Da língua para a linguagem: outros rumos de pesquisa1 João Wanderley Geraldi2 Não sei o que seria a verdade, a não ser por algo que buscamos e que nunca fixaremos definitivamente. Mas creio que a perspectiva permite um olhar mais pleno. Olhar e ver-se olhando. (Alejandro Zambra. Entrevista ao Estado de S.Paulo, 08.03.2014) Introdução A partir do final dos anos 1980 começou a se tornar comum, entre nós, o surgimento de novos cursos de pós-graduação que, substituindo tradicionais denominações como “Letras” e “Linguística”, se chamam de “Estudos da Linguagem”, às vezes com especificações muito próprias dos respectivos programas, como “Linguagem e Sociedade”, “Linguagem e Ensino”, etc. Creio que estas novas denominações não são gratuitas e desvelam um movimento interno nos estudos linguísticos que já podem, passados estes anos, serem visitados, buscando as motivações destas mudanças. Este o objetivo deste texto, em que retomo estudos anteriores sobre a mesma temática. 1. As ciências, seus mitos e suas promessas 1 Texto de aula magna proferida em 17.03.2014 nos Programas de Pós-Graduação em Letras da Univ. Federal de Pernambuco. Este texto retoma dois textos anteriores: “Promesas y mitos de la ciencia moderna”, in.Untoiglich, Gisela. En la infancia los diagnósticos se esrciben con lapiz. Buenos Aires : Colección Conjunciones, 2013; e “Heterocientificidade nos estudos linguísticos”, publicado in. Grupo de Estudos de Gêneros Discursivos. Palavras e Contrapalavras: Enfrenando questões da metodologia bakhtiniana. São Carlos : Pedro & João Editores, 2012, p. 19-39. 2 Professor Titular aposentado da Unicamp. [email protected] Iniciemos esta reflexão com uma visão panorâmica sobre a ciência moderna. Apesar do percurso histórico extremamente heterogêneo pelo qual a humanidade chegou às ciências contemporâneas, o esquecimento permanente desta caminhada nos faz crer que as verdades construídas no presente sempre foram verdades e, segundo a perspectiva universalista que adotamos, como se o presente fosse o fim da história, e que as verdades de hoje serão também verdades no futuro. No entanto, A ciência não brotou de um homem, nem foi o produto da concepção imaculada de um método abstrato e universal, senão uma criação híbrida, plural e multifacética, engendrada por uma comunidade na qual conviveram e se fertilizaram mutuamente religiosos e magos, artesãos e filósofos, engenheiros e comerciantes, matemáticos e experimentadores, aristotélicos e neoplatônicos, místicos e racionalistas, numa verdadeira orgia de pensamento-ação-percepção-criação. (Denise Najmanovich. O feitiço do método) As “verdades científicas” são expressas sem voz, mas tiveram seus momentos de voz humana e condenação. A passagem da admissão do sistema ptolomaico para o sistema copernicano não se fez numa só geração. Ainda em 1615, o cardeal Belarmino (que tentara salvar Giordano Bruno), escreveu: Se houvesse alguma prova real de que o Sol se encontra no centro do Universo, de que a Terra ocupa a terceira esfera, e de que o Sol não gira em torno da Terra senão a Terra em torno do Sol, então nos veríamos obrigados a proceder com grande circunspecção em explicar as passagens das Escrituras que parecem ensinar o contrário, e deveríamos dizer que não os compreendemos antes de declarar falsa uma opinião que se tem demonstrado verdadeira. Mas não creio que exista tal prova, posto que não se me há mostrado nenhuma. Demonstrar que se salvam as aparências, supondo o Sol no centro e a Terra nos céus, não é a mesma coisa que o demonstrar realmente. Creio que pode existir a primeira demonstração, mas tenho graves dúvidas acerca da segunda, e em caso de dúvida não se pode abandonar as Sagradas Escrituras tal como as interpretam os Santos Padres (apud Najmanovich, op. cit. P. 47-48) Mas também em meados do Século XIX encontraremos outro exemplo: Augusto Comte, fundador da doutrina positivista, expôs publicamente sua “manifesta hostilidade ao microscópio na lição XLI do Cours de Philosophie Positive. Recordemos que Leewenhoek observou pela primeira vez o mundo novo dos “’animálculos’ microscópicos a meados do século XVII, logrando que muitos dos seus contemporâneos o considerassem diletante e fantasioso”. (idem, p. 43) Os dois exemplos são suficientes para nos mostrar que o correr do tempo se fez e se faz necessário para que o novo seja aceito, e que a construção do novo conhecimento não se fez nem se faz sem ‘escândalos’ no presente, de modo que se pode pensar até mesmo em dizer que um novo paradigma somente se torna hegemônico não pelo convencimento da quase totalidade dos cientistas, mas com a morte dos cientistas mais velhos. Entre Leewenhoek e Pasteur se passaram dois séculos! E só depois deste a existência do micromundo deixou de ser controvertida. Esta longa caminhada – recortada de festejos pontuais pelas novas descobertas científicas – se fez fundada na promessa prefacial de que à razão humana nenhum acesso é negado. Tudo saber, tudo conhecer, é a primeira promessa e o primeiro mito da modernidade. Este projeto ambicioso da modernidade iluminista começa a ser posto em questão desde os primórdios do século XX. Mas Kant já havia dito que entre as atividades humanas, há as que não se deixam reduzir ao conhecimento científico: aquela da política e aquela da pedagogia. Freud, mais tarde, reconhecerá que a psicanálise também não se deixa reduzir à cientificidade a que estávamos habituados. Saussure nos inícios da Linguística realmente moderna acaba afirmando que “o ponto de vista cria o objeto”, de modo que o sonho de que era a realidade que se desvendava com o conhecimento científico vai ficando para trás. Giles Gaston Granger (1974) ao reconhecer que “todo conhecimento científico se desdobra num universo de linguagem” e que “longe de ser uma simples vestimenta do pensamento, a linguagem é então colocada como a atividade radical condicionando todo conhecimento objetivo”, mostra que todo fazer científico faz uma redução da experiência global para o nível do fenômeno captado pela atividade quase estruturante da linguagem e somente a partir desta constroi-se o objeto efetivo de estudos, numa segunda abstração estruturante. Assim, em verdade sempre vamos deixando resíduos nos modelos científicos que construímos. Estes resíduos podem constituir, para usar uma expressão kuhniana, um conjunto de fenômenos que recalcitrantes de uma ciência anormal, até que um novo modelo se constroi incluindo estes resíduos, mas produzindo outros. Sempre se recomeça, e o que se aprende expande o mundo vivido que o novo objeto, dentro de uma nova teoria, não recobrirá produzindo novos resíduos. O segundo grande mito que nos trouxe a ciência moderna foi o da predição do que acontecerá, em seus raciocínios implicativos. Tudo prever, tudo prescrever. Sempre que as condições X ocorrem, ocorrerá Y (X -> Y). Esta preditibilidade na ciência é produto da sua forma de construção do conhecimento: para cada Y há uma causa (ou um conjunto de causas), independentemente de qual Y se trata. A natureza teórica do conhecimento científico decorre dos pressupostos epistemológicos e das regras metodológicas [...]. É um conhecimento causal que aspira à formulação de leis, à luz de regularidades observadas, com vista a prever o comportamento futuro dos fenómenos. A descoberta das leis da natureza assenta, por um lado, [...], no isolamento das condições iniciais relevantes [...] e por outro lado no pressuposto de que o resultado se produzirá indepentemente do lugar e do tempo em que se realizarem as condições iniciais. Por outras palavras, a descoberta das leis da natureza assenta no princípio de que a posição absoluta e o temo absoluto nunca são condições iniciais relevantes. (Santos, 1987, p. 16) O conhecimento garantiria sua verdade somente quando o que permite predizer realmente acontece, sob as condições dadas. Talvez a prática médica possa nos fornecer contra exemplos. Na relação entre enfermo e médico, o que o primeiro busca é a cura, fundado na esperança que atribui ao segundo o poder curativo, fundado num saber. O médico, usando as técnicas de diagnóstico (hoje muito mais fundadas em signos fornecidos pela engenharia médica do que em sintomas apontados pelo enfermo), prescreve na expectativa de que neste organismo repita-se o que estatisticamente foi verificado para as terapêuticas aconselháveis dados os signos que fazem interpretar “o não silêncio dos órgãos”, já que uma das definição tradicional de saúde é “o silêncio dos órgãos”. Embora a utilização de signos tenha alterado as relações entre paciente e médico, aumentando o poder deste de decidir como observou Canguilhem A partir del momento en que la medicina deja de fundar su diagnóstico en la observación de síntomas espontáneos para apoyarlo en el examen de signos provocados, las relaciones respectivas de enfermo y médico con la naturaleza se transforman. El enfermo, al no poder diferenciar él mismo los signo de los síntomas, se inclia a considerar natural cualquier conducta adoptada exclusivamente en función de los síntomas. (Canguilhem, 2004, p. 29) No entanto, todo médico tem consciência dos limites de eficácia dos seus saberes, e mais, “não ignora que nenhuma cura é um retorno” ao estado anterior, numa reversibilidade dos fenômenos, crença em que se fundaram toda a mecânica e a cosmologia clássica. Assim, nossos conhecimentos transformados em técnicas e caminhos de ação, conhecem hoje sua fabilidade. Reconhecemos hoje como mito prever e prescrever deterministicamente o futuro. Para dizer em termos poéticos Confiamos en que no será verdad nada de lo que pensamos (António Machado, Abel Martín, p.691) O mito da reversibilidade é consequência da desconsideração do tempo e do espaço como condições iniciais importantes. A atemporalidade permite tratar o mundo como “organismo inerte”. As coisas sem tempo são desde sempre mortas: se deixam captar mesmo que não saibamos sua linguagem. Qualquer erro poderia ser remediado, porque sempre seria possível desfazer o feito. No mundo da ciência, desde a relativização introduzida por Einstein, e depois com Heisenberg e Bohr no domínio da microfísica, sabemos que não resolvemos tudo e que modificamos até mesmo o objeto que estudamos pelos instrumentos que usamos. Foi preciso que as questões ecológicas aparecessem para que a consciência da irreversibilidade começasse a emergir também no senso comum. Retomemos aqui as quatro grandes constatações teóricas apontadas por Santos (1987) como fundamentais para a crise do paradigma científico moderno: (a) A questão einsteiniana da relatividade da simultaneidade dos acontecimentos distantes que leva a um círculo vicioso: a fim de determinar a simultaneidade dos acontecimentos distantes é necessário conhecer a velocidade; mas para medir a velocidade é necessário conhecer a simultaneidade dos acontecimentos; (b) Heisenberger e Bohr, tratando as medições locais, demonstram que não é possível observar ou medir um objeto sem interferir nele, sem o alterar, e a tal ponto que o objeto que sai de um processo de medição não é o mesmo que lá entrou; (c) A impossibilidade, em certas circunstâncias, de encontrar dentro de um dado sistema formal a prova da sua consistência, pois mesmo seguindo à risca as regras da lógica matemática, é possível formular proposições indecidíveis (cf. Gödel); (d) A teoria das estruturas dissipativas de Prigogine e o princípio da “ordem através de flutuações”: há uma lógica de auto-organização numa situação de não-equilíbrio. (Santos, 1987, p. 24-28) Chegamos assim a uma ...nova concepção da matéria e da natureza [...] dificilmente compaginável com a que herdamos da física clássica. Em vez da eternidade, a história; em vez do determinismo, a imprevisibilidade; em vez do mecanicismo, a interpenetração, a espontaneidade e a auto-organização; em vez da reversibilidade, a irreversibilidade e a evolução; em vez da necessidade, a criatividade e o acidente. Aceitar que nossos conhecimentos não dão conta de tudo, que há mistérios insondáveis com as capacidades de que dispomos enquanto homens (e não deuses da razão), é aceitar o acaso e o acontecimento. Em outras palavras, aceitar que “a vida é demasiado preciosa para ser esbanjada num mundo desencantado” (Mia Couto, Jesusalém, na voz de Silvestre Vitalício, p. 25). Por fim, somos guiados pelo mito da homogeneidade tomada como um bem em si. Trata-se de imaginar que tudo pode ser expresso sem indeterminações, tudo pode ser compartilhado entre conhecedores, tudo deve ser homogeneizado. Aponto aqui para um destes lugares em que esta emergência aparece despudoradamente: a objetividade e neutralidade da ciência. Para expressar os conhecimentos alcançados e compartilhá-los com outros, a ciência construiu sua própria língua, aparentemente lógica, fundada na suposta exatidão da matemática. Todos empregariam seus termos nos mesmos sentidos, sem ambivalências, sem ambiguidades, sem perigos. Mas nas definições e codificações escondem-se as dúvidas; nas expressões exotéricas escondem-se os desconhecimentos; nas fórmulas descarnadas pela abstração, esconde-se o desprezo pelo singular, pelo único e pelo irrepetível. O mito de que tudo podemos expressar e, portanto, compartilhar, é a recuperação de um estado suposto existente antes de Babel. O mito de Babel faz supor que antes todos se expressavam com uma mesma língua. Reunidos na construção da torre para chegar aos céus e aos deuses, os homens foram castigados por seu orgulho precisamente com a diferença de línguas. Numa só cajadada, o mito introduz duas consequências: (a) a suposição de uma unidade perdida – que a linguagem da ciência se esforça por recuperar e (b) a interpretação de que a diferença é um castigo. Infelizmente, este mito bíblico funda nossas concepções sobre a diversidade! Por outro lado, toda a diferença exige um tratamento distinto. Se os objetos do conhecer são distintos, distintas devem ser as formas de aproximação compreensiva. Como a igualdade é uma construção que desbasta o real das diferenças, a ciência se fundou no processo de negação do único, da unidade em benefício da generalização e da abstração. A ciência moderna consagrou o homem como ser epistêmico, mas o expulsou do processo de produção de conhecimentos. Uma ciência de manipulação do mundo não precisa do sujeito empírico em sua gestação; no entanto, com a crise da ciência moderna, a nova ciência que emerge demanda precisamente a presença do sujeito no processo de sua produção porque reconhece que os conhecimentos são também produtos da analogia, da argúcia, da astúcia em estabelecer novas relações e enxergar novas possibilidades. As disciplinas e os métodos são incapazes de explorar novos caminhos. Somente o homem é capaz. Se pudéssemos fazer uma redução a fórmulas lógicas, os raciocínios que levam à verdade da ciência moderna são da ordem da implicação: “se p, q”; “se q, r” e assim sucessivamente, de tal modo que a conclusão final também será expressa na mesma fórmula: “se Y, X”. O raciocínio que se impõe hoje, diante da complexidade, dos acasos e dos acontecimentos é da ordem da adição: “p & q & r & …”. Toda vez que adicionamos nova informação, o produto final de nossa análise pode se alterar ou pode se confirmar com maior peso. Cada novo aspecto do sentido resulta da adição no presente de uma informação antes não disponível. A referência à intrepidez no conhecimento faz abandonar qualquer imagem da segurança de um método. E mais, “a resignação do cognoscente; a reverência” são atitudes daqueles que sabem que a verdade jamais receberá um carimbo de “causa finita”. 2. Configurações, neste novo contexto, dos estudos da linguagem Desde o gesto inaugural de Saussure, os estudos linguísticos detiveram-se no objeto por ele formulado: a língua. Um sistema de formas cujo estudo se fez, de modo particular, pelo método da comutação, extremamente útil no estudo dos aspectos fonológicos da língua e com uma aplicação menos produtiva na morfologia. Tanto que o estruturalismo de base saussureana não nos ofereceu qualquer teoria sólida na área da sintaxe e, muito menos, na área da semântica. O desenvolvimento dos estudos sintáticos exigiu uma reviravolta, realizada particularmente por Chomsky e seus seguidores: não mais uma análise empírica da realidade linguística superficial, a partir da qual se construíram as abstrações, mas um ponto de partida abstrato para chegar à realidade superficial. Nos vários modelos da teoria, dois princípios nunca foram abandonados: o universalismo e o dedutivismo, com o qual realmente a ciência linguística chegaria de fato à ciência moderna: dedutiva e universal em seus princípios. Deixemos os sintaxistas com seus problemas insolúveis dentro deste modelo de ciência moderna – os modelos se sucedem com uma rapidez incrível e cada um deles se apresenta como “teoria”, sem qualquer visitação aos fenômenos que justificaram os modelos anteriores: um fazer sem história. A insatisfação com estes modelos, patente à medida que a explicação dos sentidos – razão de ser do sistema língua – fizeram surgir outras perspectivas. Foram os estudos dos sentidos que levaram a uma nova reviravolta nos estudos linguísticos, não só porque estes dependem crucialmente do contexto, mas também porque não se deixam reduzir às regras do estilo “Se p, q”. Apenas para exemplificarmos estes movimentos, consideremos o esforço de certas teorias semânticas em incluir no sistema “língua” um conjunto de fenômenos antes considerados da fala: a semântica argumentativa é exemplar nesta tentativa; a teoria dos atos de fala acaba por incluir como necessário pensar o que se faz quando se fala; a lógica da conversação implica considerar movimentos próprios da troca linguística que não são verbais (e, portanto, não pertencem ao “sistema”), e assim sucessivamente. Foi, no entanto, a demanda por “métodos seguros de compreensão de textos” que romperam o dique de forma mais definitiva. A Linguística Textual abandona por completo a tentativa de uma descrição de base causal, para elaborar categorias analíticas capazes de explicar certo “mal estar” diante de textos que não preencham certas condições que lhe são próprias: informatividade, coesão, coerência, referencialidade e coreferencialidade são princípios e não regras que se devem seguir para produzir um texto. É possível ver problemas de informatividade de um texto, uma vez ele tenha sido elaborado. Mas não há uma regra que permita ao produtor do texto comportar-se de modo tal que seu texto tenha a informatividade necessária! Esta a diferença entre um princípio que se deve ter em conta e uma regra que se deve seguir (como a da concordância de gênero ou número, na sintaxe). A análise do discurso vai além: exige que o estudo de um discurso, superficializado num texto, se faça tendo presente as condições de sua produção, o que acarreta aproximar de forma muito profunda a relação entre linguagem e sociedade, mais ao estilo da “sociologia da linguagem” (cujos autores mais importantes são Bourdieu, Bernstein, e entre nós Gnerre) do que ao estilo da sociolinguística (em que pontifica Labov). Com a análise do discurso retorna aos nossos estudos um conjunto de questões que a Linguística moderna havia deixado de lado: as questões da retórica e da argumentação, as questões do estilo, as questões das afiliações ideológicas dos discursos. Qual o “custo” desta virada? O abandono da “língua” (no sentido saussureano) como objeto de estudos e a aproximação com a linguagem e seu funcionamento social. O custo é a perda das seguranças e das afirmações de verdade; a vantagem é uma compreensão melhor do fenômeno que se quer estudar, abandonando as amarras da definição de um método infalível que nos trouxe poucos resultados (ao menos para a compreensão dos sentidos). Por isso, estamos num movimento que vai “da língua para a linguagem”, recuperando um terreno que os estudos linguísticos clássicos haviam abandonado para a filosofia da linguagem, para a psicologia e para a sociologia. Surgem outras perspectivas analíticas. Tomemos como exemplo a teoria dialógica que procede de Bakhtin. Nela, necessariamente, deve-se reconhecer a infinitude do processo dialógico, em que todo dizer e todo dito dialogam com o passado e o futuro, e paradoxalmente deve reconhecer a unicidade e irrepetibilidade dos enunciados produzidos em cada diálogo. Aceitar esta fórmula paradoxal: todo enunciado é único, mas nenhum é isolado.(Sériot, P. p.12) implica abandonar a posição epistemológica que somente admite como científico (e verdadeiro dentro de cada teoria) o enunciado relativo àquilo que se repete, àquilo que é imutável, àquilo que é produto da abstração deduzidas todas as particularidades, todas as singularidades como “desvios” não significativos da realidade concreta. Manter-se no terreno dos fios que ligam os enunciados numa cadeia infinita de enunciados, é admitir também que alguns destes fios são invisíveis para o analista, de modo que o resultado de seu trabalho não pode ser oferecido como uma “verdade”, mas como uma análise compreensiva e responsiva dos enunciados sobre que se debruça. E tratando da linguagem, é possível construir uma metodologia (não um método) capaz de orientar o pesquisador no emaranhado de complexidades que a linguagem comporta, evitando descaminhos que podem conduzir ao tratamento de questões que não lhe dizem respeito (ainda que nada no mundo humano esteja isolado), assumindo como próprio o que é próprio de outros campos (por exemplo, usar categorias sociológicas na análise da linguagem não é fazer sociologia, mas se aproximar da linguagem com ferramentas fornecidas por outras áreas do conhecimento, o que permite iluminar pontos escuros, focar algo ainda não visto etc.). Antes, estabeleçamos uma distinção operatória: um método é um conjunto de princípios de descoberta que, seguidos com rigor, levam a descobertas surpreendentes. Descartes expôs um método, mas Leibniz vai dizer que Descartes, seguindo seu método, descobriu coisas interessantes, mas se outro pesquisador seguir as mesmas regras somente descobrirá o que Descartes já descobrira: será preciso, para fazer descobertas surpreendentes, desobedecer ao método metodicamente diante de outros objetos sobre os quais se debruça o pesquisador. Fazer isso é dispor de uma metodologia: um modo particular, às vezes somente explicitável a posteriori na dialética da exposição, quando se ordenam o que pode ter sido descoberto desordenadamente. Dispor de uma metodologia é dispor de princípios, que precisam ser aliados à intrepidez, à astúcia, à argúcia e à perspicácia. Dispor de um método é ter corrimãos definindo a caminhada para se descobrir o que previamente se conhecia, sem expor-se ao desconhecido. Em verdade, a relação do pesquisador não se dá diretamente com as “coisas”, mas com seus Outros. Entre estes, obviamente há os sujeitos de sua própria pesquisa, para quem os resultados chegarão apenas na forma de tecnologias que venham a ser “inventadas” a partir das descobertas. Mas há os sujeitos que sobredeterminam a sua prática – os outros cientistas – e que lhe cobrarão a “metodologia”, a explicitação do método empregado para chegar aos resultados obtidos. No entanto, Leibniz já havia dito que Descartes, seguindo seu método, descobriu coisas interessantes, mas se outro pesquisador seguir as mesmas regras somente descobrirá o que Descartes já descobrira: será preciso, para fazer descobertas surpreendentes, desobedecer ao método metodicamente porque outros são os objetos sobre os quais se debruça o pesquisador. Ora, a sobredeterminação metódica seguida à risca somente permitirá que se diga o dizível, o previsível. Pofr isso é necessário propugnar por uma metodologia aberta, a cujos princípios devem se associar as astúcias do pesquisador. Ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição. (Ginzburg, 1989, p. 179) Embora o autor citado esteja fazendo referência ao conhecimento obtido através de indícios, sabemos que “as pretensões de conhecimetno sistemático mostram-se cada vez mais como veleidades” (idem, p.177). Certamente abandonar o método não significa abandonar o rigor; significa abrir-se para a multiplicidade dos sentidos possíveis diante da complexidade das coisas, das gentes e de suas relações, para chegarmos não a conhecimentos seguros mas irrelevantes e sim para arriscarmo-nos por outros percursos de produção de conhecimento relevante. Como ensina Bakhtin A interpretação das estruturas simbólicas tem de entranharse na infinitude dos sentidos simbólicos, razão por que não pode vir a ser científica na acepção de índole científica das ciências exatas. A interpretação dos sentidos não pode ser científica, mas é profundamente cognitiva. Pode servir diretamente à prática vinculada às coisas. “Cumpre reconhecer a simbologia não como forma não científica mas como forma heterocientífica do saber, dotada de suas próprias leis e critérios internos de exatidão” (Aviérintsiev). (Bakhtin, op. cit., p. 399) A citação se justifica: nesta passagem Bakhtin nos aponta que todo trabalho de interpretação dos sentidos opera isomorficamente através de outros sentidos expressos também eles simbolicamente. Como em Peirce, o Interpretante não é o sujeito que interpreta, mas um signo com que se interpreta o signo, abrindo para uma cadeia semiótica cujo fim é um ponto estabelecido pelos interesses do processo interpretativo. Aceitar que o comentário tem um papel é admitir que a interpretação pode conter juízo de valor, entonação avaliativa, não é neutra e nem pretende ser. Foucault (1996) também mostrou o quanto o comentário funciona como um mecanismo de ordenação dos discursos porque de um lado pretende dizer o que já está lá no texto comentado e, portanto, o repete; sobretudo controla os discursos porque o comentário lhes fixa os sentidos, aqueles que, a partir da autoridade do comentador, passam a ser sempre atribuídos ao texto comentado. O exemplo histórico mais evidente é a interpretação da Bíblia, cujos sentidos fixados pelos Padres da Igreja repercutiram de forma crucial na história, como mostram os processos contra Giordano Bruno e Galileu Galilei, ou as muitas “heresias” entre as quais se destaca aquela de Lutero. Aceitar o comentário positivamente, com seus juízos de valor, é aceitar a falibilidade da interpretação: é aceitar “o momento correspondente de resignação do cognoscente; a reverência” de quem sabe que o sentido é inacabável. Esta é a humildade da verdade, a verdade que nos guia no cotidiano. O aprofundamento do empreendimento interpretativo resulta da ampliação do contexto, fazendo emergirem mais vozes do que aquelas que são evidentes na superfície discursiva. Não para enxergar nestas vozes a fonte do dizer, mas para fazer dialogarem diferentes textos, diferentes vozes. O múltiplo como necessário à compreensão do enunciado, em si único e irrepetível. A unicidade se deixa penetrar pela mulplicidade. Cotejar textos é a única forma de desvendar os sentidos. Por fim, mas sem esgotar os sentidos a que a passagem citada remete, a heterocientificidade própria das ciências humanas – “o objeto das ciências humanas é o ser expressivo e falante” (p.395) é consequência de seu objeto, não reduzido a “coisa morta” sobre que se debruçaria o pesquisador. A Linguística teria encontrado este tipo de objeto na língua, e por isso é apontada por Ginzburg (1989) como a única ciência humana que resolveu o impasse galileano, tornando-se uma “ciência moderna”. Mas os linguistas sabem perfeitamente que ao fazerem isso abandonaram qualquer pretensão de tratar dos sentidos3. Ao deixar de lado os sentidos, a Linguística mutila até mesmo a língua, pois esta se funda nos sentidos. Mesmo um princípio de descoberta simples como o da comutação exige que se leve em conta precisamente o sentido, que subrepticiamente retorna à Linguística das formas. 3 É significativo, por exempo, a dificuldade que encontrou a Análise do Discurso para ser considerada uma disciplina da Linguística, e justamente porque visa os sentidos dos discursos. Por outro lado, mesmo no interior desta, é forçoso reconhecer que o sentido dado a um discurso se faz através de um discurso que por seu turno pode ser objeto de outra análise. Também nesta disciplina os critérios de validação são internos e sua cientificidade é sempre posta em questão pela Linguística em seu sentido estrito. Assim como a Análise do Discurso (talvez fosse melhor falar em Análises de Discurso) passou a compor o elenco das disciplinas que os linguistas estudam, também os estudos bakhtinianos (com o nome que venha a ter de “translinguística”, “metalinguística” ou “meta-linguística”) acabarão por encontrar na academia um espaço próprio no campo dos estudos linguísticos. Com nossa heterocientificidade, tentando desvendar a verdade do enunciado singular – um discurso literário ou não – construindo para ele uma interpretação cuja profundidade depende crucialmente das possibilidade de ampliação dos contextos possíveis, e por isso das condições do sujeito que analisa, como encontrar indicações metodológicas para a caminhada? Voltemos a Bakhtin: Desmebramento da compreensão em atos particulares. Na compreensão efetiva, real e concreta, eles se fundem indissoluvelmente em um processo único de compreensão, porém cada ato particular tem uma autonomia semântica (de conteúdo) ideal e pode ser destacado do ato empírico concreto. 1) A percepção psicofisiológica do signo físico (palavra, cor , forma espacial). 2) Seu reconhecimento (como conhecido ou desconhecido). A compreensão de seu significado reprodutível (geral) na língua. 3) A compreensão de seu significado em dado contexto (mais próxima e mais distante). 4) A compreensão ativo-dialógica (discussão-concordância). A inserção no contexto dialógico. O elemento valorativo na compreensão e seu grau de profundidade e de universalidade. (Bakhtin, op. cit, p.398) Estes momentos detectáveis no processo de construção de uma compreensão podem nos oferecer alguns subsídios aos processos de pesquisa. Sobretudo, um estudo bakhtiniano não existe sem um objeto empírico que é preciso ter presente. Não há análise de discurso sem discurso (1). O processo de reconhecimento exige um conhecimento, até mesmo para afirmar um desconhecimento. Como este conhecimento se constitui? Como um falante reconhece um enunciado como pertencente a sua língua? Conhecendo a língua (obviamente não no sentido de Saussure), o que ele aprende por uma atividade objetificante: a palavra do outro que aprendo nos processos interativos torna-se palavra própria-alheia com que passo a aprender outras palavras até que as palavras se tornam “minhas” por esquecimento da origem. Estas palavras que conheço e com as quais reconheço outras palavras ou o retorno da mesma palavra (reconhecimento) são produtos de abstrações do falante porque lhe exigiu que descontextualizasse as palavras dos enunciados ouvidos e respondidos construindo um conhecimento abstrato necessário ao reconhecimento4. Aquilo que ainda não reconheço preciso conhecer para poder analisar (2). A contextualização do enunciado é essencial porque todo enunciado “reflete uma realidade extra verbal”. Se na conversa cotidiana importa encontrar nestes contextos os elementos não ditos mas presentes no horizonte comum dos interlocutores para poder dar sentido aos enunciados, na intrepretação a profundidade da penetração dependerá crucialmente dos elementos de especificação do contexto e dos com-textos com que o analista faz o texto dialogar (3). A compreensão ativo-dialógica implica na não submissão à palavra do outro, de que se toma distância para dar espaço às contrapalavras necessárias à compreensão e à análise. Aqui entram o comentário, o juízo de valor, a produtividade dos conceitos presentes no texto para outros contextos, etc. (4). Dar contextos a um texto é cotejá-lo com outros textos, recuperando parcialmente a cadeia infinita de enunciados a que o texto responde, a que se contrapõe, com quem concorda, com quem polemiza, que vozes estão aí sem que se explicitem porque houve esquecimento da origem. Bakhtin nos dá dois grandes exemplos de trabalho de interpretação analítica: seus estudos das obras de Dostoievski e de Rabelais. Ao ir cotejando os textos com outros textos vai-se elaborando conceitos ou reutilizando conceitos produzidos em outros estudos (até mesmo de outros campos) com que se aprofunda a penetração na obra em estudo. O resultado apresentado é uma “tese” no sentido de que contém um ponto de 4 Por isso todo o falante de uma língua é capaz de abstração. As generalizações dos cientistas levam esta capacidade ao mais alto nível, mas o processo é o mesmo. vista argumentado em que se sustenta a interpretação construída. Mas uma tese não tem qualquer valor absoluto de verdade. Voltemos ao que se disse anteriormente: a tese aqui se constroi por raciocínios aditivos (p & q & r & x & y …) de modo que os sentidos são inacabáveis (e as relações com outros textos também, não importa se esta relação esteve ou não presente no processo de produção do discurso/texto em estudo. Interpretar é construir um sentido para um discurso, para um texto, e a validade desta interpretação se mede por sua profundidade e pela consistência e coerência de seus argumentos. Para além do “cotejo de textos”, que outros caminhos seriam possíveis para a pesquisa contemporânea em linguagem? Certamente continuarão a existir os estudos da linguística moderna (e eles podem ser úteis, mas a eles não se pode reduzir o todo complexo do funcionamento da linguagem). Este caminho, no entanto, parece-me praticamente inútil para aqueles que se debruçam sobre fenômenos mais amplos como a questão das forças dos discursos (força política, ideológica, mobilizadora de mentes e corações), a questão do ensino, cuja complexidade não pode ser reduzida a objetos a serem conhecidos independentemente dfas razões para conhecer (a não ser responder a testes das avaliações inernacionais, nacionais e regionais, para os quais os estudantes são hoje preparados), a questão dos direitos à fala, ampliados pelas tecnologias hoje disponíveis ou a questão da construção dos sentidos dos acontecimetnos por diferentes sujeitos sociais. Para estas questões, as metodologias que a Linguística clássica moderna construiu são praticamente inúteis. Nossos lugares de inspiração talvez devam ser aqueles da Linguística Textual e da Análise do Discurso, que assumiram que seus estudos produzem categorias analíticas que auxiliam os processos de produção e compreensão de textos, e não “regras” para compreender ou produzir textos. Para estudar estas questões, temos que nos aproximar da sociologia e da história. Caminhos possíveis nos são indicados pela “investigação narrativa” (construção de sentidos), pelo “paradigma indiciário” (no cotejo de textos e de seus valores sociais), pela pesquisa histórica do cotidiano (onde história e literatura se aproximam), pelos estudos culturais (onde nossos objetos adquirem uma avaliação social). Referências bibliográficas BAKHTIN, M. “Metodologia das ciências humanas” in. ________ Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes, 4ª. ed., 2003 ___________ “Apontamentos de 1970-1971”. In. ___________. Estética da criação verbal. São Paulo : Martins Fontes, 4ª. ed., 2003. CANGUILHEM, Georges. Escritos sobre Medicina. Buenos Aires : Amorrortu Editores, 2004. COUTO, Mia. Jesusalém. Alfragide : Caminho, 2009. FOUCAULT, M. A ordem do discurso.São Paulo : Edições Loyola, 1996. GERALDI, João Wanderley. “Heterocientificidade nos estudos linguísticos” in Grupo de Estudos de Gêneros Discursivos. Palavras e Contrapalavras: Enfrenando questões da metodologia bakhtiniana. São Carlos : Pedro & João Editores, 2012, p. 19-39. _______________________. “Promesas y mitos de la ciencia moderna”, in.Untoiglich, Gisela. En la infancia los diagnósticos se escriben con lapiz. Buenos Aires : Colección Conjunciones, 2013. GINZBURG, C. “Sinais” in. ______ Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo : Cia. das Letras, 1989. GRANGER, Gilles-Gaston. “O problema das significações” in _____ Filosofia do Estilo, São Paulo : Perspectiva, 1974, p. 133-168. MACHADO, António. “Abel Martín”. Obras Completas, vol I, Barcelona : Instituto Cervantes, 2009, p.670-694 NAJMANOVICH, Denise. “O feitiço do método” in Regina Leite Garcia (org) Método Métodos Contramétodo. São Paulo : Cortez, 2003, p. 25-62 SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. Porto : Edições Afrontamento, 1987. SÉRIOT, P. “Generalizar o único: gêneros, tipos e esferas em Bakhtin” Revista Línguas, 21, Disponível em www.revistalinguas.com/edicao21/cronicas.html ZAMBRA, Alejandro. “A dor legítima”. Entrevista concedida ao Estado de S. Paulo, 08.03.2014, Caderno C1, p. 1.