Negócios do lixo: uma privatização
que se transformou numa guerra
RICARDO GARCIA (HTTP://WWW.PUBLICO.PT/AUTOR/RICARDO-GARCIA)
14/04/2014 - 07:13
Com muitos interesses e armas em jogo, a guerra do lixo está a pôr em
causa duas décadas de colaboração entre Governo e municípios neste
sector.
(http://imagens8.publico.pt/imagens.aspx/834668?tp=UH&db=IMAGENS)
O interesse pela EGF pode não estar apenas no mercado dos lixos urbanos ENRIC VIVESRUBIO
A privatização da Empresa Geral de Fomento (EGF),
a sub-holding do grupo Águas de Portugal para o
sector dos resíduos, está a semear uma guerra entre o
Governo e os municípios. Para entendê-la, é preciso
recuar ao princípio dos anos 1990. Nem todos estão
no conflito com as mesmas armas, nem com os
mesmos propósitos. O PÚBLICO passa em revista os
principais contornos da polémica.
Duas décadas de paz
Há precisamente 20 anos, quando o lixo era
sobretudo um problema e não tanto um negócio, os
municípios de Lisboa, Loures, Amadora e Vila Franca
de Xira sentaram-se à mesa com o Governo para dar
o primeiro passo de uma nova era no sector. As
autarquias tinham um plano concreto para lidar
juntas com os seus resíduos sólidos urbanos. A
administração central tinha o dinheiro.
Assim nasceu, em 1994, a Valorsul, a sociedade que
viria a transformar-se, duas décadas depois, na jóia da
coroa e no ponto nevrálgico do polémico processo de
privatização da EGF.
A possibilidade de juntar Governo e autarquias na
área dos resíduos – e também do abastecimento e do
saneamento – já estava prevista desde 1993. Dois
diplomas legais tinham aberto caminho à criação dos
“sistemas multimunicipais”, que servissem pelo
menos dois municípios e exigissem investimento do
Estado, por razões de interesse nacional. O Estado
entrava com a maioria do capital, através da EGF, e
assegurava os investimentos para construir aterros e
outras infra-estruturas. Os municípios também
entravam como sócios e eram ao mesmo tempo os
clientes das empresas criadas.
Não foi fácil, porém, convencer as autarquias a ceder a
sua tutela sobre os resíduos a uma empresa em que
eram minoritárias. Muitos municípios uniram-se em
associações e seguiram o seu caminho, sem dar a mão
à EGF. E nem todos os noivados deram em
casamento. Na região de Lisboa, Sintra, Cascais e
Oeiras desistiram de uma solução a sete, e Lisboa,
Loures, Amadora e Vila Franca de Xira avançaram
sozinhos para a Valorsul. “Não foi uma negociação
fácil, mas foi bem conseguida”, recorda Rui Godinho,
ex-vereador na Câmara Municipal de Lisboa.
Duas condições fizeram com que quase duas centenas
de concelhos aderissem aos sistemas multimunicipais:
a primeira foi a garantia legal de que as sociedades
concessionárias seriam sempre públicas; a segunda foi
uma série de contrapartidas negociadas com as
autarquias, como obras, equipamentos e serviços de
interesse para os municípios.
A dificuldade com que tais acordos
foram conseguidos explica em
grande medida a reacção agora das
autarquias, que vêem a
privatização da EGF como um acto
de traição do Governo.
“Claramente, é uma posição de
fractura”, afirma Jorge Botelho,
presidente da Câmara Municipal
de Tavira e da AMAL –
Comunidade Intermunicipal do
Algarve.
A presença de privados nos
resíduos não é novidade. Nos
sistemas municipais já há
concessões. E na esfera dos
sistemas multimunicipais há o caso
da Braval, criada em 1996 para
servir Braga, Vieira do Minho, Vila
Verde, Póvoa de Lanhoso e
Amares. Em 2000, os próprios
municípios compraram os 51% da
EGF. E em 2005, a Câmara de
Braga privatizou parcialmente a
Agere, a empresa municipal que
detém 79% da Braval. Na prática,
três grupos ligados à construção
civil – ABB, DST e R&N – agora
possuem indirectamente 39% da
Braval.
A EGF permaneceu maioritária em
11 concessionárias de sistemas
multimunicipais, controlando a
gestão da maior parte dos resíduos
urbanos no país (ver infografia). O
sistema funcionou em relativa paz
durante duas décadas. E o lixo, que
era um problema, passou a dar
lucro.
Um estranho negócio
Até que ponto os lucros do lixo são suficientes para
atrair compradores à EGF é uma das grandes dúvidas
da privatização. Durante os 20 anos que ainda
durarão as concessões da EGF, os lucros da empresa
em si – pouco mais de cinco milhões de euros em
2012 – não justificariam a compra senão por um
preço muito abaixo dos 150 a 200 milhões de euros
de que já se chegou a falar. Ir buscar mais dividendos
às concessionárias – que juntos geraram 15 milhões
de resultado líquido em 2012 – seria, por outro lado,
um ponto de conflito adicional com os municípios.
Alguns acreditam que o Governo está a tentar
engordar o “dote” da noiva, através de outros
mecanismos. Um deles é o aumento do “valor de
contrapartida” que as empresas de tratamento de lixo
recebem pelos materiais recicláveis. É um montante
substancial – cerca de 20% das receitas das empresas
do grupo EGF – que é pago pela Sociedade Ponto
Verde (SPV), a entidade que gere a reciclagem de
embalagens em nome da indústria. O Governo quer
subir já em 7% este valor. “É algo que só se pode
perceber numa lógica de aumentar as receitas dos
sistemas”, disse ao PÚBLICO, no princípio deste mês,
José Brito Ribeiro, da empresa Sovena, que faz parte
da Embopar, a sociedade que representa os
fabricantes e importadores de produtos embalados.
O mesmo se tem dito do novo regulamento tarifário
aprovado pela ERSAR – a entidade reguladora do
sector – que fixa como se deve calcular a tarifa que as
empresas da EGF cobrarão aos municípios a partir de
2016. Em causa está sobretudo o cálculo da
remuneração a que as empresas concessionárias têm
direito, uma espécie de renda pelas infra-estruturas
que coloca à disposição do serviço público. “Este
regulamento tarifário é para criar circunstâncias
favoráveis ao dono privado da EGF. É uma parte do
puzzle”, diz o presidente da Câmara Municipal de
Loures, Bernardino Soares.
O presidente da ERSAR, Jaime Melo Baptista,
acredita que as fórmulas são equilibradas, a julgar
pelas opiniões expressas no conselho consultivo da
entidade, quando o assunto foi discutido. “Os
operadores achavam que [a remuneração] devia ser
mais alta, os consumidores, que devia ser mais baixa”,
diz Melo Baptista.
O novo regulamento tarifário vai trazer mais controlo
sobre o cálculo das tarifas. Só podem ser
contabilizados os proveitos que tenham a ver com o
tratamento dos resíduos. Haverá metas de eficiência a
serem cumpridas por cada sistema. E a própria
remuneração dos activos estará condicionada à taxa
de uso efectivo das infra-estruturas.
Jorge Moreira da Silva, ministro do Ambiente,
Ordenamento do Território e Energia, tem
argumentado que é o regulamento tarifário que trará
alterações ao sector, e não a privatização. Na quartafeira passada, Moreira da Silva apresentou pela
primeira vez números a indicar que, nos 11 sistemas
controlados pela EGF, a tarifa média pode cair 7%
com as novas normas.
Mas hoje há uma grande diversidade de tarifas nas
empresas da EGF, dos cerca de 20 euros por tonelada
na Valorsul aos 47 euros da Resiestrela. Algumas
podem subir, entre elas a da Valorsul, com
implicações sobre 1,6 milhões de habitantes. É a única
empresa da EGF que tem uma incineradora, que é
uma máquina de fazer dinheiro, responsável por 40%
das receitas da empresa, com a venda de
electricidade. Tal como os parques eólicos e painéis
voltaicos, a inicineradora beneficia de um preço mais
elevado na venda da sua energia, que no entanto
possivelmente cairá no futuro. Com isso, a tarifa terá
de subir.
O interesse pela EGF pode não estar apenas no
mercado dos lixos urbanos. Quem controlar a
empresa – com toda a sua rede de infra-estruturas e
know-how – poderá ficar em excelente posição para
explorar outros negócios com outros tipos de resíduos.
Este é o único temor da Associação das Empresas
Portuguesas para o Sector do Ambiente (AEPSA),
para quem a venda da EGF em si é bem-vinda e traz
vantagens. Mas “uma saudável coexistência de
operadores de resíduos só se conseguirá quando for
absolutamente claro que somente os resíduos sólidos
urbanos entrarão nas concessões detidas pela EGF”,
sustenta a associação, numa nota enviada ao
PÚBLICO.
Muitos autarcas vêem o processo de privatização sob
outro prisma, como a presidente da Câmara Municipal
de Abrantes, Maria do Céu Albuquerque: “O privado
não vem aqui para prestar um serviço público, vem
aqui para ganhar dinheiro”.
Armas e objectivos diferentes
Que a privatização está a abrir uma guerra entre o
Governo e os municípios não há dúvida. Mas nem
todos parecem querer lutar com as mesmas armas,
nem pelos mesmos fins.
A via judicial só foi utilizada até agora uma vez. Numa
providência cautelar que intentou há pouco mais de
uma semana, a Câmara Municipal de Loures
argumenta que a maioria do capital da Valorsul tem
de ser pública e isto só pode ser alterado pelos sócios
em sede própria, o que não foi feito.
A providência cautelar argumenta ainda que a
privatização, na prática, levará à extinção da própria
Valorsul. A empresa foi criada exclusivamente para
gerir um sistema multimunicipal –, ou seja, onde o
Estado tem uma intervenção directa. Mas, com a
venda da EGF, o Estado deixa de ter esta intervenção
e o sistema multimunicipal, por isso, deixa de existir
legalmente.
O ministro do Ambiente tem-se recusado a comentar
as acções judiciais, dizendo que é um assunto que diz
respeito exclusivamente aos municípios. Mas afirmou
na quarta-feira que a movimentação contra a
privatização “é um autêntico tiro no pé”, pois vai
desvalorizar a EGF perante os concorrentes.
O Governo também não deu até agora qualquer
indicação de como se defenderá das acções em
tribunal. Uma possível saída seria decretar o interesse
público da privatização.
Ainda não é certo se haverá ou não uma chuva de
providências cautelares. A Associação de Municípios
da Região de Setúbal já anunciou que também vai
avançar. Mas outros municípios estão a escolher
outras vias. Os 25 que são servidos pela Valnor – do
Alto Altentejo e parte da Beira interior – querem
exercer um direito que está num acordo parassocial
da empresa: o de comprar, antes da privatização, as
acções suficientes para obter a maioria do capital.
“Não nos opomos à entrada do capital privado. Mas
entendemos que o domínio deve manter-se público”,
justifica Maria do Céu Albuquerque, da Câmara de
Abrantes.
Entre os municípios que integram a Valorlis –
concessionária que serve a Região Oeste – há uma
grande preocupação por não se saber o valor mínimo
a que eventualmente poderão vender a sua
participação na empresa ao comprador da EGF – uma
possibilidade prevista no processo de privatização.
Isto mostra que, na guerra em torno da privatização,
nem todos têm os mesmos objectivos. “Não temos
nada contra a privatização da EGF, mas queremos
poder partilhar dos benefícios”, diz Paulo Santos,
presidente da Câmara Municipal da Batalha. Os
privados, diz Paulo Santos, terão vantagens que não
estavam previstas até agora. Por exemplo, o aumento
do prazo da concessão à Valorlis de 2021 para 2034
“tem um valor económico”, explica o autarca.
Além disso, se a concessão terminasse em 2021 e a
tutela regressasse aos municípios, estes poderiam
ficar desde logo com as infra-estruturas. “Poderíamos
fazer duas coisas: ou gerir ou vender. Agora não
podemos fazer nada”, completa Paulo Santos.
A guerra promete mobilizar sobretudo sistemas de
grande importância, pelo seu valor no seio da EGF e
pelo peso político. Não é por outro motivo que a
principal batalha está a ser travada na Valorsul, com o
socialista António Costa e o comunista Bernardino
Soares como principais protagonistas.
Foi aí que os sindicatos também começaram a sua
luta, como uma greve em Março. No auge da
paralisação, Lisboa decidiu enviar os seus lixos para a
vizinha Tratolixo, contra a exclusividade que tem com
a Valorsul. E António Costa prometeu quebrar esse
monopólio e procurar outras alternativas, caso a
privatização avance.
Por ora, a Tratolixo não seria, certamente, a melhor
alternativa, dado que esta empresa actualmente envia
à própria Valorsul boa parte dos seus resíduos. O
presidente da Câmara Municipal de Sintra, Basílio
Horta, diz, no entanto, que a Tratolixo está solidária.
“A nossa intenção não é procurar clientes. Mas não
podemos fechar as portas”, afirma.
A Norte, a Lipor - que congrega apenas municípios,
sem a EGF – vê na privatização, uma janela para
maximizar o uso da sua incineradora com resíduos
que eventulamente venham de outros concelhos. E há
empresas privadas também já a movimentar-se, à
boleia do conflito da privatização. À Associação de
Municípios do Vale Douro Norte – que está no sistema
multimunicipal gerido pela Resinorte – já chegou uma
proposta de uma tecnologia alternativa para tratar os
seus resíduos urbanos.
Com muitos interesses e armas em jogo, a guerra do
lixo deixa de fora ainda uma questão para a qual
alerta José Eduardo Martins, ex-secretário de Estado
do Ambiente: o que acontecerá depois de terminado o
período de concessão em 2034 e a tutela do lixo voltar
para as autarquias. “O Estado vai fazer um encaixe
agora, mas vai deixar o caos completo”, antecipa.
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