NÚCLEOS DE SAÚDE COLETIVA: DESAFIOS ATUALIZADOS José Paranaguá de Santana1 “... tudo o que já foi, é o começo do que vai vir” Grande Sertão: Veredas Guimarães Rosa A contribuição da universidade para o processo da reforma sanitária brasileira remonta acontecimentos da conjuntura anterior à caracterização da própria reforma sanitária como ela é hoje entendida. Nos primórdios da década de 1970 se firmaram as bases do atual modelo assistencial centrado no cuidado individual prestado por empresas privadas subvencionadas pela previdência social, unificada poucos anos antes. Nesse contexto germinaram na academia focos de crítica e resistência a tal modelo, onde o regime autoritário não conseguia calar lideranças comprometidas com a liberdade de pensamento e expressão. Em meados daquela década o debate sobre a situação da saúde extravasou os limites dos campi universitários, disseminado por entidades associativas profissionais, partidos políticos e movimentos sociais. Atuação particularmente importante nesse processo se organizou por volta de 1976, com a criação do CEBES, Centro Brasileiro de Estudos de Saúde, cujo vínculo com o mundo acadêmico era nítido, pois a maioria de seus núcleos floresceu junto aos departamentos de saúde pública ou medicina preventiva e social das universidades. Outra entidade, criada três anos depois e em coordenação com o CEBES, que igualmente desempenhou papel relevante no alvorecer do movimento pela reforma sanitária, teve origem notoriamente acadêmica, a Associação Brasileira de Pós-Graduação em Saúde Coletiva (ABRASCO). O marco cronológico inicial da reforma sanitária foi outubro de 1979, quando o Cebes apresentou, no I Simpósio Nacional de Política de Saúde da Câmara dos Deputados, o documento intitulado A questão democrática na área da saúde2, que lançou as bases conceituais e operacionais desse projeto reformista, cunhando o termo Sistema Único de Saúde (SUS). Com o final do período autoritário, na chamada Nova 1 Médico, especialista em medicina comunitária, mestre em medicina tropical, doutorando em ciências da saúde / bioética - UnB. Servidor público, Fiocruz/Ministério da Saúde. Consultor da OPAS/OMS, Representação do Brasil. 2 Publicado na revista Saúde em Debate n. 9, p. 11-14, disponível na biblioteca virtual David Capristrano, do CEBES: http://www.docvirt.com/asp/saudeemdebate/default.asp (Acesso em: 3 set. 2011). República, as teses do movimento sanitário ganharam organicidade, especialmente com as propostas aprovadas na 8ª Conferência Nacional de Saúde (8ª CNS), em 1986. Teses e propostas que dois anos depois foram corporificadas na nova Constituição. Nesse cenário de redemocratização haveria que redefinir-se e atualizar-se a participação da universidade no processo histórico da reforma sanitária. Estava bem demarcada uma conjuntura de avanço, tanto no plano das diretrizes e postulados quanto das possibilidades de mudanças institucionais e operacionais, com vistas a uma nova organização e funcionamento dos serviços de saúde. Mas era preciso criar e fortalecer bases institucionais para formulação, sistematização e disseminação do ideário e do instrumental operacional que apoiasse o ainda incipiente processo da reforma em curso naquelas condições favoráveis. E que, ao mesmo tempo, representassem pontos de resistência à reversão do processo, fomentando o enfrentamento dos interesses contrários às teses e encaminhamentos oriundos da 8ª CNS inseridos na nova Constituição, mas já sob ameaça de retrocessos. Foram essas as plataformas de criação, a partir de 1985, dos núcleos de estudo em saúde coletiva – os NESC, como instâncias acadêmicas de apoio à reforma sanitária. Os princípios norteadores da organização institucional e da atuação programática dos NESC eram nitidamente políticos e alinhados às dimensões cultural, políticojurídica e técnico-operacional do projeto da reforma sanitária consagrado pela Constituinte. Nesses eixos direcionais se pautaram as contribuições dos núcleos: no plano cultural, em torno do conceito de saúde como resultante do modo de inserção individual e coletiva na sociedade, acepção que implica um enfoque trans-setorial das políticas públicas, extrapolando o sistema de serviços de saúde; no marco políticojurídico, o reconhecimento da saúde como direito de todos e dever do Estado, conforme se estabeleceu no Art. 196 da Constituição; no campo técnico-operacional, a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS), organizado de acordo com as diretrizes de descentralização, atendimento integral e participação da comunidade, também prescrito constitucionalmente no Art. 198. As considerações acima se dispõem a modo de iniciação a um exercício memorial e reflexivo sobre os reptos contemporâneos dos NESC, tidos como instâncias 2 de apoio ao processo da reforma sanitária. Evocações despertadas pelo chamado3 do Núcleo de Estudos em Saúde Pública da Universidade de Brasília (NESP/UnB) e da Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa do Ministério da Saúde, para lançar “novos olhares e reflexões sobre o SUS a partir da memória imagética da 8ª CNS e do processo constituinte”. É, portanto um testemunho que aspira contribuir para uma coletânea de reflexões e lições aprendidas no passado, quiçá úteis para o futuro que se constrói no presente. Nesse sentido, vale fazer uma advertência cautelar sobre a parcialidade, em duplo sentido, dessa contribuição. Trata-se de um depoimento pessoal despojado de subsídios bibliográficos sistematizados, apreciando somente alguns aspectos do objeto de reflexão, selecionados ao sabor das reminiscências ou preferências da memória, sobre vivências e aprendizados de uma jornada profissional dedicada à saúde pública desde a primeira metade dos anos 1970. Tomando impulso no referencial acima, o percurso deste ensaio avança com um breve retorno ao futuro do SUS, seguido de uma incursão pelas suas fronteiras com o mundo da educação e do trabalho, até uma estação final de onde o olhar vislumbra os desafios renovados para os NESC. SUS: de volta para o futuro Os motivos da criação dos NESC há pouco mais de duas décadas, entre a fase preparatória da 8ª CNS e a Constituinte, incluíam centralmente questões sobre a nova organização do sistema nacional de saúde. Foi essa a tônica dos depoimentos em Caminhos da Reforma Sanitária4, tanto de atores situados na academia como na direção das instituições de saúde naquela época. A ordem do dia era a implantação do SUS, que veio a consubstanciar-se no plano legal em 1990 com a aprovação da Lei Orgânica da Saúde – Lei 8.080. Atualmente, as questões sobre a reforma sanitária permanecem girando em torno do mesmo ponto. Não parece haver diferença entre o conteúdo nuclear dos discursos gravados por volta de 1988 e os depoimentos atuais registrados amplamente na mídia e publicações especializadas, alguns já compondo o acervo 3 “A saúde em construção: das imagens às palavras”, disponível em: http://www.nesp.unb.br/index.php?option=com_content&view=article&id=136&catid=38&Itemid=61 (Acesso em: 3 set. 2011). 4 Material do acervo imagético sobre a Reforma Sanitária, disponível no sítio Web do NESP/UnB: http://www.nesp.unb.br/index.php?option=com_content&view=article&id=94&Itemid=81 (Acesso em: 3 set. 2011). 3 recente do NESP/UnB5. A ordem do dia continua tratando da organização do SUS, agora em torno do Decreto 7.508, editado vinte e um anos depois para regulamentar a Lei 8.080, dispondo “... sobre a organização do Sistema Único de Saúde - SUS, o planejamento da saúde, a assistência à saúde e a articulação interfederativa”. Aparentemente não mudaram os desafios ou as demandas para os NESC. Contudo, esta impressão é valida apenas ao considerar a natureza geral da questão em foco, a organização do SUS. Há diferenças marcantes entre os momentos históricos considerados, que implicam em distinções fundamentais entre os desafios atuais e aqueles de duas décadas atrás. Uma demonstração ilustrativa pode ser feita considerando o tema da atenção primária em saúde nos dois contextos. O Programa de Saúde da Família representou um fator decisivo na remodelagem do sistema de saúde no Brasil, pois, mais do que sugere a denominação inicial de “programa”, tem sido a estratégia de reorganização da atenção básica no País e, em última instância, de todo o modelo assistencial. É a expressão concreta da proposta de atenção primária em saúde consagrada na Conferência de Alma-Ata6, na medida em que concretiza, no plano político e técnico-operacional, uma prioridade ilusória na história da saúde pública nacional até vinte anos atrás. Uma visão prospectiva do SUS terá, portanto que considerar os diversos aspectos decorrentes dessa estratégia de reorganização de serviços, que contribuem para operacionalizar o novo conceito de atenção à saúde postulado pela reforma sanitária. Palmilhar os caminhos para esse porto seguro implica radicalizar o compromisso entre a academia e os serviços, incluindo não apenas a formação de novos profissionais, mas uma empreitada de várias outras frentes que vai desde pensar os futuros possíveis a desenhar os mapas de viagem a desenvolver meios de aferição para evitar calmarias ou tempestades na rota escolhida. Além da importância desse enfoque no contexto do setor público, há que considerar a adoção de esquemas assistenciais que estão sendo adotados pelos sistemas 5 Entrevistas com participantes da implantação dos NESC - “22 anos de implantação do SUS”, disponível em:http://www.nesp.unb.br/index.php?option=com_content&view=article&id=132&Itemid=262 (Acesso em: 3 set. 2011). 6 Conferência Internacional sobre Atenção Primária à Saúde, promovida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) na cidade de Alma-Ata, ex-União Soviética, em 1978. 4 de atenção dos seguros de saúde, incorporando processos assemelhados em termos conceituais e de tecnologia. Outro aspecto relevante, geralmente negligenciado, diz respeito ao potencial de incorporação de tecnologia “miniaturizada”, na forma de meios de apoio diagnóstico e terapêutico, no arsenal de recursos tradicionalmente manejados nesse nível de atendimento. Atualmente quando se fala em densidade tecnológica pensa-se logo em unidades de alta complexidade ou centros especializados. Ao se configurar a atenção básica como um processo incorporador de tecnologia, certamente o “complexo médicoempresarial” a ofertará, pois ela já existe na forma de protótipos, mormente desenvolvidos para uso militar ou viagens espaciais, com tendência de iniciar o processo de oferta-demanda em larga escala nos serviços de saúde. Outras dimensões da tecnologia, como a tele-medicina, os processos gerenciais informatizados, os protocolos de trabalho (inclusive protocolos clínicos) também se apresentam como objetos promissores de incorporação nos serviços básicos de saúde. A visão de futuro acima delineada para a prestação de cuidados básicos de saúde implica, indispensavelmente, uma nova perspectiva para os níveis de referência ou de atenção especializada do sistema. As unidades de serviço desses níveis, os atuais hospitais e outros centros especializados, deverão redefinir-se, passando a funcionar com instâncias “complementares” dos serviços básicos, invertendo-se os valores e as práticas que hoje prevalecem em torno do conceito de sistema de saúde. Tornar-se-á arcaica a imagem de pirâmide que hoje convencionalmente representa o sistema como um todo, denominando a atenção primária como “base” e localizando os serviços especializados no ápice? Possivelmente, a metáfora que melhor corresponderá ao conjunto do sistema é um plano com “pontos de apoio” representando os serviços especializados, inseridos na malha dos serviços básicos. Esses são alguns dentre os múltiplos aspectos que diferenciam as situações onde se inscrevem as contribuições dos NESC, à época de suas origens e um quartel de século depois. Essa argumentação aponta para a renovação das relações entre academia e serviços e requer a inovação dos recursos de prospecção do futuro, via pesquisas e estudos, o que depende da renovação dos mecanismos de cooperação entre os próprios NESC. 5 SUS: fronteiras com educação & trabalho As transformações do trabalho no setor saúde no Brasil refletem a dinâmica geral das relações sociais, econômicas e tecnológicas no contexto histórico global, que se caracterizou por intensas e rápidas mudanças de cenário e determinações ao longo do século XX. A clivagem via educação e trabalho permite uma abordagem transversal das dimensões cultural, político-jurídica e técnico-operacional do projeto da reforma sanitária brasileira, embora refletindo a opção de circunscrever a discussão nos limites de uma revisão apenas memorial. O roteiro da exposição inclui temas da formação técnica e da educação superior dos trabalhadores da saúde, bem como considera pontos da regulação e gestão do trabalho. A intenção é ressaltar semelhanças e diferenças entre os cenários da criação dos NESC e o momento atual, no rastro de atualizar os desafios para cuja superação o processo da reforma sanitária encontraria guarida junto a esses núcleos. Educação técnica A carência de pessoal para as funções técnicas e auxiliares no setor de serviços é um problema crônico no Brasil. Por volta de 1970 o sistema educacional iniciou investimentos na qualificação técnica para a agricultura com uma rede de escolas técnicas federais, e para a indústria, preferencialmente em parceria com as confederações patronais, via Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI); para o setor terciário, o investimento foi para as atividades comerciais propriamente ditas, por intermédio do Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC). Para a saúde, área desprovida de prioridade, a preparação de pessoal terminou recaindo sobre os próprios serviços, que improvisaram cursos para responder suas necessidades críticas. Em 1980 a CIPLAN7 aprovou um projeto educacional que apresentava três vertentes bem definidas: (i) a concepção de uma escola voltada para o trabalhador de nível médio do setor saúde, (ii) a elaboração de um projeto curricular que articulava os processos de aprendizagem no próprio local de trabalho e (iii) o treinamento de supervisores pedagógicos para atuar nessa nova escola com esse novo currículo. Sob 7 Comissão Interministerial de Planejamento e Coordenação, composta pelos ministérios da Saúde, Previdência Social e Educação, criada para articular e potencializar iniciativas de reorganização e racionalização dos serviços de saúde na esfera federal do governo. 6 essa orientação, que ficou reconhecida pela denominação de Projeto Larga Escala, foram organizados cerca de vinte centros formadores, que retinham suas funções nucleares de controle do processo pedagógico, mas cujo corpo docente se compunha dos profissionais dos próprios serviços de saúde. Vinte anos após, a educação técnica em saúde no Brasil foi turbinada com a implantação do PROFAE – Projeto de Profissionalização dos Trabalhadores da Área de Enfermagem. Deflagrado no ano de 2.000, o projeto investiu cerca de 370 milhões de dólares, com recursos oriundos do Tesouro Nacional, via orçamento do Ministério da Saúde, e empréstimos do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT). O foco do PROFAE foi a área de enfermagem, política que se expandiu posteriormente para as diversas habilitações de saúde, porém sem a mesma ênfase em termos de investimento. Além da qualificação de centenas de milhares de trabalhadores, esse projeto consolidou a institucionalização dos centros formadores do Projeto Larga Escala numa rede de escolas técnicas do SUS, que pereniza o esforço de provisão dessas categorias de trabalhadores para o sistema de saúde. Embora considerando os avanços alcançados, permanecem algumas questões cujo equacionamento depende de investigações e formulações para as quais a contribuição dos NESC pode ser valiosa, a partir de uma ação sistemática e permanente envolvendo os Observatórios de RH (instâncias temáticas especializadas que se consolidaram a partir de 1999 no contexto dos NESC) com a rede de escolas técnicas do SUS. A demanda de apoio aos gestores da saúde nesse campo persiste em essência a mesma: estratégias e programas voltados para assegurar o equilíbrio entre oferta e demanda por pessoal técnico e auxiliar nos serviços de saúde, bem como propiciar-lhes processos de educação permanente. Mas deve-se atentar para elementos presentes no novo cenário, com a magnitude e complexidade do SUS, “organizado de acordo com as diretrizes de descentralização, atendimento integral e participação da comunidade”, ou seja, o surgimento de novos atores institucionais, novas ocupações e novas equações a serem formuladas. Educação superior 8 8 A elaboração desse texto valeu-se de anotações e material didático elaborado em co-autoria com a Professora Maria Auxiliadora Córdova Christófaro, para o Curso de Especialização em Políticas de Recursos Humanos para a Gestão do SUS, oferecido pelo Observatório de Recursos Humanos do NESP/UnB, em 2001. 7 A formação universitária de profissionais de saúde no Brasil apresenta evolução crescente há mais de quarenta anos. Corresponde, de modo geral, ao crescimento do sistema nacional de educacão, tanto em oferta de vagas quanto diversificação das profissões, em face das demandas do mercado de trabalho. Na área de saúde, embora não lhe seja um atributo exclusivo, perpetua-se uma generalizada intolerância com a falta de articulação entre os mundos do trabalho e da formação profissional. Dissociação que se convencionou atribuir ao paradigma flexneriano9 de organização da prática e do ensino das ciências da saúde. O desenvolvimento científico e tecnológico, ao ampliar as possibilidades propedêuticas e terapêuticas centradas no ato do médico, tornou-se aliado na disseminação do flexneriano, mas contraditoriamente fez emergir críticas dirigidas à organização, financiamento e resultados dos serviços de saúde, bem como aos processos de formação profissional. Contudo, vale indagar se o modelo flexneriano encontra-se mesmo em crise ou, contrariamente em pleno apogeu, a despeito das condenações que lhe são aplicadas. As reações anti-hegemônicas ao modelo flexneriano resultaram, a partir dos anos quarenta do século passado, na formulação de propostas que pretendiam destroná-lo. Movimentos reformistas cujas mensagens doutrinárias influenciaram sobremaneira o ideário das reformas de saúde e de formação profissional no Brasil: medicina preventiva, medicina integrada, medicina comunitária, integração docente-assistencial. A emergência da reforma preventivista e da medicina integral deu-se no contexto da instalação de políticas de bem estar social nos países europeus, no pós Segunda Guerra. Repercutiu fortemente nas discussões sobre a reformulação da assistência médica nos Estados Unidos, demarcando posições da própria Associação Médica Americana, que rechaçava intervenção do Estado na assistência médica. O pavor se justificava com a opção da Inglaterra onde, no mesmo período, foi criado o Serviço Nacional de Saúde sob controle e gestão estatal. A base doutrinária formulada para esse enfrentamento, convenientemente aceita nos Estados Unidos, era o modelo da "história natural da doença", desenvolvido por Leavell & Clark, abrangendo no âmbito da ação médica não apenas os doentes, mas toda a população, contemplada desse modo 9 Termo cunhado com referência ao relatório do educador americano Abraham Flexner, publicado em 1910 pela Carnegie Foundation for the Advancement of Teaching, tendo como objeto a avaliação do ensino médico nos Estados Unidos e que orientou a reforma do mesmo pari passu o sistema assistencial. 8 como beneficiária dos avanços científicos e tecnológicos da medicina. O foco educacional da reforma incidia sobre o currículo, que deveria desenvolver uma nova consciência e uma nova abordagem dos problemas de saúde. Com isso, ampliando os espaços de domínio da medicina e de visão do médico, modificar-se-ia o quadro sanitário da população. A diferença entre as reformas americana e inglesa residia nos aspectos organizacionais do sistema de saúde (políticos, gerenciais e financeiros). A versão dos movimentos preventivista e da medicina integral modulados pela experiência americana foi dominante na disseminação pela América Latina, a partir da reunião de Viña del Mar - Chile, realizada em 1956 sob auspícios da Organização Pan-Americana da Saúde. Contudo, por vários motivos relacionados aos processos políticos em curso nos países dessa Região, às condições sócio-econômicas de suas populações e ao contexto cultural de suas universidades, esse movimento ganhou características próprias, afastando-o da influência original. Entre as heranças similares à experiência norte-americana estão a criação de departamentos de medicina preventiva nas escolas médicas latino-americanas e a cisão entre o saber/fazer preventivo (tido como foco principal da atenção primária de saúde) e o curativo (reconhecido como inerente aos serviços hospitalares). Embora a concepção da medicina preventiva pretendesse constituir, ao menos para alguns de seus arautos, uma proposta de reforma do modelo flexneriano, apenas redirecionou as bases conceituais e operacionais dos processos de formação e de produção de serviços de saúde, constituindo-se, efetivamente, numa prática complementar ao flexnerianismo, articulando a saúde pública com a medicina liberal. Já nas décadas de 1960-70, e contracenando com os movimentos anteriores, ganham espaço dois outros importantes movimentos que também questionavam o status quo e propunham reformas nas políticas, nas estratégias e nos propósitos dos processos educacionais e de produção em saúde: medicina comunitária e integração docenteassistencial. Ambos se propõem responder às limitações de acesso da maioria da população aos serviços de saúde, ante o incremento da "consciência sanitária" e das reivindicações sociais por mais e melhor atendimento, na contracorrente da vocação do modelo vigente voltado para a sofisticação tecnológica e para o elitismo de cobertura. A medicina comunitária propugnava o que se convencionou chamar, à época, de "tecnologia apropriada" ou "medicina simplificada", retrocedendo saudosistamente às 9 bases operacionais do período anterior à explosão do consumismo tecnológico já vigente, tanto na área de saúde como na sociedade em geral e propondo, ainda, a participação comunitária na produção dos serviços, especialmente através do trabalho voluntário. Dessa forma o movimento teve repercussões nos países periféricos, enquanto estratégia que facilitava a inclusão diferenciada de grupos populacionais marginalizados pelo processo de desenvolvimento socialmente excludente. Quanto ao movimento de integração docente assistencial (IDA), cabe destacar suas propostas táticas de resistência e cooptação, mediante introdução no currículo de graduação das profissões de saúde, dos princípios e métodos da "epidemiologia social" e da concepção do "processo saúde-doença". A IDA defendia, com igual ênfase, experiências educacionais e curriculares no contexto da realidade sanitária e dos serviços básicos de saúde com a presença, precoce e oportuna, do aluno; a participação de docentes na prestação de serviços e de profissionais desses serviços na formulação e operação do programa de ensino. No Brasil, a partir da década de setenta, verifica-se a expansão de atividades de IDA, sob a designação de programas de extensão, tanto em áreas periféricas como urbanas. É interessante lembrar dois fatores que estão intimamente ligados ao espaço que as propostas de IDA conquistaram nas instituições de ensino superior de saúde do país: a inviabilidade de manter todos os estudantes nos hospitais de ensino, ante o expressivo e abrupto aumento de matrículas, em razão da expansão que se seguiu à aprovação da Lei 5540/68, de reforma da educação superior; e as mudanças de financiamento e clientela dos serviços de saúde, com as reformas da previdência social à época, que exigiam maior produtividade, em geral incompatível com a presença de estudantes nos serviços hospitalares. Entretanto, tais atividades apenas tangenciavam o processo de formação, que persistia centrado no hospital, focalizado na assistência clínico-individual e devotado às especialidades. O paradigma flexneriano não foi superado, dado que os demais movimentos não substituíram suas bases conceituais e operacionais nos processos de educação e de produção de serviços de saúde, mas é indiscutível a importância desses movimentos reformistas. Em âmbito mundial, merecem destaque o pacto de "saúde para todos" e a "estratégia da atenção primária", compromissos dos países integrantes da Organização das Nações Unidas (ONU), em reunião promovida pela OMS e UNICEF na cidade de 10 Alma-Ata, ex-União Soviética, em 1978. No contexto nacional, importantes mudanças verificadas nas últimas décadas podem ser relacionadas à acumulação política e técnica propiciada por esses movimentos: a mudança dos currículos das profissões de saúde e, de certo modo, a própria implantação do SUS e seus antecedentes, as Ações Integradas de Saúde (AIS) e o Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS). O conhecimento das bases doutrinárias da articulação ensino-serviço, buscando compreender o encontro/desencontro entre os elementos do processo educativo e do processo produtivo na área de saúde, persiste como um desafio atual para os NESC. Nesse sentido, dada a complexidade desse problema, é preciso retomar um traço fundador da natureza desses núcleos, como instância de construção transdisciplinar do saber na universidade. Não basta a competência que se reuniu e consolidou até agora, centrada em torno da saúde coletiva, que a despeito de inclusão das ciências sociais em seu escopo, ainda preserva forte ancoragem na visão tradicional da saúde pública. É preciso avocar outras instâncias acadêmicas, pensar sobre esse novo multifacético e fugidio do hoje onde germina o amanhã, intensificando ao mesmo tempo o diálogo com os serviços de saúde. Do contrário, há o risco de avolumar-se o retrocesso que ameaça a reforma sanitária, pois o fermento dominante no processo de formação dos profissionais de saúde não contém a mensagem dessa reforma, mas a preservação do modelo flexneriano. Regulação e gestão do trabalho Paralelamente às questões relacionadas à formação profissional comentadas acima, evoluiu um problema cujas dimensões não eram claramente reconhecidas três décadas atrás, envolvendo aspectos normativos ou regulamentares do exercício profissional. Atualmente, os gestores de saúde até advogam maior responsabilidade nessa área, embora ainda ressintam a inércia tradicional de passividade nesse processo regulatório. A composição do quadro de pessoal de praticamente todas as instituições do SUS, nas três esferas de governo, apresentou mudanças notáveis ao longo dos últimos 22 anos. Atualmente predominam formas de contratação terceirizada, mediante alternativas muito diversificadas, em muitos casos “ao arrepio da lei”. Boa parte das equipes da Estratégia de Saúde da Família enquadra-se nessa situação. A diversidade de formas de contratação do trabalho relaciona-se, de algum modo, ao processo de 11 descentralização, ao facilitar arranjos contratuais entre cada gestor municipal e os profissionais nessas localidades. Embora não seja um problema peculiar ao sistema de saúde, a situação é preocupante, pois as características desse vínculo se refletem na qualidade do atendimento. Nos hospitais disseminou-se a contratação de serviços prestados por micro-empresas, cooperativas ou outros arranjos precários. Práticas certamente relacionadas às dificuldades que os hospitais encontram para cumprir a legislação trabalhista ou evitar encargos dela decorrentes, mas que representam direitos ou benefícios para os trabalhadores. Estima-se que o mercado de trabalho em saúde absorva de 5% a 8% da população economicamente ativa do Brasil, com tendência a situar-se entre 10% e 15%. Quem influencia esse campo da economia deve preocupar-se com as relações de trabalho, lembrando que os serviços são produzidos por pessoas que tomam decisões, têm vontade, aspirações. As regras do trabalho tornaram-se, portanto objeto de atenção dos gestores de saúde. A gestão do trabalho nos serviços de saúde ainda se orienta pela concepção tradicional da administração de pessoal no serviço público, onde as entidades setoriais detêm uma mera função descentralizada do sistema de administração de pessoal do governo. O discurso avançou, mas na prática a grande maioria das estruturas públicas ainda preserva esse enfoque. Uma nova proposta para a política de recursos humanos de saúde passa pela reordenação dessa função como componente da própria gestão do sistema e dos serviços de saúde, superando a dicotomia clássica entre a gestão de saúde e a administração de pessoal. Trata-se de uma competência complexa, negligenciada historicamente e com dificuldades de definição mais precisa sobre seu próprio objeto. A efetivação dessa nova política implica investir em capacidade de gestão de forma intensiva e extensiva. Configura-se, portanto mais um desafio renovado para os NESC, qual seja apoiar o fortalecimento da autoridade sanitária nos processos de regulação das relações de trabalho nos serviços, de modulação do mercado ocupacional e do exercício profissional. A participação na oferta de programas educacionais para os gestores desse setor no SUS avançou, bem como a capacidade de análises sobre a situação do trabalho e da educação em saúde. Mas, além da revisão permanente de suas práticas nesses 12 processos, os NESC poderiam também formular subsídios para os gestores do SUS de uma forma mais dialogada ente si e com aqueles gestores. Desafio atualizado A discussão acima não esgota o rol de contribuição dos NESC nos últimos 22 anos, nem tampouco o que se espera fazer daqui pra frente. Não expressa desatenção com outras áreas temáticas, mas apenas uma preferência memorial. Entretanto, essa reflexão final diz respeito ao conjunto de compromissos e expectativas embutidos na convocação veiculada pelo NESP/UnB em realizar a reunião10 com seus pares em 2011. A concepção dos NESC assentou-se em três linhas de trabalho: capacitação de recursos humanos, assessoria técnica e investigação na área de saúde coletiva. Esforços orientados para a superação de obstáculos à reorganização dos serviços de saúde, em linhas de ação interdependente visando apoiar intervenções sobre a realidade dos serviços enquanto práticas sociais a serem transformadas. Desse modo, não faz sentido pensar que os núcleos sejam apenas instâncias encarregadas de treinamento de pessoal crítico para os processos gerenciais ou administrativos do setor saúde e que, adicionalmente, prestem serviços de consultoria especializada ou realizem alguns estudos demandados pelas instituições de serviço. É necessário entender que este tripé operacional tem uma direcionalidade definida a partir dos postulados da reforma sanitária consagrados na 8a CNS e determinados pela Constituição e outras normas legais. Mais ainda, que essa direcionalidade deve ser estabelecida mediante diálogo e negociação entre atores institucionais tradicionalmente pouco afeitos a inovações de suas próprias culturas e práticas organizacionais. Tal concepção sobre a proposta de atuação dos núcleos tem implicações da maior importância sobre as formas e os instrumentos de sua atuação, ou seja, as práticas de investigação, assessoria e capacitação de recursos humanos. Trata-se da concepção e operacionalização de propostas inovadoras de atuação nestas três áreas, que dêem conta de responder às dificuldades imediatas de organização dos serviços e que, ao mesmo 10 Encontro Nacional dos Núcleos de Saúde Coletiva e Saúde Pública (ENANESP), disponível em: http://www.nesp.unb.br/index.php?option=com_wrapper&view=wrapper&Itemid=269 (Acesso em: 3 set. 2011). 13 tempo, apontem as dificuldades a serem superadas, bem como as alternativas a serem buscadas na direção da nova ordem sanitária. Desde os primeiros momentos de existência dos núcleos ficou claro que a aproximação de cada um deles a esses ideais de ação dependeria de suas ordens de fatores: em primeira instância, a compreensão clara e objetiva de tais propostas, em termos de sua tradução em práticas concretas de trabalho; em segundo plano, mas igualmente importante, a disponibilidade de condições institucionais e materiais para o exercício dessas práticas. Trata-se da superação, por parte dos atores do movimento sanitário, de atitudes e comportamentos mais tendentes e restritos às análises críticas sobre a situação anterior e futura dos serviços de saúde; significa agregar a essa capacidade de elaboração crítica, a de formular e praticar propostas de intervenção. A combinação desses fatores tem marcado o desempenho e perspectivas dos NESC. Há casos em que são claramente visíveis os efeitos da atuação dos núcleos na formulação do novo arcabouço jurídico e administrativo do setor saúde e na preparação de seus quadros técnicos estratégicos. Mas também há situações em que a atuação dos núcleos tem-se restringido à simples ampliação do esforço de capacitação de recursos humanos para as carências atuais dos serviços de saúde. O desafio atual colocado para os NESC é, precisamente, a busca da combinação ótima entre a compreensão de seus objetivos em face dos postulados da reforma sanitária, e o manejo adequado das condições materiais que viabilizem estes objetivos. Essa busca passa, necessariamente, pela formulação de um projeto de ação solidária entre os núcleos, além das definições programáticas e operacionais que cada um deve desenvolver de acordo as próprias características. 14