posse, Aidan Ravin indica a vontade de mudança do projeto: “Não foi fácil chegar aqui. Quem votou em mim queria mudança e nós estamos aqui para virar a página e começar uma nova história” 11 As entrevistas foram feitas entre os dias 03.07.2009 e 10.08.2009. 12 “Art. 270 – Será criado o Conselho Municipal de Cultura com composição, funcionamento e competência regulados na forma da lei”. 13 A representação da sociedade civil, por sua vez, se dá por meio da eleição dos conselheiros dentro das comissões temáticas nas quais se subdivide o CMC/SA e é considerada serviço público relevante. Esses membros são eleitos para um mandato de dois anos, sendo possível uma recondução na hipótese de haver a renovação de pelo menos 30% dos conselheiros. A escolha do conselheiro ocorre por votação direta em Assembleia Geral especialmente convocada para esta finalidade. De acordo com o artigo 4° da Lei, são as comissões temáticas: artes cênicas, audiovisual, música, artes visuais, literatura e artesanato. 14 Não foi possível a entrevista de uma das conselheiras, pois, ao tempo da execução dessa etapa do projeto, a mesma se encontrava em licença da Secretaria de Cultura, Lazer e Turismo. 15 Tal pesquisa foi realizada pelo IBGE no suplemento da Pesquisa Mensal de Emprego (suppme) de abril de 1996, que abrangeu seis das dez áreas metropolitanas do país: Recife, Salvador, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, São Paulo e Porto Alegre, cidades que, somadas, possuem 25% da população brasileira. 16 Pesquisando sete conselhos de políticas sociais em âmbito federal, a autora mapeou quatro padrões de relacionamento entre sociedade civil/governo: negociação, conflito, cooperação e burocrático. Os conselhos pautados pela negociação são caracterizados pela construção do consenso por meio do debate, em uma dinâmica dialógica de avaliação e difusão do impasse, resultando em um processo de produção de políticas produtivo e autônomo e num exercício de efetiva partilha de poder. Nas instâncias orientadas pelo conflito, por sua vez, embora haja tensão entre os atores, há a possibilidade de formarem-se consensos por meio do debate mais enérgico, viabilizado pela ênfase no esclarecimento quanto às regras internas, embora conviva com indefinições e concorrência com funções do órgão ao qual é vinculado; é um conselho igualmente produtivo e propositivo. Pode ocorrer, entretanto, que desse quadro resulte uma situação de mútua desconfiança, gerando a paralisia e a pouca influência nas decisões. Nos conselhos com padrão de cooperação, existe uma baixa ou nula divergência interna, com forte autoridade moral, resultando em um conselho relativamente produtivo. Finalmente, nos conselhos com padrão de interação burocrática, esta instância carece de mecanismos de negociação, há um forte abstencionismo do governo e isso gera como resultado o seu pouco poder de influência, sendo pouco propositivo, tendo apenas vida formal. Referências AVRITZER, Leonardo. 2002. Democracy and the public space in Latin America. Princeton, New Jersey: Princeton University Press. AVRITZER, Leonardo & COSTA, Sérgio. 2004. Teoria crítica, democracia e esfera pública: concepções e usos na América Latina. Rio de Janeiro: Revista Dados. Vol. 47, nº 4. Revista Internacional de Direito e Cidadania, n. 7, p. 81-96, junho/2010 95 BARROS, J. M. BAQUERO, Marcello (2208). Quando a instabilidade se torna estável: poliarquia, desigualdade social e cultura política na América Latina. In: Revista Debates. Porto Alegre, v. 2, n. 2, jul.-dez. 2008, pp. 48-69 DAGNINO, Evelina (1994). Os movimentos sociais e a emergência de uma nova noção de cidadania. In: ___ (org.). 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