RESUMO Cortina de fumaça: o que se esconde por trás da produção de agrocombustíveis 1 Sumário Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3 O mercado da cana-de-açúcar ............... 3 Os atores da cadeia produtiva . . . . . . . . . . . . . . . . 5 O impacto local da cana-de-açúcar . . . . . . . . 5 A proposta de zoneamento para a cana-de-açúcar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10 Conclusões e recomendações .............. 11 Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13 Cortina de fumaça: o que se esconde por trás da produção de agrocombustíveis Rua Morais e Vale, 111 / 5º andar – Centro CEP 20021-260 Rio de Janeiro – RJ – Brasil Tel.: +55 21 2189 4600 Fax: +55 21 2189 4612 [email protected] www.actionaid.org.br © 2010, ActionAid AUTORES Celso Marcatto, Sergio Schlesinger e Winfridus Overbeek EDIÇÃO Glauce Arzua e Maira Martins REVISÃO Gabriela Delgado PROJETO GRÁFICO Mais Programação Visual FOTO DA CAPA © André Telles/ActionAid/Brasil 2 Introdução A expansão recente da monocultura de cana-de-açúcar para fins de produção de combustível, assim como as perspectivas para o futuro, vem estimulando um intenso debate em torno de seus impactos sociais e ambientais. O relatório Cortina de Fumaça: o que se esconde por tras da produção de agrocombustiveis buscou analisar a cadeia da produção do etanol à luz de dois aspectos desse debate. O primeiro é o dos impactos da expansão territorial da cana-de-açúcar sobre a produção de alimentos. O debate em torno das ameaças à soberania e à segurança alimentar adquiriu especial relevo a partir da chamada crise global dos alimentos, em 2007, com a disparada dos preços das principais commodities agrícolas comercializadas em nível internacional. Passaram a causar preocupação não só o crescimento da utilização da cana-de-açúcar como combustível automotivo, mas principalmente a destinação do milho, nos Estados Unidos, para este mesmo fim. O segundo aspecto diz respeito às mudanças climáticas em curso. Contrariando a alegação de governantes e empresários de que os agrocombustíveis reduzem as emissões de gás carbônico, o que contribuiria para a redução das emissões totais de gases do efeito estufa, muitas instituições da sociedade civil e do meio científico apontam as diversas fontes de emissão presentes no processo de produção do etanol, como a queima da palha da cana e o uso de agrotóxicos, também como fortes contribuintes para o aquecimento global. E, ainda, que a cultura da cana deslocaria atividades agropecuárias para outros territorios, ameacando importantes biomas , até então preservados, como a Amazônia e o Cerrado. O mercado da cana-de-açúcar A cana-de-açúcar é responsável por cerca de 70% de todo o açúcar produzido no mundo. O Brasil é o seu maior produtor mundial. Nos últimos anos, a produção do país vem correspondendo a cerca de um terço do total colhido em todo o mundo. A cultura da cana ocupa cerca de 10% da superfície agrícola do país. A produção vem apresentando expansão acelerada nos últimos anos. A estimativa para a safra de 2010/11, segundo a Companhia Nacional e Abastecimento (Conab), é de uma área plantada superior a 8 milhões de hectares, com crescimento de 9,2% da superfície cultivada. A produção prevista é de 664 milhões de toneladas, representando aumento de 10% sobre o ano anterior. Deste total, cerca de 90% deverão ser produzidos na região Centro-Sul (regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste) e os 10% restantes nas regiões Norte e Nordeste. A região geoeconômica do Centro-Sul brasileiro responde por cerca de 90% da produção de cana-de-açúcar. O açúcar Maiores produtores mundiais de açúcar, nesta ordem, Brasil, Índia, China, Tailândia, México e Estados Unidos respondem por cerca de 60% da produção mundial. 3 Produção mundial de açúcar – mil ton. País/safra* Brasil 2006/2007 2007/2008 2008/2009 31.450 31.600 31.850 China 11.497 14.636 12.337 Índia 30.780 28.630 15.960 5.633 5.852 5.260 México Tailândia 6.720 7.820 7.200 Estados Unidos 3.119 3.113 3.010 38.851 39.271 38.146 128.050 130.922 113.763 Outros Total * O USDA considera como ano-safra o período de outubro a setembro de cada ano. Por isto, os números referentes ao Brasil são ligeiramente diferentes daqueles divulgados pela Conab, referentes à produção brasileira. Fonte: USDA (www.fas.usda.gov/psdonline), acesso em 21/9/10. Brasil: Produção de açúcar – mil ton. Região/Safra Centro-Sul Norte-Nordeste Brasil 2007/08 2008/09 2009/10 26.201 27.074 28.747 4.826 4.546 4.328 31.027 31.620 33.075 Fonte: Conab O comércio mundial de açúcar movimenta cerca de 50 milhões de toneladas, equivalentes a um terço da produção global. O mercado internacional deste produto é fortemente controlado e protegido em diversos países por meio de subsídios e barreiras às importações. Derrotada em painel na OMC contra seus subsídios, a União Européia anunciou em junho de 2005, planos para redução dos preços do açúcar pagos aos produtores em aproximadamente 40%, ao longo de um período de dois anos, e da produção, em mais de um terço, até 2012. A expectativa da indústria brasileira de açúcar é de que, com o fim do subsídio europeu, o Brasil ganhe 50% dos mercados que se abrirão. O etanol As vendas de etanol no mercado interno em 2009 somaram cerca de 22,8 bilhões de litros e as exportações 3,3 bilhoes de litros. Brasil: Produção, consumo interno e exportação de etanol Fonte: Secex, ANP, MAPA, em BNDES (2010). 4 Os atores da cadeia produtiva As empresas O setor sucroalcooleiro sempre esteve, majoritariamente, em mãos de empresas de capital nacional. Porém, principalmente a partir da última década, o processo de aquisições, fusões e interna-cionalização das empresas do setor vem apresentando forte aceleração. Com isso, todo o setor está hoje nas mãos de cerca de 150 empresas. Em 2010, de acordo com estudo da Dextron Management Consulting, quatro dos cinco maiores grupos sucroalcooleiros que atuam no Brasil – Cosan, Louis Dreyfus, Bunge e Guarani – possuem pelo menos 50% de controle estrangeiro. Empresas de diversos países atuam no setor sucroalcooleiro brasileiro, segundo a Dextron, como China (Noble), Espanha (Abengoa), Estados Unidos (ADM, Bunge), França (Louis Dreyfus, Tereos), Holanda (Shell), Inglaterra (British Petroleum, Clean Energy Brazil) e Japão (Mitsubishi, Sojitz). Os produtores As usinas brasileiras trabalham, em média, com 80% da cana proveniente de terras próprias, arrendadas ou de acionistas e companhias agrícolas com alguma vinculação às usinas. Os 20% restantes são fornecidos por cerca de 60 mil produtores independentes. O Brasil tem cerca de 370 indústrias de açúcar e etanol e o estado de São Paulo concentra 62% da moagem das usinas no país. Além de produzirem a maior parte da cana que processam, as empresas buscam converter a este plantio toda a área vizinha às usinas, por razões de logística. Na safra 2007/08, a distância média dos canaviais da agroindústria não passava de 23,2 quilômetros, e 86,6% deles estavam em um raio de até 40 quilômetros da agroindústria no Centro-Sul. O impacto local da cana-de-açúcar © ANDRÉ TELLES/ACTIONAID/BRASIL A perspectiva da expansão da monocultura de cana-de-açúcar representa ameaças a questões socioecomicas e ambientais – o afastamento dos pequenos produtores da terra, o desemprego, a questão da segurança alimentar, a questão da saúde dos que trabalham na colheita o empobrecimento do solo, a poluição, entre outros. Muncipios produtores nos estados de maior expansao atualmente, Rubiataba, em Goias; Mirassol d’Oeste e Lambari d’Oeste, em Mato Grosso; e a regiao de Ribeirão Preto, em São Paulo, exemplificam bem essas contradições. Cultivo de cana avanca sobre produção de alimentos 5 A concorrência com a produção de alimentos O município de Rubiataba está localizado no vale de São Patrício, na região central do estado de Goiás, em uma área de 756 km 2 . Os agricultores familiares do municipio têm, na maioria dos casos, sua subsistência assegurada através da criação de gado leiteiro. Além disso, plantam para sua subsistência alimentos como arroz, feijão e mandioca. Possuem hortas onde podem colher bananas, mangas e outras frutas e também criam frangos e suínos. Para complementar a alimentação animal, plantam forrageiras e cana-deaçúcar. A tabela a seguir mostra a produção de arroz, feijão, milho e cana-de-açúcar em Rubiataba nos anos recentes. Produção de cana-de-açúcar, arroz, feijão e milho em Rubiataba 1980 Cana-de-açúcar 2000 2008 Produção (t) Área (ha) Produção (t) Área (ha) Produção (t) Área (ha) 117 7 157.500 2.100 560.000 7.000 180 Arroz 5.337 3.936 3.600 2.000 306 Feijão 1.110 3.432 200 290 - - Milho 14.586 4.202 9.600 3.000 3.960 800 Total 3 grãos 21.033 11.570 13.400 5.290 4.266 980 Fonte: Pesquisa Agrícola Municipal, IBGE. Em Mirassol d’Oeste e Lambari d’Oeste, municípios ao sudoeste do estado de Mato Grosso, a cana-de-açúcar ocupa áreas onde estavam estabelecidos anteriormente agricultores familiares, que passaram a trabalhar nas atividades canavieiras, juntamente com imigrantes da região Nordeste do Brasil. A tabela a seguir mostra a expansão da cana-de-açúcar nos municípios onde estas usinas se estabeleceram. Produção de cana-de-açúcar, arroz, feijão e milho em Lambari d’Oeste 1990* 2000 2008 Prod. (t) Área (ha) Prod. (t) Área (ha) Prod. (t) Área (ha) Cana-de-açúcar - - 343.200 4.800 942.799 11.350 Arroz - - 720 400 300 100 Feijão - - 24 80 32 45 Milho - - 1.320 600 1.224 360 Total 3 grãos - - 2.064 1.080 1.556 505 * O município de Lambari d’Oeste foi criado em 1991. Produção de cana-de-açúcar, arroz, feijão e milho em Mirassol d’Oeste 1990 Cana-de-açúcar Prod.(t) Área (ha) 2000 Prod.(t) 2008 Área (ha) Prod.(t) Área (ha) 133.042 2.181 - - 498.894 5.477 Arroz 2.400 1.500 1.998 1.110 3.000 1.000 Feijão 1.320 2.200 486 1.100 360 600 Milho 5.000 2.500 5.850 1.950 9.060 3.200 Total 3 grãos 8.720 6.200 8.334 4.150 12.420 4.800 Fonte: Pesquisa Agrícola Municipal, IBGE. Nas regiões estudadas, da mesma forma que no estado de São Paulo, os preços ao consumidor destes alimentos podem ter sofrido aumentos expressivos em função dos custos de transporte. 6 © ANDRÉ TELLES/ACTIONAID/BRASIL A valorização das terras planas pela facilidade de mecanização desloca agricultores familiares e desemprega cortadres Encarecimento e perda da terra, e deslocamento da produção de alimentos A febre da produção de etanol da cana-de-açúcar é apontada como a principal responsável pela expressiva valorização das terras que ocorreu, sobretudo em 2007, em diversas regiões do país. As regiões que tiveram maior valorização foram justamente aquelas em que a expansão da cana-de-açúcar vem ocorrendo com maior intensidade: Sudeste (17%), Centro-Oeste (12,2%) e Sul (11,64%). Segundo a publicação Agrianual (2009), do Instituto FNP, as terras com maior potencial de valorização são aquelas das novas fronteiras agrícolas e as com aptidão para agroenergia e reflorestamento. O anuário aponta também o interesse crescente de investidores estrangeiros, concentrado especialmente nas áreas de fronteira agrícola das regiões Norte e Nordeste, com vistas a especulação imobiliaria. As regiões próximas às usinas em operação ou em construção vêm apresentando grande valorização. Em um raio de 30 quilômetros próximo a elas, o preço da terra já é até quatro vezes superior ao verificado antes da chegada das usinas. A valorização das terras no Brasil e, em especial, nas principais áreas de expansão da cana-de-açúcar, já está ocasionando o deslocamento não só de atividades agrícolas e pecuárias de grande porte, mas também daquelas desenvolvidas pela agricultura familiar. Todas as grandes fazendas de leite do estado de Sao Paulo, por exemplo, que produziam cerca de 10 mil litros por dia, migraram para a cana. A troca foi muito vantajosa para a cultura sucroalcooleira, porque a cana tomou o espaço de grandes pastos, terras planas, logisticamente bem posicionadas. Maurício Lima Verde, presidente do Sindicato Rural de Bauru e vice-presidente da Federação da Agricultura do Estado de São Paulo, explica que os pecuaristas do estado têm optado por arrendar suas áreas para as usinas ou plantar diretamente a cana-de-açúcar em função da rentabilidade até três vezes maior. Concentração da terra e do mercado O avanço do plantio da cana-de-açúcar em São Paulo vem provocando também o aumento da concentração da produção nas mãos de usinas e grandes fornecedores, e eliminando pequenos produtores. Segundo estudo promovido por Pedro Ramos, professor e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apenas 25% da cana moída pelas usinas é, hoje, proveniente de fornecedores independentes. Os demais 75% são produzidos pelas próprias usinas. Outro problema é a pressão resultante da expansão do cultivo 7 da cana-de-açúcar em terras dos próprios assentados. Em ambos os assentamentos Margarida Alves e Rosalina Nunes, em Mirassol d’Oeste, Mato Grosso, houve tentativas da Cooperativa de alugar terras para este fim: “Nós tivemos que ir ao INCRA para dizer que não aceitávamos essa ação. Porque se meu vizinho arrenda o lote para plantar cana, com certeza o outro vai arrendar e eu vou ficar espremido”. (José Paes Floriana, pequeno produtor no assentamento Margarida Alves, 19/08/2009). © ANDRÉ TELLES/ACTIONAID/BRASIL Em Rubiataba, Goias, a empresa Cooper-Rubi conta hoje com apenas 900 hectares de terras próprias. O restante do cultivo, de 16.100 hectares, é realizado em terras arrendadas a 181 agricultores, chamados pela empresa de “parceiros”. Os contratos podem ser firmados por um, dois ou até três ciclos da cana-de-açúcar. Cada um destes ciclos dura entre cinco e seis anos, somados o período de cultivo e os quatro a cinco anos de colheitas. No início do contrato, pode ser acordado pagamento antecipado, correspondente a um ou mais anos. A opção de um agricultor pelo arrendamento de sua propriedade é uma decisão que dificilmente pode ser revertida. Ao receber antecipadamente parte do pagamento, o agricultor, ao final do contrato, normalmente não dispõe de recursos para retornar a sua propriedade. Além disso, a remoção de pomares, hortas, e muitas vezes das próprias residências, torna a possibilidade de retorno à propriedade ainda mais remota, fazendo com que Arrendatários perdem espaço usado para criação todos os contratos de arrendamento sejam de gado e produção de alimentos sistematicamente renovados. “Os usineiros fazem a cabeça da pessoa, de certa forma, porque se ela não tem a cabeça no lugar, eles a tiram de lá. Eles dizem que eles vão ganhar entre R$ 1.000 e R$ 1.200 reais, que é melhor do que “se matar” trabalhando. A pessoa faz a conta só daquele salário, não lembra que ela tem um frango, uma galinha, que plantou um canteiro de alface, quiabo, tomate, que não precisa comprar no mercado. Não considera que tem que pagar água, energia, aluguel. Eles só pensam em ganhar R$ 1.200 no mês”. (Adilson Alves Pimenta, pequeno agricultor, 22/6/2009). Poluição ambiental A cultura da cana-de-açúcar é a terceira maior consumidora de agrotóxicos no Brasil, respondendo em 2009 por 8,2% do valor das vendas totais. A cultura canavieira apresenta maior risco de contaminação de águas subterrâneas por lixiviação de herbicidas. Um problema ambiental de primeira grandeza é o da excessiva e indiscriminada utilização da vinhaça in natura como fertilizante no processo denominado fertigação que traz como risco a poluição tanto de águas superficiais (cursos d’água e nascentes) como de águas subterrâneas (lençóis freáticos e aquíferos), além de progressiva salinização dos solos. Outros principais impactos ambientais do cultivo da cana-de-açúcar, no que se refere ao uso do solo, são a compactação do solo através do tráfego de máquinas pesadas, durante o plantio, tratos culturais e colheita; o assoreamento de corpos d’água, devido à erosão do solo em áreas de renovação de lavoura; a redução da biodiversidade, causada pelo desmatamento e pela implantação de monocultura canavieira; e o arrastamento de partículas de solo junto com defensivos agrícolas, matéria orgânica e nutrientes químicos, causando assoreamento e poluição de rios, lagos e nascentes. Além dos danos ambientais, pode 8 ter ainda como consequência a redução do potencial das hidroelétricas e da captação de água para o abastecimento público. Os agricultores familiares que permanecem em suas terras são diretamente atingidos por diversos problemas ambientais provocados pela produção da cana-de-açúcar. “Antes do plantio de cana do outro lado do córrego, eu plantava arroz, plantava e colhia feijão, milho. Depois que começou o plantio de cana do outro lado do córrego, a 200 metros da minha propriedade, o avião dava a volta em cima da minha propriedade para jogar o agrotóxico na cana, e caía também na minha propriedade. Daí, não consegui mais plantar. Eu plantava arroz, o arroz saía bonito, crescia, mas não produzia. Às vezes eu pensava que era culpa do sol, mas chovia! E não produzia. Foram cinco anos assim, já não dava para produzir mais como antes. Desisti de plantar. Até a verdura que plantava na beira da casa e que ficava mais de mil metros longe do plantio da cana, não dava mais”. (Roberto Barbosa Mussato, pequeno produtor no assentamento Margarida Alves, 19/8/2009). As condições dos trabalhadores da cana e o desemprego © ACTIONAID/BRASIL O descumprimento das leis trabalhistas e de acordos e convenções coletivas de trabalho marcam as relações de trabalho do setor. A questão do trabalho degradante, muitas vezes comparável às condições do trabalho escravo, está sendo “modernizada” pelos empresários da cana, interessados em implantar a mecanização da atividade a pleno vapor, sem que se construa uma alternativa que gere oportunidades de conversão desses trabalhadores explorados em agricultores familiares. Em Rubiataba, Goias, a usina Cooper-Rubi está mecanizando gradualEm busca de maior produtividade, usinas dão mente o corte da cana. De acordo com seu bonus a cortadores que colhem acima de seis toneladas/dia representante, o número de trabalhadores na colheita irá, em breve, reduzir-se de 800 para 300. Esta redução radical ocorre em todos os estados produtores, com maior velocidade nas regiões planas. Os agricultores familiares estão preocupados com este processo aparentemente irreversível e destacam como alternativa a reforma agrária: “É muito complicado. O governo tem que criar outras opções. E uma das opções é a reforma agrária. O trabalhador rural vai trabalhar para ele mesmo, com infraestrutura e condições para se manter no campo. Se mecanizar tudo hoje vai ser um caos. A fome vai assolar o povo de forma assustadora”. (Carlos Arriel, pequeno agricultor Rubiataba, 22/6/2009). A cana-de-açúcar e o aquecimento global Em âmbito mundial, a produção de energia e as atividades industriais são as maiores responsáveis pelas emissões de gases do efeito estufa (GEE), com 26% e 19%, respectivamente, tendo como referência o ano de 2004. Já no Brasil, a principal causa das emissões no país se refere às chamadas “mudanças no uso do solo e atividades florestais”. As emissões decorrentes da produção de energia e das atividades industriais representam somente 16% e 2%, respectivamente. Desmatamento e incêndios das florestas brasileiras representam a maior parcela das emissões totais nacionais, colocando o Brasil na posição de quarto maior emissor de GEE do mundo. Embora não quantificável em termos de emissões, a expansão da cultura da cana-de-açúcar é responsável por parte do aumento da presença do gado na Amazônia com o consequente desmatamento e a emisão de gases. 9 A proposta de zoneamento para a cana-de-açúcar © ANDRÉ TELLES/ACTIONAID/BRASIL Em setembro de 2009, o Ministério da Agricultura lançou o projeto do chamado Zoneamento Agroecológico da Cana-de-Açúcar (ZAE). Através dele, pretende, acima de tudo, certificar o etanol como um produto de exportação que não provocará desmatamento. Porem receiase que a expansão dos canaviais, mesmo que em áreas demarcadas, deslocará outras atividades agrícolas e pecuárias para as zonas de exceção do zoneamento. Além disso, não há garantias reais de que os demais biomas estejam protegidos do desmatamento e da contaminação por agrotóxicos, a exemplo do Cerrado, área de grande diversidade biológica, mas ainda pouco protegida. Finalmente, o projeto não estabelece restrições para as usinas existentes, nem para novos projetos que já tenham obtido licença ambiental nas áreas de exceção. Avanço da cana desrespeita limites mínimos estabelecidos, invadindo as margens das rodovias 10 Conclusões e recomendações É possível ressaltar que expansão do cultivo da cana-de-açúcar tem provocado uma série de problemas e riscos sociais e ambientais: • Ameaças à segurança alimentar devido ao deslocamento de cultivos voltados a produção de alimentos em áreas tradicionalmente utilizadas pela agricultura familiar, substituídos pela ocupação do cultivo da cana. Esta ocupação gera problemas diretamente para os agricultores familiares, que perdem o acesso a seus meios de subsistência por meio de arrendamento de terras, aumento do preço da terra. De maneira indireta, afeta aos consumidores em geral, pois nas regiões de plantio da cana, as fontes de abastecimento se tornam cada vez mais distantes, aumentando o custo do transporte e prejudicando o acesso a alimentos frescos. • A crescente pressão por aquisição de terras, sobretudo daquelas situadas no entorno das usinas produtoras de açúcar e etanol, provocando o deslocamento de famílias de agricultores por meio da venda ou arrendamento das terras a estas mesmas usinas. Cedida a terra, os agricultores tendem a migrar com suas famílias para centros urbanos. Ali, constatam geralmente que os valores recebidos pela terra são insuficientes para manter a vida na cidade, que suas habilidades próprias às atividades do campo dificultam a obtenção de um emprego no meio urbano, e que passam a ter custos com alimentação antes desnecessários porque produziam alimentos. • Relações de trabalho e desemprego. As relações nos canaviais são historicamente marcadas pelo condições degradantes do corte da cana-de-açúcar e por uma antiga luta pela conquista de direitos trabalhistas. Recentemente, com o intuito de evitar a queima da cana e acabar com essa exploração degradante, o processo de modernização do setor traz uma nova faceta: a mecanização do corte e o progressivo desemprego dos cortadores de cana. • Poluição das águas, do ar e isolamento social das comunidades. As famílias que decidem permanecer em suas terras enfrentam problemas como a poluição das águas e do ar, que dificultam a continuidade de sua produção e trazem ameaças diretas à saúde da família. A migração dos vizinhos e a redução dos serviços nessas regiões provoca o isolamento social dos que ficam. • Perda da biodiversidade. O avanço do modelo de produção de etanol baseado na monocultura canavieira contribui fundamentalmente para a perda da biodiversidade e para o dematamento. • Não há garantias de redução das emissões. No caso da cana-de-açúcar, as maiores emissões são decorrentes da queima anual dos canaviais, procedimento habitual na maioria das áreas de cultivo. A queima da palha da cana provoca a destruição sistemática e a degradação de sistemas inteiros, tanto dentro como junto às lavouras canavieiras, além de dar origem a uma intensa poluição atmosférica, prejudicial à saúde, e que afeta não apenas as áreas rurais adjacentes, mas também os centros urbanos mais próximos. A utilização intensiva de agrotóxicos na produção de cana-de-açúcar também contribui para a poluição das águas subterrâneas, e para emissões de CO 2 na atmosfera, mais um indicador da pouca sustentabilidade ambiental dessa cadeia produtiva. 11 A simples substituição de derivados do petróleo por agrocombustíveis sem os cuidados ambientais e sociais necessários não é solução para os problemas causados pela utilização massiva de combustíveis fósseis. A soberania energética no Brasil deve pressupor um modelo de produção e consumo de energia sustentável, produzida de forma descentralizada e que vise o menor impacto sobre o meio ambiente, incluindo os agrocombustíveis como uma das possibilidades desde que compatível com a produção de alimentos, o uso social da terra e os critérios ecológicos para a preservação ambiental. Recomendações • Assegurar que a expansão dos agrocombustíveis não concorra com áreas estrategicamente importantes para a produção familiar de alimentos, tendo em vista a garantia da segurança alimentar nos níveis local, regional e nacional, visando a manutenção dos estoques e a estabilidade dos preços dos alimentos. • Garantir que até 2015 os padrões da cadeia de produção da cana-de-açúcar para agrocombustíveis estejam de acordo com o conceito de energia limpa e sustentável, com a suspensão da prática da queima da cana-de-açúcar para fins de colheita de canaviais, proibição do lançamento de resíduos poluentes como vinhaca e outros nas vias pluviais, redução real de emissão de gases de efeito estufa com a substituição do tipo de combustível usado no transporte da cana-de-açúcar e do etanol; construção de alternativas para pulverização de agrotóxico no cultivo da cana. • Rever o projeto de zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar de modo a conter a expansão destas lavouras sobre a produção de alimentos; preservar todos os biomas relevantes; criar mecanismos de mensuração dos impactos indiretos da expansão da cana-de-açúcar, tais como aumento do preço das terras e deslocamento de populações e lavouras. • Promover, por iniciativa conjunta do poder público e das empresas do setor, a reconversão dos trabalhadores no corte da cana para outras atividades produtivas/ profissionais e fortalecer políticas de incentivo a agricultura familiar como acesso a terra, créditos e assistência técnica. • Melhorar as condições de trabalho no corte da cana, elevando o controle dos trabalhadores sobre sua produção e promovendo fiscalização. • Regular e limitar a compra de terra para especulação fundiária por capital nacional e estrangeiro, respeitando a função social da terra estabelecida na Constituição brasileira. • Monitorar os impactos sociais e ambientais dos agrocombustíveis – tais como o efeito dos resíduos poluentes sobre a saúde dos trabalhadores; ameaça a qualidade dos recursos hídricos; concorrência com áreas de produção de alimentos; redução de espaço de cultivos de itens da dieta básica, perda de terras e empobrecimento dos agricultores familiares, especialmente as mulheres – com vistas a desenvolver medidas para corrigir seus efeitos negativos. 12 Referências bibliográficas AGRAFNP. Anualpec 2009. Anuário da pecuária brasileira. AgraFNP, 2009. . Agrianual 2009. Anuário da agricultura brasileira. AgraFNP, 2009. ALVES, F. Porque morrem os cortadores de cana? São Paulo, Saúde e Sociedade – vol 15, n. 3, p. 90-98, set-dez 2006. ANDEF. Mercado de defensivos agrícolas na América do Sul: desafios e oportunidades. Apresentação em power-point, 23/8/10. Disponível em http://www.cropworld-southamerica.com/c/document_library/get_file?uuid=565cbdf4969a-453f-b14e-dfdd0006557f&groupId=1126576, acesso em 09/09/10. BARTHOLOMEU, D. Análise das emissões de GEE, ameaças e oportunidades para o setor agropecuário brasileiro. Disponível em www.cepea.esalq.usp.br/pdf/DanielaBacchi08.pdf, acesso em 14/9/09. BANCO CENTRAL. Anuário Estatístico do Crédito Rural, 2009. Banco Central do Brasil, 2010. BNDES. O setor sulcroalcooleiro em 2008. Informe setorial, n. 17, abril de 2010. CÂMARA, G.M.; OLIVEIRA, E.A. Produção da cana-de-açúcar. Piracicaba, ESALQ/USP, Departamento de Agricultura, FEALQ, 1993. CARNEIRO, V; STOCK, L. Sistemas de produção de leite no Brasil. Panorama do Gado de Leite Online. Ano 2. n. 14. Centro de Inteligência do Leite CILeite. Embrapa Gado de Leite e Secretaria de Estado de Agricultura, Pecuária e Abastecimento de Minas Gerais, 28/12/2007. CONAB. Avaliação da Safra Agrícola de Cana-de-Açúcar. Agosto de 2010. . Perfil do Setor do Açúcar e do Álcool no Brasil, Situação Observada em Novembro de 2007. Brasília. Conab, 2008. CONSEA. Parecer sobre zoneamento agroecológico e relações de trabalho na produção de biocombustíveis. Texto aprovado na reunião do CDES de 27.08.2008. CORDEIRO, A. Etanol para alimentar carros ou comida para alimentar gente. In: Impactos da indústria canavieira no Brasil. Plataforma BNDES/IBASE, 2008. DIEESE. Desempenho do setor sucroalcooleiro brasileiro e os trabalhadores. Estudos e Pesquisas, ano 3, n. 3. DIEESE, 2007. EMBRAPA e UNICAMP. Aquecimento global e a nova geografia da produção agrícola no Brasil. Agosto de 2008. HASSUDA, S. Impactos da infiltração da vinhaça da cana no Aqüífero Bauru. 1989. Tese (Mestrado). Instituto de Geociência – USP. São Paulo – SP. HEINST, A.C. Pioneiros do Século XX: Memória e Relatos Sobre a Ocupação da Cidade de Mirassol D’oeste. Dissertação (Mestrado em História) Universidade Federal de Mato Grosso, 2003. IBGE. Censo Agropecuário 2006. Brasil, Grandes Regiões e Unidades da Federação. IBGE, 2009. LUIZ, A.J.B.; NEVES, M.C.; DYNIA, J.F. Implicações potenciais na qualidade das águas na região metropolitana de Campinas, SP. EMBRAPA, 2004. MAPA. Projeções do Agronegócio. Brasil, 2009/10 a 2019/20. AGE/MAPA, Fevereiro de 2010. MCT. Inventário brasileiro das emissões e remoções antrópicas de gases de efeito estufa. Informações gerais e valores preliminares. Ministério da Ciência e Tecnologia, 2009. OLIVETTE, M., NACHILUK, K. e FRANCISCO, V. Análise comparativa da área plantada com cana-de-açúcar frente aos principais grupos de culturas nos municípios paulistas, 1996-2008. Informações Econômicas, São Paulo, v. 40, n. 2, fev. 2010. ORPLANA. Jornal Orplana, edição 165, ano 16, jan./fev. 2009. PINO, F. Análise Preliminar de um Censo Agropecuário: projeto LUPA no Estado de São Paulo. Informações Econômicas, São Paulo, v. 39, n. 7, jul. 2009. PRADO JR., C. História Econômica do Brasil. São Paulo, Brasiliense, 26ª ed. 1976. SCHLESINGER, S. Lenha nova para a velha fornalha – A febre dos agrocombustíveis. Rio de Janeiro, FASE, 2008. SCHLESINGER, S. e NORONHA, S. O Brasil está nu – O avanço da monocultura da soja, o grão que cresceu demais. Rio de Janeiro, FASE, 2006. SOARES, L. et. al. Mitigação das emissões de gases do efeito estufa pelo uso de etanol da cana-de-açúcar produzido no Brasil. Embrapa Agrobiologia, Circular Técnica 27. Rio de Janeiro, abril de 2009. SOARES, W. e PORTO, M. Aspectos teóricos e práticos associados à decisão de uso de agrotóxicos: uma abordagem integrada entre a agricultura, meio ambiente e saúde pública. Rio de Janeiro, FIOCRUZ, 2008. SOARES, J., SOUZA, C. e PIERANGELI, M. Nascentes da sub-bacia hidrográfica do córrego Caeté/MT: estudo do uso, topografia e solo como subsídio para gestão. Revista Brasileira de Gestão e Desenvolvimento Regional. v. 6, n. 1, p. 22-51, jan-abr/2010, Taubaté, SP, Brasil. SZMRECSÁNYI, T. Tecnologia e degradação ambiental: o caso da agroindústria canavieira no Estado de São Paulo. Informações Econômicas. 1994. SZMRECSÁNYI, T.; RAMOS, P.; RAMOS FILHO, L. O. e VEIGA FILHO, A. A. Dimensões, riscos e desafios da atual expansão canavieira. Brasília, EMBRAPA., 2008. TSUNECHIRO et. al. Valor da produção agropecuária e florestal do Estado de São Paulo em 2009. Informações econômicas, São Paulo, v. 40, n. 5, maio de 2010. USDA. Sugar: World Production, Supply and Distribution. United States Department of Agriculture. maio 2010. ZORATTO, A. C. Principais impactos da alta paulista. II Fórum Ambiental da Alta Paulista. Tupã, São Paulo. out. 2006. 13