INSTITUIÇÕES E REDES DE PODER URBANO
A história das instituições políticas nasce na época Liberal assumindo-se como
legitimadora do processo de construção do Estado oitocentista. No que se refere às
instituições a principal preocupação centrou-se na sua definição normativa (na perspectiva do
direito letrado) e nas suas atribuições funcionais.
A historiografia política viria a ser subalternizada pelas correntes mais inovadoras da
historiografia, sobretudo francesa, até à década de sessenta. A partir desta época, reabriu-se o
debate em torno da História Política. Por sua vez, outros historiadores, contrariando as teorias
que diluíam a política no social (Foucault), ou que a viam como o mero reflexo das dinâmicas
económicos e sociais, defenderam que a política era “um lugar de gestão da sociedade global”
(René Remond).
Entretanto, autores com formação na área da História do Direito, demonstravam que a
História Política e Institucional tradicional trabalhava com conceitos – Estado, Absolutismo,
Centralização –, cuja carga semântica se adaptava à compreensão da realidade oitocentista e
novecentista, não sendo contudo operatória para períodos anteriores. Bartolomé Clavero
denominou essa forma de fazer História como “preconstituinte”, História “que presume y
estabelece a preexistencia de un Estado y de sus principales instituciones”. Na mesma linha
Hobsbawm classificou esta concepção historiográfica como Invenção de uma Tradição.
De notar que o conceito de Estado, cujo aplicação à época moderna muitos autores
actuais rejeitam, é aquele cujo conteúdo semântico é, assim, definido por A. Hespanha: “O
Estado é uma entidade que separa o público do privado, a autoridade da propriedade, a
política da economia; que promove a concentração de poderes num único pólo e que, por isso,
elimina o pluralismo político típico do Antigo Regime; instaura um modelo racional de
governo, que funciona segundo normas gerais e abstractas”.
Neste contexto, considerar o estado absolutista como um mito passou a fazer parte do
discurso de muitos historiadores que, entretanto, procuraram outras linguagens mais
adequadas para interpretar o universo político, ou mais precisamente, o universo da cultura
política, das sociedades de Antigo Regime. Numa época (década de setenta) em que a
Antropologia pontuava no contexto das ciências sociais, registou-se uma atracção pelos seus
conceitos e modos de decifrar as sociedades, integrando, alguns historiadores, no seu
vocabulário leituras antropológicas do passado, o que, em alguns casos, significou, apenas,
olhar a Época Moderna na sua alteridade, isto é como “outra”, diversa das épocas medieval e
contemporânea. Um dos principais desafios residia, de facto, na necessidade de conferir uma
identidade própria, uma espessura temporal específica, a uma época que se representava, em
termos de organização política, como um período entre os tempos medievais e
contemporâneos, um tempo de decomposição do feudalismo ou de transição para a
modernidade liberal.
De notar, entretanto, que, nos anos setenta, o conhecimento sobre a época moderna era
já substancial, fundamentalmente nas áreas da História Económica e Social. Devido a esta
circunstância, quando se retomaram os estudos de História Política já se dispunha de muita
evidência empírica e conhecimento teórico sobre a organização das sociedades da Época
Moderna, nos seus aspectos económicos, sociais, culturais e mentais.
Neste contexto, a Nova História das instituições políticas configurou-se, sobretudo,
como História social do poder. Com efeito, o olhar dos historiadores foi-se deslocando de
uma concepção centralista para uma outra policêntrica, concepção de poder socialmente
repartido por diversos grupos e instituições.
Esta nova forma de abordagem do sistema político começou a dar frutos com a
publicação de trabalhos elaborados com base em metodologias provenientes da análise social,
nomeadamente a prosopografia, a micro-história e o estudo de redes sociais (network
analysis).
Esta última metodologia permite representar “o campo social” como uma “estrutura em
rede” constituída por um conjunto de pontos e de linhas. Os pontos representam os
indivíduos, as linhas as interacções recíprocas. Vários investigadores encontraram na network
analysis “les moyens d’expliquer le comportement des individus par l’ étude des connexions
présentes dans les relations des uns aux autres plutôt que par les attributs des personnes
présentes dans le réseau». Este método permite identificar formas do “jogo político” e
estratégias sociais que se inserem na lógica do sistema de trocas de serviços por recompensas
materiais ou simbólicas, caso da “economia de mercês”.
A renovação da história institucional e política operada nas últimas décadas em
Portugal estruturou-se a partir de algumas ideias-chave consubstanciadas em obras de
António Hespanha e Romero Magalhães.
António Hespanha carreou uma nova visão do sistema político da época moderna a
partir de uma leitura antropológica da história do direito. Destacamos como matrizes
operatórias da sua produção teórica as seguintes: a concepção policêntrica do exercício do
poder vertida numa diversidade de corpos (instituições) dotados de capacidades de
autogoverno (jurisdição) e a pluralidade de ordens normativas (formais e informais, letradas e
rústicas).
Por sua vez, Romero Magalhães identificou vários protagonistas do poder em exercício
(mando) destacando as câmaras nas quais o monarca delegara múltiplas competências de
governo das populações dada incapacidade ou o desinteresse de exercer o mando no território.
O bom desempenho dos municípios no exercício defesa de interesses régios, bem como de
diversos protagonistas sociais, explicam a transposição da instituição municipal para o espaço
ultramarino, problemática igualmente tratada por Romero Magalhães. Cabe igualmente a este
historiador a caracterização das “oligarquias dos nobres da governança” bem como dos
mecanismos e processos (eleitorais) da sua formação, consolidação e renovação social.
A linha de investigação municipalista, sobretudo no que concerne aos perfis sociais das
governanças concelhias, haveria de se configurar como uma das mais produtivas nas últimas
décadas no que concerne ao estudo de redes de poder que competem pelo controlo e
distribuição de recursos materiais, institucionais e simbólicos como atesta a produção
historiográfica de Avelino Meneses, Francisco Ribeiro da Silva, José Viriato Capela, Damião
Rodrigues, Sérgio Soares, Teresa Fonseca... Os estudos atrás mencionados evidenciam uma
multiplicidade de estratégias sociais, tanto ao nível das conexões sociais locais como da
articulação com o poder régio. No que concerne a este último campo, cumpre evidenciar a
maior eficácia do mando de oligarquias fidalgas que competiam pela obtenção de cargos
régios de maior valia económica e simbólica como, evidenciou Sérgio Soares na
caracterização das vereações coimbrãs vigentes a partir da terceira década do século XVIII.
A historiografia municipalista têm-se centrada sobretudo no município régio. De maior
complexidade, no que concerne aos jogos de poder, configuram-se os municípios tutelados
por casas senhoriais. Como demonstrou Mafalda Cunha Soares em estudo dedicado à Casa de
Bragança, os municípios tutelados por esta instituição foram palco de actuação de redes
clientelares compostas por uma multiplicidade de oficiais providos por aquela instituição que
desenvolveriam as suas carreiras sobrepondo os interesses da casa aos das comunidades
locais.
Municípios e senhorios atraíam outras redes sociais que importa conhecer melhor, tanto
na sua configuração específica como na articulação com outros agentes de poder, caso da
estrutura militar das Ordenanças ou dos grupos de contratadores de rendas e de cobrança de
impostos régios e municipais.
A rede de poderes urbanos complexifica-se com outras instituições de índole civil em
que se destacam as misericórdias e a casa dos 12 ou dos 24.
As misericórdias têm sido estudadas como patamares de ascensão social, bem como de
consolidação de estatutos, processando-se a sua articulação com as câmaras sobretudo ao
nível da circulação de elites entre o exercício de cargos de vereadores e provedores.
Praticamente ignoradas pela historiografia mais recente, encontram-se as sedes do
poder institucionalizado do povo: a casa dos 24. No que concerne a esta instituição, conhecese apenas a representação dos mesteres nas vereações e algum protagonismo dos juízes do
povo. Importa, entretanto, estudar este órgão representativo da classe obreira citadina na sua
estrutura interna bem como no exercício da sua função de mediação entre elites urbanas e o
povo.
A paleta dos poderes urbanos e dos pontos de articulação de redes sociais desdobra-se
ainda em entidades eclesiásticas – conventos, cabidos, sés – e instituições de ensino
particularmente vocacionadas para a formação das elites habilitados para os diversos lugares
de poder.
O conhecimento da conexão entre os diversos poderes urbanos e sobretudo dos agentes
articuladores do sistema aguarda constitui-se, na actualidade, como um desafio para os
historiadores.
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