XXVIII CONGRESSO LATINOAMERICANO DE PSICANÁLISE – FEPAL
Autores: Sandra Aparecida Serra Zanetti* e Isabel Cristina Gomes**
Título: Falhas na Cultura e a Presença da Intersubjetividade Traumática
Instituição:
*Sandra Aparecida Serra Zanetti é doutoranda em Psicologia Clínica pela Universidade de
São Paulo.
**Isabel Cristina Gomes é professora livre-docente em Psicologia Clínica da Universidade
de São Paulo.
Endereço-eletrônico: [email protected]
Este trabalho é parte das reflexões do doutorado em andamento de Sandra Aparecida
Serra Zanetti, apoiado financeiramente pelas agências CAPES e FAPESP.
Organiza
Federación Psicoanalítica de America Latina
Septiembre 23 AL 25 de 2010
Bogotá - Colombia
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Título: Falhas na Cultura e a Presença da Intersubjetividade Traumática
Eixo Temático: Ser ou ser Outro: desafios da alteridade na cultura.
Resumo: O presente trabalho tem como objetivo buscar uma articulação entre as
interfaces da cultura, da subjetividade e da intersubjetividade, reconhecendo a influência
da primeira em relação às outras, no sentido do traumático, já que a cultura na
contemporaneidade, amplamente perpassada pelas condições de existências sócioeconômicas, contempla falhas prejudicando a organização do funcionamento psíquico, no
nível pré-consciente e a construção dos laços intersubjetivos, como Kaës (2005)
reconhece.
Descritores: intersubjetividade; alteridade; laço social; fatores sócio-culturais.
1. Introdução: As experiências da Intersubjetividade
O conceito e a experiência da intersubjetividade, de acordo com Coelho Junior e
Figueiredo (2004), podem ser concebidos a partir de quatro matrizes organizadoras e
elucidativas de diferentes dimensões da alteridade, pensadas na articulação de autores
da psicologia e da psicanálise com autores da filosofia: intersubjetividade trans-subjetiva;
intersubjetividade interpessoal; intersubjetividade intrapsíquica; e, intersubjetividade
traumática.
A matriz da intersubjetividade trans-subjetiva é concebida - a partir dos filósofos
Scheler (1923/1971), Heidegger (1927/1962) e Merleau-Ponty (1964) - como um
continente, anterior à separação entre externo e interno em que, através de uma
experiência pré-subjetiva de existência, um solo de acolhimento e sustentação propicia
que a alteridade emerja como constituinte das experiências subjetivas, com seu caráter
de inclusão primordial. A matriz intersubjetividade interpessoal, por sua vez, deve ser
pensada a partir de interações entre sujeitos, já diferenciados, organizados e funcionando
num plano individual ou interindividual. Nesta matriz, com as formulações de Mead
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(1910/1978), é possível conceber, como fizeram os autores, que ninguém pode ter acesso
à si e a sua consciência ou dotar de um mim e de uma consciência senão pela mediação
do outro e de suas respostas. Para Coelho Junior (2008), “reconhece-se nesse nível a
maior parte das elaborações de diferentes teorias psicológicas que se dedicam ao estudo
da relação intersubjetiva” (p. 161).
O campo da intersubjetividade intrapsíquica é resultado de contribuições
fundamentalmente psicanalíticas e inclui o estudo das experiências intersubjetivas, desde
que concebidas no „interior‟ das subjetividades. Isto porque esta dimensão refere-se,
fundamentalmente, ao plano das instâncias do psiquismo (id, ego e superego), com os
objetos internos, algo que “em psicanálise denomina-se como o modo object-relating de
funcionamento psíquico” (Coelho Junior & Figueiredo, 2004, p. 23). E, finalmente, o
campo da intersubjetividade traumática foi proposto a partir do trabalho de Lévinas (1974),
em que a presença da alteridade é vivenciada como irrupção e acontecimento
traumatizante. O outro, para Lévinas (1974), somente me precede ou me excede, o que
me traumatiza e me constitui, ao mesmo tempo. Uma relação intersubjetiva, para este
autor, implica em um certo deslocamento, em uma certa cisão ou modificação na
experiência subjetiva, a partir da qual a subjetividade pode advir.
Para Coelho Junior (2008) a forma de experiência que reconhece a alteridade
somente desta forma, em que há algo do outro que sempre excede, será sempre
traumática. No entanto, as matrizes foram pensadas pelos seus autores como dimensões
dentro de uma lógica da suplementariedade, ou seja, “cada dimensão é sempre um apelo
de suplemento endereçado ao outro, assim como cada dimensão procura no outro a
suplência de suas fraquezas ou o controle suplementar de seus excessos” (Coelho Junior
& Figueiredo, 2004, p. 24).
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Desta forma, Figueiredo (2009) as pensa nos termos de que o outro pode aparecer
e exercer sua função na constituição da subjetividade dos indivíduos. Segundo ele, na
condição „trans-subjetiva‟, o outro, sem diferenciação, tem a função de sustentar e conter,
de „holding‟ e de continência (Winnicott, 1983), propiciando identificações primárias. De
acordo com a matriz „traumática‟, o outro tem a função de interpelar, de reclamar, de
mobilizar, acentuando aqui a sua diferença. Na condição „interpessoal‟, o outro, ainda que
diferenciado, tem o papel de exercer um reconhecimento e ser testemunha, o que enfatiza
a semelhança. Destaca, em seguida, que são estas as três condições do objeto primário:
identidade, diferença e semelhança, “que participam sempre, em doses e equilíbrios
dinâmicos variados, mas sem que um preceda em importância e no tempo os demais”
(Figueiredo, 2009, p. 5).
É diante destes elementos que propomos pensarmos a experiência da
intersubjetividade na contemporaneidade, isto é, quando, em função de determinadas
condições sócio-econômicas e culturais, o jogo da suplementariedade pode não ser
plenamente possível de ser jogado, num solo em que a experiência „intersubjetiva
traumática‟ pode emergir de modo preponderante.
2. As Falhas da Cultura e a preponderância da ‘Intersubjetividade Traumática’
Kaës (2005) localiza no trabalho de Winnicott a cultura como uma formação
intermediária ao articular o espaço transicional e o espaço cultural. “O que é próprio da
área transicional e da localização cultural que dela deriva, é fazer coexistir, sem crise nem
conflito, o que estava lá e o que ainda nem surgiu, a herança e a criação” (p. 60). Algo
que para Kaës (2005) supõe uma experiência subjetiva e intersubjetiva de tolerância e
confiança. Assim, a cultura seria este espaço em que proporcionaria a experiência da
continuidade entre realidade psíquica e realidade externa, entre aquilo que se herda e
aquilo que se cria, propiciando, desta forma, a simbolização e a criatividade, que só
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podem produzir-se “como Winnicott (1975) diz: „se tivermos um lugar onde colocar o que
encontramos‟” (Winnicott, 1896-1971/1975 citado por Kaës, 2005, p. 60).
Contudo, Kaës (2005) considera que no nosso mundo moderno o mal-estar devese em parte por uma deficiência ou ausência destas formações intermediárias, “porque
nós não dispomos suficientemente, nem de processos que nos introduzam na experiência
cultural, nem do lugar „onde colocar aquilo que encontramos‟” (p. 60). De acordo com
Giddens (1991), este mal-estar a que Kaës (2005) se refere, relaciona-se a mudanças
profundas das condições sócio-econômicas em relação ao período pré-moderno, em que
localiza no desencaixe entre as categorias de tempo e espaço a consequente
estruturação de sistemas abstratos e avanços tecnológicos e científicos que
proporcionaram o que denomina de „reflexividade social‟, ou seja, o fato de que os
indivíduos tornaram-se informados sobre as oportunidades de desenvolvimento e dos
riscos que a modernidade trouxe - isto é, a consciência sobre guerras nucleares,
possibilidade
de
descontrole
populacional,
descontrole
no
mercado
financeiro,
calamidades ecológicas e, principalmente, o fato de que os riscos não podem ser
transformados em modos de controlá-los -, gerando uma tensão e uma desproporção
entre estados de excitação e continência, proporcionando, segundo este autor, uma perda
de confiança generalizada, que se manifesta na cultura como formas insuficientes de
acolhimento e falhas nos processos de transformação de representações e figurabilidade,
ou seja, quando a cultura perde sua função de intermediário.
A categoria do Intermediário é um conceito elaborado por Kaës (2005) a partir de
uma leitura atenta à obra de Freud. Para este autor, trata-se de um conceito que aborda a
mediação, que promove uma ponte entre duas ordens de realidade que não podem ser
reduzidas uma a outra. O intermediário está, portanto, na articulação entre consciente e
inconsciente; entre as exigências do id, do superego e as da realidade externa, em que “o
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pré-consciente, na primeira tópica freudiana, e o ego, na segunda, cumprem, do mesmo
modo que todas as formações do tipo do sintoma, uma função intermediária de ligação,
de passagem, de mediação e de transformação” (p. 15).
Para Kaës (2005), a perda da função intermediária da cultura “põe em xeque as
crenças e os mitos que asseguram a base narcísica de nosso pertencimento a um
conjunto social” (p. 53). Estas transformações afetam a base segura da convivência,
necessária para a vida em comunidade e provocam falhas nos processos de apoio, de
continuidade, nas funções intermediárias da cultura e do pré-consciente. À medida que as
funções intermediárias não realizam seu papel, resultam dificuldades de integração das
pulsões no espaço psíquico e no espaço social. E o excesso de estimulações afeta a
formação do recalque, gerando violência incontrolada, perturbações do pensamento e a
submissão arrasadora aos ideais arcaicos.
Desta forma, aquilo que a matriz intersubjetiva trans-subjetiva propõe deve ser
colocada em questão em nossa sociedade em que restou um solo hostil às necessidades
do ser humano de adaptação, de sustentação e continência para as experiências, fazendo
com que concebamos que na contemporaneidade esta função constituinte das
experiências subjetivas, baseada na sustentação permanente da cultura, esteja se
perdendo. Ao mesmo tempo, as relações intersubjetivas interpessoais estão cada vez
mais marcadas por traços de incompreensão, distanciamento e estranhezas, que podem
colocar o indivíduo em condições de existência vazia ou isolada.
Portanto, quando a cultura e as formas de relacionamento propiciam experiências
intersubjetivas no nível trans-subjetivo e interpessoal falhas, conjeturamos que a
experiência da intersubjetividade pode ser somente vivida ou sentida como traumática,
dentro daquilo que esta matriz intersubjetiva propõe, ou seja, da alteridade como
diferente, mobilizador, estranho, incompreensível, não-adaptável, desconfortável.
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Contudo, propor a um indivíduo que suas experiências intersubjetivas sejam de
forma preponderantemente traumáticas é, supomos, não o advento da subjetividade rumo
à alteridade e de crescimento, mas o de fechamento, de regressão e de sofrimento,
atreladas à desconfiança, responsáveis por patologias que afetam o funcionamento
psíquico pré-consciente, ou seja, relacionadas à falhas ou dificuldades de elaboração,
metabolização de material bruto, simbolizações, formas de representação e figurabilidade,
levando à patologias da contemporaneidade.
3. Referências Bibliográficas
Coelho Junior, N. E (2008). Alteridade e ética no diálogo entre as filosofias de MerleauPonty e Levinas: contribuições para a psicanálise. In V. Saflate & R. Manzi (Orgs.), A
filosofia após Freud (pp. 157-180). São Paulo/Brasília: Humanitas/CAPES.
Coelho Junior, N. E. & Figueiredo, L. M. C. (2004, janeiro/junho). Figuras da
Intersubjetividade na Constituição Subjetiva: dimensões da alteridade. Interações,
IX(17), 09-28.
________________. (2009). Intersubjetividade e mundo interno: o lugar do campo
superegóico na teoria e na clínica. (Trabalho apresentado no Simpósio "Dimensões
da Intersubjetividade", realizado nos dias 5 e 6 de junho, no Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, São Paulo).
Heidegger, M. (1927-1962). Being and Time. Oxford, UK: Basil Blackwell. Translation
John Macquarrie and Edward Robinson.
Kaës, R. (2005). Os espaços psíquicos comuns e partilhados: transmissão e negatividade.
São Paulo: Casa do Psicólogo.
Lévinas, E. (1974). Autrement q’être ou au-delá de l’essence. Den Haag, Netherlands: M.
Nijhoff.
Mead, G. H. (1910-1978). What social objects must psychology presupose?. In T.
Luckmann (Ed), Phenomenology and Sociology. Harmondsworth, UK: Penguin Books.
Merleau-Ponty, M. (1964). Le Visible et L’invisible. Paris: Gallimard.
Scheler, M. (1923-1971). Nature et Formes de la Sympathie. Paris: Payot.
Winnicott, D. W. (1896-1971/1975). Brincar e a Realidade. Rio de Janeiro: Imago.
_____________. (1983). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes
Médicas.
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Sandra Aparecida Serra Zanetti* e Isabel Cristina Gomes** T