RESUMO
Cortina de fumaça:
o que se esconde por trás da
produção de agrocombustíveis
1
Sumário
Introdução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 3
O mercado da cana-de-açúcar
...............
3
Os atores da cadeia produtiva . . . . . . . . . . . . . . . . 5
O impacto local da cana-de-açúcar . . . . . . . . 5
A proposta de zoneamento
para a cana-de-açúcar . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 10
Conclusões e recomendações
..............
11
Referências bibliográficas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Cortina de fumaça:
o que se esconde por trás da
produção de agrocombustíveis
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© 2010, ActionAid
AUTORES
Celso Marcatto, Sergio Schlesinger
e Winfridus Overbeek
EDIÇÃO
Glauce Arzua e Maira Martins
REVISÃO
Gabriela Delgado
PROJETO GRÁFICO
Mais Programação Visual
FOTO DA CAPA
© André Telles/ActionAid/Brasil
2
Introdução
A expansão recente da monocultura de cana-de-açúcar para fins de produção de combustível, assim como as perspectivas para o futuro, vem estimulando um intenso debate em
torno de seus impactos sociais e ambientais. O relatório Cortina de Fumaça: o que se
esconde por tras da produção de agrocombustiveis buscou analisar a cadeia da produção
do etanol à luz de dois aspectos desse debate. O primeiro é o dos impactos da expansão
territorial da cana-de-açúcar sobre a produção de alimentos. O debate em torno das ameaças à soberania e à segurança alimentar adquiriu especial relevo a partir da chamada crise
global dos alimentos, em 2007, com a disparada dos preços das principais commodities
agrícolas comercializadas em nível internacional. Passaram a causar preocupação não só
o crescimento da utilização da cana-de-açúcar como combustível automotivo, mas principalmente a destinação do milho, nos Estados Unidos, para este mesmo fim. O segundo
aspecto diz respeito às mudanças climáticas em curso. Contrariando a alegação de governantes e empresários de que os agrocombustíveis reduzem as emissões de gás carbônico,
o que contribuiria para a redução das emissões totais de gases do efeito estufa, muitas
instituições da sociedade civil e do meio científico apontam as diversas fontes de emissão
presentes no processo de produção do etanol, como a queima da palha da cana e o uso
de agrotóxicos, também como fortes contribuintes para o aquecimento global. E, ainda,
que a cultura da cana deslocaria atividades agropecuárias para outros territorios,
ameacando importantes biomas , até então preservados, como a Amazônia e o Cerrado.
O mercado da cana-de-açúcar
A cana-de-açúcar é responsável por cerca de 70% de todo o açúcar produzido no mundo.
O Brasil é o seu maior produtor mundial. Nos últimos anos, a produção do país vem
correspondendo a cerca de um terço do total colhido em todo o mundo. A cultura da
cana ocupa cerca de 10% da superfície agrícola do país. A produção vem apresentando
expansão acelerada nos últimos anos. A estimativa para a safra de 2010/11, segundo a
Companhia Nacional e Abastecimento (Conab), é de uma área plantada superior a 8 milhões de hectares, com crescimento de 9,2% da superfície cultivada. A produção prevista é
de 664 milhões de toneladas, representando aumento de 10% sobre o ano anterior. Deste
total, cerca de 90% deverão ser produzidos na região Centro-Sul (regiões Sul, Sudeste e
Centro-Oeste) e os 10% restantes nas regiões Norte e Nordeste. A região geoeconômica do
Centro-Sul brasileiro responde por cerca de 90% da produção de cana-de-açúcar.
O açúcar
Maiores produtores mundiais de açúcar, nesta ordem, Brasil, Índia, China, Tailândia, México
e Estados Unidos respondem por cerca de 60% da produção mundial.
3
Produção mundial de açúcar – mil ton.
País/safra*
Brasil
2006/2007
2007/2008
2008/2009
31.450
31.600
31.850
China
11.497
14.636
12.337
Índia
30.780
28.630
15.960
5.633
5.852
5.260
México
Tailândia
6.720
7.820
7.200
Estados Unidos
3.119
3.113
3.010
38.851
39.271
38.146
128.050
130.922
113.763
Outros
Total
* O USDA considera como ano-safra o período de outubro a setembro de cada ano.
Por isto, os números referentes ao Brasil são ligeiramente diferentes daqueles
divulgados pela Conab, referentes à produção brasileira.
Fonte: USDA (www.fas.usda.gov/psdonline), acesso em 21/9/10.
Brasil: Produção de açúcar – mil ton.
Região/Safra
Centro-Sul
Norte-Nordeste
Brasil
2007/08
2008/09
2009/10
26.201
27.074
28.747
4.826
4.546
4.328
31.027
31.620
33.075
Fonte: Conab
O comércio mundial de açúcar movimenta cerca de 50 milhões de toneladas, equivalentes
a um terço da produção global. O mercado internacional deste produto é fortemente
controlado e protegido em diversos países por meio de subsídios e barreiras às importações. Derrotada em painel na OMC contra seus subsídios, a União Européia anunciou em
junho de 2005, planos para redução dos preços do açúcar pagos aos produtores em aproximadamente 40%, ao longo de um período de dois anos, e da produção, em mais de um
terço, até 2012. A expectativa da indústria brasileira de açúcar é de que, com o fim do
subsídio europeu, o Brasil ganhe 50% dos mercados que se abrirão.
O etanol
As vendas de etanol no mercado interno em 2009 somaram cerca de 22,8 bilhões de litros
e as exportações 3,3 bilhoes de litros.
Brasil: Produção, consumo interno e exportação de etanol
Fonte: Secex, ANP, MAPA, em BNDES (2010).
4
Os atores da cadeia produtiva
As empresas
O setor sucroalcooleiro sempre esteve, majoritariamente, em mãos de empresas de
capital nacional.
Porém, principalmente a partir da última década, o processo de aquisições, fusões e interna-cionalização das empresas do setor vem apresentando forte aceleração. Com isso, todo
o setor está hoje nas mãos de cerca de 150 empresas. Em 2010, de acordo com estudo da
Dextron Management Consulting, quatro dos cinco maiores grupos sucroalcooleiros que
atuam no Brasil – Cosan, Louis Dreyfus, Bunge e Guarani – possuem pelo menos 50% de
controle estrangeiro. Empresas de diversos países atuam no setor sucroalcooleiro brasileiro,
segundo a Dextron, como China (Noble), Espanha (Abengoa), Estados Unidos (ADM, Bunge),
França (Louis Dreyfus, Tereos), Holanda (Shell), Inglaterra (British Petroleum, Clean Energy
Brazil) e Japão (Mitsubishi, Sojitz).
Os produtores
As usinas brasileiras trabalham, em média, com 80% da cana proveniente de terras próprias, arrendadas ou de acionistas e companhias agrícolas com alguma vinculação às
usinas. Os 20% restantes são fornecidos por cerca de 60 mil produtores independentes.
O Brasil tem cerca de 370 indústrias de açúcar e etanol e o estado de São Paulo concentra
62% da moagem das usinas no país. Além de produzirem a maior parte da cana que
processam, as empresas buscam converter a este plantio toda a área vizinha às usinas, por
razões de logística. Na safra 2007/08, a distância média dos canaviais da agroindústria não
passava de 23,2 quilômetros, e 86,6% deles estavam em um raio de até 40 quilômetros da
agroindústria no Centro-Sul.
O impacto local da cana-de-açúcar
© ANDRÉ TELLES/ACTIONAID/BRASIL
A perspectiva da expansão da monocultura de cana-de-açúcar representa ameaças a questões socioecomicas e ambientais – o afastamento dos pequenos produtores da terra, o desemprego, a questão da
segurança alimentar, a questão da saúde
dos que trabalham na colheita o empobrecimento do solo, a poluição, entre outros.
Muncipios produtores nos estados de maior expansao atualmente, Rubiataba, em
Goias; Mirassol d’Oeste e Lambari d’Oeste,
em Mato Grosso; e a regiao de Ribeirão
Preto, em São Paulo, exemplificam bem
essas contradições.
Cultivo de cana avanca sobre produção
de alimentos
5
A concorrência com a produção de alimentos
O município de Rubiataba está localizado no vale de São Patrício, na região central do
estado de Goiás, em uma área de 756 km 2 . Os agricultores familiares do municipio têm,
na maioria dos casos, sua subsistência assegurada através da criação de gado leiteiro.
Além disso, plantam para sua subsistência alimentos como arroz, feijão e mandioca.
Possuem hortas onde podem colher bananas, mangas e outras frutas e também criam
frangos e suínos. Para complementar a alimentação animal, plantam forrageiras e cana-deaçúcar. A tabela a seguir mostra a produção de arroz, feijão, milho e cana-de-açúcar em
Rubiataba nos anos recentes.
Produção de cana-de-açúcar, arroz, feijão e milho em Rubiataba
1980
Cana-de-açúcar
2000
2008
Produção
(t)
Área
(ha)
Produção
(t)
Área
(ha)
Produção
(t)
Área
(ha)
117
7
157.500
2.100
560.000
7.000
180
Arroz
5.337
3.936
3.600
2.000
306
Feijão
1.110
3.432
200
290
-
-
Milho
14.586
4.202
9.600
3.000
3.960
800
Total 3 grãos
21.033
11.570
13.400
5.290
4.266
980
Fonte: Pesquisa Agrícola Municipal, IBGE.
Em Mirassol d’Oeste e Lambari d’Oeste, municípios ao sudoeste do estado de Mato
Grosso, a cana-de-açúcar ocupa áreas onde estavam estabelecidos anteriormente agricultores familiares, que passaram a trabalhar nas atividades canavieiras, juntamente com imigrantes da região Nordeste do Brasil.
A tabela a seguir mostra a expansão da cana-de-açúcar nos municípios onde estas usinas
se estabeleceram.
Produção de cana-de-açúcar, arroz, feijão e milho em Lambari d’Oeste
1990*
2000
2008
Prod. (t)
Área (ha)
Prod. (t)
Área (ha)
Prod. (t)
Área (ha)
Cana-de-açúcar
-
-
343.200
4.800
942.799
11.350
Arroz
-
-
720
400
300
100
Feijão
-
-
24
80
32
45
Milho
-
-
1.320
600
1.224
360
Total 3 grãos
-
-
2.064
1.080
1.556
505
* O município de Lambari d’Oeste foi criado em 1991.
Produção de cana-de-açúcar, arroz, feijão e milho em Mirassol d’Oeste
1990
Cana-de-açúcar
Prod.(t)
Área (ha)
2000
Prod.(t)
2008
Área (ha)
Prod.(t)
Área (ha)
133.042
2.181
-
-
498.894
5.477
Arroz
2.400
1.500
1.998
1.110
3.000
1.000
Feijão
1.320
2.200
486
1.100
360
600
Milho
5.000
2.500
5.850
1.950
9.060
3.200
Total 3 grãos
8.720
6.200
8.334
4.150
12.420
4.800
Fonte: Pesquisa Agrícola Municipal, IBGE.
Nas regiões estudadas, da mesma forma que no estado de São Paulo, os preços ao consumidor destes alimentos podem ter sofrido aumentos expressivos em função dos custos
de transporte.
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© ANDRÉ TELLES/ACTIONAID/BRASIL
A valorização das terras planas pela facilidade de mecanização desloca agricultores familiares
e desemprega cortadres
Encarecimento e perda da terra, e deslocamento da produção de alimentos
A febre da produção de etanol da cana-de-açúcar é apontada como a principal responsável pela expressiva valorização das terras que ocorreu, sobretudo em 2007, em diversas
regiões do país. As regiões que tiveram maior valorização foram justamente aquelas em
que a expansão da cana-de-açúcar vem ocorrendo com maior intensidade: Sudeste (17%),
Centro-Oeste (12,2%) e Sul (11,64%). Segundo a publicação Agrianual (2009), do Instituto
FNP, as terras com maior potencial de valorização são aquelas das novas fronteiras agrícolas e as com aptidão para agroenergia e reflorestamento. O anuário aponta também o
interesse crescente de investidores estrangeiros, concentrado especialmente nas áreas
de fronteira agrícola das regiões Norte e Nordeste, com vistas a especulação imobiliaria.
As regiões próximas às usinas em operação ou em construção vêm apresentando grande
valorização. Em um raio de 30 quilômetros próximo a elas, o preço da terra já é até quatro
vezes superior ao verificado antes da chegada das usinas. A valorização das terras no
Brasil e, em especial, nas principais áreas de expansão da cana-de-açúcar, já está ocasionando o deslocamento não só de atividades agrícolas e pecuárias de grande porte, mas
também daquelas desenvolvidas pela agricultura familiar. Todas as grandes fazendas de
leite do estado de Sao Paulo, por exemplo, que produziam cerca de 10 mil litros por dia,
migraram para a cana. A troca foi muito vantajosa para a cultura sucroalcooleira, porque a
cana tomou o espaço de grandes pastos, terras planas, logisticamente bem posicionadas.
Maurício Lima Verde, presidente do Sindicato Rural de Bauru e vice-presidente da Federação da Agricultura do Estado de São Paulo, explica que os pecuaristas do estado têm
optado por arrendar suas áreas para as usinas ou plantar diretamente a cana-de-açúcar em
função da rentabilidade até três vezes maior.
Concentração da terra e do mercado
O avanço do plantio da cana-de-açúcar em São Paulo vem provocando também o aumento
da concentração da produção nas mãos de usinas e grandes fornecedores, e eliminando
pequenos produtores. Segundo estudo promovido por Pedro Ramos, professor e pesquisador da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), apenas 25% da cana moída pelas
usinas é, hoje, proveniente de fornecedores independentes. Os demais 75% são produzidos pelas próprias usinas. Outro problema é a pressão resultante da expansão do cultivo
7
da cana-de-açúcar em terras dos próprios assentados. Em ambos os assentamentos
Margarida Alves e Rosalina Nunes, em Mirassol d’Oeste, Mato Grosso, houve tentativas da
Cooperativa de alugar terras para este fim:
“Nós tivemos que ir ao INCRA para dizer que não aceitávamos essa ação. Porque se
meu vizinho arrenda o lote para plantar cana, com certeza o outro vai arrendar e eu vou
ficar espremido”. (José Paes Floriana, pequeno produtor no assentamento Margarida
Alves, 19/08/2009).
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Em Rubiataba, Goias, a empresa Cooper-Rubi conta hoje com apenas 900 hectares de
terras próprias. O restante do cultivo, de 16.100 hectares, é realizado em terras arrendadas a 181 agricultores, chamados pela empresa de “parceiros”. Os contratos podem ser
firmados por um, dois ou até três ciclos da cana-de-açúcar. Cada um destes ciclos dura
entre cinco e seis anos, somados o período de
cultivo e os quatro a cinco anos de colheitas.
No início do contrato, pode ser acordado pagamento antecipado, correspondente a um ou
mais anos. A opção de um agricultor pelo arrendamento de sua propriedade é uma decisão
que dificilmente pode ser revertida. Ao receber
antecipadamente parte do pagamento, o agricultor, ao final do contrato, normalmente não
dispõe de recursos para retornar a sua propriedade. Além disso, a remoção de pomares,
hortas, e muitas vezes das próprias residências, torna a possibilidade de retorno à propriedade ainda mais remota, fazendo com que
Arrendatários perdem espaço usado para criação
todos os contratos de arrendamento sejam
de gado e produção de alimentos
sistematicamente renovados.
“Os usineiros fazem a cabeça da pessoa, de certa forma, porque se ela não tem a cabeça
no lugar, eles a tiram de lá. Eles dizem que eles vão ganhar entre R$ 1.000 e R$ 1.200
reais, que é melhor do que “se matar” trabalhando. A pessoa faz a conta só daquele
salário, não lembra que ela tem um frango, uma galinha, que plantou um canteiro de
alface, quiabo, tomate, que não precisa comprar no mercado. Não considera que tem
que pagar água, energia, aluguel. Eles só pensam em ganhar R$ 1.200 no mês”. (Adilson
Alves Pimenta, pequeno agricultor, 22/6/2009).
Poluição ambiental
A cultura da cana-de-açúcar é a terceira maior consumidora de agrotóxicos no Brasil,
respondendo em 2009 por 8,2% do valor das vendas totais. A cultura canavieira apresenta maior risco de contaminação de águas subterrâneas por lixiviação de herbicidas.
Um problema ambiental de primeira grandeza é o da excessiva e indiscriminada utilização
da vinhaça in natura como fertilizante no processo denominado fertigação que traz como
risco a poluição tanto de águas superficiais (cursos d’água e nascentes) como de águas
subterrâneas (lençóis freáticos e aquíferos), além de progressiva salinização dos solos.
Outros principais impactos ambientais do cultivo da cana-de-açúcar, no que se refere ao
uso do solo, são a compactação do solo através do tráfego de máquinas pesadas, durante
o plantio, tratos culturais e colheita; o assoreamento de corpos d’água, devido à erosão do
solo em áreas de renovação de lavoura; a redução da biodiversidade, causada pelo
desmatamento e pela implantação de monocultura canavieira; e o arrastamento de partículas de solo junto com defensivos agrícolas, matéria orgânica e nutrientes químicos, causando assoreamento e poluição de rios, lagos e nascentes. Além dos danos ambientais, pode
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ter ainda como consequência a redução do potencial das hidroelétricas e da captação de
água para o abastecimento público. Os agricultores familiares que permanecem em suas
terras são diretamente atingidos por diversos problemas ambientais provocados pela produção da cana-de-açúcar.
“Antes do plantio de cana do outro lado do córrego, eu plantava arroz, plantava e colhia
feijão, milho. Depois que começou o plantio de cana do outro lado do córrego, a 200
metros da minha propriedade, o avião dava a volta em cima da minha propriedade para
jogar o agrotóxico na cana, e caía também na minha propriedade. Daí, não consegui mais
plantar. Eu plantava arroz, o arroz saía bonito, crescia, mas não produzia. Às vezes eu
pensava que era culpa do sol, mas chovia! E não produzia. Foram cinco anos assim, já
não dava para produzir mais como antes. Desisti de plantar. Até a verdura que plantava na
beira da casa e que ficava mais de mil metros longe do plantio da cana, não dava mais”.
(Roberto Barbosa Mussato, pequeno produtor no assentamento Margarida Alves, 19/8/2009).
As condições dos trabalhadores da cana e o desemprego
© ACTIONAID/BRASIL
O descumprimento das leis trabalhistas e de
acordos e convenções coletivas de trabalho
marcam as relações de trabalho do setor.
A questão do trabalho degradante, muitas
vezes comparável às condições do trabalho
escravo, está sendo “modernizada” pelos
empresários da cana, interessados em implantar a mecanização da atividade a pleno
vapor, sem que se construa uma alternativa
que gere oportunidades de conversão desses trabalhadores explorados em agricultores familiares. Em Rubiataba, Goias, a usina
Cooper-Rubi está mecanizando gradualEm busca de maior produtividade, usinas dão
mente o corte da cana. De acordo com seu
bonus a cortadores que colhem acima de seis
toneladas/dia
representante, o número de trabalhadores
na colheita irá, em breve, reduzir-se de 800
para 300. Esta redução radical ocorre em todos os estados produtores, com maior velocidade nas regiões planas. Os agricultores familiares estão preocupados com este processo
aparentemente irreversível e destacam como alternativa a reforma agrária:
“É muito complicado. O governo tem que criar outras opções. E uma das opções é a
reforma agrária. O trabalhador rural vai trabalhar para ele mesmo, com infraestrutura e
condições para se manter no campo. Se mecanizar tudo hoje vai ser um caos. A fome
vai assolar o povo de forma assustadora”. (Carlos Arriel, pequeno agricultor Rubiataba, 22/6/2009).
A cana-de-açúcar e o aquecimento global
Em âmbito mundial, a produção de energia e as atividades industriais são as maiores responsáveis pelas emissões de gases do efeito estufa (GEE), com 26% e 19%, respectivamente, tendo como referência o ano de 2004. Já no Brasil, a principal causa das emissões
no país se refere às chamadas “mudanças no uso do solo e atividades florestais”. As emissões decorrentes da produção de energia e das atividades industriais representam somente
16% e 2%, respectivamente. Desmatamento e incêndios das florestas brasileiras representam a maior parcela das emissões totais nacionais, colocando o Brasil na posição de quarto
maior emissor de GEE do mundo. Embora não quantificável em termos de emissões, a
expansão da cultura da cana-de-açúcar é responsável por parte do aumento da presença
do gado na Amazônia com o consequente desmatamento e a emisão de gases.
9
A proposta de zoneamento
para a cana-de-açúcar
© ANDRÉ TELLES/ACTIONAID/BRASIL
Em setembro de 2009, o Ministério da Agricultura lançou o projeto do chamado Zoneamento
Agroecológico da Cana-de-Açúcar (ZAE). Através dele, pretende, acima de tudo, certificar o
etanol como um produto de exportação que não provocará desmatamento. Porem receiase que a expansão dos canaviais, mesmo que em áreas demarcadas, deslocará outras
atividades agrícolas e pecuárias para as zonas de exceção do zoneamento. Além disso,
não há garantias reais de que os demais biomas estejam protegidos do desmatamento e da
contaminação por agrotóxicos, a exemplo do Cerrado, área de grande diversidade biológica, mas ainda pouco protegida. Finalmente, o projeto não estabelece restrições para as
usinas existentes, nem para novos projetos que já tenham obtido licença ambiental nas
áreas de exceção.
Avanço da cana desrespeita limites mínimos estabelecidos, invadindo as margens das rodovias
10
Conclusões e recomendações
É possível ressaltar que expansão do cultivo da cana-de-açúcar tem provocado uma série
de problemas e riscos sociais e ambientais:
•
Ameaças à segurança alimentar devido ao deslocamento de cultivos voltados a produção de alimentos em áreas tradicionalmente utilizadas pela agricultura familiar, substituídos pela ocupação do cultivo da cana. Esta ocupação gera problemas diretamente
para os agricultores familiares, que perdem o acesso a seus meios de subsistência por
meio de arrendamento de terras, aumento do preço da terra. De maneira indireta, afeta
aos consumidores em geral, pois nas regiões de plantio da cana, as fontes de abastecimento se tornam cada vez mais distantes, aumentando o custo do transporte e
prejudicando o acesso a alimentos frescos.
•
A crescente pressão por aquisição de terras, sobretudo daquelas situadas no entorno das usinas produtoras de açúcar e etanol, provocando o deslocamento de famílias
de agricultores por meio da venda ou arrendamento das terras a estas mesmas usinas.
Cedida a terra, os agricultores tendem a migrar com suas famílias para centros urbanos.
Ali, constatam geralmente que os valores recebidos pela terra são insuficientes para
manter a vida na cidade, que suas habilidades próprias às atividades do campo dificultam a obtenção de um emprego no meio urbano, e que passam a ter custos com alimentação antes desnecessários porque produziam alimentos.
•
Relações de trabalho e desemprego. As relações nos canaviais são historicamente
marcadas pelo condições degradantes do corte da cana-de-açúcar e por uma antiga
luta pela conquista de direitos trabalhistas. Recentemente, com o intuito de evitar a
queima da cana e acabar com essa exploração degradante, o processo de modernização do setor traz uma nova faceta: a mecanização do corte e o progressivo desemprego dos cortadores de cana.
•
Poluição das águas, do ar e isolamento social das comunidades. As famílias que
decidem permanecer em suas terras enfrentam problemas como a poluição das águas
e do ar, que dificultam a continuidade de sua produção e trazem ameaças diretas à
saúde da família. A migração dos vizinhos e a redução dos serviços nessas regiões
provoca o isolamento social dos que ficam.
•
Perda da biodiversidade. O avanço do modelo de produção de etanol baseado na
monocultura canavieira contribui fundamentalmente para a perda da biodiversidade e
para o dematamento.
•
Não há garantias de redução das emissões. No caso da cana-de-açúcar, as
maiores emissões são decorrentes da queima anual dos canaviais, procedimento habitual na maioria das áreas de cultivo. A queima da palha da cana provoca a destruição sistemática e a degradação de sistemas inteiros, tanto dentro como junto às
lavouras canavieiras, além de dar origem a uma intensa poluição atmosférica, prejudicial à saúde, e que afeta não apenas as áreas rurais adjacentes, mas também os
centros urbanos mais próximos. A utilização intensiva de agrotóxicos na produção de
cana-de-açúcar também contribui para a poluição das águas subterrâneas, e para emissões de CO 2 na atmosfera, mais um indicador da pouca sustentabilidade ambiental
dessa cadeia produtiva.
11
A simples substituição de derivados do petróleo por agrocombustíveis sem os cuidados
ambientais e sociais necessários não é solução para os problemas causados pela utilização massiva de combustíveis fósseis. A soberania energética no Brasil deve pressupor um
modelo de produção e consumo de energia sustentável, produzida de forma descentralizada e que vise o menor impacto sobre o meio ambiente, incluindo os agrocombustíveis
como uma das possibilidades desde que compatível com a produção de alimentos, o uso
social da terra e os critérios ecológicos para a preservação ambiental.
Recomendações
•
Assegurar que a expansão dos agrocombustíveis não concorra com áreas estrategicamente importantes para a produção familiar de alimentos, tendo em vista a garantia da
segurança alimentar nos níveis local, regional e nacional, visando a manutenção dos
estoques e a estabilidade dos preços dos alimentos.
•
Garantir que até 2015 os padrões da cadeia de produção da cana-de-açúcar para
agrocombustíveis estejam de acordo com o conceito de energia limpa e sustentável,
com a suspensão da prática da queima da cana-de-açúcar para fins de colheita de
canaviais, proibição do lançamento de resíduos poluentes como vinhaca e outros nas
vias pluviais, redução real de emissão de gases de efeito estufa com a substituição do
tipo de combustível usado no transporte da cana-de-açúcar e do etanol; construção de
alternativas para pulverização de agrotóxico no cultivo da cana.
•
Rever o projeto de zoneamento agroecológico da cana-de-açúcar de modo a conter a
expansão destas lavouras sobre a produção de alimentos; preservar todos os biomas
relevantes; criar mecanismos de mensuração dos impactos indiretos da expansão da
cana-de-açúcar, tais como aumento do preço das terras e deslocamento de populações e lavouras.
•
Promover, por iniciativa conjunta do poder público e das empresas do setor, a reconversão dos trabalhadores no corte da cana para outras atividades produtivas/ profissionais
e fortalecer políticas de incentivo a agricultura familiar como acesso a terra, créditos e
assistência técnica.
•
Melhorar as condições de trabalho no corte da cana, elevando o controle dos trabalhadores sobre sua produção e promovendo fiscalização.
•
Regular e limitar a compra de terra para especulação fundiária por capital nacional e
estrangeiro, respeitando a função social da terra estabelecida na Constituição brasileira.
•
Monitorar os impactos sociais e ambientais dos agrocombustíveis – tais como o efeito
dos resíduos poluentes sobre a saúde dos trabalhadores; ameaça a qualidade dos recursos hídricos; concorrência com áreas de produção de alimentos; redução de espaço
de cultivos de itens da dieta básica, perda de terras e empobrecimento dos agricultores
familiares, especialmente as mulheres – com vistas a desenvolver medidas para corrigir
seus efeitos negativos.
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Referências bibliográficas
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