Violência de género: factos e discursos Mª José Arthur WLSA Moçambique O que é a violência doméstica? • No âmbito da lei, é todo o acto contra a mulher, que provoque danos físicos, sexuais, psicológicos ou económicos, a imposição de restrições ou privação arbitrária das liberdades na vida pública ou privada. • Caracteriza-se por uma situação de dominação ou tentativa de dominação das mulheres que traz como resultado a sua subordinação. Factos & Discursos • A violência doméstica manifesta-se através de práticas, mas tem também uma expressão discursiva • Esta expressão discursiva vai no sentido de: – i) legitimar a ordem patriarcal e as suas instituições – ii) justificar a violência contra as mulheres como legítima • Os mitos que se constroem à volta da violência doméstica são uma das formas por que se expressam esses discursos Há muitos mitos sobre a violência doméstica • Hoje em dia, apesar de não ser mais possível ignorar que a violência doméstica contra as mulheres é um problema sério, é comum encontrar uma série de mitos que tendem a justificá-lo ou a minimizá-lo. O que são mitos? • Mitos são ideias ou rumores que não procuram explicar as condições em que surge a violência, sendo de facto construídos para ocultar os fundamentos sociais e culturais que estão na sua origem, e servem para negar a amplitude do fenómeno. • Propõem falsas explicações para o problema, impedem que se ataquem as causas reais e se possa assim operar a mudança. • Os mitos são usados como contraargumentos, não trazem novos elementos para a compreensão do problema mas, pelo contrário, tenta-se travar a denúncia crescente das mulheres contra as violências que sofrem por parte dos homens. Mito: A violência doméstica afecta só uma pequena parte da população • Realidade: Embora as agressões cometidas no âmbito doméstico sejam um tipo de crime muito pouco denunciado, sabe-se que a sua incidência é alta. Uma parte das mulheres vítimas de violência doméstica vem a falecer em consequência dos maus tratos. Mito: As mulheres batem nos homens com a mesma frequência com que os homens batem nas mulheres • Realidade: Estudos realizados sobre este assunto em Moçambique, nos países da África Austral e no mundo, mostram que na grande maioria dos casos de violência doméstica as agressões são cometidas pelos homens. E mesmo quando uma mulher usa de violência contra o seu parceiro, geralmente é por motivo de auto-defesa. Mito: O comportamento das vítimas é que provoca a violência. As vítimas podem aprender a não provocar a violência • Realidade: A violência nunca pode ser justificada pelo comportamento dos outros. A violência contra outra pessoa é um crime. Usar de violência é uma escolha do agressor e não da vítima. Apesar disso, muitas das vítimas são acusadas por amigos, familiares, agentes de polícia nas esquadras e até pessoal de saúde, por não saberem pôr fim à sua própria situação de abuso. Mito: O álcool, os problemas económicos e as doenças mentais são as maiores causas da agressão • Realidade: Embora possam ser factores, na realidade eles são mais desculpas do que causas. A violência doméstica é um comportamento aprendido e não uma reacção descontrolada. Resolver os problemas acima citados não acaba necessariamente com a violência. Mito: A violência do parceiro contra a esposa ou companheira é um problema doméstico, privado, e ninguém tem nada a ver com isso • Realidade: A violência doméstica afecta a vida das mulheres e das crianças que a sofrem. Tudo o que interfira com o usufruto dos direitos de qualquer cidadão deve ser activamente combatido pelo Estado e pelas suas instituições. O crime de agressão em casa é tão grave como no espaço público. Ao nível particular como se constroem os discursos? • O discurso dos agressores são discursos sobre normas, quer dizer, invocam o desrespeito pelas normas como causa da violência • Justificações empregues: – Para ensinar (por não cumprirem com as suas “obrigações”) – Para garantir o respeito – Para mostrar quem manda De notar que: • Pode haver reprovação de quem exerce uma violência que fere ou mata, mas a violência contra as mulheres é entendida como algo legítimo • Esta legitimidade é aceite tanto por homens como por mulheres Violência doméstica: problema silencioso e silenciado • Silencioso – porque as vítimas sofrem em silêncio e caladas; têm vergonha que se saiba que são batidas pelo marido • Silenciado – porque a sociedade tem uma grande tolerância em relação a este tipo de violência; tolerância na família, no bairro, na igreja, na polícia, no tribunal, etc. Estes discursos e estas ideias interferem com a aplicação das leis em Moçambique • Muitos agentes do sistema da justiça e uma grande parte dos cidadãos não concorda com as leis que defendem os direitos das mulheres. Por exemplo: • Lei da Família - 2004 • Lei da violência doméstica praticada contra a mulher - 2009 Funcionamento das instituições do Estado quanto ao atendimento às vítimas • Muitas mulheres que querem denunciar são mal atendidas nas esquadras de polícia • Frequentemente são aconselhadas a retirar as queixas e a tratar do caso em instâncias familiares ou comunitárias • Não é dada protecção policial à mulher que denuncia, nem aos seus filhos • Não são dispensadas verbas para a investigação criminal • A proporção de denúncias que transitam para os tribunais é muito pequena • O atendimento na saúde muitas vezes é precário e chega-se a cobrar taxas por exames legais Está-se perante uma situação de revitimização • Quando a vítima sofre as consequências secundárias do crime: • Decorrentes das reações da sociedade (p. ex., preconceito, estigmatização) • Do mau funcionamento do Estado em lidar com a situação (p. ex., constrangimentos quando procura a polícia, o vexame de ser submetido a uma perícia legal em caso de violência sexual, etc.) • Riscos de retaliação do próprio criminoso • Da imprensa (exploração irresponsável do drama pessoal, divulgação do nome e fotografia da vítima, etc.) • Tem o efeito de aumentar o sofrimento, a humilhação, a vergonha e a revolta da vítima Outros problemas com a aplicação da lei • Desconhecimento da lei • Falta de recursos • Ausência de articulação entre as várias instituições e entre estas e a sociedade civil • Pouca cobertura da rede sanitária • Pouca cobertura da rede judicial • Interferência dos tribunais comunitários Violência doméstica: que direitos estão a ser violados? • A violência contra a mulher reduz ou anula o gozo dos seus direitos humanos e das suas liberdades fundamentais, garantidos pelo direito internacional e constitui discriminação. Esses direitos e liberdades compreendem: • O direito à vida; • O direito a não ser submetido a torturas ou a tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes; • O direito à protecção em condições de igualdade, com recurso a normas humanitárias em tempo de conflito armado internacional ou interno; • O direito à liberdade e à segurança pessoais; • O direito à igualdade perante a lei; • O direito à igualdade na família; • O direito ao mais alto nível possível de saúde física e mental; • O direito a condições de emprego justas e favoráveis.