ESTUDOS DE
PSICANÁLISE
ISSN - 0100-3437
Publicação do
Círculo Brasileiro de Psicanálise
Novembro/2009 – Aracaju-Se
Número 32
Estudos de Psicanálise
Aracaju-Se
N. 32
P. 13 - 190
Novembro /2009
Indexada em:
CLASE (UNAM – México)
IndexPsi Periódicos (BVS – PSI) – www.bvs-psi.org.br
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
ANPPEP – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia
Esta revista é encaminhada como doação para todas as bibliotecas
da Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de Psicologia – ReBAP
Ficha Catalográfica
ESTUDOS DE PSICANÁLISE. Aracaju. Círculo Brasileiro de Psicanálise,
n.32, nov., 2009. 190 p.
Semestral. ISSN: 0100-3437 – 28 x 21cm
1. Psicanálise – periódicos
Revista Estudos de Psicanálise
EDITORES DA REVISTA
Déborah Pimentel (CPS)
Ricardo Azevedo Barreto (CPS)
CONSELHO EDITORIAL
Cecília Tereza Nascimento Rodrigues (CPS)
Déborah Pimentel (CPS)
Maria das Graças Araújo (CPS)
Patrícia Aranda Garcia de Souza (CPS)
Ricardo Azevedo Barreto (CPS)
CONSELHO CONSULTIVO
Anchyses Jobim Lopes (CBP/RJ)
Carlos Antônio Andrade Mello (CPMG)
Carlos Pinto Corrêa (CPB)
Cibele Prado Barbieri (CPB)
Fernando Cesar Bezerra de Andrade (SPP)
Isabela Santoro Campanário (CPMG)
Luis Martinho Ferreira Maia (SPP)
Marcelo Wanderley Bowman (CPP)
Noeli Reck Maggi (CPRS)
Stetina Trani de Menezes e Dacorso (CBP/RJ)
Rodrigo Cardoso Ventura (CBP/RJ)
CAPA
Trabalho em tapeçaria
Título: Madona com cactus
Maria Aparecida Nascimento Dias
Psicóloga e Psicoterapeuta infantil
Imagem cedida pela autora
ENDEREÇO DA REDAÇÃO
Praça Tobias Barreto, nº 510 – São José
Ed. Centro Médico Odontológico,
12º andar, s. 1208
CEP: 49015 - 130, Aracaju/Se
[email protected]
www.cbp.org.br
PROJETO GRÁFICO
Valdinei do Carmo
EDITORAÇÃO DE TEXTO E IMAGEM
Antônio Almeida
Valfredo Avelino dos Santos
REVISÃO
Prof. José Araújo Filho (UFS)
Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP
DIRETORIA
Presidente
Déborah Pimentel
Vice-presidente
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Primeira Secretária
Patrícia Aranda Garcia de Souza
Segunda Secretária
Maria das Graças Araújo
Primeira Tesoureira
Cecília Tereza Nascimento Rodrigues
Segunda Tesoureira
Patrícia Aranda Garcia de Souza
Editores da Revista
Déborah Pimentel e Ricardo Azevedo Barreto
Consultoria Administrativa e Diretoria Científica
Carlos Pinto Corrêa
Cibele Prado Barbieri
Maria Mazzarello Cotta Ribeiro
Anchyses Jobim Lopes
Revista Eletrônica e home-page
Cibele Prado Barbieri
Representante junto à Articulação das
Entidades Psicanalíticas Brasileiras
Anchyses Jobim Lopes
Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP
INSTITUIÇÕES FILIADAS
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Círculo Psicanalítico de Minas Gerais - CPMG
R: Maranhão, 734/3º andar – Santa Efigênia
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Círculo Psicanalítico de Pernambuco - CPP
R: Desembargador Martins Pereira, 165 – Rosarinho
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Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul - CPRS
R: Senhor dos Passos, 235/1001 – Centro
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Círculo Psicanalítico de Sergipe – CPS
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Círculo Psicanalítico da Paraíba - SPP
Av. Presidente Epitácio Pessoa, 753 sl. 803/804 – Bairro dos Estados
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Sumário
11
13
23
31
39
45
51
71
81
91
95
Editorial
Luto e melancolia versus Distimia
Mourning and melancholia versus dysthymia
Anchyses Jobim Lopes
O máximo no mínimo
The maximum at least
Carlos Perktold
O homem contra o sujeito
Man against subject of unconscious
Carlos Pinto Corrêa
Perversão, humor e sublimação
Perversion, humor and sublimation
Cibele Prado Barbieri
Síndrome do pânico: angústia avassaladora? Quadro
nosológico?
Panic Syndrome: overwhelming anguish? Nosologia
symptom?
Clovis Figueiredo Sette Bicalho
Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
End of analysis: a systematic revision of literature
Déborah Pimentel
Maria das Graças Araújo
Maria Jésia Vieira
Mães e crianças vivendo com hiv/aids: medo,
angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade
HIV – Positive mothers and children: fear, anguish and
silence making childhood invisible
Juliana Marques Caldeira Borges
Jorge Andrade Pinto
Janete Ricas
Transgressão, crime, neurociências: impasses aos
saberes da psicanálise?
Transgression, crime, neurosciences: impasses to the
knowledge of psychoanalysis?
Julio Cesar Diniz Hoenisch
Pedro José Pacheco
Carlos da Silva Cirino
Mecanismos oníricos e figuras de linguagem
Oniric mechanisms and figures of speech
Luís Maia
Desafios da formação psicanalítica: reflexões em
torno da análise do analista
Psychoanalytical formation challengers: reflexions about
the analyst’s psychoanalysis
Marcelo Wanderley Bouwman
The interpretation in psychoanalytic studies
Maria Beatriz Jacques Ramos
103 A interpretação nos estudos psicanalíticos
111
Transamérica: na encruzilhada da sexuação
Transamerica: on the crossroads to sexuation
Marli Piva Monteiro
117
As diferenças que nos constituem e as perversões que
nos diferenciam
The differences which constitute us and the perversions
which differentiate us
Mercês Muribeca
129
141
147
153
Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?
A clinic case and a theorical dilemma: neurosis or
psychosis?
Nadja Ribeiro Laender
A criança em situações de adoção e a clínica
psicanalítica: o registro identificatório e os recursos
no processo de simbolização
The adopted child and the psychoanalysis: the
identificatory register and the sources in the
symbolization process
Noeli Reck Maggi
Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente
Psychoanalysis and Dentistry in the unconscious
rebellion
Ricardo Azevedo Barreto
Marlene Guirado
Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à
diferença
The paradoxes of the concept of resistance: from the same
to the difference
Rodrigo Ventura
163
Incesto: caminhos e descaminhos frente ao horror
Incest: path and deflect front of the horror
Stetina Trani de Meneses e Dacorso
171
Algumas evidências da fundação ética da psicanálise
em ‘A psicoterapia da histeria’
Some evidences of the ethical foundation of
psychoanalysis at ‘The Psychotherapy of Histeria’
Vinicius Anciães Darriba
Anne Marcelle Coelho Bencke
Erick Bonatelli Cardim
Paula Beatriz Mitter de Carvalho
Dirceli Adornes Palma de Lima
Germano Manoel Pestana
Diviane Helena de Oliveira
181
Psicanálise e religião
Psychoanalysis and religion
Tarcisio Andrade
186
190
Normas de Publicação
Roteiro de avaliação dos artigos
Editorial
Com o passar dos anos, O Círculo Brasileiro de Psicanálise alcança, em 2009,
o número 32 da revista Estudos de Psicanálise, marca histórica de lutas e conquistas. Neste volume, comemorativo dos 40 anos do nosso periódico, procuramos fazer
um recorte da pluralidade fecunda do pensamento psicanalítico em nosso meio com
contribuições de importantes membros de nossa Federada e expoentes de diferentes
instituições de nosso país.
Ressaltemos que nossa revista, lançada em 1969, é uma publicação científica,
indexada nas bases de dados CLASE (UNAM-México) e IndexPsi Periódicos (BVSPSI), bem como distribuída à totalidade da Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de
Psicologia, ultrapassando as fronteiras da brasilidade ao alcançar diversos outros países, por exemplo, por meio do portal PEPSIC- Periódicos Eletrônicos em Psicologia
[www.bvs.psi.org.br]. Não podemos deixar de agradecer as contribuições desbravadoras dos editores anteriores da revista, à guisa de ilustração, Carlos Perktold (MG) e
Cibele Prado Barbieri (Ba).
Sentimo-nos honrados no biênio vigente por Sergipe ter representatividade na
Presidência e Diretoria do Círculo Brasileiro de Psicanálise, produzindo esta renomada publicação na articulação dos esforços de todos nós. Por outro lado, fomos agraciados com uma capa nas cores do Nordeste que reveste os preciosos escritos que aqui se
encontram com a sensibilidade de uma artista local e o trabalho de muitos.
No reconhecimento das condições particulares de construção do saber psicanalítico e de sua práxis, cabe na atualidade a criativa reinvenção da Psicanálise com os
pensadores deste campo epistêmico e psicanalistas em seu cotidiano. A falta marca
nossos processos de subjetivação, e a História não tem fim, enquanto existirem aqueles que a façam às rupturas da repetição.
Portanto, o respeito às lições de Freud e seus seguidores e o desvelar contínuo
do não saber balizam os movimentos necessários aos profissionais de um novo tempo
em suas reconstruções teóricas e metodológicas assentadas na Ética psicanalítica. É
nos meandros, e não nos esquecimentos, da relação entre passado e presente que a
recriação psicanalítica se mostra potente à resistência da banalização do sofrimento
no mundo pós-moderno.
Nosso desafio é ainda maior nas cenas da contemporaneidade...
Déborah Pimentel e Ricardo Azevedo Barreto
Editores
Luto e melancolia versus Distimia1
Mourning and melancholia versus dysthymia
Anchyses Jobim Lopes2
Palavras-chave
Tratamento das depressões, hipermedicalização, tempo e experiência trágica.
Resumo
O uso excessivo de remédios psiquiátricos, principalmente nos quadros de depressão. A utilização
das classificações internacionais contemporâneas como facilitadoras desse abuso. A simplificação de
vários quadros clínicos diferentes sob o rótulo de distimia. A ideologia cognitivo-comportamental e
reducionista induzindo à medicalização. A Psicanálise como método terapêutico e visão de mundo
opostas às daquelas que embasam o rótulo de distimia. Tempo, finitude e experiência trágica da vida.
Sei lidar com a infelicidade,
Como aceitar notícias ruins.
Posso diminuir a injustiça,
Iluminar a ausência de Deus,
Ou escolher o melhor véu que combine com sua face.
O que está esperando –
Tenha fé em minha compaixão química.
(...) Venda-me sua alma,
Não há outros interessados.
(de ‘Anúncio’, Wislawa Szymborska)
INTRODUÇÃO: ‘VAI UM PROZAC AÍ?’
Tanto na clínica social do CBP-RJ,
quanto no trabalho de consultório e no relato de alunos e colegas, é impressionante a hipermedicalização com a qual chegam quase
todos os pacientes. Seja quanto ao número
de remédios, seja quanto à dose dos mesmos. O fenômeno não atinge apenas aqueles
que poderiam receber o diagnóstico antigo
de ‘depressão’, mas a todos os quadros clínicos, mesmo os mais leves.
Já data de várias décadas o fato de que
os fármacos psiquiátricos são receitados
não apenas por psiquiatras, mas, principalmente, por médicos das mais diversas
especialidades e, em grande parte, por neurologistas. A má fama causada pelos abusos
do poder psiquiátrico, o medo de procurar
médico de maluco, aliados à propaganda
pelos meios de comunicação de massa sobre as descobertas da neurociência, tudo
somado à leitura de autores de grande popularização, como Oliver Sacks, tudo parece corroborar para que o neurologista seja
visto por muitos como um especialista dotado de um saber mais científico e confiável
que o psiquiatra.
1 Trabalho parcialmente apresentado em versão mais breve no XVII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise/VII Jornada Sergipana de Psiquiatria – Interfaces entre a Psicanálise e a Psiquiatria, Aracaju, SE,
30/10 a 1/11 2008.
2 Médico pela UFRJ, residência médica e mestre em Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Bacharel, mestre e doutor em Filosofia pelo Instituto de Filosofia da UFRJ. Professor adjunto de Psicopatologia
Geral e Especial de graduação e especialização em Psicologia da UNESA. Membro efetivo e psicanalista do
Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção Rio de Janeiro. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção
Rio de Janeiro 2000-04 e 2008-10. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise 2004-06.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009
13
Luto e Melancolia versus Distimia
Mas o fenômeno da hipermedicalização psiquiátrica atinge todas as especialidades. Quem não passou pela experiência,
ou conhece algum familiar ou amigo, que
saiu da consulta médica, em qualquer especialidade, mas especialmente clínicos gerais, com uma prescrição da droga mais em
moda: Lexotan, Prozac, Rivotril?
Nas supervisões coletivas da clínica social e individuais dos candidatos em
formação, é constante a procura do tratamento de crianças vindas com diagnóstico
de TDA, e sempre medicadas. Igualmente
constante é a descoberta de que o problema
seja principalmente desarmonia familiar ou
outros conflitos ambientais, bem como inútil a medicação.
Nas grandes metrópoles brasileiras e
mesmo nas cidades de porte médio, é fácil
a constatação visual do número impressionante de farmácias, em sua maioria lojas
lindas e pertencentes a grandes redes. Lojas
tão reluzentes, belas e cheias de mercadorias
desejáveis como quaisquer outras do grande consumo. O que confirma a constatação
feita há vários anos por um cidadão inglês,
funcionário de uma grande transnacional,
pessoa viajada por grande parte do Ocidente e Oriente, de que: “em qualquer grande
cidade do mundo há um botequim (pub)
em cada esquina, mas no Brasil também há
uma farmácia em cada esquina”. Hoje consideramos errada essa afirmação: há pelo
menos duas farmácias em cada esquina.
DSM-IV E CID-10: OU COMO
MEDICALIZAR SEM FAZER ESFORÇO
O carro-chefe da antiga psiquiatria,
fundada por Emil Kraepelin ([1919, 1921]
1991) e Eugen Bleuler ([1924] 1976) ao final do século XIX e as primeiras décadas do
século XX, possuía por fulcro a esquizofrenia. A partir da década de 60 do século passado, com o movimento da antipsiquiatria
e a partir de críticos e pensadores do porte de um Michael Foucault, a denúncia de
14
que o diagnóstico de esquizofrenia servia
para toda sorte de controles sociais e atrocidades, obrigou a mudança do eixo da psiquiatria. Pelo Ocidente afora, se difundiu o
movimento antimanicomial, que teve como
a mais famosa de suas consequências a proposta de desativação dos hospícios, a partir
do trabalho de Franco Basaglia, na Itália, e
que chegou até o Brasil, tendo seu ápice na
Lei Paulo Delgado. Num movimento paralelo de mudança da grande influência cultural, o eixo da Psiquiatria foi transferido
da Europa aos Estados Unidos. No Brasil os
nomes e tratados europeus – Mayer-Gross
(1969), Bleuler (1976), Henry Ey (1974),
Alonso-Fernández (1976) – foram substituídos quase que exclusivamente por um
único título americano – Kaplan-Saddock
(2007) -. Esse compêndio, em um volume,
é em si mesmo o resumo de um tratado em
três volumes com edições e leitura muito mais restritas, também é utilizado com
exclusividade nos cursos de graduação em
Psicologia. E, como mudança clínica mais
importante, a doença base da psiquiatria transferiu-se da esquizofrenia para a
‘depressão’.
Foram bastante criticadas as modificações ocorridas nas últimas classificações
internacionais a CID-10 (1993) e a DSMIV (2002) (apesar de referir-se à psiquiatria
americana, o uso da DSM-IV ultrapassa
muito suas fronteiras, de modo que também podemos considerá-la uma classificação internacional). Se, por um lado, em
itens como em transtornos somatoformes
e transtornos dissociativos, houve a criação
de diagnósticos novos e mais precisos, assim como houve um pequeno abrandamento na possibilidade de colocar em qualquer
paciente mais grave o rótulo de esquizofrenia, por outro lado o abandono de diagnósticos clássicos, que tivessem alguma origem
psicanalítica ou em uma compreensão dinâmica dos transtornos, foi muito recriminado. As mais novas versões das classificações internacionais, além da preocupação
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009
Luto e Melancolia versus Distimia
obsessiva em se desvencilhar de tudo que
pudesse cheirar a Psicanálise, também o
fizeram com toda antiga psiquiatria originária da psicopatologia fenomenológica.
Psicanálise e Fenomenologia partem de
conceitos de sujeito, as classificações atuais
tentaram justificar-se por um objetivismo
absoluto, logicamente também necessitam
de uma psicologia dessubjetivada.
As novas versões das classificações
internacionais tiveram por meta a construção de diagnósticos meramente descritivos,
seguidos de longas listas de sintomas. A
nosologia psiquiátrica tornou-se uma série
de listas de sintomas, seguidas de receitas
fáceis para a obtenção de rótulos diagnósticos. Listas utilizáveis com simplificação
exagerada por qualquer tipo de profissional, novamente conduzindo ao abuso do
conhecimento psiquiátrico, desta vez através da excessiva possibilidade de rotulação e, consequentemente, fornecendo um
substrato pseudocientífico para a hipermedicalização. Também é apontada a ideologia subjacente a DSM-IV e CID-10, profundamente comprometidas com a teoria
cognitivo-comportamental. A psicanalista
e historiadora Elisabeth Roudinesco (2008,
p.187) resume o projeto das classificações
internacionais:
(...) abandonar definitivamente a terminologia psicanalítica, psicodinâmica ou fenomenológica – que humanizara a psiquiatria
durante 60 anos dotando-a de uma filosofia
do sujeito -, para substituí-la por critérios
comportamentais dos quais estava excluída
qualquer referência à subjetividade.
Um excelente estudo realizado e publicado no Brasil por um psiquiatra – A psiquiatria no divâ – entre as ciências da vida
e a medicalização da existência (AGUIAR
2004) -, confirma, através de um estudo
prático, a hipermedicalização e confirma
as críticas feitas às classificações internacionais (acreditamos que o título do livro
deva ter sido uma escolha comercial, não
há conceitos ou interpretações psicanalíticas maiores no texto). Mas, e nisso consideramos o grande mérito do livro, o autor
estuda criteriosamente os mecanismos de
indução ao consumo de remédios psiquiátricos. Mostra como os diagnósticos e listas da DSM-IV e CID-10 serviram a uma
difusão simplificada, mecanicista e nada
terapêutica dos diagnósticos psiquiátricos,
como essa simplificação foi utilizada pelos
grandes laboratórios para propaganda de
seus produtos e como essa propaganda é
comercialmente difundida não apenas pelas
publicações médicas, mas, principalmente,
pelos meios de comunicação de massa. O
reducionismo nosológico tornou a rotulação psiquiátrica acessível não apenas aos
profissionais de outras áreas, mas ao público leigo em geral. Sem ter crítica da manipulação mercadológica, os diagnósticos
são vendidos à população, seja em artigos
de revistas e jornais ou pela televisão e pela
internet. Sempre sob a capa de descobertas
científicas novíssimas e revolucionárias, reduzindo uma doença ou traço de comportamento a uma explicação genética, algo do
tipo: foi descoberto o gene que torna levadas
as crianças, ou por que os homens tendem
a ser mais infiéis que as mulheres, ou você
pensa que está desanimado com a vida, mas
pode ser distimia. Em revistas tais matérias
são frequentemente seguidas com listas de
perguntas em questionários com o título:
veja se você também tem...
A observação corriqueira mostra
como os diagnósticos e listas de sintomas
possuem difusão em revistas semanais, em
publicações para o público feminino e em
revistas de divulgação científica popularizada (usualmente todas das mesmas editoras). Aguiar (2004) descreve que, induzidos
à crença reducionista de que todo o problema advém do transtorno X ou Y, o público
já chega ao consultório ou ambulatório, de
qualquer nível social, trazendo seu próprio
diagnóstico: doutor eu sou bipolar. Sairia
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009
15
Luto e Melancolia versus Distimia
do escopo do atual trabalho uma crítica de
como, mais recente que o termo distimia,
o termo bipolar tornou-se um modismo,
aproveitando-se das variações humanas
universais do humor ao longo dos dias.
Para quem trabalhou extensa e intensivamente em instituições psiquiátricas, e lidou
com pacientes verdadeiramente portadores
da antiga psicose maníaco-depressiva, hoje
transtorno depressivo maior e transtorno
bipolar, a vulgarização do termo bipolar
soa ofensiva à gravidade dos sintomas dos
reais portadores do transtorno e de seu
sofrimento.
Diante de tal certeza autodiagnóstica
– eu sou bipolar -, os médicos, principalmente os de emprego público ou que sobrevivem de convênios (isto é, quase todos),
profissionais mal remunerados, com poucos minutos para a consulta, são sutilmente, ou não tão sutilmente, obrigados a ceder
ao pedido do paciente pela droga que solucionará todos os seus problemas. O pedido
terá mais sucesso se o médico já tiver sido
bombardeado pela visita de representantes
de laboratórios, pela propaganda em revistas médicas, por uma formação precária ou
nula em Psiquiatria e, também, pelos mesmos meios de comunicação que atingiram
o paciente. Se não atender ao pedido do
paciente, e sem tempo e ânimo para contra argumentar, o médico carregará para o
resto de sua vida a culpa de não ter dado ao
doente o remédio que solucionaria todos os
seus problemas.
DISTIMIA: UM EMBRULHO SÓ
A mais grave consequência dessa mudança ideológica da criação de novos diagnósticos ocorreu nos transtornos do humor. Nesse item, a DSM-IV e, em um grau
quase imperceptivelmente menor na CID10, sob a capa de uma suposta cientificidade, produziram uma involução diagnóstica.
Na fúria para eliminar o termo ‘neurose’,
as classificações fundiram os diagnósticos
16
de neurose depressiva e personalidade depressiva em uma única categoria clínica: a
distimia. Na psicopatologia geral, a palavra
distimia referia-se a um sintoma, o da quebra súbita do controle do humor, como, por
analogia, disbulia refere-se à quebra súbita
do controle da vontade. Contrariamente a
sua origem etimológica, o termo distimia
foi elevado de sintoma à categoria de diagnóstico. Ao mesmo tempo, o novo uso do
termo distimia o tornou impreciso em relação a sua fronteira com o diagnóstico de
transtorno depressivo maior.
Na neurose depressiva ou depressão
neurótica, temos um quadro de hipotimia,
surgido a partir de um tempo preciso ou
não, mas que nitidamente não existia antes,
pelo menos em gravidade. Um quadro clínico que, em sua maioria, não é incapacitante para a vida social e para o trabalho.
Na neurose, a ‘depressão’ surgiu há um tempo determinado, incomoda seu portador,
muitas vezes com a mescla de ansiedade
e depressão ansiosa, e o paciente procura
pelo tratamento. As pessoas à volta do paciente podem ou não sofrer com seu transtorno, mas é bem claro que ele sofre muito
mais. Certamente trata-se mais de um sintoma subjetivo do que de um sintoma social
(aqui nos referimos aos sintomas sociais
como transtornos socialmente desagregadores, desde os conflitos intersubjetivos até
legais, e não ao conceito psicanalítico de
laço social). A experiência clínica mostra
como tais pacientes não reagem ou reagem
mal aos antidepressivos. Entre pesquisas
que classificam taxas altíssimas de incidência e prevalência da ‘depressão’, os pacientes
com neurose depressiva constituem um dos
grandes mercados para tratamentos psicoterápicos de todos os tipos. Até a CID-9 o
diagnóstico de depressão neurótica fora
mantido.
Em paralelo, na mesma classificação
anterior, entre os transtornos de personalidade, era incluído o transtorno afetivo de personalidade, no qual podiam ser englobados,
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009
Luto e Melancolia versus Distimia
também, os diagnósticos de personalidade
depressiva e de personalidade ciclotímica.
Ainda existia em tratados de psiquiatria um
termo mais remoto: a personalidade hipomaníaca. Em todos esses diagnósticos, o sintoma
é muito mais social que subjetivo. O paciente sofre menos que os outros a sua volta ou,
então, simplesmente não sofre. Raramente o
portador de um transtorno de personalidade
busca tratamento. E, como em todos os outros transtornos de personalidade, aqueles
associados com a afetividade também não
respondem à medicação. Caricaturalmente, a personalidade depressiva é rotulada por
muitos de síndrome da hiena, em referência a
um antigo desenho animado infantil, em que
a personagem, eternamente queixosa e pessimista, sempre repetia: ó vida, ó azar! Quando
associado a queixas hipocondríacas, o diagnóstico é facilmente identificável para o leigo:
aquelas pessoas que você se arrepende de perguntar – como vai?
A distinção de neurose e transtorno
de personalidade é equivalente na obra de
Freud à distinção entre neurose transferencial e neurose de caráter, que culminou
possuindo por fulcro a distinção psicanalítica entre ego-distônico e ego-sintônico,
diferença estrutural básica para a clínica.
Curiosamente, os mentores do DSM-IV, em
sua ojeriza à Psicanálise, esqueceram de retirar esse conceito, revelando como mesmo
a mais descritiva das classificações torna-se
incompreensível sem alguma compreensão dinâmica. Na DSM-IV, lemos (2002, p.
642): “(...) as características que definem um
Transtorno de Personalidade podem não
ser consideradas problemáticas pelo indivíduo (i.e., os traços são ego-sintônicos)”.
A classificação atual manteve a categoria genérica dos transtornos de personalidade, mas retirou qualquer diagnóstico
referente aos transtornos afetivos de personalidade. Além do transtorno depressivo de
personalidade, também foram suprimidos
os transtornos de personalidade ciclotímico
e hipomaníaco. Tratou-se de uma exclusão
específica e notória, uma vez que todos os
outros transtornos de personalidade antigos
foram mantidos: obsessivo-compulsivo, histriônico, paranoide, esquizoide, antissocial.
Sendo assim, todo e qualquer transtorno do
humor foi considerado ego-distônico, portanto sempre necessitando de tratamento,
medicamentoso, é claro.
Neurose depressiva e personalidade
depressiva foram fundidas sob a égide da
distimia. E nessa um pequeno item, se considerados todos os outros diagnósticos da
seção de transtornos do humor, antigamente considerados ‘psicóticos’. Qualquer leigo
com acesso à internet ou médico de formação precária em Psiquiatria irá ler hoje a
distimia não entre as neuroses e os transtornos de ansiedade – ‘mais leves’ –, mas ao
lado da antiga psicose maníaco-depressiva
e dos atuais transtornos bipolar e depressivo maior – ‘muito mais graves e sérios’.
Movida por uma ideologia declaradamente antipsicanalítica, a redução de todos
os quadros de depressão não psicótica no
diagnóstico de distimia, embasa a idéia de
que todas as depressões são medicalizáveis.
A aliança da psiquiatria organicista com a
terapia comportamental, que também se expressa com grande intensidade no Brasil, reflete a luta pelo mercado do tratamento das
depressões diante de todas as outras formas
de psicoterapia, principalmente a psicanalítica. A crítica de que a maioria das depressões
neuróticas e das personalidades depressivas
não reage ou reage mal à medicação ficou
obscurecida pela criação do diagnóstico atual de distimia.
O excesso do uso de antidepressivos
tem conduzido a uma revisão crescente de
sua eficácia e de seus efeitos colaterais (bem
compreensíveis, se considerarmos a psicodinâmica dos transtornos de humor), como
o aumento de suicídios, assim como os estudos sobre a cessação de seus efeitos após
certo tempo. As críticas se tornaram ainda
mais agudas nos últimos anos. Se forem reais
as hipóteses do aumento da incidência dos
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009
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Luto e Melancolia versus Distimia
quadros de esclerose múltipla e de doença
de Alzheimer nos países industrializados do
Ocidente, além de causas ambientais como
a poluição, o uso excessivo e continuado de
medicações psiquiátricas terá de ser pesquisado seriamente como uma das possíveis
causas. Mas a ‘era do Prozac’ baseia-se em
mais do que em um conflito de interesses de
mercado.
VINHETA CLÍNICA: CURTA AS
PERDAS E DEIXE DE CURTIR OS
SOFRIMENTOS
Apresentaremos um breve caso clínico. Homem de 54 anos, natural da capital
de um estado do Brasil, de onde veio para
cursar a universidade no Rio de Janeiro,
com formação em área tecnológica, casado,
pai de duas filhas, apresentando na primeira entrevista hipotimia, ansiedade, irritação
e queixas de insônia e fadiga. Os sintomas
relatados tinham surgido há pouco mais de
dois anos e vinham se agravando. Mudara
de clínico geral e, depois, procurara um psiquiatra. Fora medicado com fluoxetina pelo
segundo clínico e com imipramina pelo
psiquiatra. No primeiro caso, relatara melhora, mas o alívio dos sintomas teria cessado após “uns seis meses”; no segundo caso,
relatava que o remédio “descera quadrado”
(sic). Nos últimos seis meses, também apresentara dores precordiais. Procurou um
cardiologista e fez uma série de exames,
inclusive um acompanhamento cardiológico de 24 horas. Foi constatado sofrimento
cardíaco, mas a cineangiocoronariografia não revelava obstruções significativas,
sem haver indicação para uma angioplastia nem, muito menos, uma intervenção
cirúrgica. O próprio cardiologista apontou
causas predominantemente psíquicas e, por
muita insistência de sua filha mais velha,
o paciente acabou procurando tratamento
psicanalítico.
Com duas sessões semanais, após
um início de tratamento em que se atinha
18
a problemas cotidianos, descobrimos uma
conjugação de três fatos principais. Casado
desde que se formara na universidade, aos
23 anos, há mais de quinze anos seu relacionamento com a mulher vinha se deteriorando e nos últimos anos fora reduzido a
quase nada. Sua esposa iniciara uma profissão quando as filhas eram pré-adolescentes;
tinha sido muito bem sucedida, tornandose financeiramente independente. Os dados
do casamento eram relatados com indiferença: “(...) é o destino natural dos casamentos, que nem o de meus pais”.
O paciente tivera uma ascensão profissional contínua desde sua formatura
e trabalhara por dezesseis anos em uma
grande multinacional. Há quatro anos fora
demitido e iniciara uma pequena empresa.
Tinha ciência de que nunca mais galgaria
o status profissional anterior e, embora menor, a renda atual era suficiente, mas não
trabalhava mais na área profissional em que
se formara. Também se sentia solitário e
inseguro por ser o único responsável pela
firma atual.
E, em terceiro lugar, o paciente falava sempre de suas filhas como se fossem
duas adolescentes incapazes e, por falha na
primeira entrevista, eu não havíamos indagado a idade exata delas. Foi com mais de
dois meses de tratamento que fomos surpreendido com o fato de que tinham 25 e
27 anos, já formadas e com pós-graduação,
sendo que a mais velha se preparava para
um pós-doutorado nos Estados Unidos, e
a mais nova planejava brevemente morar
com o namorado.
Passamos dois anos e meio elaborando essas três grandes perdas. O paciente acabou considerando que seu casamento estava “falido” (sic), experimentou
fases de grande raiva e ressentimento com
a mulher, fazendo extensos relatos de todos os problemas ocorridos durante trinta
anos. Apesar de não seguir uma religião,
vimos como sua sólida formação em colégios católicos do interior, bem como sua
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009
Luto e Melancolia versus Distimia
imagem de uma família patriarcal grande
na infância alimentavam uma idealização
sobre casamento e filhos, de cuja importância ele mesmo não tinha consciência.
Também teve de ser feito o luto quanto
à perda de sua posição profissional, pelo
fato de que seu conhecimento profissional se tornara obsoleto, e pela aceitação
da perda da ilusão sobre a falsa segurança, dada por trabalhar para uma grande
empresa, da qual “vestira a camisa” (sic)
e que subitamente o descartara. Luto para
o qual foi mobilizada tanta raiva quanto o do casamento. Quanto às filhas, das
quais sempre fora muito próximo, o paciente passava pela popular síndrome do
ninho vazio, tendo inclusive fantasias de
que o insucesso delas as mantivesse morando consigo. Tanto quanto ao casamento, quanto à profissão e às filhas, era
perceptível o investimento narcísico, o
sentimento de falha em todas as suas reparações de objetos infantis por meio da
família e trabalho e um excessivo eu ideal,
que julgava com severidade seu “fracasso
na vida” (sic).
Após dois anos de tratamento, todos
os sintomas iniciais tinham desaparecido.
Os sintomas cardíacos foram os primeiros,
em menos de seis meses. O paciente divorciou-se, o que, para sua grande surpresa, foi
muito bem aceito pela ex-esposa. Depois
de dois breves relacionamentos, o paciente
passou a ter um “namoro firme” (sic) com
uma mulher alguns anos mais jovem, divorciada e com filhos, companheira com a
qual começou a realizar seu antigo sonho
de viajar mais nas férias. Também passou
a aceitar com maior segurança sua situação
profissional e o afastamento das filhas, com
as quais mantinha contato bastante próximo
e, para exaspero delas, passou, em conjunto
com sua ex-esposa, “a pedir netos” (sic).
Consideramos esse paciente como paradigmático, por ter tido perdas simultâneas nas três grandes áreas mais significativas
da vida para a maioria das pessoas. Mas não
consideramos que tenha sido uma Psicanálise no sentido tradicional do termo. Além do
tratamento apenas com duas sessões semanais, a neurose infantil e a constelação edípica foram trabalhadas, com o reconhecimento
dos ataques aos objetos infantis, para tornar
parte do eu ideal em ideal do eu, permitindo
que o paciente pudesse sentir seus lutos. Porém não se tratou de um trabalho tão extenso
e maciço como havíamos idealizado. Em palavras do paciente, que iniciara o tratamento
se dirigindo a mim como você, mas depois,
durante mais de dois anos, sempre se dirigia a
mim como “senhor” e “doutor”, que “reencarnava” (sic) seu falecido pai. A alta foi solicitada pelo próprio paciente, e não consideramos
que a transferência tenha sido desfeita tanto
quanto desejaríamos. Mas o paciente já não
precisava tanto de seu grande pai da infância
e de todo seu julgamento severo (inclusive do
analista com seu eu ideal em busca da meta
de uma análise ideal).
Nas três áreas mais importantes para
a maioria das pessoas, sob o peso do eu
ideal e de um considerável grau de agressividade recalcada, inconscientemente o
paciente traíra sua via e a si mesmo, “o que
chamo ceder de seu desejo” (LACAN, 1997,
p. 285). Traíra seu coração, no sentido figurado do termo, agora este lhe cobrava, em
sentido concreto, uma libra de carne do coração (SHAKESPEARE, 1990). Hoje a possibilidade de traição é universal, tanto pela
transformação de qualquer um ao longo da
vida, que tem se tornado cada vez mais longa, quanto do mundo, de transformações
cada vez mais rápidas. O que há de comum
entre os 20 anos e os 50? Há de se metamorfosear o desejo, no que apelidamos: “hoje se
passa por várias reencarnações na própria
vida”. Ao final do tratamento, o paciente
relatava que sua vida tinha sido “novamente colocada em movimento”, que acabara a
“estagnação” (sic). Dentre os sintomas da
depressão, o sentimento de estancamento
do presente, sem perspectivas nem fantasia,
cessara.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009
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Luto e Melancolia versus Distimia
PSICANÁLISE: APOLOGIA DO LUTO
E DO TRÁGICO
A Psicanálise foi construída a partir
de uma visão trágica da natureza humana.
Freud era um notório pessimista, e todos os
fatos sócio-políticos da primeira metade do
século vinte reforçaram sua visão de mundo
e da natureza humana. A Psicanálise possui
centrais conceitos como trauma, castração,
objeto, falta, finitude e, principalmente, o
conceito de pulsão, cuja satisfação integral
ou permanente, em obediência ao princípio
de prazer, seria a morte. Mais recentemente, os termos desamparo e ressentimento
apareceram tanto na literatura psicanalítica como em outras áreas do conhecimento
sobre o sujeito (KEHL, 2004). É atribuído
a Freud o dito de que “o estado natural da
humanidade é um estado de branda infelicidade”. Em parte, porque o conceito freudiano de felicidade não é o de uma satisfação exclusivamente individualista, mas o de
realização limitada dentro das possibilidades reais. Satisfação que é fruto de um pacto
que visa à continuidade e produtividade do
sujeito e da sociedade.
A ideologia freudiana está na contramão da ideologia da sociedade de consumo
globalizada, do consumismo desenfreado
e lucrativo, para alguns. Coloca-se contra
o imediatismo do gozo absoluto e mortífero, promessa do consumismo imediato e
irrefreado, e da ilusão de um eu absoluto. A
Psicanálise defende a satisfação parcial ao
longo do tempo finito do eu e da cultura,
procurando aumentar o mais e melhor possível a vida e o pouco deste tempo de que
realmente dispomos, o que só possível se
temos diante de nós o outro.
Mesmo essa possibilidade de felicidade e satisfação bastante limitadas, defendida por Freud e desvirtuada por aqueles
seus seguidores que se tornaram apóstolos
do adaptacionismo, foi criticada por Lacan, que aprofundou o suporte do trágico
na Psicanálise. Uma satisfação, mesmo que
20
dentro dos limites do princípio de realidade, calcada na sublimação e na genitalidade,
Lacan a rotulou como “o serviço dos bens”.
A ética da análise não é uma especulação,
que incide sobre a ordenação, a arrumação, do que chamo serviço dos bens. (...) se
expressa no que se chama de experiência
trágica da vida. (...) a relação da ação com
o desejo que habita a dimensão trágica se
exerce no sentido de um triunfo da morte
(LACAN, 1997, p.375-376).
A sedução do gozo do consumo parte da ilusão de que, preenchendo toda falta,
o tempo presente torne-se absoluto, logo a
morte não exista. Uma vez que o gozo nunca acontece, só resta repetir cada vez mais
rapidamente a tentativa. Do engodo de um
presente absoluto, cai-se no outro extremo,
uma aceleração maníaca do tempo, através
do vício pela busca da novidade, como se
ela também nos tornasse sempre novos e
imortais. Ambos os extremos unem-se por
uma ideologia de uniformização e massificação do tempo; afinal, quem faz o tempo
do consumo não é em realidade o consumidor, mas o produtor. E se a negação do tempo e do trágico por um instante parar de
funcionar: o consumo de mais um produto
de solução imediata, por exemplo, fluoxetina ou cocaína.
O trágico tem em um de seus pilares
o tempo como sempre se escoando, e finito, o Ser-para-a-morte heideggeriano. Não
por menos no Seminário 7, em sua análise do trágico, Lacan cita nominalmente
o pensador alemão (HEIDEGGER apud
LACAN, 1997, p. 356). Tal como Hamlet,
segurando o crânio de Yorick e voltando-o
para a plateia, diz: “vá ao quarto de minha
senhora e diga-lhe – deixe-a passar mais de
um dedo de maquiagem – que ela acabará
assim”. Mas o escoar do tempo trágico, se é
inexorável, também é mais lento e viscoso,
coloca o ser humano diante do dilema de
não ceder de seu desejo, mas de ao menos
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009
Luto e Melancolia versus Distimia
iludir-se com a idéia de perpetuá-lo em
outro, seja por meio de filhos ou de objetos
culturais. O tempo do deprimido, sendo
também um tempo mais lento, não serve
ao tempo do consumismo, pelo contrário,
o denuncia. Acusação inconsciente, mas
estéril, se o tempo não for novamente posto em movimento, pela elaboração do luto
e pelo apropriar-se da sabedoria de que
cada um e cada desejo possuem seu próprio tempo. Em O Tempo e o Cão (KEHL,
2009), além de várias críticas ao abuso da
medicalização e da negação da depressão,
há uma extensa análise da temporalidade
do deprimido, objeto no passado de estudos e brilhantes descrições, não da Psicanálise, mas da psiquiatria fenomenológica.
A Psicanálise também é brutalmente
contra a tendência atual de busca por resultados rápidos, da propagação do happy
end como ideal de vida e da ideia de que
todo sofrimento é patológico. De européia
para americana, da ênfase na esquizofrenia
para as ‘depressões’, do psicanalítico e fenomenológico ao comportamental, não por
acaso a mudança do eixo da psiquiatria foi
acentuada pela globalização e difusão pela
indústria cultural de massa americanizada,
com seu ideal de competitividade e sucesso.
Tornou-se fato corriqueiro na áreas psi e social que as drogas alucinógenas idealizadas
pela contracultura dos anos 60 e 70 do século passado foram substituídas pelas que
fornecem a ilusão de poder e sucesso, drogas que mascaram todo sentimento de perda e de desamparo: cocaína e fluoxetina.
Como processo terapêutico, a Psicanálise não oferece ilusões de satisfação plena e felicidade permanente. A revivência e
a elaboração das perdas, antigas e recentes,
constituem-se em pilares do processo psicanalítico. Mas as perdas só podem ser revividas e elaboradas se a agressividade e a
ambivalência, constitutivas de todo ser humano, tiverem espaço e tempo para serem
manifestadas em uma terapia: a diferença
entre luto e melancolia. Sem dúvida, a to-
mada de conhecimento limitada do lado
escuro de nós mesmos é algo de que todos
gostaríamos de ser poupados, se fosse possível. Claro que a Psicanálise é um tratamento caro, mesmo que as sessões sejam o
mais baratas possível em uma clínica social,
por causa da frequência e duração do tratamento, e torna-se ainda mais dispendioso
em termos de investimento afetivo e comprometimento pessoal. Se a fluoxetina funcionasse o tempo todo e para todos, seria
perfeita.
CONCLUSÃO: A VANTAGEM EM SE
SER SEMPRE DO CONTRA
Cabe ao psicanalista defender a antiga
neurose depressiva, muitas vezes seu principal ganha-pão, na certeza de que só a Psicanálise pode ajudar eficaz e duradouramente o paciente. A transmissão da Psicanálise
em instituições à margem do poder público
lhe dá o dom da liberdade diante dos modismos diagnósticos, mesmo sob a capa de
sistemas globalizantes e mais científicos de
nosologia.
Só nos resta repetir e estender tanto para o psicanalista enquanto terapeuta,
como para Psicanálise enquanto terapia, o
que já escrevemos em outro texto sobre as
próprias instituições que formam esse terapeuta e transmitem essa forma de terapia:
Apesar de todos os narcisismos e querelas
históricas, ficou claro o quanto as sociedades
psicanalíticas são, ou tentam ser, entidades
democráticas nas quais os próprios membros são os donos. Autogestão, propriedade
dos meios de produção, participação direta
nas Assembleias: termos que os arúspices da
globalização vaticinam como ultrapassados,
antieconômicos e impeditivos para a competição. Ainda bem que no mundo das cadeias
do fast – fast-food, fast-religion e fast-university – a Psicanálise está onde sempre esteve:
na contramão (LOPES, 2005, p. 12).
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009
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Luto e Melancolia versus Distimia
Keywords
Treatment of depressions; over medication;
time and tragic experience.
Abstract
Abusive use of psychiatrical drugs, mainly concerning depression diagnosis. Use of the international mental and behavior disorder classifications facilitating this abuse. Over simplification
of diverse clinical diagnosis under the label of
distimy. Cognitive behavioural ideology inducing over medicalization. Psychoanalysis as an
opposite therapeutical method and world view.
Time, finitude and tragic experience of the life.
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Tramitação Recebido : 02/07/2009
Aprovado : 14/09/2009
Nome: Anchyses Jobim Lopes
Endereços: Rua Marechal Mascarenhas de
Morais 132 ap. 308
Copacabana
CEP: 22030-040 – Rio de Janeiro / RJ
Fone: (21) 2549 5298
E-mail: [email protected]
Site: www.anchyses.pro.br
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009
Ensaio
O máximo no mínimo
The maximum at least
Carlos Perktold1
Palavras-chave
Miniconto; Teseu; Ariadne; Minos; violência; LSD.
Resumo
O autor analisa quatro minicontos, textos condensados e cheios de possíveis leituras subjacentes sob
o ponto de vista psicanalítico e humano.
A primeira impressão do leitor perante os minicontos é uma certa perplexidade quanto às mensagens subjacentes e à
rapidez dos acontecimentos num diminuto texto. A sua propositada concisão é tão
surpreendente, que, para saborear a riqueza
e a densidade de alguns deles, se exigem
conhecimentos gerais não encontrados no
leitor padrão. Cinema, televisão, literatura,
mitologia, psicanálise, gírias de época, história, filmes e seus diretores e experiência
de vida, em geral, são fundamentais para
compreender a dimensão do texto e o desejo
do narrador. Como em toda boa literatura,
o subjacente e o não dito são a chave para
o seu entendimento, magia perceptível pelo
leitor bem informado. O miniconto abaixo é
de Ricardo Corona:
PSICONTODÉLICO
– Põe na língua.
– LSD?
– É.
– E o leitor?
– Dê-lhe o fio de Ariadne.
Seu título nos remete a “psicodélico”, uma palavra em desuso, contemporânea do LSD e de uma era na qual a gíria do
momento era “podes crer!”. Se, em certas
circunstâncias históricas, até o almoço do
bandejão do restaurante de estudantes ou
era ou não era dialético, houve também
outra época na qual tudo foi psicodélico.
Naquelas ocasiões, dialético ou psicodélico explicavam tudo. Antonio Houaiss
curiosamente menciona que a palavra refere-se às produções intelectuais sob efeito alucinógeno e, entre parênteses, cita
LSD. Psicodélico é formado do grego psico + delos e significa aquilo que é visível,
manifesto e evidente. Diz-se também das
visões coloridas e fragmentadas que essa
droga provoca. Mestre Aurélio, numa quarta explicação dessa palavra no seu dicionário, informa ser “aquilo que se distingue
do meio tradicional, ou pela decoração, ou
pela atitude, ou pela maquilagem, ou pela
roupa”. Na década de 1960, psicodélico era
o uso do LSD na língua e, aí, ver o mundo
sem angústia ou depressão. Nada diferente,
portanto, daqueles que preferem vê-lo hoje
energizado com pó.
Esse miniconto é um diálogo, e a primeira frase, Põe na língua, é, numa leitura
imediata, a ordem de um mestre que ensina
o caminho da salvação para seu discípulo.
Ela pressupõe uma pergunta não formulada
1 Psicólogo pela PUCMINAS e psicanalista em Belo Horizonte. É integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), órgão da UNESCO e do
Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.23-30 – Novembro. 2009
23
O máximo no mínimo
de um personagem oculto, um pedido
de esclarecimento do que fazer com
algo desconhecido em mãos. Essa
frase é também uma recomendação
médica ao paciente que não sabe
como usar o medicamento. Ou ainda, uma outra ordem sem afetividade, seca e objetiva: “Põe na língua”.
Em seguida o interlocutor oculto,
que nunca se queixou do que sentia
e nenhum diagnóstico lhe foi dado,
faz uma pergunta-resposta com naturalidade, demonstrando conhecer
esse objeto mágico capaz de medicar
qualquer doença, mesmo aquelas de
queixas nunca relatadas: “LSD?”
O ácido lisérgico, ou LSD, está
para o mundo das drogas assim como
IBM está para o mundo dos negócios.
Ele foi posto na língua portuguesa
e em dicionários de outros idiomas
ocidentais desde quando nasceu em
laboratório, por volta daquela década. Esse ácido é o resultado da hidrólise de certos alcalóides vegetais,
cristalinos, alucinógenos, e foi difundido entre os ripongas, desbundados,
roqueiros e certos intelectuais do
underground das décadas seguintes.
Foi a porta de saída de um mundo
cujos moradores estavam angustiados por causa da castração política
da ditadura militar no Brasil, a guerra fria entre países hegemônicos de
esquerda e de direita, o potencial e
iminente perigo de devastadora guerra nuclear, acrescido também de boa
dose de dificuldades pessoais de seus
usuários, deslocada para a política.
Foi também a primeira das drogas
pesadas na escalada iniciada pelos
baseados, época de uma geração que
fez e venceu uma revolução de usos
e costumes com os aforismos: “Faça
amor, não faça a guerra” e “Paz e
amor”. E, com a mesma naturalidade
24
com que foi feita a pergunta, vem a
resposta do mestre: “É”.
Mas esse é um texto ficcional,
um miniconto, um curto diálogo entre dois personagens, no qual o leitor
aparece como se fosse um voyeur que,
de algum lugar, os observa. Os dois interlocutores o vêem como um sujeito
de olhar pidão, que tem a esperança
de receber o mesmo encantamento. O
segundo daqueles faz, então, uma pergunta como se fosse surpreendido pelas ilegalidades do acontecimento e do
diálogo, ou sentisse o pedido implícito
do segundo personagem que, empático, entende que o leitor do momento
está na mesma situação que ele, precisando da mesma salvação, e se coloca
no lugar de seu advogado de defesa,
perguntando: “ e o leitor?”. É uma pergunta gentil como se se falasse “... e o
meu irmãozinho, leva o quê”? Ou uma
censura de alguém desconfiado, como
se um outro leitor, no futuro, fosse um
policial ou alguém careta, cuja obrigação fosse interromper o tráfico dos
dois. Aí, o primeiro personagem, não
querendo correr riscos e certo de que
um prêmio de consolação deva ser garantido, fecha o miniconto imaginando que o leitor é igual a um corrupto
menor, que aceita uma quimera como
consolo, ou um desesperado de plantão
à procura de um guia para sair de onde
está. Essa passagem pode ser lida ainda como se o autor visse no leitor alguém muito especial e soubesse que a
decisão de percorrer qualquer caminho
da vida é dele, mas que, por ser o meu
leitor, um mimo lhe seja dado como
prêmio. Através de uma condensação
definitiva, receita-lhe a compensadora
panacéia: “Dê-lhe o fio de Ariadne”.
Para falarmos de Ariadne e o seu
fio de lã, é preciso nos remeter à mitologia grega, em especial aos mitos de
Teseu e do Minotauro. O Minotauro é o
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.23-30 – Novembro. 2009
O máximo no mínimo
fruto da traição de Pasifae, esposa do rei
Minos, com o Touro de Creta, por quem
ela se apaixona perdidamente. O infante
gerado nesse relacionamento traiçoeiro
é um monstro, metade homem, metade
touro, cuja deformação causa rejeição e
repulsa a Minos, seu pretenso pai. Este,
envergonhado do suposto filho, o aprisiona no labirinto construído por Dédalo, composto de zigue-zagues infinitos
e sem saída.
O Minotauro tinha compleição de homem forte e de touro viril,
e o seu pasto eram sete rapazes e sete
moças inocentes, escolhidos todo ano
entre os atenienses. O sacrifício dos
jovens foi a punição da guerra perdida por Atenas, imposta por Minos, rei
de Creta. Ele, por influência maléfica
da perversa mulher, se transforma de
rei sábio e justo em déspota exigente e
cruel. Quando Atenas envia o terceiro
pagamento consecutivo, remete junto
com mais treze sacrificados o jovem e
heroico Teseu, que parte com sua clava, tomada de Perifetes, a quem derrotara anos antes. Sua missão de bravo
guerreiro é derrotar o Minotauro e sair
vitorioso do Labirinto. Antes de sua
partida, Ariadne se apaixona por ele,
tece e lhe fornece um novelo de lã com
o qual ele marca seu caminho de volta
e, deixando o Minotauro derrotado, de
lá sai triunfante.
Minotauro é metáfora de tudo
aquilo de que nos envergonhamos e
preferimos manter longe de nós e do
Outro. O Labirinto de Dédalo é a querência de nossa intimidade, reservatório primitivo das energias psíquicas
onde moram as pulsões e os nossos
mais íntimos e avassaladores desejos,
endereço completo do Id, um postulado freudiano. É o lugar cheio de caminhos sem fim, onde precisamos encontrar e/ou construir uma saída que nos
humanizará. A saída não será encontra-
da sem a ajuda de alguém: um grande
amor, um amigo do peito, o psicanalista, o terapeuta ou ainda o traficante,
esse anti-Ariadne pós-moderno, e as
drogas, o fio de lã em moda. Sabedor
de que as dificuldades emocionais,
angústias e depressões são as normas
deste novo mundo globalizado, o personagem sugere que cada leitor, colocado no mesmo lugar de desespero
daquele, precisa do mesmo remédio.
O LSD é o Lenço Sem Documento do verso de Caetano Veloso,
elemento capaz de unir o narrador, os
personagens e o leitor num conluio afetivo. Para o narrador, aquele é uma presa oferecida a qualquer Minotauro contemporâneo, a aguardar um Teseu que o
auxilie a combater o seu cotidiano entediado ou endiabrado e o retire desse labirinto metafórico. Hoje não é somente
o leitor, essa espécie em extinção, que
anda à procura de um equivalente da
lã de Ariadne, mas todos nós, porque,
se os caminhos internos de Dédalo são
muitos, a saída é uma só.
Segundo miniconto, de Beto
Vila:
– Diz que me ama
– Aí é mais caro
Houve uma época na qual as
operárias do amor ficavam confinadas
em casas suspeitas, endereços sobre os
quais ninguém tinha dúvidas. O mundo mudou, e uma de suas alterações
foi o desaparecimento daqueles locais,
chamados de rendez-vous, denominação francesa para um lugar destinado
a uma atividade profissional nascida
globalizada.
A libertação sexual feminina,
vinda com a criação do anticoncepcional nos anos 1960, o aumento da produção dos automóveis, a chegada dos
motéis e uma recente ética, irmã gê-
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25
O máximo no mínimo
mea de outra moral, foram itens construtores de nova vida sexual da mulher
e que, aparentemente, acabariam com
a mais velha profissão do mundo. Mas
isso não ocorreu. A eterna existência
de pessoas que, por motivos inconscientes, preferem amor comprado, fez
com que as operárias continuassem
suas atividades e se espalhassem. Hoje
elas são encontradas em guetos de certas ruas das cidades, e nem elas têm
pudor para fazer suas ofertas, nem seus
fregueses para explicitar sua procura.
Suas ofertas ficaram públicas e
notórias em páginas e mais páginas
dos classificados dos jornais das grandes cidades e incluem novas formas de
perversões sexuais trazidas pelo neoliberalismo. Nesses anúncios, como
num supermercado de qualidade, há
de tudo, inclusive impensáveis concorrências às velhas profissionais. Se
a procura muda, muda-se também a
oferta, é a ordem capitalista. Agora ela
é de homens, travestis, homossexuais,
lésbicas, mulheres casadas, rapazes
heterossexuais e até senhoras maduras;
passa pela atividade, passividade, sadomasoquismo, sexy shop e mais uma
quantidade de opções que alegram a
vida de muitos. Mas aos fregueses interessados é preciso ressalvar que há
também muita propaganda enganosa
nas ofertas.
Essas operárias têm uma ética,
passada de veteranas para novatas,
que inclui itens como: não há beijo na
boca dos clientes; não se fala de amor,
o pagamento não é a prazo, e o cliente
vigarista não é protestado em cartório,
mas leva uma surra à vista, aplicada
pelo diligente cafetão mais próximo.
O preço dos serviços, como em qualquer negócio, varia de acordo com o
que o cliente quer: a forma e a duração
da transa, a presença ou ausência de
soutien ou ainda se quer carinho. Tudo
26
isso tem um custo para elas, que, como
fundamental regra do sistema econômico vigente, é transferido para o consumidor final. Mas nestas cláusulas de
contrato verbalizado há limites: há coisas que elas não fazem. Preferem perder o negócio a aderir a insuportáveis
perversões de clientes que fazem corar
veteranas profissionais pelas loucuras
propostas.
O miniconto de Beto Vila, constituído de duas linhas apenas, começa
com:
– Diz que me ama.
A frase pressupõe a existência
de alguém que sente uma incompletude no que recebe. Na primeira linha
não se tem ideia de onde ele está nem a
quem se dirige. O personagem da primeira pessoa do singular quer se assegurar de que uma doação seja revestida
de amor, esse invólucro invisível que
faz dos relacionamentos afetivos algo
especial. Feito o pedido, a resposta é
dada com a rapidez inerente à negociação de toda pistoleira que conhece
os gatilhos da própria vida e daquelas
alheias:
– Aí é mais caro.
Rapidez que se repete na narrativa do texto porque, numa primeira
e imediata leitura, percebe-se que se
trata de um diálogo entre uma profissional e um cliente e que o contrato
inicial entre eles, não revelado na primeira frase, não continha cláusula de
fornecimento do exigido agora. O primeiro personagem quer modificá-lo. O
pedido pode ser atendido, mas é preciso alterar outras cláusulas, e aquela do
seu preço original é a principal. Quanto mais se fornece, maior é o preço, é
outra regra preservada pelo segundo
personagem.
Mas ninguém imagine que o conteúdo desse diálogo seja privilégio da
dupla heterossexual de cliente-freguês.
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O máximo no mínimo
Considerando os relacionamentos
pós-modernos tão em voga no mundo globalizado, ele pode ocorrer com
qualquer tipo de dupla. Nas heterossexuais, cujos casamentos são realizados
em igrejas e cartórios, com direito a
fotos em Caras, essas mesmas cláusulas ficam recônditas em contratos (in)
conscientes e, como o dinheiro compra até amor verdadeiro, “o mais caro”
está estacionado em cheques bancários
e cartões de crédito sem limites.
Além dessas, o miniconto abre a
perspectiva de uma outra leitura polissêmica na palavra “caro”, ensinandonos que, quando se diz que se ama,
tudo é mais caro sim, por ser mais querido, mais amado, mais desejado. Era
assim que Hélio Pellegrino respondia
aos seus futuros clientes que achavam
as suas sessões psicanalíticas “caras”.
Terceiro miniconto, de Adriane
Mirtes:
Caiu da escada e
foi para o andar de cima.
O narrador relata experiências
de vida e é irônico com a morte. Na
primeira leitura, ele, gozador, triste ou
bem informado de algo que o leitor
desconhece, relata um literal acidente;
desses que podem ocorrer com qualquer um: “caiu da escada”. A queda
nos faz pensar que, como consequência, alguém morreu; daí a frase seguinte “foi para o andar de cima”. “Andar
de cima”, na nossa cultura e língua, é
metáfora de céu ou do seu substituto:
qualquer lugar em que as pessoas acreditam existir após a morte, aquele país,
como dizia Shakespeare, “de onde nenhum viajante jamais retornou”. O
narrador parece dar uma informação
ou uma explicação para alguém que,
perguntando por Fulano ou Beltrano,
recebe a indicação do novo endereço
da vítima.
Nos regimes ditatoriais, é também a explicação dada sobre algum
amigo, ou adversário do poderoso de
plantão e que, descuidado ao andar nas
escadas do poder ou da clandestinidade, caiu e desapareceu para sempre do
cenário político.
Uma outra leitura, própria de países democráticos nos quais os adversários não são jogados de helicópteros
em alto mar, nem enterrados vivos e
menos ainda executados em praça pública, é metáfora do fato político mágico de alguém “cair pra cima”. Ocorre
sempre com aqueles funcionários que,
pela honestidade ou desonestidade,
impedem algum superior de realizar
uma negociata ou uma corrupção. Impossibilitado, legalmente, de demiti-lo
e decidido a levar vantagem pessoal no
cargo que ocupa, o chefe decide pela
sua promoção. Remove-o para um
novo e melhor lugar acima do atual,
posto no qual ele não importunará nem
tomará conhecimento dos negócios
em andamento no andar de baixo. Cai
para cima, no jargão de funcionários
públicos. Sem poder reclamar, porque
recebeu um prêmio, o funcionário é
deslocado para longe e, no seu lugar,
entra alguém escolhido para defender
os interesses da chefia.
O fenômeno, para quem ainda
não foi vítima dele nem o viu acontecer, está registrado no filme M. Butterfly, de David Cronenberg, no qual
um contador é enviado para Pequim
nos anos 1960 e precisa descobrir as
falcatruas dos funcionários da embaixada francesa local e ainda enfrentar
as armadilhas de hábeis diplomatas
corruptos. Ingênuo politicamente, o
contabilista aceita do embaixador a
sua absurda promoção a vice-cônsul.
Despreparado intelectualmente para o
cargo e para viver num país do qual ele
desconhecia a língua, usos e costumes,
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27
O máximo no mínimo
além das políticas americana e francesa para o sudeste asiático e sem leitura
diária dos jornais locais, cai da escada
política preparada só para ele. Em curto tempo, vem a ordem de Paris para
seu retorno e é demitido. Ponto para os
corruptos franceses de Pequim. Ponto
para a burocracia do cair pra cima.
Fenômeno idêntico pode ser observado no Brasil na nomeação de certos políticos para cargos fora do Brasil
em países europeus. Entre o risco de
ver políticos fazerem declarações nefastas ou conspirações que fizessem o
governo escorrer e cair de algum degrau metafórico, sacrifica-se o cargo
que poderia ser melhor dirigido por
um funcionário de carreira, para se livrar de alguém inconveniente no território nacional. Esses políticos caem
pra cima em capitais europeias. A promoção para se livrar de alguém é comum também nas igrejas, em especial
na Igreja Católica e seus integrantes.
Logo após 1964, Dom Helder Câmara
saiu do Rio, “promovido” para Recife
onde incomodava menos os militares
de plantão no Palácio do Planalto.
Quarto miniconto:
VIOLÊNCIA
Foi ao bar comprar cigarros
E nunca mais voltou.
Até onde estou informado, o
conto não tem autor definido. Foi, inicialmente, publicado nos anos 1970
nas primeiras edições do “Pasquim”,
jornal de saudosa memória, e virou
sinônimo de chacota, piada e pilhéria
cada vez que se sabia de alguma mulher abandonada pelo marido, namorado ou amante. Curiosamente, as duas
frases não eram mencionadas quando a
mulher abandonava o marido. Naqueles anos, esse miniconto foi tão citado
28
quanto a velha piada na qual o sujeito
deve receber a notícia da morte da mãe
em diferentes e pausados telegramas,
com a mensagem inicial de “sua mãe
subiu no telhado”, seguido de outros
até o desfecho final.
Quando eu era garoto no bairro Carlos Prates, em Belo Horizonte,
minha família teve uma vizinha, Dona
Fernanda. Como todos os casais da rua
onde morávamos, ela e o marido lutavam pela vida nos anos 1950 com as
dificuldades próprias dessa estratificação social. O casal tinha cinco filhos,
todos meus amigos de infância. De
seu marido tenho uma única lembrança: uma silhueta de um homem baixo,
envelhecido aos 35 anos, sempre de
chapéu e de olhar afetuoso. Gostava
de caçar, pescar e nas férias anuais
viajava para o Mato Grosso, provavelmente para o Pantanal, passando
temporadas de, no máximo, vinte dias.
Não me lembro qual era sua atividade,
mas com certeza era o único profissional naquele bairro que viajava nas suas
férias. Todos os seus contemporâneos
e vizinhos as passavam em casa, aproveitando para fazer os consertos domésticos, acumulados durante o ano.
Assim, aqueles pais contemporâneos
dos meus e que eram funcionários públicos, comerciários, industriários, securitários ou bicheiros, que não tinham
a mesma sorte do Sr. Antônio Celso,
se tornavam marceneiros, bombeiros
ou eletricistas nos seus vinte dias de
lazer.
Para os filhos do Sr. Antônio a
sua prolongada ausência nas férias tinha o prazo de uma existência, porque
naquela época, sem que saibamos o
motivo, o tempo passava mais lentamente que hoje. Ele, como tantos de
sua geração, era tabagista. Naquela
ocasião, ninguém imaginava que fumar causava câncer, e o hábito era pra-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.23-30 – Novembro. 2009
O máximo no mínimo
ticado com tanta espontaneidade, que
havia um certo glamour na atitude, ratificada por Hollywood nos filmes com
Gary Cooper, Bogart, Tyrone Power,
Alan Ladd, Burt Lancaster e tantos outros. Além disso, imagino que o cigarro ajudava a espantar os mosquitos nas
pescarias do Sr. Antônio Celso.
Nada exteriormente ao casal
indicava que ele fosse capaz de uma
violência doméstica. Eles sempre
transmitiram a mesma ideia de felicidade de outros e somente o tempo me
ensinou que naquele bairro havia um
foco da mais completa loucura conjugal, amargor de tantos, em especial das
mulheres. Ao ler o miniconto acima,
lembrei-me dele e de uma das mais
bravas guerreiras de minha meninice:
Dona Fernanda.
Certo dia, fomos informados
de que o pai de meus amigos estava
pronto para uma daquelas viagens de
pescaria no Mato Grosso. Seus companheiros o apanhariam em casa com
a velha caminhonete que, de tantas
viagens ao Pantanal, já conhecia de
cor o caminho de ida e o de volta. Pouco antes da sua partida, o Sr. Antônio
se lembrou que faltavam os cigarros na
sua equipagem de pescaria. Precisava
comprá-los porque a saída seria de madrugada e encontrá-los no caminho era
uma possibilidade remota. Um dos filhos se ofereceu para buscar. “Não, não
precisa. Isso não é coisa para criança
comprar”, disse determinado. Ele saiu
para fazê-lo e voltou somente trinta
anos depois, um prazo equivalente ao
“nunca mais” para a mulher e os filhos.
Ele deixou amontoados num canto da
sala as varas de pescar, molinetes, redes, arma, anzóis, iscas artificiais e algumas mudas de roupas, bagagem provocadora de um vazio que, em poucos
dias, cresceu e se transformou numa
montanha pesada demais para caber no
coração da mulher e das crianças, quando compreenderam que ele não voltaria
mais.
Ocasionalmente me encontro
com um ou outro dos filhos do Sr. Antônio Celso e de Dona Fernanda, hoje
todos profissionais bem sucedidos. Em
geral falamos dos novos tempos, lembrando e os comparando com aqueles
vividos então. Nesses momentos sinto o
peso daquela velha bagagem entre nós,
e há uma regressão envolvendo nosso
encontro e noto que, sem querer, minha
presença o empurra para um abismo de
tristes lembranças. Aí, o adulto de hoje
expõe para o amigo de infância um
imutável lugar cheio de faltas afetivas,
visível nos olhos de um menino perdido
num passado longínquo que, nesse momento, apenas nós dois sabemos existir;
um lugar tão grande, que nem todos os
peixes do Pantanal reunidos são capazes de preencher.
Por certo é humilhante e muito doloroso em qualquer cultura ser
mulher abandonada pelo marido com
cinco crianças, e D. Fernanda sofreu
muito com a violência do ex-marido.
Quando ele voltou, não foi recebido
por qualquer dos filhos.
Mas como o ser humano é sempre imprevisível, o miniconto pode ser
lido também como o desejo de certas
mulheres e filhos que, por penarem na
mão de marido e pai mesquinho no trato pessoal e financeiro com a sua família, aguardam e desejam que ele vá
comprar qualquer coisa ali na esquina e aproveite para não voltar nunca
mais.
Autores de minicontos levam a
concisão e a condensação ao mínimo
possível e registram filigranas com palavras que o leitor, com microscópios
literários, deve pinçar e examinar. Aí
poderá degustar os minicontos comme
il faut.
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29
O máximo no mínimo
Keywords
Minitales, Teseu; Ariadne; Minos; violence; LSD.
Abstract
The author analyses four minitales,
very condensed tales and full of different readings, under the psychoanalytic and human points of view.
Tramitação
Recebido : 01/06/2009
Aprovado : 14/08/2009
Nome : Carlos Perktold
Endereço : Av. Celso Porfírio Machado, 105 – Belvedere
30320-400 Belo Horizonte, MG
Fone : (31) 3286 2247
E-mail : [email protected]
30
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.23-30 – Novembro. 2009
O homem contra o sujeito
Man against subject of unconscious
Carlos Pinto Corrêa1
Palavras-chave
Sujeito; sujeito do inconsciente.
Resumo
Trata-se de uma abordagem que abrange questões de Filosofia, Ciências Sociais, Literatura e
Psicanálise sobre o homem como sujeito da Psicanálise.
... não encontro uma resposta quando me pergunto
quem sou eu. Um pouco de mim eu sei: sou aquela
que tem a própria vida e também a tua, eu bebo
a tua vida. Mas isso não responde quem sou eu!
Clarice Lispector
DE PESSOA A SUJEITO
Parece irresistível a vocação que o
homem possui para estar sempre voltado para o seu exterior, fugindo àquilo que
tem de mais próximo que é o seu próprio
interior. Os olhos do homem levavam-no à
contemplação do circundante, como se estivesse permanentemente sendo desafiado
pelos órgãos dos sentidos a buscar sempre
um encadeamento mais além, escapando de
si mesmo. As primeiras disposições do homem primitivo foram de entender a natureza à qual estava submetido. Uma perplexidade ante o desconhecido à qual segue a
tentativa de explicações místicas ou sobrenaturais, capazes de aplacar sua angústia ou
conformar-se com a submissão. Tomemos
como ponto de partida uma das mais interessantes e decisivas peças literárias sobre
o homem e sua luta: a Odisséia de Homero
(1998). Além de ser um cânone da literatura
ocidental, esta obra revela a base arquetípica
da própria condição humana que ambientou
o surgimento da filosofia grega.
1
Encontramos os personagens enfrentando diversidades em condições metafóricas que bem expressam o antigo ou o atual, a
essência do existir que não mudou em 25 séculos. Desse modo, observamos a presença
do sagrado com o predomínio da lei divina.
Não se trata, entretanto, de uma relação sujeito-objeto, pois a divindade penetra e participa da vida dos mortais. O sobrenatural
é acessível através de uma relação próxima
entre os deuses e os homens. Eles se odeiam,
se amam, se invejam e, até no casamento
entre eles, o sobrenatural é apresentado de
modo demasiadamente humano. As forças
opostas existentes dentro dos homens são,
na verdade, um reflexo do conflito entre os
deuses que regem o mundo. O simples ato
de Odisseu encontrar, providencialmente,
um cervo para compartilhar com os companheiros de viagem é prontamente interpretado como intervenção divina a seu favor
(HOMERO, 1998). As questões internas estão submetidas a elementos divinos, e tudo
que possa levar o homem a algum tipo de
reflexão sobre a possibilidade de ser senhor
Psicanalista, fundador do Círculo Psicanalítico da Bahia e seu presidente nos períodos de 1971-1983 e 1988-2004. Presidente do Circulo Brasileiro de Psicanálise em dois biênios 1980 – 1984. Vice-presidente da Internationale Foderation
Der Arbeitskreise Fur Tiefenpsychologie (Federação Internacional dos Círculos de Psicologia Profunda) de 1977 e 1989,
com sede em Viena- Salzburg. Delegado do Círculo Brasileiro de Psicanálise junto à International Federation of Psychoanalytic Societies (Berlim) no período de 1977- 1989.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro 2009
31
O homem contra o sujeito
de si mesmo é prontamente explicável por
uma vontade superior que submete o homem a um outro intangível e inexorável.
Ainda mais metafórica é a caminhada de
Odisseu adentrando a terra e conduzindo o seu remo, símbolo das lides do mar.
No interior bem distante, depara-se com
o agricultor e sua pá de revolver os grãos.
Pá e remo são dois objetos tão semelhantes e tão distantes como opostos. A luta
do homem na terra e no mar, na vida e na
morte, possibilita momentos especiais do
existir. Este é o ponto máximo que atinge
o ser, como espécie de encontro do Graal.
Para nós, uma ilusão, pois sabemos que o
sujeito só pode aparecer no lugar onde a
pulsão se torna uma representação ligada
às redes de representações que compõem
o psiquismo. A submissão da vida às
condições externas sagradas transforma
o que seriam as representações, em real,
fazendo parte da luta do homem contra
o sujeito.
Os primeiros filósofos buscaram
também, no infinito, um sentido que
sustentasse a vida, argumentando sobre
o télos, o logos e o deus. As reflexões sobre
as origens também deixavam o homem
como contemplador ou como objeto derivado de uma fusão de elementos básicos ou de uma vontade divina, à qual
não tinha acesso. O ser era uma instância desde os pré-socráticos. É categorizado por Parmênides como pensar: “ser
e pensar são a mesma coisa”. Esta noção
de ser está longe de nos levar ao sujeito,
já que não permite uma incursão sobre a
subjetividade. Fundamenta-se no princípio da identidade e no princípio da
não contradição. Estamos aqui longe de
uma concepção dialética, de modo que
“o ser é, e o não ser não é”.
SUJEITO E GOZO
Pouco nos ajuda repensar o sujeito da metafísica no que tange à matéria
32
e forma, principalmente por se referir ao
predicável (qualidade, quantidade, etc.).
Mas, de qualquer forma, é bom lembrar
que esta concepção influenciou a todos
os filósofos até Kant, que tinha em mente
a proposta da oposição entre o objetivo e
o subjetivo assumido por outros autores
alemães. Para Kant (1999) o sujeito é o
eu penso da consciência ou autoconsciência, que determina e condiciona toda
a atividade cognoscitiva: “Em todos os
juízos sou sempre o Sujeito determinante da relação que constitui o juízo. Para
o eu, para o ele ou para aquilo (a coisa)
que pensa, a representação é apenas de
Sujeito transcendental dos pensamentos”. Como psicanalistas, podemos dizer
que em Kant o Sujeito é tomado como
atributo do eu. O eu é sujeito na medida
em que determina a união entre sujeito e
predicado na formação dos juízos.
Heidegger (1973) vai-nos mostrar
como não só os pré-socráticos, mas também toda a metafísica trataram do ente
escapando da conceituação do ser. Ele
substitui a pergunta dos filósofos clássicos – o que é o ser? por – qual o sentido
do ser? Sua noção de Dasein introduz
um significado do ser aí, estar aí, que
nos reporta a uma abertura ao subjetivismo. De todos os entes, o homem é o
único ao qual é funcionalmente exigida
uma solução para o problema do existir.
Usando nossos termos, estamos assim
ante a angústia da falta primordial do
homem, a simbolização necessária ao
surgimento do sujeito.
A invenção de Heidegger (1973)
contaminou o pensamento europeu e
gerou polêmica e desconfiança. De sua
entrada na França, teve o Dasein traduzido por Être-là, o que provocou estranheza no autor alemão. Palmier sugeriu
certa vez traduzir Dasein por être-le-là
e quando interrogado em uma palestra
sobre o Dasein no ser e no tempo, falou
que Das Da des Seins: é o lá do ser. Hei-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro 2009
O homem contra o sujeito
degger reagiu prontamente dizendo que
não, “pois tudo está aí”. É neste ponto
que a filosofia toca especialmente o que
a psicanálise vai colocar como sujeito.
Lacan (1992), no Seminário O objeto da psicanálise, de 25 de maio de 1966,
tomou o quadro de Velásquez, chamando atenção para “você não consegue me
ver, lá de onde eu olho você”. O lá está
elidido, este mesmo lá que define o Dasein, como se resolvesse dizer que há um
ser aí, “[...] neste lugar vazio, intervalo
não marcado, está lá onde precisamente se dá a queda do objeto (a) sob esta
denominação mantida em suspenso”.
Feita esta aproximação, podemos tomar
a interessante reflexão de Garcia (1998,
p.67), que propõe uma virada na tarefa
do pensar filosófico que tem no Dasein
espécie de encontro realizador do sujeito, pela questão do objeto (a). A partir
daí, o problema se desdobra.
É preciso ainda falar de Hegel
(1999) e sua aproximação com Freud
no conceito de repetição que foi tratado em conferência clássica, pronunciada por Hyppolite (1998) e estudada por
Lacan(1998). Wine (1992, p.99) sugere,
a partir desta conferência, que:
... a marca hegeliana está reforçada no texto
de Freud e no sentido que recebe da teoria
lacaniana. O eixo central do texto freudiano se articula de um lado, com o destacarse da função intelectual e do outro, com
a pulsão de morte, enquanto disjuntiva,
separadora e geradora de negações.
O pensamento, como tal, já surge
afetado por uma denegação. A negatividade é o fundamento da dialética hegeliana. É a negatividade que comanda o
devir criativo do homem, o seu ser para
a morte e, finalmente, o seu acesso à sabedoria. O estatuto da negatividade é um
dos pilares da reformulação estruturalista
que Lacan faz com sua releitura da obra
freudiana. Com a Fenomenologia do Espírito, de Hegel (1999), aparece a questão
do advento do homem a partir do natural, mas Labarrière (1979) acrescenta que
não se trata somente disso, mas da própria
estrutura humana como tal, da diferença
do homem em relação ao animal e não
de sua gênese a partir dele. Aqui, surge
um lugar para uma analogia entre o pensamento hegeliano e a teoria psicanalítica
de Freud e Lacan, que também pensa o
advento do sujeito por via da negação.
O quarto capítulo de A Fenomenologia do Espírito de Hegel (1999), conjugado com a leitura do quinto capítulo
de Além do Princípio do Prazer (1920)
de Freud, aproxima o conceito de pulsão
de morte do desejo que ela sustenta. Hegel ajuda a demonstrar o quanto a subjetividade, na teoria psicanalítica, tem
como essência a pulsionalidade pura,
movimento sem origem e sem fim, que
se desloca produzindo novas diferenças. Hegel descreve ainda a estrutura da
consciência de si como diferente de outras formas de consciência já descritas.
A forma de consciência que é específica
do homem é a consciência de si, que é o
desejo. E lembra mais, só se chega à sua
verdade ao encontrar uma outra consciência viva. Também para Lacan a consciência perde o seu ser enquanto dado
estável, ele chama falasser, a falência do
ser do sujeito barrado ( ) ao acesso de
sua plenitude existencial.
Esta interseção da filosofia com a psicanálise proposta por Lacan (1954) se mostra decisiva para o estabelecimento das relações entre os sonhos e o desejo. Foi diante
de um público constituído por filósofos
que Lacan informou que a descoberta freudiana teria transformado definitivamente
todas as concepções anteriores do sujeito,
como também do saber e do desejo.
O Sujeito da psicanálise não seria o sujeito absoluto estudado por Hegel, nem o
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro 2009
33
O homem contra o sujeito
ideal do sujeito abolido da ciência. Para
a psicanálise, o Sujeito não seria natural
como queria Sade, seria um Sujeito irremediavelmente dividido, como demonstrou Freud, ao que Lacan acrescenta que
isso aconteceria pela relação dele, Sujeito,
com a linguagem (LACAN apud LEITE,
2000, p.94)
.
O SUJEITO ESQUECIDO DAS
CIÊNCIAS SOCIAIS
O pensamento sistematizado científico seguiu a mesma linha reacionária
contra o sujeito no aparecimento das
ciências. Há uma cronologia cujas explicações se iniciam pelo que está mais
distante do homem como a astronomia,
a matemática, a física, a química, e só
muito posteriormente aparecem as ciências ditas sociais. A ascensão da burguesia e a queda da Bastilha são acontecimentos coletivos que favoreceram o
surgimento do pensamento social como
indagativo e interpretativo. É intrigante
como o homem inicia o estabelecimento
da crítica sobre tudo aquilo a que esteve submetido por imposição divina: o
poder do rei emana de Deus. A troca de
sinais da verdade estabelecida reduziu
o novo enunciado: o poder emana do
povo e em seu nome deverá ser exercido. Já ficou velha a esperança aqui sintetizada, mas foi a chance de o homem,
na ampliação de sua crítica, buscar suas
razões internas. Este pensamento social
produziu a Sociologia, conhecimento
que pretendia revolucionar a posição do
homem em seu meio. A ambição de ser
ciência levou a sociologia ao abandono
de questões primordiais, e Durkheim
(1960) estabeleceu as regras do método
sociológico. A descrição do fato social
como aquele que é geral e exerce coerção, retira a questão da subjetividade
e recoloca o homem na sua condição
de peça de uma coletividade ou de um
34
conjunto. Da ocasião, a Economia Política chegou mais perto, procurando
entender a noção de utilidade, limite e
consumo que poderia ter desembarcado na questão do desejo ou a noção de
falta econômica que acenava para importantes razões de ordem psicológica.
O estabelecimento do valor econômico
estava ligado à escassez do produto: em
condições normais, o ar não tem preço
por sua abundância, o diamante por sua
raridade vale muito. Mas nem tudo que
é raro tem valor, pois a mediação se dá
pelo desejo do homem, e este desejo decorre do sentido de sua falta. Nesta linha
de raciocínio, o homem se teria tornado
o sujeito da economia, mas foi derrotado pelos números de Keynes, fundador
de uma espécie de metaeconomia, que
transcende o sujeito. Como lembra Heidegger (1973), o homem usa a ciência
apenas para o ente. Sem usá-la para o
ser, não poderia chegar ao sujeito.
O último rebento da eclosão das
ciências sociais foi a Psicologia. Dominados os campos do saber e da tecnologia
pelas ciências, finalmente o homem se
colocou como objeto de seu próprio entendimento. O aparecimento da chamada
psicologia científica nos sugere, mais uma
vez, uma tentativa de o homem escapar
do sujeito que sempre temeu encontrar.
O experimentalismo e o behaviorismo,
pedras básicas lançadas por Wundt e
William James, formaram os caminhos
para explicar a conduta, sem comprometimento, como um fato cuja observação
pode esclarecer sobre um bicho que reage
a estímulos de modo programado. Digamos que, em seu movimento reflexivo, a
psicologia clássica chegou até à consideração da pessoa. O termo expressa a relação do homem com o mundo e, em seu
viés etimológico, traz o sentido de persona, personalidade como máscara, que sociologicamente expressa a possibilidade
do homem na representação de papéis,
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro. 2009
O homem contra o sujeito
mais determinados pelas atribuições que
lhe são propostas ou impostas, do que no
atendimento de suas questões internas.
O SUJEITO DA PSICANÁLISE
O aprofundamento definitivo,
produzido pela psicanálise na questão
do sujeito, está marcado por dois cortes
principais. Como foi dito acima, o primeiro decorre da evolução do conceito
de pulsão em Freud; e o segundo, dos
acréscimos introduzidos por Lacan a
partir da Fenomenologia do Espírito, de
Hegel (1999).
A idéia de pulsão foi introduzida
por Freud em 1905 em Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade com o nome de
Trieb, mas só em 1914 se torna um conceito, ainda assim como hipótese especulativa. É em 1920, em Além do princípio do
prazer, que encontramos um compromisso para alteração estrutural da teoria psicanalítica com a criação da pulsão de morte.
Nesse trabalho, o radicalismo do conceito
de pulsão, ainda ligado ao instinto, exige
de Freud o retorno ao dualismo libidinal
criando a pulsão de morte. Este dualismo,
em vez de preservar o naturalismo reinante na época, produz um rompimento.
A quebra do radicalismo do conceito de
pulsão de morte abre a possibilidade de
criação do estatuto do sujeito na teoria
psicanalítica. Mas é na conferência XXXI,
A dissecção da Personalidade Psíquica, de
1932, que, na tentativa de sintetizar a relação fragmentária e conflitante entre eu,
isso e supereu, Freud melhor colocou o
destino da pulsão previsto pelo tratamento psicanalítico. Wo Es war soll Ich werden
(lá onde isso estava o eu deve advir) significa que o eu deve ir-se constituindo a partir do isso (id). Desfeito o mal-entendido
que tanta polêmica provocou na tradução
para o inglês, torna-se evidente que a origem continua sendo a moção pulsional do
isso (id). A organização do eu se dá pela
colocação das impressões em cadeias significantes, em inscrições estatuídas. Isto
não basta ao eu para ficar aberto às emergências do sujeito e deixar que novas inscrições se façam.
Como vemos, o sujeito aparece
no lugar em que a pulsão se torna uma
representação ligada às representações
que compõem o psiquismo. Aqui já entramos nos ensinamentos de Lacan, para
entender que o sujeito surge no lugar em
que algo do real consegue fazer-se representar no campo do simbólico. Aquilo
que em termos freudianos é o lugar de
articulação entre a pulsão e o inconsciente, para Lacan é onde o sujeito do
inconsciente está. O lugar do sujeito está
na interseção entre o real e o simbólico.
O sujeito do inconsciente é o instante
efêmero da transformação de algo do
real pulsional em elemento que venha a
constituir o campo simbólico.
Mas a psicanálise não restringe o
lugar do sujeito ao puramente simbólico. Como lembra Násio (1988), o sujeito
é o poder e a potência do significante de
significar, potência que é real, contida
nas possibilidades da força energética
da pulsão. Assim como a pulsão, que
só pode ser deduzida e não abordada
em si, o sujeito também é deduzido da
constelação dos efeitos da representação
significante.
O HOMEM CONTRA O SUJEITO
AUTOBIOGRAFADO
A escrita constitui, antes de tudo,
o vencimento do desafio da memória,
produzindo uma espécie de democratização e dessacralização da palavra, podendo ir até a sua banalização. Platão
(DERRIDA, 1997) denunciou que esta
exterioridade da escrita se opõe à visão
interior da alma ou se define como um
pharmakon artificial. Este pharmakon
possui a ambiguidade de um remédio
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro. 2009
35
O homem contra o sujeito
que cura, ou um veneno que traz a
morte. É ainda Platão que afirma que
a escrita é desvio, afastamento que não
leva de volta à origem, mas ajuda a
prescindir da origem. Este afastamento nos conduz a uma perda da verdade
possível. O pharmakon é como a associação livre, técnica tão promissora no
começo de sua utilização. Através dela,
a psicanálise confirmou, a duras penas,
o quanto a fixação no discurso produzido era enganosa. Parecia que, pedindo ao paciente para que dissesse tudo o
que lhe viesse à mente, teríamos o material reprimido, mas logo se entendeu
que as associações ocultavam mais do
que revelavam. A associação e o pharmakon não nos conduzem facilmente à
verdade do sujeito.
O escrito literário, ficcional ou
não, memorável ou obscuro tem estado
sempre muito próximo da psicanálise.
É para nós histórica a pergunta feita a
Freud sobre quem seriam os seus mestres. Ele teria apontado para sua estante onde estavam os livros clássicos
da literatura mundial e de autores seus
contemporâneos. Shakespeare foi fonte constante de inspiração no trabalho
de Freud, do mesmo modo que Lacan
tomou Joyce, Marguerite Duras, Gide,
Sade e outros autores ao tratar de questões cruciais para a psicanálise.
Na literatura, existe uma ficção do
si mesmo resultante de uma necessidade
que todas as pessoas têm de “contar-se”.
Existe aquele que conta e aquele que é
contado. Sujeitos e objetos da linguagem
estão circunscritos basicamente na referência imaginária. A literatura escrita,
como já pensava Platão, nos traz duas
experiências temporariamente distantes: o pensar e o escrever. Mas existe ainda um terceiro tempo em que o escrito
chega ao outro quando ocorre um certo
fracasso na representação do “si mesmo”
proposto inicialmente.
36
Podemos tomar as autobiografias
como uma espécie de ficção sobre si mesmo. Aparentemente, o discurso ou o texto autobiográfico seria uma possibilidade
de o sujeito se revelar. Como mostramos em nosso trabalho Criar para quem
(CORRÊA, 1999), toda a criação literária
tem um destino, e ao escrever esta autobiografia, o autor sempre o faz para um
outro. Não se trata de uma posição transferencial na qual poderia emergir o sujeito do inconsciente ante o suposto saber,
mas um encontro pretendido com este
outro escolhido. É um conflito insolúvel
entre o atendimento às demandas internas e o Outro, leitor imaginário quando
escreve. Gerbase (2003) lembra que “o
sujeito pode ser definido em relação ao
fading, ao cansaço que é fruto da relação
entre o sujeito e si próprio, não entre o
sujeito e o mundo”. Parece-nos que as autobiografias sejam produzidas mais pela
relação do sujeito com o mundo e deste
modo se oporiam ao sujeito.
Entre revelar e ocultar, deve-se
lembrar que na literatura da época de
Freud predominavam as fontes literárias presas ao romantismo e ao realismo,
com narrativas claras que evidenciavam
um saber do escritor sobre os personagens. Era como se o autor passasse ao
leitor os assuntos já interpretados, cabendo a este uma posição identificatória
com quem escreveu.
A literatura contemporânea a Lacan, após
o surrealismo, se caracteriza pelo rompimento das significações e pela queda do
saber do lado do autor. [...] a literatura
contemporânea se caracteriza como um
ato e não mais como um saber capaz de
interpretar (FLEIG, 1998, p.76).
Os lapsos, a elisão das excessivas
e pormenorizadas descrições, permitem
ao leitor um outro tipo de envolvimento
em que sua própria interpretação pode
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro. 2009
O homem contra o sujeito
dispensar ou prevalecer sobre o pensamento expresso do autor.
Assim, também as autobiografias
deixaram de ter as extensas e minuciosas narrativas mnêmicas e passaram a
oferecer lacunas e linguajar próximos
a um saber que não se dá conta da verdade. Por esta via, elas continuam tão
obscuras quanto antes, embora mais interpretáveis psicanaliticamente. Sempre é
possível um pensar psicanalítico, pois “a
experiência psicanalítica não é outra coisa senão o estabelecer que o inconsciente
não deixa fora de seu campo nenhuma de
nossas ações” (LACAN, , 1998). É claro
que toda autobiografia como qualquer
obra literária fala do inconsciente, mas é
diferente a disposição de psicanalisar ou
interpretar psicanaliticamente a literatura
da possibilidade do autor querer deixar
emergir o sujeito do inconsciente através
da obra literária e, principalmente, da autobiografia. Diante da impossibilidade de
comunicar o irrepresentável, restará ao
autobiografando o consolo de que o homem ganhou a luta contra o sujeito que
permanecerá velado no texto.
Na poesia, o significante funciona
sozinho (va de soi), mas na autobiografia (ne va pas de soi), os significados estão ressignificados pela interpretação do
autor que escreve para um outro imaginário. A autobiografia é uma tentativa
de ser mestre de si mesmo, espécie de
defesa, ao invés do exame da relação do
sujeito consigo próprio. A autobiografia
é o oposto da sessão analítica.
Para concluir, nas ciências, na filosofia, na literatura, sempre existiu uma
dificuldade no homem de pensar sobre
si mesmo. Sócrates confessava não saber. Pensar é não saber e, mais, quando
se pensa não se pretende saber, quando
se pretende saber não se pensa. Assim,
o homem tem vivido sem saber de si,
mesmo com a proposta psicanalítica de
revelar o sujeito do seu inconsciente.
Keywords
Subject; psychoanalytic subject.
Abstract
This is an approach that adds questions
of Philosophy, Social Sciences, Literature
and Psychoanalysis about man as psychoanalytical subject.
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38
Tramitação Recebido : 14/07/2009
Aprovado : 25/08/2009
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Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro. 2009
Perversão, humor e sublimação1
Perversion, humor and sublimation
Palavras-chave
Humor; Perversão; Sublimação; Final de análise.
Cibele Prado Barbieri2
Resumo
A autora aborda a questão do final de análise articulando sublimação, perversão e humor para
diferenciar o final de análise em que a integração da falta e a queda do Outro produzem humor em
relação a um outro tipo de final de análise em que o sujeito destitui o Outro e produz um efeito de
humor cínico, como possibilidade.
Trabalhando recentemente sobre a questão da perversão, deparei-me com o aparente
paradoxo de que, embora o perverso se caracterize pela escolha da satisfação direta das pulsões parciais através do desmentido (Verleugnung), grandes e renomados perversos produziram obras-primas da literatura e da arte,
que foram reconhecidas pela Psicanálise como
frutos da sublimação (MILLOT, 2004).
Roudinesco (2008, p. 13) sublinha as
habilidades do perverso de navegar entre
o sublime e o abjeto como um verdadeiro
dom e arte.
Que faríamos sem Sade, Mishima, Jean Genet,
Pasolini, Hitchcock e muitos outros, que nos
deram as obras mais refinadas possíveis? Que
faríamos se não pudéssemos apontar como
bodes expiatórios – isto é, perversos – aqueles
que aceitam traduzir em estranhas atitudes as
tendências inconfessáveis que nos habitam e
que recalcamos?
A sublimação, para Freud (1905), “é
um processo que diz respeito à libido objetal
e consiste no fato de o instinto se dirigir no
sentido de uma finalidade diferente e afastada da finalidade da satisfação sexual”. Em
1914 ele diz que “a sublimação é uma saída,
uma maneira pela qual essas exigências podem ser atendidas sem envolver repressão”. E
em 1917, que ela está ligada à possibilidade
de dessexualizar as pulsões parciais interditadas pela civilização para assim satisfazer aos
interesses da pulsão, sem o constrangimento
das regras impostas pela civilização.
Em 1923, em O ego e o Id, Freud retoma, dizendo que:
A transformação da libido do objeto em libido
narcísica, que assim se efetua, obviamente implica um abandono de objetivos sexuais, uma
dessexualização – uma espécie de sublimação,
portanto. Em verdade, surge a questão, que
merece consideração cuidadosa, de saber se
este não será o caminho universal à sublimação, se toda sublimação não se efetua através da
mediação do ego, que começa por transformar
a libido objetal sexual em narcísica e, depois,
talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo. Posteriormente teremos de considerar se outras vicissitudes instintuais não podem resultar também dessa transformação; se, por exemplo, ela
não pode ocasionar uma desfusão dos diversos
instintos que se acham fundidos.
Como entender que o perverso que,
supostamente, desmente e desafia a lei civi-
Texto elaborado para comunicação na XX Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, 14-15 de novembro de
2008, sobre o tema Humor e Psicanálise.
2
Psicóloga formada pela UFRJ / UFBA. Membro efetivo e presidente do Círculo Psicanalítico da Bahia. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise, biênio 2006-2008.
1
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.39-44 – Novembro. 2009
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Perversão, humor e sublimação
lizatória em sua busca de satisfação, lance mão desse desvio que corresponde à
sublimação?
Talvez, justamente por essa habilidade de desviar-se dos obstáculos à
satisfação pulsional, diante de uma impossibilidade de realizar o ato, o perverso se veja obrigado a formular em
outro ato sua recusa da castração enveredando por uma satisfação substitutiva,
que acaba por revelar-se como criação,
como objeto representativo da Coisa.
O exemplo de Sade nos seria instrutivo
para confiar nessa hipótese, já que em
seus anos de cárcere ele produziu tantas
obras literárias (LACAN,1988; ROUDINESCO, 2008).
No seminário da transferência,
Lacan (LACAN apud FLEIG, 2008, p.
65) diz que
Se a sociedade acarreta, por seu efeito de
censura, uma forma de desagregação que
se chama neurose, é em sentido contrário de elaboração, de construção, de sublimação – digamos a palavra – que se
pode conceber a perversão quando ela é
produto da cultura. E o círculo se fecha,
a perversão trazendo os elementos que
trabalham a sociedade, a neurose favorecendo a criação de novos elementos de
cultura.
Pode parecer muito paradoxal essa
afirmação lacaniana, mas é justamente da
satisfação das pulsões parciais que advêm
os elementos que trabalham a sociedade,
a interdição, a censura e a lei. É, obviamente, a restrição da pulsão que promove a civilização e é na sublimação, assim
como na perversão, que encontramos um
saber-fazer o contorno da interdição para
dominar o gozo, promovendo a satisfação e o triunfo narcísico sobre a castração
(LACAN apud FLEIG, 2008).
Lacan toma a sublimação como
operação que envolve a simbolização
40
do objeto pulsional, na medida em que
o objeto é elevado à dignidade de Coisa (LACAN,1988). Essa fórmula geral
descreve a passagem do objeto causa de
desejo (objetos a que recobrem a Coisa [Das Ding]) aos objetos do desejo
e define-se como um salto metafórico
que implica uma representação, uma
criação. Assim sendo, o que se opera na
sublimação é que algo do real passa ao
simbólico.
Se entendemos a perversão, no
sentido que André (1995, p. 311) propõe, como modalidade discursiva onde
o desmentido funciona como “uma relação particular do sujeito com a linguagem”, podemos compreender melhor
essa articulação entre sublimação e perversão, na dimensão do discurso.
No humor, algo dessa ordem também acontece. O humor como modo privilegiado de realizar a satisfação que de
outra forma estaria fadada à repressão,
ou à negação, ou a qualquer outro artifício defensivo é, segundo Freud, um deslocamento de afeto, ou seja, um salto do
afeto de uma para outra representação.
No artigo de 1927, intitulado O
humor, Freud diz que:
[...] a produção do prazer humorístico
surge de uma economia de gasto em relação ao sentimento (afeto).
[...] Como os chistes e o cômico, o humor tem algo de liberador a seu respeito,
mas possui também qualquer coisa de
grandeza e elevação, que falta às outras
duas maneiras de obter prazer da atividade intelectual. Essa grandeza reside
claramente no triunfo do narcisismo, na
afirmação vitoriosa da invulnerabilidade
do eu. O eu se recusa a ser afligido pelas
provocações da realidade, a permitir que
seja compelido a sofrer. Insiste em que
não pode ser afetado pelos traumas do
mundo externo; demonstra, na verdade,
que esses traumas para ele não passam de
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.39-44 – Novembro. 2009
Perversão, humor e sublimação
ocasiões para obter prazer. Esse último
aspecto constitui um elemento inteiramente essencial do humor.
Vamos dar especial atenção à
questão do afeto nessas passagens, pois
este é um importante diferencial entre o
chiste, o cômico e o humor.
Em sua dissertação de mestrado
em Engenharia de Produção (UFSC),
que se intitula Só dói quando eu rio –
Um estudo psicanalítico sobre o cômico,
o chiste e o humor (2001, pdf), Beatriz
Vasconcelos articulou, a partir de um
estudo inédito, as relações entre o cômico e o imaginário, o chiste e o simbólico,
o humor e o real.
Ela sublinha, no texto freudiano, o papel fundamental da imagem na
construção do cômico, da linguagem na
construção do chiste e do afeto na produção do prazer humorístico. Diz ela:
Percebe-se, no texto freudiano, a ênfase
na comparação de imagens, própria do
cômico. Esta comparação implica em que
uma pessoa ria da outra: o que pressupõe
uma sensação de superioridade, momentânea ou não. Tal fato aponta para uma
via imaginária, marcada pela semelhança, pela pacificação do igual e pela derrisão do diferente.
O chiste, modelo do inconsciente, é um jogo desenvolvido, um jogo de
linguagem. Por isso mesmo, precisa de
um terceiro que o compreenda, senão
ele simplesmente não acontece. O chiste
apura a linguagem e valoriza essa terceira pessoa, sem, no entanto, criar compromisso com ela.
É esse investimento no simbólico, esse aprimorar a língua, driblandoa, esse denunciar no senso o não senso,
que caracteriza o processo chistoso.
Quanto ao humor, sua marca é o
deslocamento de afeto. A palavra afeto
no contexto freudiano não tem o sentido de algo suave ou gentil; não há nada
de afetuoso nela. Ela significa antes, ser
afetado, estar afetado por alguma coisa,
isto é, por uma idéia intolerável.
Se o cômico não suporta estar afetado, se o chiste mascara este afeto, o
humor o enfrenta e o capitaliza. Desafia
a dor, o trauma, o não dizível – o real
em suma – e produz o riso, ou melhor, o
sorriso, pois o humor não é gargalhante.
Sorriso, só o riso, o riso só, que compartilha a miséria, os erros, o estranho que
habita o sujeito. Não será o humor o riso
diante do que não pode ser articulado
em palavras? Paradoxalmente, essa seria a sua grandeza: ele opera no limite
do inapreensível, face ao não sentido do
real.
Fugir (cômico), escamotear (chiste), desafiar (humor): possibilidade pequena de alegria que humaniza o sujeito
e o torna menos desesperançado. Isto
porque, apesar do ditado muito riso,
pouco siso, há sabedoria no riso. Talvez
a sabedoria advinda dessa mesma falta
de siso, de juízo. Dessa mesma falta, que
a psicanálise reputa estruturante.
No chiste estamos no campo do
simbólico, da linguagem, onde o afeto
pelo outro fica encoberto. O riso, como
descarga de afeto, é de quem faz o chiste
e de quem o ouve sem, no entanto, desmascarar o afeto.
No cômico é o imaginário que
prevalece, a imagem patética, ridícula,
estranha, diferente e por isso risível. Explora-se a diferença como abjeção, usando-se o exagero, o bizarro, o não senso,
para marcar a distância do semelhante
tomado como normal. O cômico surge
como descarga direta, pois, o sujeito se
alivia por não ser esse outro: “antes ele
do que eu”, pois o eu não suporta estar
nesse lugar de derrisão.
No humor, assim como na sublimação, trata-se de transcrever algo do
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.39-44 – Novembro. 2009
41
Perversão, humor e sublimação
registro do não dizível que, se atinge a
forma de dito, passa ao registro da linguagem. Como disse Lacan, a linguagem
alcança “seu ponto máximo de eficácia
quando ela consegue dizer alguma coisa
dizendo outra” (LACAN, 1987 p. 156).
O humor é a forma de lidar com
o real contornando a impossibilidade
de satisfação direta, seja de um desejo
de morte, seja de um desejo erótico, seja
pelo seu caráter de estranho, de horror
e insondável. Nesse sentido, podemos
tomar o humor como um desvio que
neutraliza a angústia, permitindo uma
satisfação mesmo que indireta; uma
transgressão admitida, um desafio que
contesta, denuncia, ao mesmo tempo,
que reconhece a lei, o desejo e elabora
uma satisfação possível.
É disso que se trata, também na
perversão, quando o sujeito elabora com
seu ato uma saída satisfatória para o impasse entre o desejo e sua interdição, ao
se confrontar com a ameaça de castração. O desvio lógico que o desmentido
imprime no discurso, o contrassenso
com o qual o perverso destitui a lei de
sua eficácia, não deixa de se valer dessa
propriedade da linguagem de desdizer
alguma coisa dizendo outra.
É assim que o perverso alcança, às
vezes até com humor, o triunfo do seu
narcisismo e a afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do seu eu que se recusa
a ser afligido pelas provocações da realidade e compelido a sofrer.
Isso nos mostra o quanto a perversão, sendo a parte obscura de nós
mesmos, parafraseando Roudinesco, nos
é familiar. Mais do que isso, Mellman
(apud FLEIG, 2008, p.110) num artigo
intitulado O perverso supremo, diz que
a perversão é nosso espaço natural, no
funcionamento social da modernidade:
Seria preciso dizer que se talvez nem
sempre vemos claramente a perversão é
42
porque não apreendemos bem que ela
se tornou nosso espaço natural. O funcionamento social hoje, certamente é
muito mais regido pela perversão, isto
é, a recusa em fazer da subjetividade
daquele com quem lidamos o menor
entrave ao exercício de um poder ou
de um gozo, não importando o fato de
que ele ex-sista. O que importa é que
ele realize sua tarefa e isso sem nenhum
limite, sem nenhuma barreira, sem nenhuma fronteira. Esse tipo de dispositivo parece fazer parte de nossa fisiologia
moderna ao ponto de que mal sabemos
de que maneira estamos imersos, tanto a perversão se tornou nosso meio de
imersão.
Se, na perversão, não há fronteira
ou limite para gozar daquele com quem
lidamos, é justamente nisso que podemos
distinguir humor, sublimação e perversão.
Nessas aproximações que fazemos delineiam-se as diferenças que os afastam.
O humor, em sua concepção mais
positiva, não é resignado. É rebelde,
desafiante, mas admite e integra a falta
constitutiva do sujeito, coisa que o perverso manipula desmentindo. É preciso
distinguir, por exemplo, o final de análise em que o humor resulta da integração
da falta, da libertação do gozo do Outro – já que não há outro que dê conta
do real –, do arremedo de final de análise pela via do humor cínico que visa
à manipulação, à sedução e destituição
do outro para, através dele próprio, gozar mais e melhor, livre dos infortúnios
da castração. Se, no primeiro caso nos
aproximamos da sublimação, no segundo estamos no campo da perversão
(BARBIERI, 2003; 2007).
Nesse sentido, observamos com
alguma frequência, senão a estrutura
perversa propriamente dita, ao menos a
atuação perversa como traço, compondo
quadros de histeria em sujeitos cuja aná-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.39-44 – Novembro. 2009
Perversão, humor e sublimação
lise supostamente chegou a um termo,
permitindo, inclusive, que se pretendam
analistas. O humor, aqui usado no sentido de proclamar a inexistência do Outro, na verdade se revela como artifício
para desmentir a falta; como instrumento eficaz para sustentar a posição fálica,
o triunfo do narcisismo e a afirmação
vitoriosa da invulnerabilidade do eu. Se
recalcar a falta para manter a ilusão de
ser fálica não resolve o dilema histérico,
o humor pode ajudar a desmentir a sua
efetividade. Por isso tanto assistimos a
atos perversos em boas histéricas, como
também podemos nos confundir com a
perversão camuflada em pele de histeria, pois o perverso é aliciador, sedutor,
quando disso depende para sustentar
seu dito (BARBIERI, 2003;2007).
É preciso que, pelo menos os
analistas, mesmo estando imersos nesse
meio, – como nos diz Mellman – vejam
claramente a perversão que os rodeia em
seu espaço natural, pois cabe ao analista
não sancionar atitudes e posturas que favoreçam que o sujeito – investido de um
suposto saber sobre o gozo e sua clínica –, se autorize e se proponha ao outro
como analista, para dele gozar seja como
analisante, aluno ou serviçal, revelando
imposturas que só podemos qualificar
de perversas (ANDRÉ,1995).
O dispositivo do humor pode,
então, configurar-se como desvio para
gerenciar a angústia diante do real, na
qualidade de sublimação, mas pode
também revelar-se um desmentido que,
além de proteger o sujeito de ter sua precariedade desnudada, favorece, ainda,
sob a forma cativante da imagem que o
cômico, enquanto ingênuo, simplório,
diferente, oferece ao outro, obtenha sua
cooperação. Se, no primeiro caso, a saída é simbólica e acolhe a falta, no segundo, é imaginária e a desmente.
Entretanto, em qualquer caso, o
humor gera discurso, sempre. Mesmo
que sem palavras, pois é uma via por
onde o sujeito pode deslizar do destino, ou seja, do real, que é mudo, surdo e
cego, para o circuito do prazer, da palavra, do riso, do sorriso. Por isso, finalizo
com o prazer das palavras de Adélia Prado (1996, p.22).
Antes do nome
Não me importa a palavra, esta
corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge
a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o ‘de’, o ‘aliás’,
o ‘o’, o ‘porém’ e o ‘que’, esta incompreensível muleta que me apoia.
Quem entender a linguagem entende
Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais
grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infrequentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com
a mão.
Puro susto e terror.
Keywords
Humor; perversion; sublimation; end of
analysis.
Abstract
The author deals with the question of end of
analysis by articulating sublimation, perversion and humor to distinguish the kind of end
of analysis where the integration of lack and
the fall of the Other produces humor and another kind of end of analysis where the fall of
the Other produces a cynical humor effect, as
a possibility.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.39-44 – Novembro. 2009
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Perversão, humor e sublimação
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teses.eps.ufsc.br/defesa/pdf/7348.pdf
Tramitação Recebido : 29/05/09
Aprovado : 13/08/2009
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Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.39-44 – Novembro. 2009
Síndrome do pânico:
angústia avassaladora?
Quadro nosológico?1
Panic syndrome: overwhelming anguish? Nosologia symptom?
Clovis Figueiredo Sette Bicalho2
Palavras-chave
Angústia; Síndrome do pânico.
Resumo
Questionar a cultura da ilusão para tamponar a falta é o que se propõe neste texto. Parte-se da origem
da palavra e da definição de angústia para um percurso na obra freudiana (de forma cronológica).
Esse percurso é cotejado por outros autores no que tange à estruturação do psiquismo e às possíveis
saídas para a angústia.
Tornar o homem um ser não faltante
é uma busca atual, eterna. Soluções indolores ou quase, eficazes e rápidas são ofertadas
com insistência. Obturar toda a falta sem levar em conta sua origem parece ser a solução
proposta. Sabemos que a época e o contexto cultural, social e político influenciam a
subjetividade do homem e sua inserção no
mundo. Os sintomas, podemos dizer, são a
forma pela qual o sujeito se expressa diante da cultura e, assim, eles espelham tanto o
seu modo de ser quanto seu modo de viver.
Faz-se necessária uma contextualização desse homem no espaço e tempo em que se encontra inserido, para que possamos entender
o porquê ou o que está acontecendo com as
pessoas que nos procuram em nossos consultórios. Haveria na contemporaneidade lugar para as angústias existenciais tão típicas
da época freudiana e mesmo até certa altura
do século passado? Houve um deslocamento nas questões relativas à subjetividade? O
que vem acontecendo com a nossa sociedade para que surjam esses novos sintomas?
Qual a implicação da globalização, do mundo sem fronteira da internet, do consumo
excessivo de produtos, onde o ter e o aparecer são mais importantes que o ser e seus
questionamentos?
Podemos conceituar angústia como
o estado afetivo advindo do surgimento de
uma grande inquietude intrapsíquica que se
irrompe perante ameaça real ou imaginária e
se mostra através de manifestações corpóreas (sudorese, taquicardia, dificuldades respiratórias e outras).
Massermann apud Tallaferro (1989,
p.171), em Curso básico de psicanálise, conceitua a angústia como: “O afeto desagradável que acompanha uma tensão instintiva
não satisfeita. É um sentimento difuso de
mal-estar e apreensão que se reflete em distúrbios visceromotores e modificações da
tensão muscular”.
Na Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10 (1993, p.
137), temos:
F 41.0 – Transtorno de pânico (ansiedade paroxística episódica). Os aspectos
essenciais são ataques recorrentes de ansiedade grave (pânico), os quais não estão restritos a qualquer situação ou conjunto de
Apresentado no congresso do CBP, em Aracaju, sob o título A angústia e a cultura da ilusão em 30 de outubro de 2008.
2
Médico psiquiatra especialista pelo Hospital Espírita André Luiz e psicanalista. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise no período de 1994-1996 e 1996 -1998.
1
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.45-50 – Novembro. 2009
45
Síndrome do pânico: angústia avassaladora? Quadro nosológico?
circunstâncias em particular e que são,
portanto, imprevisíveis. Assim como
em outros transtornos de ansiedade, os
sintomas dominantes variam de pessoa
para pessoa, porém início súbito de palpitações, dor no peito, sensações de choque, tontura e sentimentos de irrealidade (despersonalização ou desrealização)
são comuns. Quase invariavelmente há
também um medo secundário de morrer, perder o controle ou ficar louco.
No Novo Dicionário da Língua
Portuguesa, de Aurélio Buarque (1986),
encontramos:
Angústia: 1. Estreiteza, limite, redução, restrição. 2. Ansiedade ou
aflição intensa; ânsia, agonia. 3.
Sofrimento, tormento, tribulação.
A origem do termo alemão Angst
nos remete à raiz indo-européia Angh
(apertar, comprimir). Posteriormente
virão as raízes grega Agchein (estrangular) e latina Angina (sensação de sufocamento, aperto).
Nem sempre é possível diferenciar os
termos ‘medo’, ‘ansiedade’ e ‘angústia’
entre si. Conforme o contexto, tanto Angst ‘medo’ como Furcht ‘temor’, (palavra
também ocasionalmente empregada por
Freud) podem corresponder a ‘ansiedade’ e mais raramente a ‘angústia’; entretanto, a rigor, nem Angst nem Furcht correspondem em alemão a ‘ansiedade’ ou a
‘angústia’ (HANNS, 1996, p.62).
Na literatura psicanalítica, esse é
um tema frequente e atual. Faremos um
percurso fundado em Freud, atendo-nos
basicamente a seus textos Estudo sobre a
histeria (1895), O inconsciente (1915), O
ego e o id. (1923), Inibição, sintoma e angústia (1925), Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise (1932).
Em 1908, no prefácio da 2ª edição
de Estudos sobre a histeria (1895), encontramos um incentivo para tal trajetória.
46
Nesse período inicial, com fortes
ligações com a neurologia, o tratamento
com histéricos abre espaço para a observação de que os sintomas desses pacientes teriam origem em inibições na infância e que iriam ser a causa da angústia
posterior.
Nós já nos referimos à tendência, por
parte do organismo de maneira constante, à excitação cerebral tônica. Uma
tendência dessa natureza é, contudo, somente inteligível se pudermos ver qual a
necessidade que ela atende.
Uma tal perturbação do equilíbrio dinâmico do sistema nervoso – uma distribuição não uniforme da excitação aumentada – é o que constitui a faceta psíquica
das emoções.
Nesse texto a ancoragem no orgânico vai permitir a caminhada para se
constatar que a “excitação aumentada”
tem como caixa de ressonância os aparelhos respiratório, cardíaco, gástrico,
entre outros.
Se a emoção original foi descarregada
não através de um reflexo normal, mas
por um reflexo ‘anormal’, este último é
igualmente liberado pela lembrança. A
excitação decorrente da idéia emotiva é
‘convertida’ numa manifestação somática
(FREUD, 1895).
Com a consequente perturbação
da vida sexual, esse histérico, com seu
corpo erotizado, encontra a inibição
na zona genital. Daí a angústia emerge
transvestida de vários sintomas. Não
podemos esquecer ser a inibição o mecanismo que impede o sujeito de chegar a um prazer. A fantasia de castração
passa a dominar a vida psíquica do histérico. “... a fantasia contém a angústia,
e a angústia por fim transforma-se em
sofrimento” (NASIO, 1991).
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.45-50 – Novembro. 2009
Síndrome do pânico: angústia avassaladora? Quadro nosológico?
Em O inconsciente (FREUD, 1915),
o recalque aparece como mecanismo
para evitar o afloramento de pulsões, impedindo que o representante ideativo se
torne consciente. Dessa maneira, é preciso um trabalho psíquico que leve a uma
formação de compromisso, possibilitando que o retorno do recalcado se manifeste como sintoma em que a angústia é
seu afeto. Melhor dizendo, os sintomas
manifestos via ego têm sua(s) origem(s)
no inconsciente ao se vincularem as representações verbais do pré-consciente.
A experiência analítica proporciona condições de trazer à tona parte do que é inconsciente. A angústia que vem se manifestar como sintoma passa assim a exigir
uma investigação de suas causas.
O processo econômico e o dinâmico são conceitos facilitadores para o
entendimento do funcionamento psíquico em sua busca de equilíbrio.
Em Inibição, sintoma e angústia
(1925, p. 109), Freud propõe uma nova
teoria que se contrapõe à sua primeira,
na qual defendia ser o recalque o causador da angústia. Nesse texto, a angústia
causa o recalque.
Partindo das funções do ego, vamos detectar que desequilíbrios em
sua dinâmica farão surgir as diferentes
“afecções neuróticas.” E esse descompasso vai deixar evidente a correlação
existente entre inibição e angústia. As
perturbações nas funções sexuais, na
nutrição, no trabalho, entre outras,
passam a ser melhor definidas, e correlacionadas. “A inibição é a expressão de
uma restrição de uma função do ego”
(FREUD, 1925).
Tanto o desenvolvimento da sexualidade na infância quanto sua reflorescência na adolescência são situações
exaustivamente exemplificadas como
fatores causais de uma inibição.
Esse desenvolvimento toma sua
evolução dentro de alguns preceitos.
Aqui, os conflitos entre id e superego
têm no ego sua vitrina.
Em 1932, nas Novas conferências
introdutórias sobre psicanálise, vimos
que,
... estudando as situações perigosas, constatamos que a cada período da evolução corresponde uma angústia que lhe é
própria: o perigo do desamparo psíquico
coincide com o primeiríssimo despertar
do ser; o perigo de perder o objeto (amor),
com a falta de independência que caracteriza a primeira infância; o perigo da
castração, com a fase fálica; e finalmente
o medo do superego, que ocupa um lugar
particular, com o período de latência.
Sobre o perigo real que o homem
enfrenta, suas duas reações podem ser
ditas de defesa e fuga.
O perigo é conhecido e real, mas a
intensidade da reação é desproporcional
ao perigo.
Esse excedente mostra a presença
do elemento neurótico. Outro exemplo é
quando ocorre a separação de um objeto
em que esta é dolorosa, podendo produzir angústia, luto ou dor. Novamente o
possível descompasso entre a intensidade e a reação nos faz averiguar a real
“origem dos sintomas”.
Aqui é abordada com propriedade
a angústia realística – uma reação que
nos parece compreensível diante de um
perigo – e a angústia neurótica – reação
enigmática particular e aparentemente
desproporcional.
A angústia neurótica é vista sob
três condições: forma livre – é flutuante,
pronta a vincular-se temporariamente
(fobia); forma vinculada – que se fixa
em determinadas ideias (obsessão); forma histérica – aqui, a angústia coincide
com o sintoma e fixa no corpo (conversão) ou surge independente como um
ataque.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.45-50 – Novembro. 2009
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Síndrome do pânico: angústia avassaladora? Quadro nosológico?
Freud, em 1932 (p.107), ao escrever “que o ego é a única sede da angústia – e que somente ele pode produzir e
sentir angústia”, estabelece uma posição
nova e estável.
A excitação ocasionada pelo aumento de desprazer é angústia sinal
– aquela que a um sinal intrapsíquico
ativa os mecanismos de defesa do ego a
fim de manter o equilíbrio econômico,
sempre que necessário. A angústia sintoma surge após a entrada em ação dos
mecanismos de defesa do ego, acionados pela angústia sinal, e faz com que os
sintomas aflorem.
Ralph Linton (1970), em O Homem: uma introdução à antropologia,
assim como Alvin Toffler (1973), em O
Choque do Futuro, discorrem de maneira
clara sobre como as mudanças ocorridas
entre gerações vão tendo seus intervalos
cronológicos diminuídos. O homem de
hoje tem um instrumental tecnológico
às suas mãos no qual conceitos de distância e tempo estão profundamente alterados. A satisfação imediata é cada dia
mais ansiada.
No decorrer do século XX, inúmeras revoluções ocorreram levando a uma
modificação, em princípio lenta, não só
dos valores vigentes, mas também da
família, da moral, da sociedade, acelerada por uma transformação radical nos
meios de comunicação e no intercâmbio
comercial, determinados pelos avanços
tecnológicos e científicos. O mundo torna-se uma aldeia global. Todos sabem
de tudo no momento mesmo em que
o fato acontece, e o acesso aos bens de
consumo se difunde em quase todas as
estratificações sociais.
Paralelamente e em decorrência
desse processo, os papéis do homem e
da mulher tiveram uma redefinição. As
mulheres, com o movimento feminista,
libertaram-se dos grilhões machistas e
asseguraram o direito ao voto, ao traba48
lho, ao prazer sexual, obtendo um papel
econômico e social nunca antes imaginado. Graças à pílula anticoncepcional, a
sexualidade se desvincula da procriação,
e a mulher, de seduzida, passa a ser a sedutora. Da passividade para a atividade.
Freudianamente pensando, tornaramse mulheres com falicidade. Hoje muitas trabalham, se sustentam e, em boa
parte, fazem as abordagens de sedução.
Como ficou o papel do homem? Com a
concorrência feminina, o seu mercado
de trabalho diminuiu, a masculinidade
deixou de ser medida pela agressividade e ação, e o seu desempenho sexual foi
posto cada vez mais em xeque. A falicidade do homem é colocada em questão.
Porque na cultura, dois polos que lhe
serviam de suporte se fragmentaram:
o campo da troca simbólica, onde eles
não detêm mais o poder econômico, e
o da troca amorosa, onde a maioria das
mulheres não se coloca mais no lugar
de objeto de desejo do Outro (posição
passiva), mas sim no lugar de sujeito de
desejo.
Do enunciado de uma ideia à
sua concretização, o tempo é cada vez
mais exíguo. As coisas acontecem no
aqui e agora, o ontem ou o futuro tornam-se nebulosas desinteressantes e
desnecessárias.
É importante ressaltar que, em
decorrência dessas transformações psicossociais, observa-se que o diagnóstico
de síndrome do pânico tem aumentado
e chama a atenção de múltiplos setores
estudiosos do assunto. Estará o convívio
na sociedade pós-moderna nos obrigando a “resolver” esse incômodo de
maneira rápida e até cirúrgica? Serão esses incômodos insuportáveis ao homem
da pós-modernidade? A necessidade de
tamponamento da angústia cria o efeito
“panela de pressão” que, quando rompe,
traz essa percepção de morte iminente
(síndrome do pânico)?
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.45-50 – Novembro. 2009
Síndrome do pânico: angústia avassaladora? Quadro nosológico?
Não suportamos conviver com
angústia.
Parece causar transtornos conviver com o deslizamento de um afeto até
o real e daí ver o surgimento da angústia. Afigura-se aí que o lenitivo cultura
da ilusão passa a ser a solução. Uma sociedade cada vez mais violenta, perversa, cheia de fetiches.
Mesmo com o advento dos contatos virtuais, das clonagens e de todas
essas mudanças que estão por aí, não
podemos pensar o ser humano como
um sujeito que encontrou a maneira de
obturar seu furo e assim deixar de ser
um ser faltante. É impossível querer ignorar as etapas de desenvolvimento na
estruturação do psiquismo. “Sam estava
sob a influência da droga em mais de
uma maneira: deixara que o Prozac não
só curasse o episódio da depressão, mas
também que lhe mostrasse como era
constituído.” (KRAMER, 1994).
Pergunta-se: Seria apenas o uso químico? A relação transferencial e a intervenção psicoterapêutica não teriam valor?
Que constituição é esta à qual alude?
Raciocínio como o citado acima
nos remete a conjecturas sobre o desejo
de que a vida não tenha percalços e que
sejamos todos seres completos e perfeitos. Melhor dizendo, narcísicos.
Uma vida sem angústia!
Igrejas (evangélicas, renovação
carismática e assemelhadas) proliferam
com grande aceitação e calcam o seu sucesso em promessas nas quais o Senhor
Deus suprirá as lacunas existentes no
sujeito. Opera-se assim a completude
deste. Aos que seguirem os preceitos, a
alegria de ser não tem contornos oriundos da dor de existir. Mais uma vez, a
tentativa é de obliterar a angústia.
Correm-se riscos de danos de
maior monta ao se embarcar em aventuras do passado e futuro negados e/ou ao
fixar-se no aqui e no agora.
O desregramento da relação com
o tempo é mais um fator dessa claridade imaginária a ofuscar a dificuldade do
homem de se defrontar com seus limites
e incapacidade de soluções de efeitos extraordinários, como lenitivo à sua dor e
falta.
Queremos deixar claro que não
pontificamos para que a dor do homem
como uma virtude da vida, nem que religiões, pesquisas científicas e psicofármacos devam ser ignorados. Entretanto,
não procurar a gênese dos vários sintomas da chamada síndrome do pânico é
desprezar o sujeito e o seu desenvolvimento psíquico.
Angústia sinal e angústia sintoma constituem dois polos impossíveis de ser neutralizados. Entre eles se
deslocam e se produzem a direção e o
sentido do ser humano, num constante
movimento de busca de seu equilíbrio e
apaziguamento.
Keywords
Anxiety; panic syndrome.
Abstract
The purpose of this text is to question the culture of ilusion and how it trys to cover the
structural failure. The author searches the
origin of the word, defining anxiety from
Freud’s work in a cronologic way, passing by
many contemporary authors that have written about psychical structure and the possible
way out for anxiety.
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Síndrome do pânico: angústia avassaladora? Quadro nosológico?
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Tramitação Recebido : 01/06/2009
Aprovado : 14/09/2009
Nome: Clóvis Sette Bicalho
Endereço : R. Tomaz Gonzaga, Nº 802/
504, Lourdes
CEP: 30180 – 140, Belo Horizonte/MG
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Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.45-50 – Novembro. 2009
Final de análise:
uma revisão sistemática da literatura
1
End of analysis: a systematic revision of literature
Palavras-chave
Final de análise, Cura, Psicanálise, Psicanalistas.
Déborah Pimentel2
Maria das Graças Araújo3
Maria Jésia Vieira4
Resumo
O objetivo do estudo foi identificar as idéias dos psicanalistas do Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP
sobre o tema final de análise. O método utilizado foi revisão sistemática de literatura, tendo como banco de
dados a Revista Estudos de Psicanálise, publicação oficial do CBP, indexada no Indexpsi Periódicos, Biblioteca
Virtual em Saúde –Psicologia (BVS- Psi). A seleção dos artigos foi feita através de doze palavras-chave: análise
terminável/interminável, cura, destituição subjetiva, direção da cura, desenlace, efeitos terapêuticos, esperança
de cura, fim de análise, final de análise, finalidade da psicanálise, saída e travessia da fantasia. Encontraram-se
vinte e cinco artigos, dos quais sete se repetiam entre os descritores; um, após leitura do resumo, não tratava do
assunto em questão; restaram, então, dezessete. Como resultados, encontrou-se que os autores questionam se
há um final de análise, a eficácia da psicanálise, falam sobre os destinos da pulsão, sobre o rochedo da castração
e a travessia do fantasma, a ética do desejo, o passe e as demandas de felicidade.
Uma análise não deve ser forçada até
muito longe. Quando o analisando pensa que está feliz na vida, é o bastante.
Lacan
INTRODUÇÃO
Freud, no final dos Estudos sobre a
Histeria (1893-1895), diz que o objetivo da
Psicanálise, promovendo a suspensão do
sintoma, é transformar o sofrimento histérico em infelicidade comum. Sabe-se que
a medida da eficácia terapêutica é o efeito
da linguagem sobre o gozo sexual do sintoma e a constituição de um saber sobre o
sujeito.
Lacan, citado por Nasio (1987), em
contrapartida, nos disse que o sintoma significa essencialmente o retorno da verdade
na falha do saber. Verdade de que o sujeito
inquestionavelmente nada quer saber. Só
quando o sintoma fracassa, o sujeito percebe,
através do seu desamparo e desconhecimento, que nada lhe resta senão a possibilidade
de dirigir-se ao saber, que equivale a procurar
uma resposta ao enigma deste sintoma que aí
é capturado pela transferência.
Trabalho produzido na disciplina Metodologia da Investigação do Curso de Doutorado em Ciências da
Saúde, sob a coordenação da Profa. Dra. Maria Jésia Vieira.
2
Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise no biênio 2008-2010 e editora da Revista Estudos de Psicanálise para o mesmo período. Presidente da Academia Sergipana de Medicina. Fundadora e presidente do
Círculo Psicanalítico de Sergipe. Doutoranda e Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de
Sergipe. Professora do Departamento de Medicina da Universidade Federal de Sergipe.
3
Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Sergipe e membro da diretoria do Círculo Brasileiro de Psicanálise
no biênio 2008-2010. Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Sergipe.
4
Enfermeira. Professora doutora do Núcleo de Pós-Graduação de Medicina da Universidade Federal de Sergipe.
1
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
51
Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
A Psicanálise serve, portanto, para
quem deseja confrontar-se com a sua verdade, questionando o sintoma, trocando o
gozo pelo saber, numa articulação entre o
saber e a verdade, na medida mesmo em que
o sintoma analítico, como enigma, se dirige
ao sujeito suposto saber, de quem se espera
receber significações.
Considera-se também que a psicanálise é uma práxis regida pela ética do inconsciente e pelo compromisso que se estabelece
entre o sujeito e o seu desejo, permitindo o
acesso a uma verdade sempre escondida no
enigma do sintoma.
Perante essa riqueza e profundidade
epistemológica das ideias de Freud e dos
seus seguidores, como Lacan, em especial,
propõe-se uma revisão sistemática da literatura com o objetivo de identificar as ideias
dos psicanalistas do Círculo Brasileiro de
Psicanálise sobre o tema final de análise.
METODOLOGIA
Trata-se de uma revisão sistemática
da literatura, ou seja, um estudo descritivo,
bibliográfico, documental. A metodologia
de revisão sistemática pode ser encontrada
nas publicações Cochrane Handbook e no
CRD Report produzido pela NHS Centre for
Reviews and Dissemination (KHAN et al.,
2000; CLARKE; OXMAN, 2000) .
A realização desta revisão iniciou-se
com a formulação de uma pergunta que definiu qual material seria usado pelo presente
artigo e onde localizá-lo. O levantamento
de dados considerou apenas a publicação
oficial do Círculo Brasileiro de Psicanálise,
Revista Estudos de Psicanálise, indexada no
IndexPsi Periódicos, Biblioteca Virtual em
Saúde – Psicologia (BVS-Psi), único banco
de dados relevante para nossos objetivos que
consistiam em descobrir como pensavam os
psicanalistas dessa instituição sobre o final
de um processo psicanalítico.
A avaliação crítica permitiu determinar quais estudos iriam ser utilizados
52
na revisão, utilizando, para tal, doze descritores: análise terminável/interminável;
cura; destituição subjetiva; direção da cura,
desenlace, efeitos terapêuticos, esperança de
cura; fim de análise, final de análise; finalidade da psicanálise; saída e travessia da
fantasia (Quadro 01).
O periódico analisado teve seu primeiro
número publicado em 1969 em Belo Horizonte,
e o último número é este de outubro de 2009,
que não traz, além deste trabalho, nenhum artigo sobre o tema. Foram localizados, portanto,
25 textos, quando considerado separadamente
cada um dos descritores, entretanto, em sete
deles havia mais de um dos descritores selecionados, tendo, portanto, sido considerados, para
efeito da revisão, uma única vez. Encontramos
em quarenta anos de publicação da revista, dezoito artigos que contemplam os descritores
acima citados.
De posse dos dezoitos estudos identificados, procedeu-se à leitura dos títulos e,
em seguida, à leitura dos resumos (quando
havia) para que houvesse a garantia de que
se tratava de textos objeto deste estudo. Excluiu-se o texto de 1969, localizado inicialmente com a palavra chave cura, mas cujo
título revelava tratar-se de um artigo sobre
psicoterapia de grupo, fugindo do escopo
aqui proposto. Restaram, assim, dezessete
artigos para serem analisados.
Por se tratar de revisão sistemática da
literatura produzida no veículo e tempo explicitados, os autores das fontes originais são
citados como fontes secundárias, uma vez que
a base de construção do texto é o conjunto dos
artigos selecionados.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Se forem consideradas as datas de
publicação como fio condutor na evolução
do pensamento dos psicanalistas do Círculo Brasileiro de Psicanálise, percebe-se não
haver essa configuração, pois usam como referências – 260, no total – quase sempre, os
mesmos autores, quais sejam os principais
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
Análise terminável /
interminável
01
01
01
Total de
artigos
2006
2004
2003
1999
1997
01*
Cura
Destituição subjetiva
Direção da cura
Desenlace
Efeitos terapêuticos
Esperança de cura
Fim de análise
Final de análise
1995
1994
1993
1992
1990
1989
DESCRITORES
1971
Ano de publicação
01
01
01
01
06
01
01
01
01
01
01
01
01
09
01*
01
01*
01
01*
01
01
01
01
01*
01
02
01
Finalidade da Psicanálise
Saída
01*
01
Travessia do fantasma
01*
01
Total de artigos / ano
01
01
01
01
03
02
01
01
02
02
01
01
25**
Quadro 1 – Distribuição do total dos artigos identificados por descritores e por ano de publicação
Fonte: Revista Estudos de psicanálise (1971 / 2006)
* Artigos nos quais constava mais de um descritor, e que, portanto, foram considerados uma única
vez para efeito da revisão.
** Dos 25 artigos anteriormente identificados, foram considerados dezessete para a revisão sistemática da literatura.
responsáveis pelas obras viscerais fundantes
da Psicanálise, a começar por Freud, citado
62 vezes, e os autores pós-freudianos como
Ferenczi (cinco vezes), Melanie Klein (três
vezes), Winnicott (quatro vezes), Bion (três
vezes) e Lacan (27 vezes). Os autores também
se aproximam dos pós-lacanianos como Colette Soller (quatro vezes), Juan David Nasio
(três vezes), Jacques Alain Miller (sete vezes)
e Gerard Pommier (quatro vezes). Também
são citados com destaque Kemper (três vezes)
e Joel Birman (seis vezes).
Entre os autores mais citados, as obras
que mais vezes foram usadas como referência
nos textos estudados constam do quadro 2.
Para analisar os dados obtidos através dos
fichamentos dos dezessete artigos consultados,
utilizou-se a técnica de análise de conteúdo na
modalidade categorial (BARDIN, 2006) e elen-
caram-se algumas categorias que se repetiam entre os autores: o que é um final de
análise e se há um final; o nó do sintoma e
o destino pulsional; o rochedo da castração
e a travessia do fantasma; a transferência, o
amor de transferência e a ética do desejo; a
criação, o cômico e a arte no final de uma
análise; eficácia da psicanálise; pacientes
graves; o passe e a demanda da felicidade.
Há um final de análise?
Araújo (1995) questiona se há um final de análise e como se dá isso, aventando
a questão da análise pessoal do terapeuta
como viés para uma aguçada percepção
do final de análise do seu cliente. Lembra
que a capacidade de amar, assim como a
de trabalhar, são os critérios freudianos
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
53
Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
AUTOR
BION
FERENCZI
FREUD
KLEIN
LACAN
POMMIER
SOLER
TÍTULO DO ARTIGO
Atenção e interpretação – uma aproximação científica à compreensão interna na
psicanálise e nos grupos (1995)
O problema do fim da análise (1927)
Análise Terminável e Interminável (1937)
Inveja e gratidão (1946-1960)
Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise (1963-1964)
O desenlace de uma análise (1990)
Finales de análisis (1988)
Variáveis do fim da análise (1991)
Quadro 2 – Obras mais citadas como referência nos textos estudados.
Fonte: Revista Estudos de psicanálise (1971 / 2006).
para o final de uma análise e traz a fala do
fundador da Psicanálise, Freud, quando
concluía a Conferência XXXI dizendo que
a intenção da Psicanálise é “fortalecer o ego,
ampliar seu campo de percepção e aumentar sua organização, de maneira que possa
apropriar-se de novas partes do id. Onde era
o id, ficará o ego” (p.99).
Questiona, ainda, qual o momento e
quais os determinantes do término de uma
análise. Busca Freud, de 1937, para responder, mostrando a questão da castração
e a aceitação dos limites como terapeuta e
analisandos.
Sobre a dificuldade de se escrever sobre o fim de análise, Siqueira (1997) remete
a Freud em A Questão da Análise Leiga, de
1926. Ele acreditava, naquele momento, que
o objetivo dessa deveria ser o fortalecimento
do ego, destacando a importância do estabelecimento dos processos adaptativos, traduzidos na capacidade de trabalhar e amar.
Para Ferenczi (1932 citado por
ARAÚJO, 1995), existe um final de análise desde que o analista tenha competência
e paciência para finalizá-la; último privilegia a questão da fantasia e a sua necessária
distinção da realidade e a importância de o
analisando conseguir fazer associações realmente livres.
Em O Problema do Fim da Análise,
Ferenczi, em 1932, argumenta que só é possível chegar ao final de uma análise quando
os sintomas se esgotam, assim como todas
as formações fantasmáticas (apud SIQUEI54
RA, 1997). Chagas (1992) também traz as
ideias de Ferenczi de 1927 para discutir que
o sucesso de uma análise acontece quando
se vence a compulsão à repetição graças a
uma postura mais ativa do terapeuta e com
a possibilidade de se dar um fim absoluto à
angústia de castração. Suas ideias se opõem
às de Freud.
Chagas (1992) discute que Freud, em
resposta a Ferenczi, retoma ao tema dez anos
depois em Análise terminável e interminável
(1937) e com base em seus escritos afirma
que “toda análise termina ao esbarrar no
impasse da castração, e esse impasse é uma
questão de estrutura, o que leva a supor o
final de análise como uma renúncia do analista frente a esta impossibilidade, pois ‘não
se pode curar o incurável ou mudar o imutável’” (p. 55). Essa mesma questão também
é discutida por Siqueira (1997).
Klein, citada por Siqueira (1997, p.
94), advoga que, no final de análise não há
mais necessidade de idealização do analista
por parte do analisando para “as suas boas
relações com o objeto”.
Para os Kleinianos, diz Araújo (1995),
as neuroses infantis são uma defesa contra
as ansiedades paranoides e depressivas subjacentes. Através da transferência com o
terapeuta, o analisando pode lidar melhor
com perdas, trabalhando com elementos
como reparação, sublimação e criatividade. O trabalho analítico pode ser encerrado
quando se criam condições para a gratidão e
se estabelece um objeto bom.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
Winicott, em 1969 (apud SIQUEIRA,
1997, p. 95), compara o momento de fim de
análise, denominado por ele de “estado de
separação” ao estado de individuação – separação de Mahler, na qual verifica-se uma
confrontação entre os sentimentos de luto,
de perda, de separação “com a perda da onipotência e com os limites: do analisando, do
analista, da análise”.
Para Winnicott, em 1975, o papel do
analista é permitir que o analisando o use
como objeto transicional sem se deixar mobilizar pela destrutividade do seu paciente
(ARAÚJO, 1995). Para Bion, em 1995, citado por Siqueira (1997, p.94), “quanto mais
profunda é a investigação, mais claro fica que
uma análise, por mais prolongada que ela
seja, só pode ser o começo de uma busca”.
Green, em 1990, escreve: ‘O resultado
de uma análise não é concluir sobre a incoerência ou a inexistência da história, mas,
antes, sobre a descoberta de uma outra coerência histórica que essa, na qual se acreditava antes da análise’ (apud SIQUEIRA,
1997, p.94-5).
Lebovici, em 1980, acredita que a
conclusão de uma análise se dá quando a
neurose de transferência é suficientemente
analisada e a neurose infantil reconstituída.
(LEBOVICI, apud SIQUEIRA, 1997).
O tema de final de análise continua,
principalmente nas discussões que se estabelecem sobre morte e luto, conforme visto
nos trabalhos de Hausson e Didier-Weill,
de 1993, uma vez que a morte simbólica é
vivenciada no final de análise (SIQUEIRA,
1997).
Para os autores, “Se a transferência é
a repetição, a derradeira repetição é justamente a separação. Isso faz parte das vicissitudes do término da análise” (SIQUEIRA,
1997, p.94).
Calligaris (citado por SIQUEIRA,
1997) entende que o final de análise diz
mais respeito ao analisando do que ao
analista, na medida em que o primeiro,
ao achar que resolveu seus sintomas, pode
decidir sobre o momento do término, cabendo ao analista intervir, quando, de algum modo, esse término é considerado
prematuro por ser desencadeado pela situação transferencial.
Nasio, ainda conforme Siqueira
(1997), entende a transferência como neurose de transferência. Assim, acredita que
o final da análise pode ser compreendido
ao ser comparado com o término de uma
neurose, quando o analista deixa de ocupar
para o analisando o lugar do Outro. Nesse
momento, que não coincide com o da última sessão, a transferência, deixando de ser
vivenciada como uma neurose, passa para
outro registro necessário ao término da
análise, constituindo-se em transferência
simbólica. Nessa perspectiva, Nasio conclui
que a análise é interminável, porém o tratamento tem um término. Assim, Nasio destaca dois modos de separação: o objetivo, que
corresponde ao último dia do tratamento, e
outro, que se dá no espaço intrapsíquico do
analisando, de modo lento e gradual, muito
após a última sessão. E mais: “O fim da análise ocorrerá quando a demanda de amor
não mais se dirigir ao analista, mas para fora
da análise” (p.94).
Já para Corrêa (1989), o caminho da
clínica em direção à cura, sugere uma experiência do real. A clínica revela um difícil
processo em que a prevalência dos dados
inconscientes estabelecem a forma sui generis de tratamento, no qual ficam alheios às
queixas imediatas e à própria formulação do
desejo de cura.
Uma vez iniciado o tratamento, a
questão clínica objetiva será deslocada
para o estabelecimento da relação entre
o psicanalista e analisando. Em seguida,
o sintoma, razão inicial do encontro, será
deixado de lado, por ficar reduzido à sua
condição simbólica. A cura pretendida,
razão maior do encontro entre aqueles
sujeitos, ficará dissolvida no subjetivismo
da relação que emerge e se estreita (CORRÊA, 1989).
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
55
Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
O nó do sintoma e o destino pulsional
No sintoma, o Eu está sempre contendo uma possibilidade de gozo, recalcando,
controlando a pulsão, ou ainda o sintoma
é a defesa do EU com o qual se identifica,
contra uma invasão pulsional (DAYRELL,
2003).
A partir do texto Inibição, sintoma e
angústia (FREUD, 1926 apud DAYRELL,
2003), percebe-se que o Eu é invadido, na
inibição, pela pulsão, e isso é o gozo. A inibição, portanto, é um efeito da erotização de
uma função do Eu ao responder à falta dos
pais, erotização narcísica de poder ser o falo
materno ou o eu ideal.
A inibição é uma defesa dessa situação
erótica. Lacan (citado por DAYRELL, 2003)
completa dizendo que a problemática analítica é a mesma da solução da alienação; que
se espera que a análise produza a separação
da falta materna e da positivação do objeto,
ou ainda, a separação do narcisismo primário, da miragem fetichista, isto é, separação
entre a falta imaginária no outro e a possibilidade de o sujeito se propor como fetiche
que poderia vir a satisfazer e preencher essa
falta. Isso é nada mais nada menos que a travessia do fantasma.
A análise devolve o paciente à sua história, “reinserindo-o lá onde ele deveria desejar, no lugar ao qual ele pertence, a sua estrutura inconsciente” (DAYRELL,2003, p. 83).
“O fim da análise aparece como uma
ruptura desse encadeamento fantasmático que
desnuda o não subjetivável e isso é uma descoberta que é equivalente a uma destituição do
sujeito”, ou seja, a travessia do fantasma (MILLER, 1996, apud DAYRELL, 2003, p. 84).
O sujeito, no final da análise, constrói o
seu fantasma e pode experimentar o encontro
com o real da pulsão e o desamparo em face
das exigências pulsionais promovendo uma
redistribuição do gozo (DAYRELL, 2003).
Lacan, em 1992, a respeito dos destinos
do gozo, diz que a elaboração é o trabalho simbólico sobre o real do gozo que não impede
56
... a repetição que é a mesma e ao mesmo tempo distinta daquela antes do encontro com o
real pulsional. Essa repetição diferenciada sobre o fundo de uma antiga repetição perde virulência visto que, fundamentalmente, é uma
repetição que não sustenta uma demanda. A
demanda do Outro cessa (apud DAYRELL,
2003, p. 84).
O inconsciente detém o sonho do gozo narcísico, sendo a travessia do fantasma fundamental – ser o falo imaginário materno, ou seja, ser
o objeto que pode responder adequadamente
à castração materna – uma característica do
fim de análise (DAYRELL, 2003, p. 84).
Vale a pena lembrar, ainda que pareça
óbvio, que o sintoma em Psicanálise é mais
do que um distúrbio, mas um mal-estar que
se impõe, cobra e interpela em um ato involuntário que se repete sem que nenhum controle se tenha sobre ele, informando sobre
fatos ignorados de uma história, dizendo o
que não se sabia antes e o que muitas vezes
não se quer saber (CORDEIRO, 2006).
O paciente movido pelo sofrimento
gerado pelo sintoma procura, na fala, uma
explicação para isso e encontra um destinatário para o mesmo: o analista (CORDEIRO,
2006). Para que a díade funcione, o psicanalista precisa ocupar esse lugar do Outro do
saber e
... quanto mais o paciente fala do seu sofrimento, mais aquele que escuta torna-se o Outro do seu sintoma, e o sintoma passa a incluir
a presença do analista, sujeito suposto saber.
De início, o analista é destinatário do sintoma, passando a ser posteriormente sua causa
(CORDEIRO, 2006, p.68).
Ao analista, segundo Cordeiro (2006)
cabe aceitar esse lugar de amado que o paciente lhe atribui para que uma análise possa
se desenvolver, sem, no entanto, esquecer da
origem desse amor, que nada mais é do que
uma expressão do sintoma ligado a fantasias
inconscientes e renuncie ao gozo do amor
que o analisando lhe oferece.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
Para Cordeiro (2006), o efeito terapêutico de uma análise está ligado diretamente à transferência que utiliza a linguagem como instrumento, reinstalando a capacidade de o sujeito se questionar e sair da
sua certeza. Cabe assim, ao analista, reendereçar ao analisando os questionamentos
dirigidos a ele, ao suposto saber, para que o
sujeito possa confrontar-se com aquilo que
o pôs em análise e encontre as suas próprias respostas e saídas para seus conflitos,
uma vez que há uma impossibilidade de o
Eu sustentar certezas inquestionáveis em
uma abertura do Eu para além das certezas
narcísicas.
Na teoria freudiana, a pulsão é a energia e força fundamental do sujeito, e as suas
características são a fonte, a pressão, o objeto e a finalidade, que irão determinar a sua
natureza de ser essencialmente parcial, assim como as suas transformações e diferentes destinos (DAYRELL, 2003).
Freud, em 1914, no artigo Sobre o narcisismo: uma introdução, tinha apresentado
dois outros destinos da pulsão em relação à
psicose: a introversão e as regressões libidinais narcísicas. Já Lacan, em 1985, ao destacar o caráter parcial da pulsão, seu fracasso e
o inacabamento, realça que o objeto pulsional nunca está à altura da expectativa (referidos por DAYRELL, 2003).
Freud (apud DAYRELL, 2003), em
texto de 1915, Pulsões e suas vicissitudes, diz
que esses destinos não são felizes e que são
apenas cinco as formas com que a pulsão
organiza o fracasso da satisfação, quais sejam: o recalcamento, a sublimação, a inversão em seu conteúdo, o retorno sobre a própria pessoa e a passagem da atividade para
a passividade.
Dayrell (2003) lança mão de um sonho de uma paciente para lembrar que a repetição denuncia o que há de mais radical
na pulsão. O analista escuta os tropeços do
discurso porque ali está um sujeito. O analisando não se reconhece nos seus tropeços,
que aparentam ser um saber sem sujeito,
mas, à medida que ele fala, vai surgindo um
sujeito para essa formação.
Féres (2003) faz uma análise do texto de Dayrell (2003) Pulsões, seus destinos e
final de análise e grifa a diferença entre escrever e ouvir, a respeito de um fragmento
clínico, fazendo sua inscrição no simbólico, inserido no texto da última autora. Propõe-se analisar a frase ética freudiana “Wo
es War, soll Ich Werden” (Lá onde o Isso
estava, Eu devo advir), presente nos matemas de final de análise e que foi traduzida,
trabalhada e repetida exaustivamente por
Lacan e que teve novas leituras ao longo
de sua obra (FÉRES, 2003). Resgata os três
momentos lógicos no conceito de pulsão
em Freud (p.92):
1. Dualismo entre pulsões do eu ou de autopreservação e pulsões sexuais, até 1914.
2. Com o texto Sobre o narcisismo: uma introdução postula uma única energia, a Libido, circulando entre o EU e o objeto.
3. Volta ao dualismo entre pulsão de vida e
pulsão de morte, a partir do texto Além do
princípio do prazer. A unificação das duas
pulsões é o que Lacan chama o gozo, que
é a satisfação também com o desprazer,
a dor e que corresponderia ao que Freud
chamou de contradição interna da vida
pulsional.
Freud coloca que o que há de mais variável na pulsão é seu objeto; já Lacan, em
contrapartida, diz que a verdadeira finalidade da pulsão é a satisfação, sendo a insatisfação seu objeto. A isso Lacan deu o nome
de objeto “a”, que é a satisfação da pulsão
concebida como objeto. Objeto que é um
dejeto, um resto, o que sobrou da operação
simbólica e que, para Lacan, estará sempre
conectado com a castração (FÉRES, 2003).
A proposta da Psicanálise chega como
uma possibilidade de remanejar o destino
pulsional dando a essa pulsão chances de escoamentos mais livres até ali impedidas pelo
nó do sintoma (CORDEIRO, 2006).
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
57
Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
Lacan dizia que o texto de 1937, Análise terminável e interminável, era o testamento de Freud e que foi ali que o fundador da Psicanálise expôs suas ideias sobre o
desenlace do tratamento, destino da pulsão
e suas vicissitudes. Para Freud, o destino da
cura depende do destino da pulsão. Cordeiro (2006) lembra que é no eixo entre o eu e
a pulsão que se articula a duração de uma
análise e reafirma que no final há um resto que resiste, um pouco de sofrimento que
insiste.
Rochedo da castração e travessia do
fantasma
Cordeiro (2006) aborda a impossibilidade de sustentar a ilusão de uma cura total
em Psicanálise e apresenta a perspectiva de
que a análise não está necessariamente voltada para a cura, mas para uma abordagem
do inconsciente através da transferência.
Reforça a ideia de que a elaboração desses
restos transferenciais entre analisando e
psicanalista é responsável pela criatividade,
saída possível da análise, apontando para o
relançamento infinito da pulsão diante do
rochedo da castração aliado ao conceito
freudiano de 1937 de feminilidade.
Freud, em 1937, quando traz o conceito de feminilidade no texto Análise terminável e interminável, o faz associado ao
impasse do rochedo da castração com que
se esbarra o sujeito no final da análise. Para
Cordeiro (2006), à medida que o analisando
elabora a rivalidade fálica com o seu analista, estaria postulando a feminilidade como
constructo que sustenta essa incessante busca, uma obra sempre passível de aperfeiçoamento diante da elaboração dos restos de
uma análise em uma eterna abertura com o
novo e para aceitação das diferenças.
Considerando a necessidade advogada por Freud de o analista retomar seu
processo analítico com intervalos de cinco
anos, a tarefa de analisar-se torna-se interminável para um terapeuta. Um processo de
58
análise não se esgota, na medida em que há
um ponto estrutural, sem retorno de onde a
análise prossegue. Tanto o homem como a
mulher mantêm a referência fálica, e o repúdio à feminilidade se constitui no obstáculo
intransponível universal. Lacan se opõe a
essa lógica e remete a um outro saber, onde
o elemento que falta é justamente aquele
que permite dizer algo sobre um elemento
não mais universal, mas particular: “só se
pode saber um a um, pois falta o elemento,
em relação ao qual se pode fazer referência”
(CHAGAS, 1992, p. 56).
Segundo o mesmo autor, enquanto
Freud diz que o fantasma subsiste à parte do
resto do conteúdo de uma neurose, para Lacan, o final de análise é a travessia desse fantasma e Jacques Alain Miller afirma que isso
não significa que o sujeito não o tenha mais,
pois o fantasma é inacessível na sua dimensão real, com significação de verdade, pois é
nele que o sujeito tem, ao fazer uma articulação simbólica, uma resposta ao desejo do
Outro, por uma falta no campo do significante do Outro, e que leva a uma estrutura
do inconsciente. Daí os axiomas centrais do
pensamento lacaniano: não existe metalinguagem, nada é todo, nenhuma linguagem
esgota a totalidade do ser. “A satisfação buscada não coincide com a satisfação obtida, a
representação consciente não coincide com
a representação inconsciente, a palavra não
coincide com a coisa” (p. 57).
É com essa estrutura de inadequação
e falta que o analista tem que lidar. O saber
que o fantasma garante é o saber fálico, no
qual o sujeito também se garante a partir de
referentes (CHAGAS, 1992).
No fim de uma análise, o sujeito terá
que se haver com o real, com o impossível
de dizer, ou seja, confrontar-se com a impossibilidade que o recalque primário instaura, que é aquilo que nunca teve ou terá
acesso ao simbólico (DAYRELL,2003).
Porto (1994) descreve o processo de
análise de uma criança de nove anos. De
início, esclarece que a Psicanálise é uma só,
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
estando interessada no sujeito dividido estruturalmente, de modo que o analista deve
dirigir a cura nesse sentido, isto é, o da estrutura. No discorrer do seu relato, mostra
como esse objetivo é perseguido durante a
experiência analítica. Sobre o final da análise, apresenta o momento em que aparece o furo no suposto saber do analista, o
momento em que este cai e como o pequeno paciente se dispõe a caminhar sozinho.
Mostra como ele suporta a castração, a sua
dor, o seu buraco, valendo-se de algo da ordem do pai. A autora finaliza dizendo que
“trabalha-se com os restos. Não se pode jogar fora. Algumas coisas podem se enterrar, recalcar mesmo, mas justamente por
isso algo sobra e retorna e repete de ‘novo’,
‘ainda’”( p.62).
A travessia do fantasma não é a cura,
mas o momento especial do se haver com
o gozo. Para que haja sintoma, é necessário
um conflito prévio e uma erotização desse
sintoma ligada a uma posição masoquista do
Eu, ou seja, há um gozo relacionado a esse
sintoma. O que fixa esse sintoma tem a ver
com a função do supereu, numa dimensão
do pai, por um lado e por outro, um supereu
materno que empurra o sujeito para o gozo,
numa dimensão narcísica de entrega como
objeto à falta materna (DAYRELL,2003).
Dayrell (2003) conclui que o fim de
uma análise é a liquidação de ambos os supereus e com a consequente deserotização
do sintoma, pois só quando o sintoma é deserotizado é que se pode fazer algo por ele.
A autora lembra que a proposição não é dissolver o sintoma, mas fazer a passagem do
sintoma para sinthoma – aquilo que não cai,
mas modifica-se, transforma-se para que
continue sendo possível o gozo e o desejo.
A teoria lacaniana acerca de final de
análise vai além do rochedo da castração
proposto por Freud. Féres (2003, p. 92-93)
aponta as três posições postuladas por Lacan sobre o final de análise, seguindo o movimento dos três registros, imaginário, simbólico e real (ISR):
1. Tudo é significante e o final de análise
dissolve o sintoma. Nesse momento privilegia o aspecto significante do sintoma,
reduzindo-o ao simbólico, dizendo que
seria toda significação, verdade. O final da
análise seria o desaparecimento do sintoma, surgindo a fala verdadeira.
2. Nem tudo é significante, algo fica fora do
sintoma, o indizível. Construção do objeto “a”. Há um deslocamento do simbólico
para o real, nem tudo é significante, em
toda operação fica um resto que jamais
será dito. O ponto de partida seria o sintoma, há a travessia da fantasia e o sujeito não tem mais vontade, no seu final,
de confirmar a opção, isto é, o resto que
como determinante de sua divisão, o faz
decair de sua fantasia e o destitui como sujeito. Travessia do fantasma e destituição
subjetiva.
3. Saber haver-se com seu Sinthoma.
No final de análise, após o atravessamento do fantasma, haverá uma mudança
da posição do sujeito perante o gozo e sua
redistribuição com um trabalho que vai
além do fantasma, e o cliente já não mais
demanda principalmente porque também já
não existe mais esse Outro que foi destituído
(FÉRES, 2003).
A tarefa do analista tem um fim, mas o
que não tem um fim é o desejo. Para comprovar sua tese, Moreira (1992, p.93) discorre
sobre as articulações entre desejo e fantasia,
a formação da estruturação do desejo inicial
que precisa de um outro desejante, desejo
narcísico, fundado na falta. A esse desejo a
autora nomeia de desejo caroneiro. O outro
desejo, que denomina desejo pós-edípico,
fundado no Édipo, se mostra como a porta
“[...] pela qual o sujeito caminha ao encontro da cultura, do seu destino como homem,
baseado na identificação estruturante com a
imagem do pai, portador da lei e agente da
castração”.
Para a autora, é a conquista do desejo pós-edípico que irá apontar para o
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
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Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
final da tarefa do analista (MOREIRA,
1992).
Permanecer no desejo caroneiro “é
cair no Pântano da Tristeza, é deixar o nada
tomar conta, é destruir o Reino da Fantasia,
é entrar no espelho, ser engolido por ele e
desaparecer...”(MOREIRA, 1992, p. 94).
Acrescenta que é preciso acreditar
na estória de cada cliente e na magia, para
que esses “encontrem um lugar, onde desejar é possível... e a história de cada um será
uma História sem Fim...” (MOREIRA, 1992,
p.94-5).
Transferência, amor de transferência e
ética do desejo
Se, para Lacan, em dado momento,
o término da análise remete ao passe, em
outro, remete-o à idéia de felicidade, esclarecendo que essa é da ordem do desejo e,
portanto, da ética da Psicanálise (LACAN,
1960, apud GORENDER, 1999).
Furtado (1994) traz o filme inglês de
1986, do diretor Stephen Frears, Prick up
your ears, aqui traduzido como O amor não
tem sexo, no qual se revela a evolução do
encontro amoroso ao ódio até o clímax do
sexo na sua violência de assassinato e suicídio final. Dentro desse contexto, a autora
trabalha, entre outros aspectos, a questão do
amor de transferência na direção da cura e
os impasses de sua operação naquilo que ela
resiste à interpretação.
A direção da cura exige precisão acerca do
amor e seu objeto, que não pode confundirse com a dimensão do objeto da pulsão, nem
com o objeto em relação ao desejo, se se considera que a cura pelo amor foi sempre, para
Freud, uma via fechada à psicanálise (FURTADO, 1994, p.7).
Freud (apud FURTADO, 1994) observa que quando o analisando silencia é porque ele pensa no analista que lhe obstrui o
inconsciente, e isso é amor de transferência,
60
que aparece como resistência à cura. Resistência, segundo Furtado (1994), é entendida
como aquilo que é impossível dizer, núcleo
esvaziado de representações que o designem
e que, se não há palavras, pode-se dizer que
é justamente aí onde está a pulsão.
Quando Furtado (1994, p.8) toma emprestado do filme a frase “O amor não tem
sexo” e com Lacan diz ‘quando se ama, não
se trata de sexo’ pretende apontar dois campos distintos, o amor e o sexo, e dizer que
no conceito de objeto, que ele é assexuado
e que não há representação possível, no inconsciente, da relação sexual.
Furtado (1994) conclui que o amor
sempre diz não à sexualidade, enquanto determinada pelo sentido sexual inconsciente
e seguindo Freud, que supondo a resolução
e liquidação da resistência, tenta reduzir o
amor de transferência, pela interpretação, à
sua expressão do desejo sexual recalcado e
com ele sintetiza que o amor não é redutível
à interpretação.
Lacan, em 1985, diz que a zona da experiência da análise, em um trocadilho que
remete ao amor e à ação, é da enamoração e
que o gozo é um limite, pois ele só se evoca a
partir de um semblante e ainda que, mesmo o
amor se dirige à aparência de ser, agarrada ao
objeto “a” que causa o desejo, pela interposição da fantasia (apud FURTADO, 1994).
“O analista não é de modo algum o
semblante. Pode ser o que ocasionalmente
ocupa o lugar do semblante e vem fazer reinar o objeto ‘a’”(LACAN, 1985, apud FURTADO, 1994, p.11).
A análise se constitui interminável se o
analista se imbui do papel daquele que ocupa
o lugar da verdade e a questão da análise só
se resolve se se considerar, em um mais além
do amor e das identificações, a face real do
objeto, no fracasso de “a” como sustentação
dessa aparência de ser, quando, desse lugar,
o analista está melhor posicionado para interrogar a verdade sem distanciar-se de que
sempre se estará privados do todo da verdade (FURTADO, 1994).
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
Freud jamais negou, nem subtraiu à crítica,
o fenômeno da sugestão, os obstáculos oferecidos à psicanálise pelo amor de transferência, o risco do brilho narcísico da idealização
e de mágica das palavras, nem a tentação da
ambição terapêutica como o desejo de curar
(FURTADO, 1993, p. 39).
Pommier, apud Furtado (1993, p.41),
em O desenlace de uma análise, em 1990, diz:
Uma psicanálise leva aquele que se entrega a
ela até um ponto em que pode reconhecer um
impasse essencial de seu desejo. Este impasse
permanece irredutível; é ele que condicionava
a captura do sintoma e é ainda dele que se trata
no momento de concluir, quando nada mais no
passado, do presente ou do futuro pode servir
de álibi e quando o analisando reconhece em
suas desordens o que sempre o assegurou de
sua existência. Discernir este impasse por outras vias que as do sintoma, defrontar-se com o
paradoxo do desejo, depende de uma ética particular, porque todos os atos que ela comanda
permanecem pela contradição que a revela.
Rodrigues (1990), em Amor de Transferência, escreve que Freud explicitou um
fundamento ético, quando diz que o trabalho, mais do que o amor, deve ser estimado
pelo analista. Ao não responder às demandas
de amor do paciente, permite que as portas
do seu desejo se abram. Isso só é possível por
meio da abstinência, que, não sendo absoluta, exige um manejo na transferência. Para o
autor, “o trabalho analítico propicia o advir
do sujeito, lá onde o isso era. Wo es war, soll
ich werden” (RODRIGUES, 1990, p. 44).
Lacan, em 1989, afirmou que o suicídio é o único ato bem sucedido uma vez
que ele vem adequar o vazio do Outro ao
seu ser, ou seja, no instante em que aquele
que age se iguala à falta, ele tem sucesso.
Furtado (1993) vai além e diz que há outros atos bem sucedidos, e em que as suas
consequências transcenderiam o sujeito
e permaneceriam nos efeitos de sua obra,
quais sejam: a sublimação, a arte e o ato
analítico.
É comum comparar o final de análise
e a sua finalidade com a sublimação, que é
um dos destinos que Freud confere à pulsão.
O final de análise diz respeito à construção da fantasia fundamental. Pode-se dizer
também que um final de análise conduz à
renúncia do gozo (FURTADO, 1993).
Por outro lado, também, implica
uma operação ética em que, ao término de
uma análise, um analista não poderá desejar imortalizar-se pelas vias da idealização,
da identificação, ou do reconhecimento.
Ter sucesso como analista é oferecer-se ao
sacrifício de desaparecer na e da sua obra,
a incapacidade de assiná-la, diferentemente do que ainda seria possível aos artistas,
com relação à sua criação (FURTADO,
1993).
“O psicanalista não pode ter a pretensão da cura ou de ser eternamente o Outro
do analisando” (ARAÚJO, 1995, p.104) e
tem como propósito ajudar seu paciente a
aceitar a castração, eliminar a neurose de
transferência e trazer o apaziguamento das
pulsões. A autora resgata Freud, de 1937,
para lembrar que o analista retoma a sua
análise a cada novo processo terapêutico
que venha a testemunhar, única possibilidade de levar seus clientes a um final de análise
(ARAÚJO, 1995).
Para Chagas (1992) final de análise não é nem identificação com o analista,
nem resolução de sintomas, nem tampouco
resolução de conflitos através de referentes
garantidores de uma posterior normalidade
psíquica.
No final de uma análise, o analisando
se sabe pura falta (CARDOSO, 2004).
Através da transferência, o analista
será descoberto como ilusão, por não corresponder aos anseios reais do analisando.
“Escuta e resposta do analista possibilitarão
ao paciente instituir um fantasma, construído segundo suas necessidades” (CORRÊA,
1989, p. 41).
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Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
Corrêa (1989) retoma Caruso, que por
muitas vezes denunciou a formulação de
uma ideologia psicanalítica e a tentativa de
criar uma utopia como meta para o processo
psicanalítico e revelou que o trabalho de depuração do homem resultava em uma nova
alienação ainda mais perigosa que a própria
neurose.
“Desmitificada a pureza absoluta do inconsciente analisado ou da neutralidade ética
desejável, o analista, além de suas questões inconscientes, traz para o seu trabalho os vícios
determinados por um conhecimento teórico
que é sempre parcial” e mais, “ a parcialização
do conhecimento psicanalítico está expressa
nas divergências teóricas, que por sua vez se
tornam responsáveis pelo desejo do psicanalista” (CORRÊA, 1989, p. 44).
Uma análise termina para um psicanalista quando a sua capacidade de escutar
aquele cliente esgotou-se e quando o cliente, desmitificando o saber do outro sobre
si mesmo, entende que não tem mais o que
ouvir tampouco, ou ainda, que ele aprendeu
a ouvir seu interior sem precisar de um retransmissor (CORRÊA, 1989)
“O ato analítico deve implicar o cliente
nas próprias coisas de suas queixas” (MILLER
apud CORRÊA, 1989, p.45). O ato analítico
precisa ser o reintegrador do sujeito. Lacan
ensina que é um equívoco pensar, em análise,
que o inconsciente é responsável por aquilo
que faz sofrer, pois, assim sendo, haveria destruição da responsabilidade do sujeito por si
mesmo e pelo que lhe acontece. Outrossim,
a autorresponsabilidade implica uma recusa
de compromissos e ideologias aceitas ou alienações praticadas com a constatação da impossibilidade final de abarcar a totalidade do
existir (apud CORRÊA, 1989).
No final de uma análise, espera-se
que o sujeito do desejo advenha, incurável
e destituído, onde não é a posse do objeto o
que conta, mas a própria realidade do desejo
(CHAGAS, 1992).
É pela via do discurso que o desejo advém e é, no dizer de Lacan, que a experiên62
cia analítica é uma experiência de discurso,
lembrando que, quando se fala em discurso,
não se pode ignorar o papel das relações e
posições dos elementos que o compõem, em
função dos quais um sentido se produz (SIQUEIRA; FONTE, 1993).
Uma leitura comporta infinitas possibilidades de interpretação, e a clínica
lacaniana privilegia unicamente o texto
produzido pelo sujeito pelo viés da insistência do significante (SIQUEIRA; FONTE, 1993).
Lacan, em um texto de 1954, As relações de objeto e estruturas freudianas, apontava desvios na direção da cura e em texto
de 1958, A direção da cura e os princípios
do seu poder, traz a afirmação de que sob o
nome da psicanálise muita coisa é feita em
uma mera reeducação emocional do paciente (SIQUEIRA; FONTE, 1993).
Ainda conforme as autoras, Lacan em
Os escritos, de 1985, comunica os princípios
que definem a direção da cura e a questão
da ética, que integra as conquistas freudianas tendo como ápice o estatuto do desejo:
“não se põe nenhum obstáculo à confissão
do desejo, é para isso, para onde o sujeito
é dirigido e inclusive canalizado” (p.21). E
Lacan continua dizendo, conforme citam as
mesmas autoras que “o desejo, se Freud disse a verdade do inconsciente, não se capta
senão na interpretação”, pois ele é a “metonímia da falta a ser” (SIQUEIRA; FONTE,
1993, p.21-22).
O desejo é o âmago do empreendimento analítico, perpassando-o ao longo do seu trajeto,
uma vez que o trajeto é o espaço que se tem a
percorrer para se passar de um lugar a outro.
Passagem da impotência/onipotência imaginária ao impossível do Real, condição de sujeito
barrado (SIQUEIRA; FONTE, 1993, p.22).
As autoras questionam qual é o discurso que possibilita o advento do desejo
senão o discurso do analista que permite a
colocação em cena do desejo e do sujeito
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Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
do inconsciente distanciando a psicanálise
das práticas de reeducação emocional que
se apresentam em nome da psicanálise (SIQUEIRA; FONTE, 1993).
“O discurso do analista tem como
agente não um objeto capaz de preencher a
demanda, mas um objeto causa do desejo,
objeto “a”, por que o desejo é sempre desejo
de outra coisa”. Para Lacan, em 1985, o desejo, por mais transparente que seja diante
da demanda, estará sempre mais além dela
e mais aquém de uma nova demanda, uma
vez que ele nada mais é senão a impossibilidade de uma palavra, que, ao tentar responder a uma demanda, revela mais uma vez a
divisão do sujeito, que só tem este estatuto
de sujeito enquanto fala (SIQUEIRA; FONTE, 1993, p.22).
É a posição de semblante do analista
no discurso que assegura a primazia do desejo na clínica. O analista, fazendo-se causa
do desejo para o analisando, desencadeia
o movimento de investimento do sujeito
suposto saber, causa estrutural da transferência, o que eleva seu dizer à condição de
interpretação, posição do saber no lugar da
verdade (SIQUEIRA; FONTE, 1993).
Se a estrutura da verdade é o semidito
e ela é perseguida na análise, eis aí a estrutura da palavra do analista, que é palavra enigmática que reenvia o analisante à citação colhida do seu dito como um dizer enigmático
que intriga e o instiga a produzir significantes (SIQUEIRA; FONTE, 1993).
O analista é um trabalhador que trabalha sem pretender ter a verdade do saber
e nem tampouco o saber da verdade. Ele não
se toma como medida do Outro. O analista,
produto de sua própria análise, se sabe um
sujeito advertido de sua cisão e que está radicalmente distante da ilusão de completude por estar implicado no Real (SIQUEIRA;
FONTE, 1993).
A direção da cura, a qual conduz sustentada pelo matema do Discurso do Analista,
não é direção enquanto ato de dirigir exercendo autoridade, mas uma direção equivalente à
rota apontada pelo dedo de São João Batista,
de Leonardo da Vinci: o horizonte desabitado do ser – impossível do Real (SIQUEIRA;
FONTE, 1993).
O saber que aparece do lado do analista no
lugar da verdade aparece como barrado. Isso
significa que não há saber totalizante ou préconcebido do qual possa fazer uso. O único
saber pré-adquirido, localizável, que pode
levar para o espaço da análise é um savoirfaire produto de uma análise anterior, onde
experimentou que se há algum elemento que
pode ocupar o lugar da verdade, na análise é
o significante. O saber analítico é um saber
que se produz exclusivamente no ato, a partir
da escuta de seu analisante. O analista semblante do objeto “a” produz em ato o relançamento do discurso (...). Seu saber é um saber
executante, porque é incapaz de prever todos
os efeitos possíveis de produzir, mas mesmo
assim é responsável pelos efeitos que produz
(SIQUEIRA; FONTE, 1993, p.22-23).
Para Conrad Stein (apud CORDEIRO,
2006), no seu texto Fim de uma análise, finalidade da psicanálise, o sujeito, para chegar a
bom termo em sua análise, talvez precise ser
criativo, lançando mão da sublimação, um
dos destinos da pulsão e fazer algo qualitativamente novo em sua vida, tornando-se artista e construtor do seu destino, aceitando a
condição de desamparo fundamental.
Essas ideias são ratificadas por Maria
Rita Kehl (apud CORDEIRO, 2006, p. 70)
em Sobre Ética e psicanálise: “o artista não
se torna pleno de ser ao afirmar-se como autor de suas obras. Mas a função autor, como
uma das funções do sujeito, segundo a definição de Foucault, intensifica a relação do
artista com o Nome do Pai, que ele transforma em nome seu ao imprimi-lo junto à obra
que nomeia seu desejo”.
Final de análise: a criação, o cômico e a
arte
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
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Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
A dimensão trágica tem a ver com o
fracasso da relação do desejo com a ação
diante da impossibilidade de se dizer tudo,
em uma recusa de síntese e cuja saída, para
Lacan, é a dimensão cômica: “o herói cômico tropeça, cai no melaço, mas o sujeitinho
continua vivo “ (LACAN, 1960, apud GORENDER, 1999, p. 53).
Corrêa (1999) aponta os diferentes caminhos da criação estudando artistas como
Van Gogh, Bosch, Dali, Picasso, Kafka e ainda recorre a Lacan, que fala sobre suplência
na obra literária de Joyce, com o objetivo de
confrontar questões importantes entre criação artística e a saúde mental e de trazer a
questão do final de análise e a direção da
cura como outra forma de criação.
Tomemos o músico instrumentista que tem,
na posição de intérprete, uma relação com um
duplo Outro. De um lado, necessita atender ao
compositor e, de outro, ao ouvinte. Basculando
entre as duas posições deve fazer uma escolha
de fidelidade. Ou se rende ao espírito da partitura ou ao prazer da plateia. A sujeição é insustentável. Sabemos que este sujeito pode ser
tomado como metonímia do desejo e, como
tal, reviver na sua criação os paradoxos dos
encontros com o desejo do Outro. Mas como
intermediário não pode abdicar de si, do ser
sujeito da recriação interpretativa. É por esta
via que surge a improvisação, na qual o intérprete se liberta em parte de um outro (autor)
que apenas fornece um tema para sua recriação espontânea. Esta experiência vai levá-lo ao
desejo de libertar-se do olho de seu ouvinte.
Neste caso rompe-se a suplência e abre-se um
espaço para um desempenho supostamente
autônomo (CORRÊA, 1999, p.108-109).
Freud e a eficácia da psicanálise
Na Conferência XXXIV (1933-1932),
Freud se revela mais pessimista acerca da
eficácia da Psicanálise e do poder de cura do
64
método por ele criado, recomendando o retorno à análise, alguns anos depois (ARAÚJO, 1995).
Alguns anos depois, no texto Análise
terminável e interminável, de 1937, segundo
James Strachey, seu editor, Freud novamente
se mantém pessimista quanto à eficácia da
Psicanálise, por tratar das limitações do processo. Soller, em 1995, citada por Gorender
(1999), lembra que, quando Freud o escreveu, estava velho, doente e sabia que ia morrer; e ali, naquele texto testamento, ele alertou aos seus discípulos, para as expectativas
e verdadeiras perspectivas dos resultados de
um tratamento psicanalítico.
No início, os analistas tinham perspectivas apenas da supressão dos sintomas
e, portanto, estavam mais próximos do ideal
de cura e à medida que se elasteceu a compreensão sobre o inconsciente, a cura não
mais se viabiliza como algo possível. O final
de análise saiu de um modelo romântico e,
portanto, é pensado em termos de aptidão
do sujeito de levar uma vida mais satisfatória depois de alguns anos de análise sem garantias quanto ao reaparecimento de novos
sintomas (GORENDER, 1999).
Para Corrêa (1996 apud GORENDER, 1999), desde a colocação de Freud,
terminável ou interminável, passando pela
de Lacan, finita ou infinita, as análises, por
mais que se estendam, jamais levarão à morte um dos participantes da trama, que é a
transferência.
Corrêa escreve que Freud, ao romper
com o modelo médico e com a norma, impede que se fale de cura. Não se pode dar
nenhuma garantia de que o sintoma desapareceu por completo ou que novos apareçam. O término admissível se faz pela via
da autoavaliação do cliente quanto ao reconhecimento de seu inconsciente e do valor
da análise, e isso implica em “algum tipo de
solução para a relação transferencial: nem
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Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
o idealizado nem o rebotalho (CORRÊA,
1996, apud GORENDER, 1999).
Para Freud, existem três variáveis
importantes para levar uma análise a bom
termo, quais sejam: a influência dos traumas; as alterações do ego e, como elemento
principal, a força constitucional das pulsões,
sabendo que a pulsão de morte e a luta com
Eros é o que sustenta uma análise como interminável. Para Freud, “a missão da análise é garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do ego;
com isso ela se desincumbiu de sua tarefa”
(FREUD,1937 apud ARAÚJO, 1995, p.101).
Freud, em 1937, ao falar de término
de análise, talvez estivesse se referindo a que
a análise didática, mais do que as análises ditas terapêuticas, era inacabada, advogando
ao analista a necessidade de sucessivas reanálises (GORENDER, 1999).
Gorender (1999), a despeito da evolução teórica da Psicanálise e de algumas idealizações feitas com a proposição do passe,
interroga se seria possível fazer desaparecer
a “expectativa de cura pela análise” e mais:
“o que quer o analista do seu cliente? A essa
pergunta responde com Leguil: “se a psicanálise “não propusesse um alívio, não haveria interesse algum em se fazer psicanálise”
(LEGUIL, 1993, apud GORENDER, 1999).
Pacientes graves e a psicanálise
Gallego (1971) propõe algumas orientações quanto ao trabalho psicanalítico com
pacientes gravemente enfermos. Considera
que suas dificuldades de estabelecer relações
com a realidade, de ter insights e fazer elaborações, exigem ações terapêuticas que vão
além do trabalho meramente interpretativo.
Para tanto, sustenta a necessidade de o paciente desenvolver uma “esperança de cura”,
que o fará permanecer no tratamento, a despeito da frustração da situação atual.
Ao entender a Psicanálise como método de tratamento, aponta a necessidade
de avaliação correta dos fatores curativos
implícitos na situação terapêutica (GALLEGO, 1971). Em seguida, desenvolve aspectos
teóricos referentes ao narcisismo com base
em Kohut (1969) e Grumberger (1957) para
mostrar como esses pacientes se encontram
aprisionados numa relação narcísica e de
como, na clínica, sua relação com a realidade é precária e deformada, como resultado
de contínua identificação projetiva (GALLEGO, 1971).
Traz, para sedimentar sua proposta,
estudo de Alexander com o qual concorda
ao afirmar que “a recuperação das lembranças não é a causa, senão a consequência da
análise” (ALEXANDER apud GALLEGO,
1971, p.94).
De May, em 1967, segundo Gallego
(1971), incorpora a noção de poder, no sentido de que só quando o paciente pode conceber o “Eu-posso”, ele pode experimentar o
“Eu-quero” e o “Eu-sou” (p. 94-95).
Gallego (1971) ainda esclarece que a
passagem de uma situação de narcisismo
para uma relação de objeto se opera nos seguintes níveis:
1. Bom investimento pré-perceptivo (união
anaclítica satisfatória com a mãe)
2. Segurança de não abandono (suficiente
tolerância à frustração)
3. Possibilidade de espera (sentimento de
“esperança de cura”)
4. Percepção da realidade e aprendizagem
(experiência corretora das vivências internas (p. 96).
Em seguida, apresenta os fatores que,
em sua opinião, podem influenciar terapeuticamente nessa sucessão, “para conseguir
que o paciente abandone o mundo da fantasia, e se mantenha em contato com a experiência retificadora da realidade”. Isso só é
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
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Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
possível, acrescenta, se o paciente conseguir
desenvolver uma possibilidade de espera, ou
seja, de tolerância em relação ao estado atual
de frustração, o que só será possível se coexistir “com a esperança de que essa demora
tem um limite e uma compensação” (GALLEGO, 1971, p. 96).
Conclui que a “esperança de cura” resulta de uma aproximação entre analista e paciente, desenvolvida na relação terapêutica.
Tal proximidade irá permitir que o paciente
se sinta seguro para estabelecer uma relação
pessoal e fazer identificações adequadas, de
modo que seja capaz de esperar e de ter uma
experiência própria. Para que essa situação
seja alcançada, alguns fatores precisam estar
presentes no processo terapêutico:
1. Resolução no terapeuta de sua
própria situação narcisista, o que
fará com que não tema estabelecer a distância adequada às necessidades de dependência do
paciente. Considera importante,
também, que o terapeuta tenha
alcançado o estágio genital do
desenvolvimento;
2. Semelhança de personalidade entre o terapeuta e o paciente, que
facilitará os processos de identificação e não simplesmente uma
imitação;
3. O próprio processo de análise, que
envolve não só o conhecimento das
fantasias inconscientes, mas a capacidade de empatia, assim como o
grau de esperança de cura que o terapeuta abriga a respeito do seu paciente. A esperança de cura nutrida
pelo terapeuta de alguma forma é
comunicada ao paciente (GALLEGO, 1971).
Finaliza afirmando que “se o terapeuta
é capaz de sentir sua identidade sem medo,
o paciente poderá correr o risco de desejá66
la e, em último caso, de tê-la (GALLEGO,
1971, p. 103).
Um analista ao final de uma análise e o
passe
Cardoso (2004) aborda o tema da
transmissão da Psicanálise e a formação do
psicanalista. Trata da questão do passe e da
lógica do surgimento de um analista ao final
de uma análise, a partir do texto de Lacan
Proposição de 9 de outubro de 1967.
Lacan se refere ao final de análise
como a travessia da fantasia e a destituição
subjetiva do sujeito suposto saber, ou seja,
momento em que o analista não se encontra
mais no lugar do Outro. A tese fundamental
de Lacan é que o final de análise produz um
analista (ARAÚJO, 1995).
O final de análise é marcado por essa
passagem de analisando a analista, uma vez
que, para Lacan, em 1967, toda análise é didática. “O analista advindo desta passagem é
a queda, o dejeto, mas não qualquer um. Daí
ser somente o analista, não qualquer um,
que se autoriza por si mesmo” (CARDOSO,
2004, p.96).
Quanto aos candidatos a psicanalistas,
Lacan trouxe, a princípio, na obra A ética da
psicanálise, a proposta do passe que supõe
uma liquidação da transferência e a obtenção
do agalma. O dispositivo do passe levanta a
questão de quem poderia ser o fiador desse
desenlace, aventando duas possibilidades: a
instituição poderia dar uma sustentação a
esse sujeito, ou a ideia do impossível que é
a cura. Mais adiante, ao se referir à ética da
psicanálise, diz que a demanda de felicidade
está comprometida com a questão do desejo
e a dimensão trágica do sujeito (GORENDER, 1999).
Sabe-se que a verdade é não toda, restando sempre algo a ser dito por não se poder
dizer. É com esse indizível que se trabalha
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
no final de análise sob pena de transformála em interminável (CARDOSO, 2004).
O final de análise e a demanda da
felicidade
Toda análise, no seu bojo, traz uma demanda de resgate de felicidade perdida em algum momento, como se o sujeito tivesse perdido o prazer nas atividades rotineiras mais
simples, graças aos limites impostos pelo sintoma, que gera gozo e dor; e que ele conquiste
ou reconquiste a autonomia para administrar
a própria vida (CORDEIRO, 2006).
Para Balint, apud Corrêa (1989), o término de uma análise está na superação daquilo que não se pode superar.
Um final de análise surge “quando o
paciente é capaz de sentir prazer, liberdade
de realizar suas inclinações e de reaprender
a se entregar ao amor, ao gozo, sem medo,
inocentemente, como na sua tenra infância” (BALINT, 1932, apud ARAÚJO, 1995,
p.103).
Para Lacan, em 1975, na conferência
feita em Yale, uma análise “não é para ser
estendida indefinidamente. Quando o analisando acha que está feliz na vida, é o suficiente” (CHAGAS, 1992, p. 58).
Corrêa (1989) teme que o psicanalista, ao compartilhar do devaneio sobre a
mudança de vida ou a felicidade pretendida
por alguns clientes que por sua vez passam a
ser devotados à análise, favorece a que estes
possam fazer do processo analítico um sintoma de uma nova doença crônica e incurável, alimentada por uma análise interminável. Terminar uma análise é um processo tão
absurdo como começá-la, pois ela termina
porque chegou ao fim e não por ter curado
ou por ter o paciente atingido a tal felicidade. Para Corrêa (1989), portanto, chegar ao
fim não significa concluir, mas apenas não
dá mais para continuar.
O fim da análise é uma consequência
do amadurecimento das diversas etapas do
processo da análise que levaram à construção no analisando de uma capacidade de suportar a frustração e a perda de uma ilusão
transferencial (SIQUEIRA, 1997).
E mais: “O tratamento analítico acaba
quando o analisando tiver condições de estabelecer consigo uma análise sem fim, tornando-se sempre disponível ao surgimento
de novos enigmas, que propiciarão novas
indagações” (SIQUEIRA, 1997, p.97). Para
a autora, talvez esse objetivo se constitua
numa idealização, pois em uma análise, por
mais bem sucedida que possa ter sido, esse
nem sempre é alcançado.
Para Chagas (1992), concordando com
Lacan, uma análise tem seu ponto de basta e
esse ponto é inadiável. No Seminário VII: a
ética da psicanálise, de 1960, Lacan fala que, o
que nos demandam é a felicidade, entretanto
não se trata de uma felicidade sem sombras. “A
felicidade com a qual o analista se compromete não está a serviço dos bens, sejam pessoais,
profissionais, econômicos, sociais” mas a serviço da lei do desejo (CHAGAS, 1992, p. 59).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Depreende-se que todos os autores
citados são unânimes nos principais conceitos abaixo enumerados acerca do final de
análise:
1. A Psicanálise não faz falsas promessas, não visa à busca da felicidade, ainda que
a felicidade seja aquilo que os analisandos
demandam, mas que seria a obtenção de um
impossível. Se a felicidade chega, se é que
chega, ela vem por acréscimo. Esta, sem dúvida, é uma perspectiva ética, que permite
ao sujeito uma escolha.
2. A ética psicanalítica surge no cerne
da relação entre psicanalista e analisando. É
no ato psicanalítico que o sujeito é questio-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
67
Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
nado sobre o seu desejo e da sua responsabilidade acerca dos seus sintomas e do gozo
ali contido, ou seja, acerca de sua posição
subjetiva que traduz uma escolha, escolha
inconsciente, uma eleição. Só confrontando
o sujeito com sua eleição, o ato psicanalítico
pode levá-lo a uma nova posição, uma retificação subjetiva.
3. É o sujeito suposto saber que permeia as possibilidades de resoluções do
enigma do sintoma, posição imputada ao
analista transferencialmente pelo analisando. Essa transferência é que cria uma promessa de cura e define os próprios critérios
de analisabilidade e de resistências. Não se
pode perder de vista que a transferência é
uma incalculável fonte de resistência ao
tratamento.
4. A destituição subjetiva vivida no
término de sua própria análise é o que possibilita ao analista abrir mão de sua condição de sujeito no percurso analítico de seu
analisando. A destituição subjetiva é o advir
do sujeito que se confronta com a castração,
com a falta-a-ser.
5. Para o analisando, a destituição subjetiva implica também desalojar o analista
do lugar de sujeito suposto saber e o deixar
reduzido à condição de resto do processo
analítico, quando nenhum significante vem
a representá-lo (des-ser do analista).
6. No final de análise, espera-se que o
analisando saiba haver-se com seu sintoma,
tal qual propôs Lacan a propósito do caráter
irredutível da neurose.
7. Ao final de uma análise, subentende-se a destituição subjetiva e a travessia da
fantasia correspondente, que a despeito da
liberdade da escolha em relação ao gozo que
ela favorece ao sujeito, encontra seu limite
no rochedo da castração.
8. O rochedo da castração diz da falha
de um saber inconsciente, uma vez que nenhuma elaboração de saber é suficiente.
68
9. Atravessar a fantasia é confrontar-se
com a castração escondida lá. É confrontarse com a revelação de que não existe um significante sexual para um outro significante
sexual: não há relação sexual.
10. No final de uma análise, o sujeito
se defronta com o irremediável, o incurável,
que equivale à falta do Outro e à própria divisão subjetiva. O sujeito não se cura de sua
divisão.
No final da análise, pode-se falar de
uma ética da sublimação, que é aquela que se
opõe às éticas do gozo. Esse movimento só é
possível se o analisando renunciar ao que ele
supunha em sua fantasia ser complemento,
renunciar ao gozo e se permitir satisfações
substitutivas.
Conclui-se, conclamando Gorender
(1999) e a metáfora por ela realizada entre o
final de análise e uma viagem que só se completa quando ela chega ao fim, por mais que
haja um valor inequívoco na própria travessia. Importante é que não se transforme
essa viagem em algo interminável, como a
maldição que faz recordar o Holandês voador, capitão condenado a vagar pelos mares
sem possibilidade de parada, até que alguém
se disponha a segui-lo, por amor, uma vez
que este é o melhor porto e que oferece ancoragem, sob pena de errância e perda de
esperança. Ou se enfrenta o abismo da falta
e o rochedo da castração, tal qual o artista
que se confronta com a insuficiência de uma
obra sempre por ser concluída, ou a nau vai
a pique.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
Keywords
End of analysis; curing; psychoanalysis;
psychoanalysts.
Abstract
The goal of the study was to identify the ideas of
psychoanalysts of Círculo Brasileiro de Psicanálise
– CBP on the subject final analysis. The method
used was systematic review of literature, having
as database the Revista Estudos de Psicanálise, official publication of the CBP, indexed in Indexpsi
Periódicos Biblioteca Virtual em Saúde –Psicologia (BVS- Psi). The articles selection was made
through 12 keywords: analysis with end / endless
analysis, curing, subjective destitution, direction
of cure, upshot, therapeutic effects outcome, curing hope, end of analysis, the final analysis, the
purpose of psychoanalysis, output and crossing
the fantasy. That was found 25 articles, of which
07 was repeating the descriptors, and 1, which after reading a summary, was discarded because it
wasn´t identified by the subject in question, remained only 17. As results authors found question
if there is a final analysis, the effectiveness of psychoanalysis, they talk about drive targets, about
the castration rock and crossing of fantasy, the
desire ethics, and the demands of happiness.
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Final de análise: uma revisão sistemática da literatura
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70
Tramitação Recebido : 24/09/2009
Aprovado : 19/10//2009
Nome do autor principal:
Déborah Pimentel
Endereço : Praça Tobias Barreto, 510-1212
Bairro São José
CEP : 49015 – 130, Aracaju/Se
Fone : (79) 3214 1948
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Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009
Mães e crianças vivendo com hiv/aids:
medo, angústia e silêncio levando a infância
à invisibilidade
1
HIV – Positive mothers and children: fear, anguish and
silence making childhood invisible
Juliana Marques Caldeira Borges2
Jorge Andrade Pinto3
Janete Ricas4
Palavras-chave
HIV/Aids, Transmissão materno-infantil, Subjetividade, Criança, Relação mãe-filho.
Resumo
A partir do discurso de mães que transmitiram a infecção pelo HIV ao filho via transmissão maternoinfantil (vertical), os autores investigaram as implicações que a subjetividade materna traz para a vida
dessas crianças. Analisou-se como a infância pode ser atingida pelo vírus HIV para além das dimensões
relativas à infecção, enfocando principalmente as questões psíquicas presentes neste contexto.
Porque o sangue que herdamos não é somente o que
trazemos ao chegar ao mundo. O sangue que herdamos
está feito das coisas que comemos quando crianças, das
palavras que nos cantaram ainda no berço, dos braços
que cuidaram de nós, da roupa que nos agasalhou e das
tempestades que outros venceram para nos dar a vida.
Mas, sobretudo, o sangue se tece com as histórias e os
sonhos de quem nos faz crescer.
Ángeles Mastretta
Inicialmente a Aids foi relatada como
uma doença específica de certos grupos
de pessoas com comportamentos denominados de risco, como os homossexuais,
os usuários de droga, as profissionais do
sexo, dificultando-se, assim, a previsão e
prevenção de contaminação das pessoas
heterossexuais(LENT, 2005). Esses conceitos iniciais ainda persistem, levando parte da
população a se colocar numa posição “acima
de qualquer suspeita”, a se negar a pensar sobre a Aids e, consequentemente, a não assumir condutas de prevenção da contaminação, o que levou a um avanço considerável
da epidemia entre os heterossexuais.
Sendo assim, foi difícil admitir que
uma doença conhecida inicialmente como
sendo do grupo dos excluídos da sociedade, marginalizados e discriminados, viesse
a atingir a infância, concebida por todos
Este artigo é parte da dissertação de mestrado “Infância Atingida: os efeitos do diagnóstico de HIV na subjetividade materna e suas implicações para a criança vivendo com HIV/Aids”, apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências da Saúde/ Saúde da Criança e do Adolescente, da Faculdade de Medicina/UFMG.
2
Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Membro do Setor de Psicologia
do Hospital Infantil João Paulo II/FHEMIG. Mestre em Ciências da Saúde/UFMG.
3
Pediatra. Doutor em Ciências da Saúde/UFMG. Professor do Departamento de Pediatria e da Pós-Graduação em Ciências da Saúde da UFMG. Membro da Comissão Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde.
Membro do Grupo de Referência Técnica em AIDS Pediátrica da Organização Mundial da Saúde.
4
Pediatra. Doutora em Saúde da Criança e do Adolescente/ USP. Coordenadora do Grupo de Estudos e
Pesquisas Qualitativas em Saúde da UFMG: aspectos psicossociais da infância e da adolescência. Professora
convidada da Pós-Graduação em Ciências da Saúde da UFMG.
1
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009
71
Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade
como a fase da inocência e, por isso, livre de muitos perigos que a vida adulta oferece. A contaminação da criança
pelo vírus HIV passou a representar
um drama tanto para a família quanto
para a relação mãe/filho, uma vez que
esta se dá, na grande maioria dos casos, pela transmissão materno-infantil
(transmissão vertical). Ao analisarmos a
transmissão vertical do HIV sob o ponto de vista psíquico, não podemos deixar de assinalar o fato de que as crianças nascidas de mães que contraíram a
infecção pelo HIV adquirem o vírus na
gestação, durante o parto ou através da
amamentação. Para a mulher, estes três
momentos costumam ser profundamente significativos em suas vidas uma vez
que possibilitam a vivência da maternidade no plano não só da realidade, mas
fundamentalmente no plano simbólico.
A ideia de que um vírus potencialmente
letal possa ser transmitido exatamente
no momento em que o que se apresenta no imaginário materno diz respeito à
vida do filho, torna-se inadmissível para
qualquer mãe.
Percebe-se nisso uma complementar
contradição, vida e morte convivendo
juntas. A morte, na presença do HIV e a
vida, na capacidade de procriar e cuidar,
aparecendo como a prova de que se pode
viver e dar a vida, mesmo com a sombra
da morte (VERAS;PETRACCO, 2004,
p.139).
A angústia, decorrente da vivência
do paradoxo vida e morte, passa a fazer
parte da vida das mulheres HIV+, assim
como de representações contraditórias
de mãe-mulher: “a representação da mãe,
enquanto mulher que dá a vida, opõe-se
àquela de mulher perigosa” (COTOVIO apud VERAS;PETRACCO, 2004,
p.139). No inconsciente, essas duas representações vão coabitar, fazendo com
72
que a imagem da doadora de vida possa
se transformar em imagem de doadora
de morte (VERAS; PETRACCO, 2004).
Estas representações contraditórias de mãe-mulher, vida-morte, gestação-contaminação nos apontam uma
questão complexa em relação à transmissão vertical do vírus HIV. Além dos
aspectos objetivos importantes aqui
presentes, como os cuidados durante a
gestação, pré e pós-parto, para se evitar a transmissão, temos que lidar com
aqueles subjetivos que dizem respeito à
maneira com a qual a mãe vai elaborar
psiquicamente a sua contaminação e a
da criança e reagir em relação aos cuidados necessários, adotando-os ou não.
Se tomarmos a proibição da amamentação nesses casos, o que interfere profundamente no vínculo mãe-criança em
um momento de extrema fragilidade,
teremos a dimensão de uma das questões subjetivas presentes na transmissão
vertical (PADOIN; SOUZA, 2006).
Para analisarmos melhor essas
questões, desenvolvemos um estudo que
teve como objetivo geral investigar os
efeitos do diagnóstico da infecção pelo
HIV na subjetividade materna e das implicações desta para a criança que vive
com HIV/Aids. Como objetivos específicos, analisamos a forma como ocorreu
o diagnóstico da criança, a percepção
das mães sobre sua comunicação, as reações familiares a ele, as mudanças ocorridas após o diagnóstico, as estratégias
utilizadas para lidar com este, os sentimentos e reações maternas ao longo do
tempo, as principais preocupações com
a criança, a subjetividade materna e suas
implicações na vida da criança, a relação mãe-filho e a dificuldade do diálogo
com a criança sobre o HIV. Utilizando
a metodologia qualitativa, abordamos,
através de entrevista semiestruturada,
14 mães de crianças portadoras do vírus
HIV por transmissão materno-infantil
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009
Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade
em atendimento em um centro de referência para tratamento de crianças com
HIV/Aids em Belo Horizonte. As mães
desconheciam ser portadoras do vírus
HIV durante a gestação da criança. Para
a análise dos resultados, foram utilizadas
a Análise de Discurso e a Psicanálise.
Os relatos das mães foram extremamente significativos e evidenciaram
com muita propriedade questões relacionadas aos objetivos do estudo. Selecionamos alguns a serem apresentados
durante nossa discussão, em que os
nomes das mães e das crianças foram
substituídos para que se preservasse sua
identidade.
O diagnóstico da infecção pelo
HIV, que na maioria dos casos estudados ocorreu a partir do adoecimento
da criança sem que a família soubesse
de sua existência, revelou-se um acontecimento dramático. Um diagnóstico
inesperado pelas mães, no qual encontramos relatos de choque, susto, revolta,
desespero, raiva do companheiro, culpa,
agonia, incredulidade, angústia e, em alguns casos, desejo de morrer.
[...] Eu chorava, “O meu sangue que passou pra ela, infectado!”, é horrível. Horrível mesmo. Aí eu tinha vontade de morrer, mas eu pensava assim: “Se eu morrer,
e ela?” [...] Eu senti a pior mãe do mundo.
Falei: “Eu peguei Aids na Gisele! A pior
mãe do mundo!”, [...] E olhava pra ela,
assim, e falava: “Gisele, eu tô te matando,
meu sangue que passou pro seu é que tá
te matando”, e via ela só grave, terrível,
né? Eu olhava lá no fundo do olho dela,
aquele olhinho fraquinho, querendo viver... (Guiomar/mãe de Gisele, 9 anos).
O sentimento de culpa das mães
em relação à transmissão do vírus HIV
ao filho, além da intensa angústia desencadeada, parece provocar comportamentos diversos, desde atitudes de
superproteção a certo distanciamento
da criança. Vemos a seguir a dedicação
ao filho, cuidados às vezes excessivos e
atitudes de superproteção.
[...] a culpa que eu carregava era assim,
eu protegia ela demais, mas protegia pela
minha culpa, sabe, de não deixar ela fazer nada de culpa minha. [...] eu acho
que foi mais por causa de ser soropositivo, mas não é, a cabeça da gente, não
é que eu ache que ela não possa andar
sozinha porque ela é soropositivo, mas
aquele medo que eu tinha, da Aids, eu
acho que eu passei isso pro medo deles
andar, de que, vinha na minha cabeça [...]
a Luísa, se ela tá no ônibus e se alguém tá
do lado dela, e vai fazer alguma coisa [...]
a preocupação não era HIV [...], eu acho
que era do HIV que veio esse medo. As
loucura, né, que vai passando na cabeça
da gente, que, em função do HIV (Lívia/
mãe de Luísa, 13 anos).
Guiomar nos conta que tem um
comportamento às vezes oscilante com
a filha Gisele. Apesar de viver fazendo
“tudo” por ela, até em excesso, em alguns momentos a trata com grosseria,
negando-lhe ajuda em tarefas simples,
mandando-a “se virar”. Ela explica que
faz isso conscientemente para ensinar
Gisele a reagir às frustrações futuras
que possa vir a sofrer por viver com
HIV/Aids. Percebemos em sua entrevista que ela sofre enormemente com a
culpa e, como consequência, quase não
descola de Gisele, protegendo-a o tempo todo. Embora ela tente, racionalmente, preparar a criança, percebemos que
não consegue deixar espaço para a filha
desenvolver sua autonomia, como diz
querer fazer. Ela nos conta um fato significativo, de que, quando neném ainda,
a criança teve algumas crises de cianose
que a família acreditou persistir, apesar
dos médicos terem dito que Gisele não
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009
73
Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade
sofria de nenhum distúrbio que pudesse
provocar esse sintoma.
[...] eu acho que ela pegou psicologicamente esse roxo também que ela sabia
que me deixava doida esse roxo, e todo
mundo. [...] Aí, na hora do banho, ela falava: “Ô mãe, pega esses pano tudo que
eu vou ficar roxa”. Era cobertor, era até
umas toalhas. [...] Mas eu dava banho
nela e deixava pelo menos duas toalhas e
uma meia que se ela ficasse roxa eu tava
lá pra acudir. [...] Aí até que teve um dia
que ela incomodou e não falou comigo
não, falou com a psicóloga. ... Que eu
tava dando banho nela até hoje. Com
sete anos, tava com sete ou oito. Eu tava
dando banho nela até hoje. Aí a psicóloga
falou com ela pra ela me falar. Ela falou:
“Ô mãe, eu falei com a psicóloga, dando
banho ne mim até hoje, eu tô com oito
anos! Eu não vou ficar roxa mais não”. Aí
eu passei a deixar ela tomar banho sozinha, falei: “resolve lá.”. Mas de vez em
quando, ela queixa. Hoje mesmo: ela tomou banho pra ir pra aula, era meio-dia.
Ela falou: “Ô mãe, vem cá me enxugar,
mãe, que eu tô ficando roxa” “Tá ficando
roxa nada não” (Guiomar).
A cianose, o “roxo” como significante de uma fragilidade que demanda
sempre a presença materna, tornou-se
a justificativa para que a mãe nunca se
ausentasse.
[...] antes dela nascer, a obstetra falou
que poderia nem sobreviver por causa
do meu estado que tava muito debilitado
(Guiomar).
Percebemos aqui como uma questão que inicialmente surgiu para esta
mãe antes mesmo do nascimento da filha – o medo de ela não resistir – tornouse fonte de angústia para a criança que,
mesmo querendo uma separação, ainda
74
teme algo fantasmático em torno de sua
existência, “carrega” o temor da mãe que
se presentifica no significante “roxo”.
A fala da médica fez surgir uma
questão fantasmática para a mãe antes
mesmo do diagnóstico de HIV, o que,
acentuada por este, provocou como resposta materna uma posição de extremo
zelo perante a criança.
Deu positivo? E ela vai viver? Ela tem
chance de sair daqui?” Aí a médica falou:
“Tem, nós vamos investir tudo nela” [...]
Me colocou a par, de coisa que eu já sabia
também, que ela tava debilitada, ela tava
grave, que ia ser diferente de muitos outros, né? Aí eu falei: “Então tá. Se depender de mim, a minha filha não vai morrer
disso não (Guiomar).
Podemos notar que a promessa
feita por Guiomar está presente o tempo
todo na relação com Gisele, estabelecida nos cuidados e no sintoma como o
“roxo”, por exemplo. Fazendo uma inversão em sua frase, podemos encontrar
o sentido da relação mãe e filha.
Se a minha filha depender de mim não
vai morrer disso não.
O lugar da criança aqui acaba
sendo o de dependência, uma vez que,
na fantasia materna, é o que lhe garante a vida. Essa construção fantasmática
transmitida à criança vai determinando
sua posição na relação com a mãe.
Segundo Mannoni (1983, p. 6465),
A atitude da mãe pelo fato mesmo da deficiência física ou psíquica da criança induz nessa última certo tipo de respostas:
o estudo mais aprofundado dessa questão
permitiria explicar a escolha privilegiada
feita pela criança entre diferentes tipos
possíveis de resposta. Quando um fator
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009
Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade
orgânico está em jogo, tal criança não
tem só que fazer frente a uma dificuldade constitucional, mas ainda à maneira
pela qual a mãe utiliza esse defeito num
mundo fantasmático que acaba por ser
comum a ambos.
O medo que essas mães relatam
ter de a criança adoecer interfere muito
em seu cotidiano, fazendo com que elas
passem a conduzir a vida do filho e imponham a ele várias limitações, muitas
vezes desnecessárias, tais como: não poder entrar na piscina, não tomar gelado,
não poder brincar livremente como uma
criança saudável, mesmo quando não
existe nenhum sinal de doenças como
gripe ou alguma infecção de garganta,
por exemplo.
Clarissa nos aponta como o filho
internalizou o que ela sempre lhe dizia
e hoje, aos 12 anos, mantém os mesmos
limites de antes.
Eu ficava com medo que ele adoecesse, que aquilo virasse uma pneumonia,
porque realmente a resistência abaixa
muito, muito rápido. E ele foi crescendo
assim: até hoje ele não põe o pé no chão,
só mesmo calçado, não gosta de tomar
gelado porque ele sabe que corre o risco
de infeccionar a garganta. [...] Eu falava
com ele: “não põe o pé no chão, que se
você ficar doente, nós vamos voltar pro
hospital”. O medo era esse: ter que ficar
internado, né? Aí hoje eu falo com ele:
“Carlos, tira a camisa, tá fazendo calor”,
ele não gosta [de tirar a camisa] [...] o irmão já é totalmente ao contrário: gosta
de andar pelado, com pé no chão, gosta
de beber gelado... E o Carlos mesmo falava com ele: “Eu não vou ficar doente,
você vai.” (Clarissa/mãe de Carlos, 12
anos).
Vemos aqui que a preocupação da
mãe passa a ser também a do filho. Con-
sideramos importante destacar a fala de
Carlos para o irmão como exemplo de
como uma criança pode se angustiar em
decorrência das preocupações da mãe
com sua saúde. Se estas forem muito intensas, poderão transmitir à criança os
receios e fantasmas maternos ligados à
Aids.
O relato a seguir, de Guiomar, demonstra como a filha expressa o medo
da morte. A mistura de papéis mãe-filha
no que diz respeito aos cuidados e receios com o presente e o futuro mostra
a identificação da criança com uma mãe
assustada pela possibilidade da morte:
[...] Que elas ficam assim: “Mãe, dá um
tempo. Mamãe, não morre não, mãe.
Toma o remédio, mãe, não morre não.”
[...] A Gisele fala: “Não. Se ocê morrendo ou não, cê vai morrer só quando tiver
bem velhinha”. Agora ela fica com medo
de morrer, mas eu não fico com medo de
nada. E ela vem, tadinha, me acha só pra
tomar o remédio certo (Guiomar).
A fala da criança é também uma
maneira que ela encontra para dizer de
seu medo em relação à incerteza da vida
e do futuro – “ocê morrendo ou não” –
mesmo que faça uma aposta ao revelar a
esperança de uma possível velhice para a
mãe e, consequentemente, para ela.
A superproteção relatada por várias mães é comum nos casos em que a
criança é portadora de uma doença crônica e pode levar à sua infantilização,
como vemos na fala de Eunice.
[...] acho que eu, é, trato ele muito, muito
criança, entendeu? [...] Demais. Ele faz
acompanhamento por isso, porque ele é
uma criança imatura [...] o neném de carregar no colo [...] Até hoje, eu tento mudar, eu tenho que mudar porque eu tenho
que deixar ele crescer... Ernani vai fazer
10 anos... ele é um menino inteligente?
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009
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Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade
Mas ele é muito imaturo, ele é muito dependente, ele é muito grudado comigo,
entendeu? É mais do que os outros [...]
não adianta eu querer que ele cresça e eu
não deixar ele crescer, né? Porque na verdade quem pôs ele assim fui eu. Eu e o
pai, logicamente (Eunice/mãe de Ernani,
9 anos).
Ela traz o filho numa redoma,
conforme suas palavras nos apontaram.
Apesar de saber disso, age inconscientemente de modo a mantê-lo na mesma
posição, como vemos em seu relato:
Eunice: [...] eu sou muito protetora com
ele, na escola quando os meninos brigam,
bate nele, eu vou e reclamo, e falo com
ele, “não quero que você bata nele” [...]
igual a psicóloga falou pra eu deixar o
Ernani se defender um pouco, né, é, só
em último caso, mas eu falo, “se bater em
você sua mãe vai gostar? Sua mãe não vai,
então eu também não gosto...então não
bata nele que eu não quero, e você não
é pai dele e você não tem que bater nele.
Se ele te fizer alguma coisa, ele tem mãe,
cê chega pra mim e me fala que eu vou
corrigir, mas não quero que ninguém...”,
e vou na sala, e peço licença à professora
dele e falo: “Não quero que ninguém bata
nele, ele tem mãe, sou eu, se ele fizer alguma coisa com vocês, fala pra mim!”
Entrevistadora: E como é que o
Ernani se sentiu nessa ocasião, assim,
que você foi lá, defendê-lo e tudo...
Eunice: Ah, ele fica quieto.
Ernani, com dez anos de idade, não
consegue reagir à cena constrangedora da
mãe invadindo a sala de aula para defendê-lo. A fala de Eunice aponta o lugar em
que ele ainda permanece, “quieto”.
Castro e Piccinini (2004) investigaram, em um estudo qualitativo, os
76
sentimentos das mães de crianças com e
sem doença crônica relativos à sua experiência de maternidade. O estudo revelou
que esta experiência foi afetada pela presença de doença crônica na criança. Isto
apareceu especialmente no sofrimento
vivido pelas mães com sentimentos ambivalentes em relação às crianças, culpa,
ansiedade, superproteção, ansiedade de
separação e sentimentos de pouca ajuda de outras pessoas, vindo ao encontro
do que temos percebido no contexto da
Aids. O fato de a mãe ter possibilitado a
transmissão vertical do vírus HIV, conforme temos assinalado, acentua a angústia ligada aos sentimentos descritos
pelos autores em seu estudo e, consequentemente, as intervenções destes na
relação estabelecida com a criança.
Mannoni assinala a importância
de os analistas se interrogarem, na clínica, sobre o lugar da palavra da mãe no
mundo fantasmático da criança e o lugar do pai na palavra da mãe.
Como analistas, nós nos encontramos
em face de uma história familiar. A evolução da cura é, em parte, função da maneira pela qual certa situação é apreendida por nós. A criança, que se nos traz,
não está só, ocupa no fantasma de cada
um dos pais um lugar determinado. Enquanto indivíduo é muitas vezes alienado no desejo do Outro (MANNONI,
1983, p. 64).
Em relação ao desejo da mãe pelo
pai, fundamental para que ela não tome
a criança como um objeto que virá preencher sua falta, este pode ficar comprometido em função da contaminação
pelo HIV. A dúvida de uma traição, a
mágoa e muitas vezes a revolta sentida
pela mãe, provocando seu afastamento
do pai da criança, além de outros sentimentos importantes desencadeados pelo
diagnóstico, parecem causar conflitos
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009
Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade
importantes na vida conjugal, mesmo
que o casal continue vivendo junto.
Vejamos a fala de Anita:
Não tenho vontade de sexo, não tenho
vontade de nada. [...] Mas ele vive fora.
[...] Quando ele fala assim que vem pra
casa, eu acho ruim. Me bate um nojo [...]
eu visto cada roupa, ele fica bravo comigo. Umas saiona feia. Pra ele não me
querer, caçar sarna pro meu lado. Ele fala
assim “Eu não acredito que ocê não gosta
mais” [...] de sexo. Nem com ele e nem
com ninguém (Anita/mãe de Amine, 12
anos).
Ela nos revela que, para não ser
desejada pelo marido, já que estar com
ele após a contaminação causa-lhe tanta
aversão, busca se descaracterizar como
mulher, apagando os vestígios de uma
feminilidade que ela recusa compartilhar com um homem em consequência
dos sentimentos ligados ao diagnóstico
de HIV. Vejamos como ela tenta repetir com a filha o mesmo apagamento
ao imaginar que um remédio para acabar com seu desejo sexual resolveria as
questões ligadas à adolescência neste
campo:
Anita: E eu já até pedi um remédio pra
ela tomar pra ela não ter vontade. Não ter
vontade de outras coisas... dessas coisas.
Entrevistadora: Você diz assim:
que sua vontade era pedir um remédio
pra barrar a sexualidade dela?
Anita: Isso. Pensei. Aí eles falaram
comigo que eu era boba, que é só cuidar.
Mas ai ai, eu não sei, não. (Anita/ mãe
de Amine, 12 anos)
Como será que tem sido para Amine a passagem de menina a mulher, se a
imagem do espelho está tão comprometida com as questões apontadas? Ela vê
uma mãe apagada, distante do marido,
enfeando-se, sem desejo como mulher.
Assim como Anita, Olívia também
aponta as dificuldades em ser mulher de
um homem que supostamente a contaminou na gravidez. Diz viver bem com
ele, mas como mulher se encontra completamente distanciada de tal posição.
A gente vive feliz, tirando isso, vive feliz
demais. Igual, foi ontem ou hoje eu tava
pensando: “Nó, se não tivesse que fazer
esse negócio, ia viver feliz pro resto da
vida”. [...] Porque eu acho que a doença
veio por causa do sexo, então... Pra mim,
dentro de mim, acabou, não precisa, já
estragou tudo. Se eu pudesse ficar sem
pra sempre, morando só assim, sendo
marido e mulher, mas não tendo relação.
Acho que seria a melhor coisa (Olívia/
mãe de Odila, 6 anos).
Neste estudo percebemos que as
mães que conseguiram manter uma
relação com o parceiro como mulher,
ainda que este não seja o pai da criança,
parecem estar menos angustiadas, estabelecendo relações mais saudáveis com
os filhos. O amor materno não pode se
constituir um obstáculo ao desejo da
mulher, o que Naveau aponta como uma
questão a ser sempre verificada.
Segundo o autor,
[...] se a criança não satisfaz completamente o desejo da mãe, então a mãe é
uma mulher. Dizendo de outro modo,
a mãe é uma mulher se sua criança não
é tudo para ela, se seu desejo se divide
entre a criança e o homem (NAVEAU,
2001, p.139).
Vimos, porém, em vários casos,
que o diagnóstico de HIV da criança
parece convocar a mãe ao lugar só materno, já que ela se torna, na maioria das
vezes, a principal cuidadora do filho em
seu tratamento. Estar sempre no lugar
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009
77
Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade
de uma mãe zelosa parece afastá-la do
lugar de mulher, uma vez que o desejo
e a sexualidade são perturbados pelo
fantasma de uma doença estigmatizada como promíscua e pela culpa de ter
transmitido o vírus à criança.
Soler (2005, p. 103) nos aponta
que:
[...] para a criança, a dedicação materna
tem um valor tanto maior quanto mais a
mãe não é toda sua, e quanto mais não
está toda num alhures insondável: mas
é preciso que seu amor de mulher esteja
referido a um nome. Só há amor por um
nome, dizia Lacan: no caso, o nome de
um homem, que pode ser qualquer um,
mas que, pelo simples fato de ser nomeável, cria um limite para a metonímia do
falo, assim como para a opacidade do
Outro absoluto. Só mediante essa condição é que a criança poderá ser inscrita
num desejo particularizado.
Percebemos que a relação mãefilho sofreu consequências do diagnóstico da infecção pelo HIV que, de certo
modo, conduziram a criança a um lugar
marcado por questões fantasmáticas
maternas em relação à doença.
Concluímos que o medo e a angústia relacionados à morte e ao preconceito com a Aids estão presentes de
maneira intensa na vida dessas mães,
confirmando estudos anteriores a esse
respeito em relação às pessoas que vivem com HIV/Aids em geral. Porém,
a implicação dessa angústia na infância
marcada pelo HIV, que se constitui uma
questão perturbadora ao psiquismo materno, podendo se tornar uma questão
também da criança, foi o que mais nos
preocupou como resultado deste estudo. Consideramos essencial apontar que
a subjetividade materna vai sempre afetar a vida de um filho, mas, no caso de
mães com HIV/Aids, esses efeitos po78
dem marcar profundamente a criança
na relação que ela vai estabelecer com
sua condição de portadora do HIV. Para
além da questão da transmissão biológica, as questões subjetivas vinculadas a
essa forma de transmissão podem ser, de
fato, perturbadoras para a criança, uma
vez que sua infância passa a ser atingida
pela angústia, medo, culpa, entre outros
sentimentos. O fantasma da mãe em
torno da Aids faz com que ela estabeleça com a criança uma relação particularizada na qual muitas vezes impera o
segredo e a falta de uma palavra apaziguadora que lhe traga entendimento, já
que nesse contexto essa palavra se torna
proibida.
Consideramos a imposição do silêncio às crianças um dos aspectos mais
impressionantes do diagnóstico da infecção pelo HIV e tememos por seus
efeitos, que podem ser devastadores,
uma vez que muitas delas parecem compactuar com suas mães ao se calarem,
aceitarem a condição de ignorância em
que são colocadas e se esconderem sem
ao menos entender o que fizeram para
merecer a invisibilidade.
Em nossa opinião, a mentira e o segredo passam a ser um comportamento
adotado pelas crianças, mesmo quando
desconhecem a verdade. A maioria delas parece internalizar o modo silencioso usado pela mãe para lidar com a medicação e com as idas ao médico, já que
muitas mães nos relataram não explicar
nada aos filhos e que eles não lhes perguntam nada, o que nos é surpreendente
em se tratando de crianças. Geralmente
elas se expressam com espontaneidade
quando querem saber algo desconhecido e costumam ser curiosas, normalmente com poucos impedimentos para
perguntas.
Atribuímos esse fato à percepção
da criança de que existe um assunto intocável para a família ao qual ela não pode
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009
Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade
se referir, perguntar, saber ou buscar
explicações. Parece não lhe haver outra
escolha a não ser optar pela ignorância,
ainda que pense solitariamente sobre o
que possa estar acontecendo com ela e
com os pais, mas nem sempre rompe o
pacto de silêncio imposto.
O ato falho cometido por Sofia ao
nos relatar a pergunta do filho sobre o
motivo de ter que tomar o remédio escondido de seus primos e tios revela a
existência de um conflito inconsciente e
pode apontar o desejo de esconder não
só a doença, mas também a criança do
olhar do outro.
[...] agora ele me perguntou: “Uai Mãe,
por que que a senhora tem que ficar me
escondendo?” [O que ela corrige logo a
seguir]: “escondendo de todo mundo na
hora de tomar remédio [...]?” (Sofia/ mãe
de Sílvio, 10 anos)
Observamos que a dificuldade da
mãe em conversar com a criança está
presente mesmo nos casos em que esta
sabe de seu diagnóstico.
É, eu falo “o problema”, “aquilo”. Eu não
comento o nome. Aí eu falo com o Carlos: “Carlos, sabe aquilo?” Aí, assim, eu
não falo HIV. [...] Nem com ele. Dentro
de casa, quando tá só nós dois, a gente
fala: “sabe aquele negócio?” “Sei” (Clarissa/mãe de Carlos, 12 anos).
A indagação de Cruz a este respeito traduz também nossa inquietação
quanto à vida dessas crianças:
Mas se o sujeito portador de HIV está
reduzido à própria AIDS e se a AIDS é
o indizível – é “aquela doença”, aquilo
que se deve confessar, mas aquilo que
não se pode pronunciar–, o que estamos
transmitindo às crianças e adolescentes?
Qual a herança que a cultura lhes dá? Se
o que existe, existe com um nome, qual
será a experiência de si para quem carrega o nome que não se pode dizer? Não
somente a AIDS é indizível, mas ele próprio, como sujeito reduzido à AIDS, passou a ser indizível. (CRUZ, 2007, p. 381)
Na função de analista, é preciso apontar a necessidade de um olhar
mais cuidadoso às questões que aqui
acabamos de expor, principalmente
por entendermos que a angústia faz
com que sofram a mãe e a criança. A
angústia se apresenta para a criança
de maneira muito mais complexa pela
sua dificuldade em compreender o que
se passa ao seu redor e que geralmente permanece oculto pela culpa e pelo
medo materno.
Mannoni indica-nos a importância das palavras para assegurar à criança uma vivência psíquica em relação a
seu adoecer de uma maneira menos
sofrida:
A realidade da doença não é em nenhum
momento subestimada numa psicanálise, mas o que se procura evidenciar é
como a situação real é vivida pela criança e por sua família. O que adquire então um sentido é o valor simbólico que o
sujeito atribui a essa situação como ressonância a certa história familiar. Para
a criança, são as palavras pronunciadas
pelo seu grupo a respeito da doença que
vão adquirir importância. São essas palavras ou a ausência delas que vão criar
nela a dimensão da experiência vivida.
É também a verbalização duma situação
dolorosa que pode permitir-lhe dar um
sentido ao que vive. Qualquer que seja
o estado real de deficiência ou de perturbação da criança, o psicanalista procura entender a palavra que permanece
condensada numa angústia ou cercada
numa enfermidade corporal (MANNONI, 1983, p. 65).
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009
79
Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade
Nossa aposta é em uma escuta que
contemple também questões subjetivas
no tratamento dessas mães, o que poderá ajudá-las a trazer outras palavras a
seus filhos. Nosso desejo é que as crianças portadoras de HIV/Aids possam ter
um rosto e uma infância à luz do dia
para que saiam da invisibilidade a que
parecem estar destinadas.
Keywords
HIV/Aids; mother-to-child transmission
(MTCT); subjectivity; child; mother-child
relation.
Abstract
Based on the discourse of HIV-positive
mothers who transmitted the infection to
their infants via mother-to-child transmission (vertical), the authors looked into the
implications brought into the children’s lives
by maternal subjectivity. They analized how
childhood can be affected by the HIV virus,
which goes far beyond the biological questions related to infection, and focuses mainly
on the psychological implications presented
in this context.
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80
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p.137-141, 2004.
Tramitação Recebido : 24/06/2009
Aprovado : 27/08/2009
Nome do autor principal: Juliana Marques Caldeira Borges
Endereço : R. Padre Rolim, 815/307 –
São Lucas
CEP :30130 – 090, Belo Horizonte/MG
Fone : (31) 3274 0443
E-mail : [email protected]
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009
Transgressão, crime, neurociências:
impasses aos saberes da psicanálise?
Transgression, crime, neurosciences: impasses to the
knowledge of psychoanalysis?
Julio Cesar Diniz Hoenisch1
Pedro José Pacheco2
Carlos da Silva Cirino3
Palavras-chave
Transgressão, crime e neurociências.
Resumo
O presente artigo trata de algumas questões despertadas pelo florescimento das neurociências, de um suposto
desgaste da psicanálise diante dessa revolução, articulando as posições epistemológicas tanto de um quanto
outro campo de saber sobre o sujeito, a sociedade contemporânea e a criminalidade. Problematiza também
a construção de diagnósticos “criminais” precoces e fartamente divulgados pela mídia sem fundamentos
empíricos para tanto, o que resulta em uma mistificação do criminoso e constrói uma representação
“mágica” da área psi sobre seu modo de trabalho. Por fim, aponta os impasses da psicanálise diante das
demandas contemporâneas e dos discursos totalitários, tanto místico/religiosos quanto neurocientíficos
radicais, indicando ser a ética o necessário fio condutor para uma reflexão sobre as políticas de existência e
a manutenção da área psi como veiculadora destas práticas de modo implicado.
GENEALOGIAS DO SABER
PSICANALÍTICO
A Psicanálise, desde seu advento, sofreu variações conceituais, estruturais e políticas de saber e verdade consideráveis. A
construção dos ensaios clínicos do Dr. Freud
escandalizou a Viena da época por evidenciar a sexualidade da criança e por colocar
que uma clínica da escuta dos sentidos era
possível, ocasionando assim uma reorganização da subjetividade de quem fala. Na primeira assertiva, o escândalo estava na profanação da infância, construída como inocente e pura no século XVIII, e, na segunda,
no fato de uma “cura” sem medicamentos e
sem invasões corporais mais objetivas e visíveis. Logo, a psicanálise nasce envolta em
uma aura transgressora, afastada da moral
burguesa. Não se tratava de uma escuta fácil de ser construída, visto que a empreitada
freudiana custaria muito caro a seu inventor.
É interessante utilizar o termo “invenção” e
não “descoberta” para não alimentar a ideia
de tratar-se de um fato natural, que já estaria
lá, e a neutra e imparcial tarefa do pesquisador/analista seria desvendar sua verdade
implícita. Não se trata disso aqui, em que
pese o desejo inicial de Freud de que a psicanálise fosse uma ciência natural (PALOMBINI, 1995). Tomamos o inconsciente como
produção discursiva que instaura o laço social sempre cambiante e produto/produtor
do sujeito do desejo, tendo o pesquisador/
analista a implicada e complicada tarefa de
questionar as certezas e problematizar verda-
1 Psicólogo, especialista em saúde pública/Fiocruz, Mestre em Psicologia/PUC/RS, Professor da Universidade
Tiradentes/SE.
2 Psicólogo, especialista em Psicologia Jurídica (CFP), Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS),
doutorando em Psicologia (PUCRS) e Professor do Curso de Psicologia da Universidade Regional Integrada
do Alto Uruguai e das Missões – URI Santiago – RS.
3 Psicólogo, mestre em Psicologia Social (UFPB), Professor da Universidade Tiradentes.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009
81
Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise?
des e saberes totalitários. Ou seja, nessa
perspectiva, “o inconsciente não é uma
realidade psíquica que cada um carrega,
como se fosse uma propriedade da alma,
oculta, ignorada, que se desvela, revela,
descobre” (BUENO, 2002, p.30), porém
se faz a partir da lógica do discurso,
“uma lógica necessariamente paradoxal,
já que é o sujeito mesmo que produz a
verdade que acredita descobrir” (JERUSALINSK, 2007, p.136), pois é ele quem
a inventa na relação com o outro.
Decorridos mais de um século da
construção de sua clínica e dedicados
estudos epistemológicos (JAPIASSU,
1998), o estatuto científico da psicanálise não se atém ao modelo das ciências
naturais, nem das ciências humanas, divisão clássica das ciências factuais. Seu
estatuto epistemológico se alinha à ciência, como coloca Lacan em “A ciência e
a verdade” (LACAN, 1998), pois ao lado
da religião ou da magia não pode estar,
tendo em vista os dogmatismos e profissão de fé inerente a esses saberes. Assim,
a invenção da psicanálise:
(...) teve duas grandes consequências no
campo do saber. A primeira foi o reconhecimento de que o corpo real dos humanos é regido por uma ordem simbólica que desdobra sobre este corpo efeitos
imaginários; uma ordem que prevalece
sobre os automatismos neurovegetativos. Na medida em que se verifica que a
condição humana desse corpo depende
de que os enunciados que o simbolizam
mantenham sua eficácia, a anatomia e a
fisiologia perdem sua exclusividade no
reino do patológico. Isto muda a leitura
dos sofrimentos e estabelece os princípios
de uma nova clínica. A segunda, é que,
embora não constitua uma nova epistemologia (faltaria para isso ter a fé que, no
método, a ciência contemporânea tem),
certamente produz uma nova episteme,
ou seja, um novo ponto de partida para
82
a abertura de caminhos do saber (JERUSALINSK; MEZAN, 2007 p. 136).
Esse preâmbulo é ilustrativo das
questões da transgressão em Psicanálise
e das nuances que esse campo de saber
assume na era pós-Freud. Pode-se considerar que o campo psicanalítico contemporâneo se estabelece em torno de
três grandes “escolas”: inglesa, francesa
e americana. Cada uma delas tomou
a obra freudiana a partir de uma linha
de raciocínio, construindo uma exegese
particular, da qual resultam posições teóricas muito diferentes.
Ao estudarmos a história da difusão da Psicanálise, inclusive as infelizes
posições da Psicanálise na Alemanha
nazista ou na presença de torturadores
em entidades de formação, como foi o
caso no Brasil (VALE, 2003), vemos
que há uma tendência de buscar manter a “doutrina” viva a qualquer custo.
De maneira geral, há uma presença de
um discurso voltado para a manutenção
do saber psicanalítico como legítimo ou
puro indelevelmente. Essa posição, além
de muitas vezes ferir os estatutos das
prerrogativas dos Direitos Humanos,
põe a nu que a Psicanálise não é um saber doutrinal advindo da esfera celeste,
mas justamente o contrário, vindo dos e
indo para os seres humanos, advindo o
tempo todo dos confrontos de idéias e
discussões ético-políticas entre eles.
Dizer isso não se refere às críticas
que se faz da posição do analista como
sujeito político na prática clínica. Na
lógica psicanalítica, o analista somente existe enquanto sujeito na suposição
de um saber que faz semblante, que
empresta seu corpo, sua imagem e seu
inconsciente para que complexas operações entrem em movimento e “abram o
jogo de xadrez”. Certamente não é possível que essa operação de espelho seja
absoluta e justamente por isso temos a
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009
Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise?
supervisão, a análise pessoal e a compreensão da “transferência recíproca” como
instrumento de compreensão dos afetos
que se acionam no analista e o fazem
sentir ou “atuar” esses afetos. Logo, não
se trata aqui de colocar que o analista é
isento, mas lembrar que o analista não
se coloca como sujeito em virtude de a
prática da clínica psicanalítica não ser
um laço social qualquer, mas justamente
um laço social inventado, nunca antes
visto na história humana.
Note-se que também essa posição é relativa ao marco epistemológico
ao qual nos alinhamos, tendo em vista
que, na contemporaneidade, alguns segmentos da Psicanálise advogam a ideia
de que o analista deve ser reconhecido
como pessoa. Não parece possível concordar com essa premissa, haja vista que
o papel do analista é o do espelho, tanto
na situação da análise quanto da sociedade que se propõe pôr em análise: refletir a própria imagem do recalcado e
observar o que resultará disso, podendo
resultar em nada, inclusive. É relevante
destacar que existem situações em que a
psicanálise se cala ou casos nos quais ela
simplesmente não ocorre, e não há nada
de errado com a teoria. Se a Psicanálise
está para a ciência, a ciência está para as
verdades provisórias, para as dúvidas e
para a falibilidade. Infalível e não criticável são dois termos que excluem do
campo de conhecimento científico qualquer assertiva de saber.
Diante dessas considerações, já
podemos então presumir que a Psicanálise não é uma, que não é tão simples
nomear-se psicanalista e mais complexa
ainda se torna a questão quando pensamos na psicanálise a “serviço” de outros
campos de conhecimento, a saber: a justiça e a psiquiatria (ou neurociências).
Do ponto de vista da sua difusão
no Brasil, desde seu início a Psicanálise esteve intimamente relacionada ao
saber médico. Assim como a Psicologia
chegou ao país antes do psicólogo (a
profissão de psicólogo só passará a existir em 1962, a partir da lei N.° 4.119, de
27 de agosto de 1962, que dispõe sobre
os cursos de formação em Psicologia e
regulamenta a profissão), as ideias psicanalíticas chegaram antes do psicanalista. Na Bahia, no Rio de Janeiro e em
São Paulo, alguns médicos traduzem
algumas ideias freudianas e as colocam
na nascente prática acadêmica do ensino da psiquiatria (VALE, 2003). Em que
pese uma inicial rejeição das ideias freudianas, rejeição que, aliás, parece nascer
e acompanhar a Psicanálise em todo seu
percurso e existência, logo a Psiquiatria
toma a psicanálise como um campo de
saber que pode legitimar sua prática,
até o momento considerada uma construção marginal na medicina, posto que
não apresentava um substrato anatômico para suas assertivas. Desde Morel e
outros grandes expoentes da psiquiatria,
sobretudo na França, encontramos o debate entre os organicistas e os psiquiatras
que defendem o chamado “tratamento
moral” (BIRMAN, 1978).
De qualquer maneira, no caso brasileiro e de outros países, a psiquiatria vê
rapidamente na Psicanálise uma possibilidade de legitimação de sua razão de
ser, isso até o advento das correntes neurocientíficas radicais. Nesses segmentos,
é preciso livrar-se da Psicanálise, considerada agora um punhado de ideias românticas ilegítimas e descartáveis.
A PSICANÁLISE: MUITO ALÉM DA
“NORMALIDADE”
Na mesma velocidade, começa a
difusão das ideias psicanalíticas entre
os meios intelectuais e a população em
geral. A perspectiva psicanalítica, para
ser absorvida pela comunidade local,
necessitaria de alguns ajustes, tais como
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009
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Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise?
condicionar sua formação à colonização
pelo formato de um freudismo norteamericano: o pragmatismo e a ênfase no
eu e nas fases do desenvolvimento da libido. Além desse destaque da perspectiva “evolucionista” do pensamento freudiano, a Psicanálise nos Estados Unidos
também precisava de ajustes ao modelo
hipotético dedutivo, típico das ciências
naturais e muito forte na cultura americana. Assim, em geral testemunhamos
nas construções teóricas deste continente um certo descrédito à pulsão de morte, a tradução dos termos da segunda
tópica para o latim, a recusa da primeira
tópica, considerada superada, e a ênfase
no ego. Como já foi amplamente discutido nos meios psicanalíticos brasileiros,
essa tradução dos termos latinos para
eu, supra-eu e isso traz diferenças substanciais no entendimento conceitual da
Psicanálise, tanto quanto o controverso
“instinto”, tradução inadequada para
“Trieb” (pulsão).
Tal como afirma Roudinesco:
De maneira geral, o freudismo norteamericano, em todas as suas tendências,
privilegia o eu (ego), o self ou o indivíduo, em detrimento do isso, do inconsciente e do sujeito. Por conseguinte, opõe
à pretensa decadência da velha Europa
uma ética pragmática do homem, fundamentada na noção de profilaxia social ou
de higiene mental. Daí a generalização de
uma psicanálise medicalizada e assemelhada à psiquiatria, em oposição à velha
psicanálise vienense leiga, atormentada
pela morte, pelo autoaniquilamento e
pelo niilismo terapêutico (ROUDINESCO, 1998, p. 170)..
Por conseguinte, o Freud difundido no Brasil é eminentemente evolucionista e adaptativo. Mas como conciliar a
subversão freudiana com a normatividade psiquiátrica da época? Como subsu84
mir a virulência da ideia de inconsciente
à normatividade comportamental?
Se a Psicanálise prescinde de um
conceito de normalidade, sendo esta, aliás, uma de suas maiores qualidades para
o acervo das ciências que tratam do homem, como alinhá-la a um campo de conhecimento eminentemente normativo?
Um campo com um conceito, para não
sermos redundantes, de “normalidade”
muito bem constituído? Aqui, leia-se,
normalidade estatística. Normal é o comportamento estatisticamente prevalente
em um grupo social, sendo o que não
se “adapta” considerado “desvio” (DALGALLARRONDO, 2008). Em que pese a
sugestão em Três ensaios para uma teoria
da sexualidade de que a genitalidade é a
finalidade última do desenvolvimento da
libido, não encontramos no conjunto da
obra freudiana uma normatividade, um
conceito sobre “o normal”. Na própria
construção dos três ensaios está colocada
a não naturalidade do objeto de satisfação
da pulsão, bem como a não naturalidade
da própria pulsão. Da mesma forma, essa
posição teórica ficará ainda mais clara em
Pulsões e destinos da pulsão:
O objeto da pulsão é aquilo em que, ou
por meio de que, a pulsão pode alcançar
sua meta. Ele é o elemento mais variável
da pulsão e não está originariamente vinculado a ela, sendo-lhe apenas acrescentada em razão de sua aptidão para propiciar a satisfação. Em rigor, não é preciso
ser um outro objeto externo, pode muito
bem ser uma parte de nosso próprio corpo. Ao longo dos diversos destinos que
a pulsão conhecerá, o objeto poderá ser
substituído por intermináveis outros objetos, e a esse movimento de deslocamento da pulsão caberão os mais significativos papéis. (FREUD, 1915/1976, p 137).
Logo, como ser a genitalidade o
fim último da pulsão e sua organização
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009
Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise?
final pode ser bastante particular e não
prescritiva. Em Três ensaios... há uma
tendência a sugerir que a genitalidade é
a “última fase”, mas o artigo supracitado
desconstrói a ideia de primado genital
exclusivo, sendo possível, pois, compreender a pulsão com uma abordagem não
desenvolvimentista. Alguns segmentos,
como o lacanismo, preferem a trajetória
do nascimento do desejo e da falta ao invés da libido e suas fases. Mas, de qualquer maneira, a definição clara a respeito dessa questão ainda não é consenso
entre os psicanalistas. Nos casos a que
Freud se dedicou, por exemplo, a falar
sobre a homossexualidade, não a coloca
como um desvio ou problema, mas uma
“parada” no desenvolvimento da libido,
rejeitando uma possível distância objetiva entre condutas sexuais “normais” ou
“anormais”.
Segundo Ferraz (2002), Freud declara: “não conhecemos os limites da
vida sexual normal e que, portanto, não
deveríamos nos referir com indignação
às perversões sexuais”. A ao defender o
direito dos homossexuais, afirma: “eles
são vítimas da moral sexual corrente,
que impõe a todos os mesmos padrões,
sem considerar as suas diferentes constituições”, que a abordagem freudiana
concebe à formação das orientações sexuais e da subjetividade como contingentes e não naturais.
Foucault (1984) traz uma visão
crítica à histórica vinculação do tema
sexualidade com as noções de desvio e
anormalidade mental, falando na hipótese repressiva ao afirmar que a discussão sobre sexo desde o século XVIII na
verdade serviu para legitimar saberes
ainda insipientes e pouco reconhecidos
como os da sexologia e da psiquiatria,
principalmente comparando-os a outras
áreas médicas da época. “No terreno
da medicina, foi a psiquiatria que veio
a abarcar a ciência do sexual, passando
as “aberrações sexuais” a serem vistas
como variações da alienação mental”
(FERRAZ, 2002, p.12). Com isso, as correntes americanas e inglesas, no intuito
de uma legitimação de saberes para um
pleno exercício de poderes, incluem as
diferenças, aqui primeiramente as sexuais, para depois se estender a inúmeros
outros tipos comportamentais, na categoria de desvio, perversão (ROUDINESCO, 2003), alienação e/ou doença
mental, reforçando intervenções cada
vez mais repressivas e punitivas tomadas
agora na sua execução pela esfera estatal
e jurídica.
TRANSGRESSÃO, CRIME E A
VIOLAÇÃO DA NORMA
A questão que se trata de refletir
aqui é o tema da transgressão em Psicanálise e como esta pode, sob determinados regimes discursivos, se tornar, ao invés de subversiva, um operador conceitual que destrói a possibilidade da transgressão, que não é necessariamente da
ordem da violação da lei ou do exercício
do mal. Ou seja, a Psicanálise é, em sua
gênese, transgressora da norma e não a
guardiã asséptica de uma moral vigente
ou uma normatividade de qualquer natureza, seja jurídica e/ou científica.
Pensemos no caso de alguns crimes, quando frequentemente a Psicanálise é requisitada pelos meios de comunicação de massa a fornecer explicações
sobre as motivações desses “desvios”
considerados por estes mesmos formadores de opinião como “bárbaros”,
“horríveis”, “perversos”, etc., bem como
os sujeitos supostamente criminosos
categorizados como “monstros”, “psicopatas”, “animais”, “delinquentes”, e mais
uma série de adjetivos pejorativos e degradantes usados com o intuito de trazer
mais dramaticidade e espetacularização
ao cenário teatral apresentado. Nesses
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009
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Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise?
casos, frequentemente observamos já
um primeiro equívoco nas concepções
teóricas, éticas e políticas do saber psicanalítico, proporcionado por quem se
define como seu representante: o de julgar-se capaz de falar (analisar) sobre um
discurso que não se escutou, no caso do
produzido pelo sujeito “acusado”. Como
podemos, na condição de (re)produtores de um conhecimento que se busca
legítimo acerca do humano, falar sobre
um caso a partir de notas de jornais, ou
fragmentos de entrevistas televisivas?
Vemos, com algum choque, sem dúvida,
considerações minuciosas desses representantes de um saber “inquestionável”
(“os especialistas”, como são tratados por
esses meios) sobre as estruturas clínicas,
levantamentos hipotéticos sobre a infância dos sujeitos em causa, bem como,
não raro, inferências deterministas sobre o que levou o sujeito àquele comportamento dito desviante. Nessas organizações discursivas, identificamos um
forte predomínio do tratar da questão
criminal simplificadamente, reduzindo
sua dimensão complexa e social, além
de sustentar uma concepção de sujeito
totalmente individualista, determinista
e egocentrado, tal como o são os fundamentos das ciências naturais modernas.
As relações da Psicanálise com a
criminologia e a justiça, desde seu início
estão colocadas no texto A psicanálise
e a determinação dos fatos em processos
jurídicos(1906/1976) em que Freud é
claro: os alcances da Psicanálise não estão voltados para a constituição de culpa (no sentido jurídico do crime) ou de
castigo, este último referido à modalidade de punição, extensão e capacidade de
remissão do ato criminal ou criminoso.
Logo, fica inerente à leitura dos fatos
que se apresentam tão corriqueiramente
na mídia, onde psicanalistas, por vezes
expoentes de entidades de formação,
se apressam em fornecer explicações
86
sobre crimes e, com a mesma rapidez,
articular os conceitos de transgressão e
crime. Ora, a transgressão, assim como
a agressividade, não são atos per se perversos ou criminosos, já que “o perverso
não porta uma aberração ausente nos
outros seres humanos, mas que ele simplesmente atua aquilo que se encontra,
de forma latente e potencial, em todas as
pessoas” (FERRAZ, 2002, p.21).
Além disso, o próprio conceito de
crime é relativo no espaço e no tempo,
por ser uma construção cultural e não
natural, e a civilização, para a Psicanálise, é constituída sobre o parricídio e o
incesto, logo, a criança freudiana, no texto Totem e Tabu (1913/1976), é necessariamente em termos desejantes parricida e incestuosa. Pode-se arguir que essas
tendências são recalcadas, não sendo,
portanto, muitas vezes levadas ao ato.
Porém do ponto de vista da ontologia
e da perspectiva da realidade psíquica,
construídas por Freud, isso é irrelevante. Outra face da moeda é pensar que,
uma vez que a Psicanálise não se propõe
a julgar, o que é de fato atribuição do
juiz, ela deveria advogar uma perspectiva “abolicionista” da pena ou da responsabilização penal. Ou seja, buscar que o
sujeito se responsabilize pelo que ele é,
um ser faltante, incompleto, paradoxal,
do qual nenhum sistema penal que funcione hierarquicamente de forma rígida
a partir de códigos objetiváveis ou tempos cronológicos poderá dar conta, por
mais que isso seja constante e ilusoriamente prometido com a corrente e ilusória expressão “Estado Democrático de
Direito”.
Nas contribuições de alguns pesquisadores de orientação lacaniana,
encontramos uma posição bastante interessante sobre esse tema, na qual é colocado que o crime é uma busca de uma
obra. Obra leia-se como fundação de
uma inscrição social, anseio de todo su-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009
Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise?
jeito (MELLO, 1990). Em princípio, todo
sujeito no âmbito da neurose, do ponto
de vista psicanalítico e, neste caso, a escola teórica é irrelevante, ambiciona ser
a partir de sua inscrição subjetiva com
o Outro. O ser falante visa a um lugar
na pólis, como fica claro na adolescência com a ruptura do laço social com os
pais, tribos ou equivalentes, buscandose uma nova modalidade de ser. Logo,
não é papel da Psicanálise se colocar
como aquele que absolve ou condena o
criminoso. Mesmo nos casos de psicose,
quando muitas vezes ocorre um crime
violento, é necessária a construção de
uma responsabilização, mas neste caso
a responsabilização criminal pode ser o
advir do sujeito do desejo.
Se não como o super-herói, como o
pior dos criminosos. Essa é a prerrogativa de ser, de se destacar da função materna, do reino da simbiose, que ao mesmo
tempo nutre e asfixia, para produzir-se
na relação com o Outro constantemente.
Há uma imprevisibilidade naquilo que o
sujeito humano é capaz de se fazer, seja
através de atos, pensamentos, emoções,
sentimentos, desejos, fantasias, etc. Isso
traz uma inevitável variabilidade entre
os atos tipicamente criminais e os modos de ser humano (HOENISCH, 2002).
É relevante lembrar que os modos de
ser mais tipicamente neuróticos estão
tão à mercê do crime ou da violação da
lei quanto os tipicamente perversos ou
psicóticos, já que não há dispositivo de
relação de causa-efeito, muito menos de
correlação estatística, entre o crime cometido e a personalidade do sujeito que
supostamente o cometeu. Crimes violentos podem ser categorizados como
psicóticos, mas o ato psicótico não implica necessariamente o funcionamento
psicótico, nem vice-versa. Pensando-se
assim, mais complexa ainda se torna a
tarefa de construir qualquer diagnóstico,
se assim fosse o caso. Dentre as torções
teóricas que a Psicanálise, através de seus
ditos representantes ou “especialistas”,
necessitou para ser aceita no campo da
criminologia, as discussões acerca das
avaliações, diagnósticos e prognósticos
sempre mostram ser as mais obscuras
e problemáticas. Alguns profissionais,
referindo utilizar-se da psicanálise, afirmam ser capazes de “medir” os impulsos agressivos e prever a reincidência do
crime. Não nos parece claro como isso
seria possível, tendo em vista que a própria psiquiatria não é uma ciência exata,
de certeza estatística. Mesmo que o fosse, as ciências naturais nos falariam de
forte tendência, mas nunca de certezas
absolutas, até porque, ao tratarmos politicamente das ciências, estamos falando
da necessária impossibilidade de existir no seu escopo um saber totalitário e
completo, já que se tornaria ditatorial,
bárbaro e destruidor da alteridade ao
acreditar que ocupa este lugar perante
os outros saberes e poderes.
Se esta reflexão cabe sobre a perspectiva transgressora da Psicanálise para
analisarmos brevemente seu lugar junto
ao crime, a mesma posição nos servirá
para pensar a posição das psicanálises
diante do avanço das neurociências.
FREUD ENTRE A BRUXARIA E AS
NEUROCIÊNCIAS
Diante do debate cada vez mais
contemporâneo entre a Psicanálise e
as neurociências, que lugar ocupar?
Defender a doutrina freudiana como
campo independente e ser considerado
ortodoxo ou obscurantista? Defender a
união da Psicanálise com as neurociências, já que alguns experimentos destas
serviriam para evidenciar – novamente
o ideal cientificista hipotético-dedutivo
– que a Psicanálise “funciona”? Ambas
as posições apresentam seus riscos e
novamente estamos diante do tema de
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009
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Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise?
como garantir, tanto quanto seja possível, a transmissão da Psicanálise e o seu
relevante papel social. Que lugar terá a
invenção freudiana num mundo bioquímico, tomado por terapias supostamente
mais eficazes, que adicionadas aos psicofármacos seriam pretensamente capazes
de abolir o mal-estar da civilização? O
que pode a Psicanálise, como invenção
humana e com finalidade, grosseiramente falando, de retificação subjetiva,
de propor outra forma de gozo, de lidar
com o sintoma e com a incompletude?
E, por fim, como sustentar suas idéias
densas diante de uma sociedade na qual
o conhecimento cede lugar à informação instantânea e efêmera? Aqui caberia
uma reflexão sobre a diferença entre formação e informação. A formação analítica é feita caso a caso. Trata-se de uma
questão altamente afastada do modelo
universitário contemporâneo: informar.
A sociedade parece atravessar um período de ruptura do conhecimento, sendo
este agora trocado pela informação. Não
se trata de elementos similares.
Parece prudente pensar que não é
possível responder a questões tão complexas de maneira rápida. Nosso tempo
atual, a chamada “modernidade tardia”
ou simplesmente “contemporânea’, apresenta uma nova revolução em andamento que colocam a “velha senhora”, como
uma vez denominou Freud a Psicanálise, em xeque. Segundo Rouanet (2002),
testemunhamos um re-encantamento
do mundo, pois assistimos a paradoxos que geram alta perplexidade: de um
lado, o afloramento de seitas fundamentalistas, encontros de bruxas, duendes
e fadas, o conceito de “loucura” e doença mental tomados novamente como
possessão espiritual, tal como na Idade
Média; de outro, a mistificação exagerada de alguns segmentos das neurociências, advogando o fim da Psicanálise, de
qualquer psicoterapia não diretiva, pois
88
agora os fármacos e a genética explicarão todos os males. Em outras palavras,
de um lado o obscurantismo, do outro
uma suposta e um tanto ingênua revolução científica, que ambiciona responder
a todas as fendas da condição humana
pela via dos neurotransmissores e equilíbrio neuroquímico.
Tanto uma quanto outra posição nos parecem cegas à razão, tomada
aqui no sentido posto pelo iluminismo:
capacidade humana de refletir sobre si
mesma de maneira secular (ROUANET,
1993). É verdade que a Psicanálise como
campo de conhecimento não é tributária
da razão. Sua prática clínica nos revela
que o Eu não é senhor em sua própria
casa e que não é possível a emancipação
através das luzes da razão. A Psicanálise suspeita da razão. Mas nem por isso
a pesquisa e a prática psicanalítica são
irracionais, caso contrário não necessitaríamos dos critérios que sustentam a
doutrina psicanalítica e que diferenciam
as práticas equivocadas e abusivas do
exercício sério da clínica. Porém, o que
é o fio determinante da prática analítica,
dada a diversidade de escolas e formas
de pensamento no campo deste saber? A
ética. A questão da ética em Psicanálise
trata-se de uma temática árdua do ponto
de vista intelectual. De acordo com Ocariz (2003), sustentada na discussão proposta por Lacan, não se trataria da ética
ligada à moral da religião, nem de uma
ética relacionada ao que uma sociedade
define, a partir de sua maioria, como
adequada. Aqui, trata-se de uma ética
do sujeito, em que o que estabelece um
limite entre as relações é o que se define
como uma “ética do privado”, se assim se
pode dizer, em que o limite do desejo do
sujeito é o desejo do outro. Enfim, tratase de uma leitura não moralista das condutas, mas da proposição de que existe
um limite dado ao sujeito e esse limite é
da ordem do respeito a uma modalidade
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009
Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise?
de laço social que permita subordinar a
pulsão de morte e manter a vida em sociedade com princípios de liberdade de
convivência e diferenças. Sendo assim,
trata-se de responsabilizar-se a ética
pelo desejo e suas consequências, afastando-se, peremptoriamente, de uma
posição narcisista primária. Trata-se da
ética de um limite, que é a barra do gozo,
que no fim das contas é o fundamento
da civilização, sem, no entanto, ser tomada como uma moral imposta. Como
foi afirmado, a questão concernente à
ética e à Psicanálise é complexa, se afasta bastante da ética da filosofia e das
discussões que tomam a ética e a moral
como equivalentes. O que é interessante
destacar é a necessária posição não moralista e universalista por parte de quem
exerce o oficio de analista no âmbito
penal (somente nele?), tendo em vista
que essas posições não só se afastam da
Psicanálise, mas também contribuem
para a estigmatização do sujeito infrator
e contribuem para a fantasia de que o
crime, a violência e a criminalidade não
são efeitos dos ordenamentos e discursos que regem cada conjunto social.
A busca por essa proposta de ética
é uma das respostas possíveis tanto para
tentar estabelecer o que é legítimo do
que não é, como para constituir o aceitável, o humano e razoável no laço social.
Nessa perspectiva, ainda não sabemos,
como agentes da prática psicanalítica,
onde esta deve estar diante destes sintomas contemporâneos. Mas sabemos
onde ela não deve estar, sob o risco de
perder sua ética que lhe é própria: nem
do lado do misticismo, nem dos discursos totalitários. A Psicanálise, como ela
mesma uma ética, também tem uma
finalidade terapêutica (se assim não
for, não há razão para sua existência) e,
consequentemente, política. Deverá ela
ceder às novas políticas hegemônicas de
mercado? Render-se à convocatória de
mais eficiência, de mais abrangência, de
pressa de “cura”? Ou se colocará como
problematizadora da própria cultura
que a criou e a convoca, incessantemente, a escutar o que há de selvagem desta
própria cultura? Essas respostas devem
ser construídas pela própria Psicanálise e seus representantes, dentro de um
diálogo interdisciplinar crítico e não
dogmático.
Keywords
Transgression; crime; neuroscience.
Abstract
This article addresses some issues developed by the flourishing of neuroscience, an
assumed consuming of psychoanalysis in
face of this revolution, articulating an epistemological position from both fields of
knowledge on the subject, contemporary
society and criminality. It discusses also
the construction an early “criminal” diagnostic and abundantly spread by the media
without empirical foundations, resulting in
a wrong perception of the criminal and builds
a “magical” representation of the psi area and
the way it works. Finally, it points to the difficulties of psychoanalysis in the face of contemporary needs and totalitarian speeches, both
mystical / religious as radical neuroscience,
indicating that ethics is the necessary way for
a reflection about the existential polices and
maintenance of the psi area as responsible for
spreading these practical in an implied way.
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Tramitação Recebido : 17/08/2009
Aprovado : 23/09/2009
Nome do autor principal: Julio Cesar
Diniz Hoenisch
Endereço : Avenida Adélia Franco, 3662
Cond. Moradas do Adriático, edf. Udine, ap. 504 - Aracaju/Se
Fone : (79) 3217 1381
E-mail : [email protected]
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009
Mecanismos oníricos e figuras de linguagem
Oniric mechanisms and figures of speech
Luís Maia1
Palavras-chave
Elaboração onírica, condensação, deslocamento, metáfora, metonímia.
Resumo
A partir do sonho de um paciente, o autor contesta, com base em Laplanche, a assimilação lacaniana
dos mecanismos oníricos, condensação e deslocamento, às figuras de linguagem metáfora e
metonímia. Em seguida, analisa o estatuto das metáforas do inconsciente enquanto “esquecidas” da
tensão semântica que lhes deu origem.
Depois de Lacan, pretende-se evidente a assimilação dos mecanismos oníricos,
condensação e deslocamento, às figuras de
linguagem metáfora e metonímia. A análise
de um sonho permite discutir esta suposta
evidência.
Era o meu terceiro ano de estágio com
Paulo Sette, no ambulatório de psiquiatria do
velho Pedro II, no Recife. O diretor de uma
escola agrícola do interior encaminhou para
atendimento um estudante com um quadro
depressivo-ansioso, no qual se destacava
uma dor de cabeça tão forte, que o impedia
de estudar. Discutido o caso e descartada a
possibilidade de um problema neurológico,
ele me foi encaminhado para que o atendesse em psicoterapia.
Num tom de voz lacrimoso, de quem
implorava por ajuda, começou por me pedir
desculpas porque ainda não tinha lido Freud.
Para o jovem intelectual que ele era, submeter-se a uma psicoterapia sem essa leitura
prévia parecia indesculpável. Não queria,
certamente, que o tomasse por um adolescente igual aos outros, igual aos colegas que
desprezava, porque “só pensavam em futebol e mulher”. Esses colegas a quem jamais
ocorreria a preocupação de me fazer saber,
através de uma confissão de ignorância, que
não ignoravam o que era psicanálise e quem
era Freud. Era um rapaz complicado!
Vinha de uma família muito pobre,
não conhecia o pai. A mãe era lavadeira, a
irmã prostituía-se. O diretor, tendo descoberto seu potencial, protegia-o na escola
agrícola, pedindo-lhe em troca uma espécie
de reforço junto aos colegas, esses colegas
que, “por só pensarem em futebol e mulher”,
fraquejavam nos estudos. Ora, a dor de cabeça impedia-o de exercer a função que lhe
tinha sido confiada e que lhe dava inegável
prestígio. Estava numa situação difícil.
Morando na escola, distante do Recife, só podia vir ao ambulatório uma vez por
semana. E, uma sessão atrás da outra, era
sempre a mesma queixa: as dores de cabeça
persistiam, não conseguia sequer estudar,
quanto mais ajudar os colegas. O diretor era
compreensivo, não lhe exigia o que ele não
podia, mas, para além do sofrimento físico,
atormentava-o, dizia-me em tom lamuriento,
a impossibilidade de cumprir suas funções.
As queixas em torno do sintoma ocupavam
boa parte da sessão e clamavam pela urgência
de uma ajuda que eu, partilhando da sua ansiedade, sentia-me incapaz de dar. Foi então
que me trouxe este sonho.
Viajava à Lua num foguete. Lá chegado,
saiu a passear com uma moça. E davam grandes pulos porque não tinha gravidade. Depois
voltou à Terra, mas a Terra estava deserta. Só
havia um russo, mas ele não falava russo.
1 Psicólogo formado pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestre pela Université Catholique de
Louvain, sócio fundador e atual presidente da Sociedade Psicanalítica da Paraíba.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.91-94– Novembro. 2009
91
Mecanismos oníricos e figuras de linguagem
Os americanos, que tinham partido atrasados na corrida espacial, acabavam de realizar o grande feito de colocar
dois homens na Lua. O mundo inteiro
vira, pela televisão, a imagem trêmula
desses primeiros passos. O contexto remetia, portanto, à “guerra fria”, à disputa
entre americanos e russos.
Uma marchinha de Carnaval contestava, porém, a pretensão dessa disputa, afirmando que “todos eles estão errados / a lua é dos namorados”. Como
todo o estudante de Física aprende, sendo menor a gravidade na Lua, um mesmo impulso permite pular mais alto que
na Terra. Apoiando-se na contestação
da marchinha e aproveitando o duplo
sentido do termo, lá se foi o rapaz dar
“grandes pulos” com uma moça na Lua,
já que não precisava sentir-se culpado
nem se censurar por “pensar em mulher”: isso “não tinha gravidade”.
Depois voltou à Terra, mas a Terra
estava deserta. Só havia um russo, mas
ele não falava russo.
Essa Terra deserta remetia à sua
solidão e ao seu desalento. Um único
homem, a esperança de um encontro e a
frustrante impossibilidade de se comunicar. Seu terapeuta, que tinha um sotaque característico, quando ia à praia e se
expunha ao sol, ficava alourado, ficava
ruço. Com esse ruço, tentara partilhar
o desejo de pular com uma moça, pular, talvez, uma marchinha de Carnaval,
enfim, “pular a cerca” do que se proibia.
Desejo que, por demais terreno, só podia ser encenado “no mundo da Lua”.
Mas – decepção! – não falava a língua
do ruço. Bem que ele avisara que ainda
não tinha lido Freud!
O sonho foi construído em cima
de algumas figuras de linguagem. As
metáforas da “guerra fria” entre americanos e russos para representar a relação
transferencial; da terra deserta para representar a solidão; do pular, no sentido
92
físico, para representar a superação de
obstáculos morais. O passear com uma
moça como metonímia da realização
sexual. A comunicação humana como
capacidade de falar uma língua e a Lua
como espaço da realização das fantasias
(por oposição à Terra, lugar da realidade – “pés na terra”), ao mesmo tempo,
metáforas e metonímias. Finalmente, a
polissemia do termo “gravidade” e a homofonia entre “ russo” e “ruço”.
Freud denominou este processo
de “processo primário” e caracterizou-o
metapsicologicamente, de um ponto de
vista tópico, como característico do inconsciente; do ponto de vista econômico,
como um processo pelo qual a energia
se desloca livremente de uma representação a outra, segundo os mecanismos
de condensação e de deslocamento; do
ponto de vista dinâmico, como processo de reinvestimento de representações
ligadas às experiências de satisfação,
constitutivas do desejo (LAPLANCHE;
PONTALIS, 1976).
No entanto, para Freud, o sonho
não se reduz ao inconsciente. O sonho, o
sintoma, a fantasia, o ato falho e o chiste
são, para ele, não “formações do inconsciente”, como pretende Lacan, mas “formações de compromisso” entre o desejo
inconsciente e as exigências defensivas.
Desde o início, Freud vê no sintoma esse
caráter bifronte: a histérica, que se rasga, realiza o desejo de se desnudar para
seduzir; mas, ao se rasgar, se descompõe, faz-se feia e, dessa maneira, punese pela realização do desejo proibido. Se
o sonho, a “formação de compromisso”
que aqui analisamos, fosse simplesmente uma “formação do inconsciente”, não
precisaria ser interpretado, seria transparente como os sonhos das crianças. O
processo primário limitado, neste caso,
à realização alucinatória do desejo, os
morangos negados durante o dia seriam
saboreados, à noite, em sonho.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.91-94 – Novembro. 2009
Mecanismos oníricos e figuras de linguagem
Qual, então, o sentido de representar o comércio sexual por um inocente
passeio na Lua e a rivalidade transferencial pela guerra fria entre americanos e
russos? Aqui, é preciso fazer intervir a
censura onírica, consequência do conflito inconsciente entre dois desejos:
o desejo proibido e o desejo narcísico,
metaforizado, no sonho, pelo desejo de
dormir. É a serviço desta censura onírica que entram em ação os mecanismos
de condensação e de deslocamento. Condensação e deslocamento que não devem
ser assimilados à metáfora e à metonímia, posto que não se configuram como
figuras de linguagem.
Tratando desta diferença, Laplanche (2007) começa por situar o problema no contexto das cadeias associativas
formadas por representações (de palavra
ou de coisa) ligadas ora por analogia ora
por contiguidade.
Numa relação de analogia, o vinho, por exemplo, pode ser associado
ao sol, porque ambos esquentam. O
calor é o elemento comum que liga
as duas representações. Uma relação
de contiguidade, por sua vez, comporta modalidades tão diversas quanto continente-conteúdo, parte-todo,
causa-efeito etc. Neste caso, o vinho,
por exemplo, pode ser associado ao
copo – beber um copo – como relação
conteúdo-continente.
Deslocamento e condensação
caracterizam, para Freud, o processo primário. O deslocamento acontece quando uma representação recebe
todo o investimento devido a uma outra, de modo que a segunda acaba por
substituir completamente a primeira.
Ora, a ligação entre as duas representações tanto pode ser por contiguidade
quanto por analogia. É deslocamento tanto a substituição do vinho pelo
copo, numa relação de contiguidade,
quanto a substituição do vinho pelo
sol, numa relação de analogia. No sonho analisado, o duplo sentido da palavra “gravidade” e a homofonia entre
“russo” e “ruço” são representaçõesencruzilhada que permitem apagar da
cena manifesta – uma viagem à Lua –
qualquer vestígio do conteúdo latente:
a realização do desejo proibido e do
desejo transferencial a que o sonho
se referia. Em vez disso, confunde-se
o deslocamento, mecanismo onírico,
com a metonímia, figura de linguagem, ao pretender que o deslocamento
se caracterize exclusivamente pela ligação de contiguidade.
A condensação acontece quando o elemento comum a duas cadeias
associativas, recebendo o investimento
devido às duas, condensando todo esse
investimento, vai ser encarregado de representá-las. Por exemplo, uma pessoa,
no sonho, pode ser identificada como
A, mas ter as características de B. Neste
caso, haverá que procurar o que é comum às duas. Também aqui, na condensação, a relação entre as representações
pode ser por contiguidade e não apenas
por analogia.
Condensação e deslocamento, mecanismos do processo primário, não correspondem, portanto, à metáfora e à metonímia. Mas o fato dos tipos de ligação que
caracterizam estas figuras de linguagem
– analogia e contiguidade – se verificarem
no sonho e nas demais formações de compromisso, não autoriza o uso dos termos
metáfora e metonímia para caracterizar o
funcionamento de um inconsciente estruturado como uma linguagem?
Para ficar no exemplo da metáfora, uma relação transferencial pode ser,
metaforicamente, uma guerra fria, mas,
literalmente, não o é. É nesta tensão semântica entre o sentido literal e o sentido metafórico, entre o ser e o não ser
da metáfora, que reside a sua força. Ora,
as metáforas do sonho e do inconsciente
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.91-94– Novembro. 2009
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Mecanismos oníricos e figuras de linguagem
em geral são metáforas que esqueceram
a tensão semântica que lhes deu origem.
Esquecidas do sentido literal, elas ainda
são metáforas?
Dois exemplos permitem esclarecer essa questão. Trata-se daquilo que o primeiro Freud denominou
simbolização histérica: o soldado luta
pela bandeira porque ela representa
a pátria; o cavaleiro bate-se pela luva
porque ela representa a dama. A bandeira é e não é a pátria; a luva é e não é
a dama. Histérico seria o soldado que
se batesse por uma bandeira que não
representasse mais nada, fosse apenas
um pedaço de pano. Histérico, o cavaleiro que lutasse por uma luva, inteiramente esquecido de sua dama. Essa
bandeira ainda seria uma metáfora da
pátria? Essa luva permaneceria uma
metonímia da dama?
Em favor da sua caracterização
como figuras de linguagem, no entanto, há que considerar que o processo analítico permite reconstituir a
relação de significação entre o sentido literal e o sentido metafórico (ou
metonímico), restabelecendo aquilo
que o processo primário apagou. Esta
possibilidade de reconstituição do
sentido, que se verifica na neurose,
parece, porém, irrevogavelmente perdida na psicose.
94
Keywords
Oniric elaboration; condensation; displacement; metaphor; metonymy.
Abstract
Based on a patient’s dream and taking the
Laplanche theoretical perspective, the author questions the lacanian assimilation of
oniric mechanisms – condensation and displacement – by the figures of speech known
as metaphor and metonymy. This is followed
by an analysis of the statute of metaphors of
the unconscious as “forgotten” links in the semantic tension, which originated them.
Referências
LAPLANCHE, J. Déplacement et condensation
chez Freud. In: COSTES, A. Lacan: Le fourvoiement linguistique. Paris : PUF, 2003. (republicado In: LAPLANCHE, J. Sexual – La sexulité
élargie au sens freudien. Paris : PUF, 2007, pp.
127-131).
LAPLANCHE, J. ; PONTALIS, J. B. Vocabulaire
de la psychanalyse. Paris : PUF, 1976.
Tramitação Recebido : 20/07/2009
Aprovado :27/08/2009
Nome : Luís Martinho Ferreira Maia
Endereço : Centro Jean Laplanche
– Psicanálise
Rua : Prof. Álvaro Carvalho, 320
– Tambaúzinho
CEP : 58042 – 010, João Pessoa/Pb
Fone : (83) 3224 2504
E-mail : [email protected]
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.91-94 – Novembro. 2009
Desafios da formação psicanalítica:
reflexões em torno da análise do analista
Psychoanalytical formation challengers: reflexions
about the analyst’s psychoanalysis
Marcelo Wanderley Bouwman1
Palavras-chave
Formação psicanalítica; análise do analista; técnica; transferência; desamparo; ética.
Resumo
O texto aborda a questão da formação psicanalítica a partir das ideias de Freud e Ferenczi sobre a
transferência e o trabalho do analista na situação analítica. Busca-se apreender a especificidade da
experiência psicanalítica e refletir sobre os destinos da transferência na análise do analista.
Esse processo, uma vez iniciado, segue seu próprio caminho
e não admite que lhe prescrevam nem sua direção nem a
sequência dos pontos que percorrerá.
Freud
A formação do analista pode ser entendida como um processo permanente,
envolvendo a relação dialética entre experiência e elaboração, nas esferas da autoanálise, da análise pessoal, da clínica, das supervisões, dos intercontroles, dos estudos teóricos e das produções escritas do analista.
No decorrer dessa trajetória, espera-se que
ocorram transformações na subjetividade
do analista no sentido da construção de um
estilo de existência (BIRMAN,1996) e, mais
especificamente, da constituição de um
novo lugar para ele na situação analítica.
O analista implicado em sua formação procura desenvolver uma visão pessoal
da clínica e da apropriação teórica e técnica
em questão, busca forjar para si uma linguagem para comunicar-se com seus pacientes, para transmitir suas experiências
e para articular os conceitos fundamentais
da psicanálise. A construção de um estilo é um trabalho contínuo realizado pela
mediação de sublimações que o sujeito vai
podendo regular de maneira singularizada
pelos registros ético e estético. A análise
pessoal é, sem dúvida, a condição privilegiada e indispensável para o analista sofrer
essas transformações.
Tornar-se analista é ocupar um novo
lugar na situação analítica. Trata-se, porém,
de um lugar fugidio, fugaz e transitório. “Um
lugar virtual, constantemente evanescente e
renascente, pleno de mobilidade através da
psique”. “Lugar neutro”, “isento de paixões”,
“livre de fascinação”, “capaz de hospedar
toda e qualquer transferência sem que nada
se fixe” e “capaz de produzir linguagem”
(MAGALHÃES, 1995, p.121).
Em outro sentido, “tornar-se analista
é, como Freud, descobrir a psicanálise por
conta própria” (ANZIEU, 2006, p.293), refazendo seu percurso, identificando-se com
ele e assimilando sua teoria e sua técnica. Ao
mesmo tempo, aceitando-o como origem,
mas recusando-o como mestre, trata-se de
procurar o que falta descobrir no campo dos
processos inconscientes.
Freud, ao longo de sua autoanálise,
através do trabalho do sonho e do luto, vai
criar o modelo para o tratamento dos sinto-
Psicanalista. Formado em Medicina pela Universidade Federal de Pernambuco, com título de especialista
em Clínica Médica. Membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco. Médico da Unidade de Saúde Mental
do Hospital Barão de Lucena / SUS-Pe
1
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.95-102 – Novembro. 2009
95
Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista
mas neuróticos. A autoanálise será o caminho recomendado para o analista obter uma “comunicação mais livre com o
próprio inconsciente”. Como diz Freud,
em 1910:
Nenhum psicanalista pode ir mais longe
do que aquilo que lhe permitem os seus
próprios complexos e as suas resistências interiores. Por isso exigimos que ele
comece a sua atividade por uma autoanálise e que continue a aprofundá-la enquanto aprende pela prática com os seus
pacientes (LAPLANCHE, 1992, p.46)
Depois, em 1917, Freud vai redirecionar a questão:
Começamos por aprender a psicanálise
em nós mesmos, pelo estudo da nossa
própria personalidade [...] Os progressos
neste caminho esbarram em limites definidos. Avançamos muito mais submetendo-nos à análise com um psicanalista
competente (LAPLANCHE, 1992, p.46)
Foi Ferenczi quem mais contribuiu para salientar a função da análise
na formação do analista, chegando a
designá-la como a segunda regra fundamental da psicanálise. Enquanto a regra
fundamental (o uso da associação livre
pelo paciente e da atenção flutuante pelo
analista) é uma recomendação técnica
que visa à instauração da situação analítica, a segunda regra é, em especial, uma
exigência ética, ressaltando a responsabilidade do analista na condução do
processo de seus pacientes.
Ferenczi, ao longo de sua trajetória
clínica, esboçará uma “metapsicologia
dos processos psíquicos do analista durante a análise”, revelando a complexidade do trabalho do analista. Em A técnica
psicanalítica (1919), ele descreveu as diferentes tarefas do analista durante cada
sessão - atenção flutuante, controle da
96
contratransferência e atividade intelectual - e comentou:
Essa oscilação permanente entre o livre
jogo da imaginação e o exame crítico
exige do psicanalista o que não é exigido
em nenhum outro domínio da terapêutica: uma liberdade e uma mobilidade dos
investimentos psíquicos, isentos de toda
inibição (p.367).
Em O problema do fim da análise
(1927), Ferenczi insistiu em que, para
exercer a sua função, é indispensável
para o analista uma análise plenamente
concluída, destacando o difícil lugar do
analista como objeto da transferência.
Ele falou “de uma tentativa inconsciente
do paciente de testar a solidez da paciência do analista a seu respeito, de maneira metódica e variada ao extremo, e isso
não uma, mas inúmeras vezes” (p.20),
submetendo o modo de reação do analista a uma observação extremamente
perspicaz e exigindo dele “uma perfomance quase sobre-humana” (p.21).
Em Elasticidade da técnica psicanalítica (1928), Ferenczi expressou a sua
preocupação com a saúde do analista
diante de seu ofício:
No decorrer de sua longa jornada de trabalho, [o analista] jamais pode abandonar-se
ao prazer de dar livre curso ao seu narcisismo e ao seu egoísmo, na realidade; e somente na fantasia, por breves momentos.
Não duvido de que tal sobrecarga - que, por
outra parte, quase nunca se encontra na
vida - exigirá cedo ou tarde a elaboração de
uma higiene particular do analista (p.35).
Ele designou como tato do analista a faculdade de “sentir com” o paciente, orientando o analista nas decisões
singulares da clínica: quando e como
deve fazer uma comunicação, como lidar com uma reação inesperada do pa-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.95-102 – Novembro. 2009
Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista
ciente, como discernir se o seu silêncio
favorece o livre curso das associações ou
se está sendo “uma tortura inútil” para o
seu parceiro de análise.
A elasticidade da técnica preconizada neste texto diz respeito à atitude do
analista de procurar colocar-se no diapasão afetivo do paciente, sentir com ele
todos os seus caprichos, todos os seus
humores, mas também ater-se com firmeza, até o fim, à posição analítica ditada pela experiência.
Em uma carta a Ferenczi, de
1928, Freud utilizou os termos “tato” e
“elasticidade”, demonstrando tratar-se
não somente de elementos da clínica
ferencziana:
Recomendações sobre a técnica, que escrevi há muito tempo, era essencialmente
de natureza negativa [...] Tudo aquilo de
positivo que alguém deveria fazer deixei
ao tato [...] o resultado foi que os analistas
obedientes não perceberam a elasticidade
das regras que propus e se submeteram a
elas como se fossem tabus (FIGUEIREDO, 2000, p.12-15).
O resultado ideal de uma análise
terminada seria precisamente essa elasticidade que a técnica exige do analista.
Portanto, a análise do analista, além de
responder a uma exigência ética, é condição necessária para uma boa técnica
analítica. Promove autoconhecimento e
autocontrole, como também desperta e
desenvolve qualidades analíticas no sujeito, tais como o tato e a elasticidade.
O aspecto do autoconhecimento é
bem evidenciado na metáfora da escultura utilizada por Freud (1905), inspirando-se em afirmações de Leonardo da
Vinci sobre as artes. Freud coloca que as
técnicas sugestivas atuam, como na pintura, per via di porre, depositando tintas
na tela psíquica do paciente, enquanto
a psicanálise não pretende acrescentar
nem introduzir nada de novo, mas antes
esculpir, per via di levare, o ser do sujeito, eliminando os seus sintomas e promovendo o acesso às suas verdades.
Já a formulação lacaniana de criar
um analista a partir do analisante privilegia o aspecto das qualidades analíticas
desenvolvidas durante a travessia de
uma análise. Para que isso aconteça, o
sujeito se identificaria, ao longo da análise, não com o analista, mas com o seu
trabalho de investigação.
Ferenczi, em 1928, antes de Lacan,
comentando a respeito da metapsicologia da técnica, acrescentou:
Uma verdadeira análise de caráter deve
pôr de lado, pelo menos passageiramente, toda espécie de superego, inclusive o
do analista [...] Somente essa espécie de
desconstrução do superego pode levar
a uma cura radical; os resultados que
consistirem apenas na substituição de
um superego por outro devem ainda ser
designados como transferenciais; não
correspondem certamente a um objetivo final de tratamento: desembaraçar-se
igualmente da transferência (p.34).
Kehl (2002) admite que, “num determinado ponto do percurso, possa ser
inevitável que o analista tente substituir
de um modo mais benigno a severidade
do supereu do paciente”, mas ressalta que
“esse lugar, de uma autoridade superegoica mais complacente, não é um lugar
onde o analista possa se instalar” (p.147).
O que está em questão no ato de
criar um analista, como destino de uma
análise, é a relação que o sujeito passa a
estabelecer com o seu desejo, uma relação de saber e de insuficiência:
[O analisante] deve deixar de indagar a
um Outro sobre quem ele é, ou sobre o
que ele deve fazer da vida [...] e tornar-se
autor de seu próprio destino [...] um au-
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Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista
tor bizarro, cuja obra é feita em parceria
com um desconhecido – a dimensão da
determinação inconsciente, que nenhuma análise tem o poder de desfazer. [O
sujeito torna-se mais inventivo] à medida
que aceita a condição de seu desamparo
fundamental: não existe saber prévio,
nem plano pré-traçado do qual ele possa
se valer para orientar sua vida. Nem mesmo o desejo de seus pais, a que o sujeito
não tem acesso. Nem mesmo os ideais
que os pais lhe legaram, pela via do supereu (KEHL, 2002, p.153).
Green (1988) afirma que “o objetivo da análise é preparar o paciente para
a autoanálise” e, baseando-se em Winnicott, diz que o sujeito deve
ser capaz de usar o analista e suas interpretações como objetos que servirão para
estabelecer a capacidade de estar só (sem
o analista); primeiro, na presença do analista e, depois, sem ele, como se ele estivesse potencialmente presente, quando
não está (p.302).
Diante dessa dialética entre ausência e presença, no confronto com o
desamparo fundamental, o sujeito conquista uma solidão que nos faz pensar
na Ausência de Carlos Drummond de
Andrade (2007, p.31):
Por muito tempo achei que a ausência é
falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações
alegres,
porque a ausência, essa ausência
assimilada,
ninguém a rouba mais de mim.
98
Na vigésima oitava conferência
introdutória sobre psicanálise, intitulada Terapia analítica, considerada uma
das mais completas exposições de Freud
(1917) sobre a teoria dos efeitos terapêuticos da psicanálise, outra vez, ele se
utiliza de uma analogia para diferenciar
o procedimento analítico de outros métodos terapêuticos. O tratamento hipnótico age como cosmético, procurando encobrir e dissimular algo existente
na vida mental, enquanto a psicanálise
busca expor e eliminar algo como na
cirurgia. Um aspecto fundamental é salientado: enquanto, em qualquer outro
tipo de tratamento sugestivo, a transferência é cuidadosamente preservada e
mantida intocada, na análise, a própria
transferência é sujeita a tratamento e
é dissecada em todas as formas sob as
quais aparece. No final, abordando os
preconceitos contra a terapia analítica,
Freud (1917) não esconde a sua posição
crítica e cautelosa:
Os senhores ouviram uma exposição
daquilo que realizamos com nossos pacientes, e podem formar seu próprio juízo quanto a saber se nossos esforços são
destinados a produzir qualquer prejuízo
duradouro. O mau uso da análise é possível, em diversos sentidos; em especial, a
transferência é um instrumento perigoso
nas mãos de um médico inescrupuloso.
Não há instrumento ou método médico
que esteja garantido contra mau uso; se
um bisturi não corta, tampouco pode ser
usado para curar (p.539).
Como escreveu Freud ao pastor
Pfister (BOKANOWSKI, 2002, p.44), a
transferência é uma cruz para o trabalho
analítico, mas ao mesmo tempo é uma
bênção, na medida em que permite a
descoberta, bem como a compreensão,
das fantasias inconscientes do indivíduo.
Ela é uma cruz a suportar, enquanto so-
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Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista
mente seu desdobramento e sua intensidade, quer a tenhamos por uma resistência ou por uma alavanca, fazem que
haja ou não análise efetiva. Pela transferência sobre o analista, os movimentos
psíquicos do paciente, os mais diversos,
os mais opostos, encontram uma saída,
atualizam-se. Como diz Pontalis (1998):
“Nossas memórias para serem vivas,
nossa psique, para ser animada, devem
se encarnar”(p.274).
A questão do amor de transferência considerada por Freud (1915) traz
a compreensão de que é absolutamente
proibido ao analista passar ao ato sexual.
É certo que, na fantasia ou no pensamento, o paciente nutre a esperança de uma
relação mais próxima com o analista,
como a única pessoa com quem ele pode
se entender. No entanto, o analista deve
sempre garantir a análise, não pode dar
respostas às necessidades do paciente.
Zygouris (1999) enfatiza que
Freud inventou uma relação totalmente
inédita, fundada sobre um interdito de
relação sexual entre dois estrangeiros. O
interdito que marca as relações não só
sexuais como as de uma maior proximidade entre analista e paciente é muito
mais radical que a reserva exigida em
outros campos, como a Medicina ou a
Educação.
A transferência de interdito evoca,
quando não suscita, a situação edípica: a criança no adulto irrompe e entra
em cena, frequentemente sem sabê-lo.
Cabe ao analista a tarefa de percebêlo e não se enganar de interlocutor em
suas intervenções. Ora, quando um analista, suposto adulto para seu paciente,
responde à demanda de amor de uma
“criança”, mesmo em se tratando de uma
pessoa adulta, através de uma passagem
ao ato, faz o que Ferenczi (1933) chamava de “confusão de línguas”. A verdade
é que não podemos subestimar a potência das pulsões: o desejo é contagioso,
e o analista nem sempre é o adulto que
imaginamos.
O amor que nasce na situação analítica é, desde o início, paradoxal: “Você
pode me amar, pode contar comigo, mas
te prometo que iremos nos separar um
dia”. O analista promete presença e permanência, mas na sua promessa se insinua, de modo latente, a certeza de uma
separação. A promessa de separação
tem a ver não apenas com as capacidades terapêuticas do analista, mas é o seu
próprio eixo ético.
Outro aspecto importante colocado por Freud é a questão do múltiplo no
interior do amor. No amor há pulsões
parciais, há sempre o amor mais a morte,
o amor mais o ódio, há sempre o amor
mais o negativo. Na posição analítica,
a síntese não é possível. Análise é estar
sempre em contato com o negativo e o
analista é aquele que ocupa a posição da
insistência do negativo (FÉDIDA,1988).
O trabalho do analista sobre a
transferência não é fácil, as dificuldades
são diversas, os obstáculos no caminho
da cura são imprevisíveis. A transferência pode ser vista como uma encruzilhada trágica (BIRMAN,2003, p.103), em
que o analista assume a função de coautor nos possíveis destinos do sujeito,
e o ato analítico reveste-se de uma dimensão vital de responsabilidade. Essa
tragicidade assume maiores proporções
quando se trata da análise do analista.
É justamente aí que se dá a experiência
de transmissão do saber psicanalítico.
O saber ensinado, os estudos teóricos, a
experiência das supervisões, passam necessariamente pela filtragem, libidinal e
mortífera, da transferência.
Nesse contexto, os problemas não
são apenas de ordem teórica e ética, mas
também de ordem política. Para Laplanche (1998), a análise didática é uma das
formas mais perniciosas de “psicanálise
por encomenda”, em que a instituição
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.95-102 – Novembro. 2009
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Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista
formula uma solicitação: a de que se fabrique, por meio da análise, uma personalidade de acordo com seus desejos. Ele
oferece uma interessante analogia: enquanto, na análise de crianças, a mãe algumas vezes fica na sala de espera e uma
análise de verdade só se instaura quando
-simbolicamente e mesmo realmente- lhe
fechamos a porta, na situação didática, a
mãe-instituição fica presente, simbolicamente, com todo o seu peso, na sala de
espera e não há negação capaz de fazer
com que não seja assim. Laplanche defende que a análise do analista não pode
ser senão um processo extraterritorial,
fora de todo controle institucional e livre
de todo fim profissional e ideológico. Na
verdade, toda análise é “formação” se for
um movimento pelo qual a pessoa, através das peripécias mais estranhas da viagem ao “estrangeiro”, encontra-se com o
que lhe é mais “próprio”.
Com relação à transferência na
análise do analista, Birman (2003) descreve duas posições subjetivas opostas
delineando diferentes destinos para o
sujeito em sua relação com o analista, com seu sistema de filiação e com a
psicanálise. Pela servidão transferencial,
o sujeito se submete aos percalços e desejos do analista, identificando-se com a
sua figura e com seu sistema de filiação.
Inscreve-se numa posição masoquista,
perdendo, com isso, a liberdade de dizer e de pensar. O que ocorre aqui é a
confluência da demanda de proteção do
analisante com a demanda de imortalização do analista. Em contrapartida, na
fidelidade transferencial, o sujeito pode
desferir fortes golpes na figura do analista, afrontando a angústia e o desamparo
que se coloca na cena da análise. Com
isso, existe a possibilidade de invenção
e de ruptura com as cadeias mortíferas
da repetição.
Aulagnier (1985) considera o papel do analista como possível indutor de
100
um estado passional no analisante, favorecendo uma deformação da transferência. A paixão de transferência resultante
é contraditória ao projeto analítico e é
caracterizada por uma atenuação máxima de todo sentimento de insatisfação e
de conflito na situação analítica. O estado de sofrimento só aparece em raros e
breves momentos. O estabelecimento de
uma relação aconflitual leva a uma exclusão da cena da análise de toda mobilização da agressividade do analisante e
de toda fantasmatização e interpretação
que possam servir a uma desidealização
do analista e da análise. Essa situação é
preservada graças a um constante trabalho de negação e de exclusão de qualquer pensamento que poderia explicitar
a patologia da relação e da paixão.
É evidente que a estrutura psíquica e o desejo inconsciente do analista
não são onipotentes com relação ao destino do seu parceiro de análise. Não basta que as suas aspirações visem suscitar
no sujeito um estado passional para que
este surja. Contudo, existindo tal desejo
no analista – desejo de alienar –, as chances de sua realização são muito grandes,
porque, nesse caso, o analista encontra,
paradoxalmente, seu melhor aliado no
amor de transferência.
Se o analista, ao concluir sua própria análise, preserva um investimento passional em seu próprio analista,
esta vivência transferencial tem grandes chances de se repetir naqueles que
analisará. A presença de resíduos transferenciais é uma consequência natural
da relação analítica. O problema surge
quando há preservação em bloco da paixão transferencial, manifestando-se pela
idealização de um pensamento, de uma
teoria ou de um poder.
O campo da formação do analista é marcado por inegável mal-estar. As
figuras da submissão, do domínio, da
alienação e da paixão pertencem a essa
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.95-102 – Novembro. 2009
Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista
estranha paisagem. A técnica criativa
promove espaço para a vida se instalar e
crescer. A ética do analista é a de Freud
(1919) quando ele diz:
Keywords
Psychoanalytical formation; analyst’s psychoanalysis; technique; transference; helplessness; ethics.
Recusamo-nos decididamente a transformar em propriedade nossa o paciente
que se entrega a nossas mãos em busca
de auxílio, a conformar o seu destino, impor-lhe nossos ideais e, com a soberba de
um Criador, modelá-lo à nossa imagem,
nisso encontrando prazer (p.424).
Abstract
The text approachs the question of psychoanalytical formation coming from Freud’s
and Ferenczi’s ideas about transference and
the analyst work in analytical situation.
The author tries to understand analytical
experience’s specificity and to reflect about
the aims of transference in the analyst’s
psychoanalysis.
A psicanálise não promete a cura,
não propõe modelos de conduta, nem
veicula certezas, apenas possibilita ao
sujeito conviver com seu intransponível desamparo, favorecendo a invenção
de um estilo de vida condizente com a
singularidade do seu desejo. De outra
parte, os impasses entre o desejo e a
lei, entre as pulsões e as exigências da
cultura, são estruturais e fonte permanente de mal-estar para os indivíduos.
Diante dessa situação, Freud se recusou a apontar saídas: cada um terá que
encontrar seu próprio caminho para
enfrentar a dureza da vida. Como um
autêntico pensador, Freud
(...) nos força a pensar e, quem sabe, a não
perder a esperança no deus Logos, ou no
divino Eros, ou qualquer outro nome com
o qual se queira caracterizar o esforço sobre-humano de construir e reconstruir um
mundo ético (DI MATTEO, 2006, p.65).
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102
Tramitação Recebido : 20/06/2009
Aprovado : 25/08/2009
Nome : Marcelo Wanderley Bouwman
Endereço : Praça Fleming, 117 / 1801,
Jaqueira
CEP : 52050 - 180, Recife/Pe
Fone : (81) 9975 8028
E-mail : [email protected]
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.95-102 – Novembro. 2009
A interpretação nos estudos psicanalíticos
The interpretation in psychoanalytic studies
Maria Beatriz Jacques Ramos1
Palavras-chave
Escuta analítica, interpretação, narcisismo, perversão.
Resumo
O tratamento psicanalítico é uma história de encontros. O analisando fala, oferece um tema; o
analista começa a escutar. A assimetria nem sempre é duradoura, pois a transferência traz histórias e
significações imaginárias. O processo analítico é complexo, é um emaranhado de ações, interações e
retroações. O analista pontua o discurso com interpretações, liga espaço e tempo, procura trabalhar
com a pulsão de morte. Para ilustrar essas reflexões, apresentamos uma história entre tantas outras,
que inquietam e possibilitam mudanças de vértice, de olhar, sobre a constituição e estruturação
psíquica como no caso do Guardião de Memórias.
Ao considerar a configuração do campo analítico, alguns fatores se destacam: o
discurso explícito do paciente; a configuração da percepção de si mesmo e das defesas;
a fantasia inconsciente, que inclui a transferência e a contratransferência; e a atenção
à narrativa do paciente, na qual aparecem
elementos que podem suscitar uma interpretação. Nesse paradigma, a escuta analítica descentra o discurso do paciente para
procurar um novo centro, que não está no
conteúdo latente atrás do manifesto, mas em
outro lugar.
O trabalho analítico caracteriza-se
por examinar as modalidades de relação do
paciente, que se repetem e são causadoras
de sofrimento, e por seguir o curso da associação livre. O foco de atenção do analista
pode concentrar-se na relação transferencial
e contratransferencial ou nos percursos do
inconsciente e do consciente, pois o analista
deve colocar-se como um copensador.
Escutando e falando com o paciente,
surgem as fantasias inconscientes, pensamentos, intuições que apontam a natureza
da situação e da emoção correspondente.
Sabemos que o paciente tem dificuldade de
falar de si mesmo e de vivências, por isso
é melhor “lavar os pratos em água fria no
lugar de água quente, contrariamente ao
que habitualmente se acredita”. (FABOZZI,
2006, p. 239)
Outro aspecto a ser considerado na
escuta analítica é a capacidade de deixar
fluir o desejo, o pensamento e as associações
do próprio analista. Na situação de análise, a
autenticidade passa por um contato afetivo e
um conhecimento, já que, “antes de curar a
ferida é necessário cuidar da faca”, da verdade desvelada que pode apresentar-se como
expressão de autoridade ou superioridade
moral.
A noção de campo analítico tenciona
a relação que se estabelece no aqui e agora, pois essa apresenta desafios teóricos e
clínicos, exigindo do analista um trabalho
psíquico contínuo, uma auto-observação
mais detida e sua inclusão mental na trama
das emoções e pensamentos que o paciente
traz.
O trabalho consiste na escuta de narrativas que encontram um aparato no setting
e no analista, predisposto à transformação
das mesmas. Se as coisas funcionam bem,
1 Psicanalista do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Doutora em Psicologia pela Faculdade de Psicologia da PUCRS. Professora da Faculdade de Educação da PUCRS.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009
103
A interpretação nos estudos psicanalíticos
as turbulências emocionais e sensoriais
são transformadas em imagens oníricas,
em pensamentos oníricos e, especialmente,
inicia-se o processo que permite a introjeção no paciente do método para digerir e
modificar suas narrações.
Spillius (2002) acredita que só pode
haver mudança psíquica se a interpretação
se dirigir para a experiência emocional do
paciente no setting. Assim, ele obterá insight, caso contrário será construído um
conhecimento teórico, mas o paciente não
mostrará nenhuma transformação.
Para Fabozzi (2006), a transferência
do paciente evolui independente da contratransferência do analista, está relacionada com a personalidade do analista e
com a atmosfera que introduz na forma de
trabalhar.
As funções da interpretação são múltiplas, como comunicar informações ao
paciente para compreendê-lo e para que se
sinta compreendido; transmitir indiretamente, por meio de hipóteses, as funções
da identificação, contenção, tolerância, atribuir um significado ao que ocorre em cada
sessão; captar e modificar as angústias, as
fantasias inconscientes para assim favorecer a integração psíquica, a visão da realidade interna e externa.
Passado e presente precisam voltar a
dialogar, assim como a realidade emocional
e a simbólica. Cada história clínica reflete
a vivência do analista, um modo de estar
consigo mesmo para estar com o paciente.
Na clínica, nascem a teoria e o analista, o
reflects back, o que reflete a espinha dorsal
na comunicação do paciente.
A transferência, ou a interpretação da
transferência, é o caminho da mudança psíquica. A transferência do mundo interno para
a situação analítica é o que McDougall (1991)
denominou Teatros do Corpo, expressando
tudo o que o paciente diz, mostra e age. O
paciente não transfere sempre o mesmo, por
isso não cabem conceitos como transferências
paternas e maternas.
104
O analista deve examinar o que é
transferido; muitas vezes o que se transfere são uma função mental ou um papel no
sistema de defesas do paciente, mantendo a
patologia inalterada. Além disso, o analista
precisa acompanhar a posição psíquica do
paciente, pois isso definirá o conteúdo da
transferência e seu contexto intrapsíquico.
A linguagem do paciente e do analista
representa mais do que uma forma de comunicação, é uma forma de agir um sobre o
outro. A situação analítica e a regra fundamental – a livre associação e a atenção flutuante – produzem desfraldar da palavra.
Na associação livre, produz-se um
descolamento da imagem, da fala, incluindo diversas imagens caleidoscópicas, cujas
combinações possíveis se multiplicam em
ritmo, cadência e intensidade. A excitação
explícita no gaguejar de uma palavra ou um
sentido duvidoso de uma frase mal construída, dá mostra de tonalidades diferentes
às figuras que passam na escuta da atenção
flutuante. O paciente, ao ser escutado pelo
analista, também se escuta. A imagem retorna. Uma imagem que pode desconstruir
o discurso e adquirir nitidez no momento
da interpretação.
É na palavra que a pulsão insiste.
Pode ser a palavra não falada, mas que é
evocada na compulsão à repetição. Ao seguir as repetições, acompanhamos as vicissitudes da pulsão para rastrear as pegadas
das identificações.
DE QUE LUGAR O ANALISTA
ESCUTA?
Do inesperado, do surpreendente e da
transferência. O inconsciente está no analista e no analisando como um depósito ou
uma panela de pulsões. Na transferência, há
um rompimento da objetivação, pois inclui
uma montagem entre analisando e analista.
Um lugar onde os dois estão incluídos no
mesmo campo, sem simetria ou igualdade
de funções. O analisando se dirige ao ana-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009
A interpretação nos estudos psicanalíticos
lista como sendo o único destinatário de
sua palavra, numa tentativa de articular seu
desejo a uma presença concreta.
O analista mantém a transferência
sem confundir-se com ela, remetendo o
sujeito aos fundamentos infantis do amor.
Isso é possível com a renúncia narcísica do
analista, pois não pode ocupar o lugar de
amo do desejo, nem converter a análise em
sugestão; nem se oferecer como ideal a ser
imitado, acreditando numa neutralidade
absoluta, desconhecendo os obstáculos da
escuta.
Para Stein (1971), “As sessões do paciente têm mais possibilidades de converter-se na sua psicanálise, se são para o seu
analista, o lugar privilegiado de continuação da sua análise” (p.364). Por isso, a análise pessoal do analista é fundamental.
Reconhecer a possibilidade de escuta
representa renunciar ao desejo pessoal. A
escuta do analisando traz à cena uma história. Mas qual história? Possivelmente não é
a história factual, mas a história constituída
em suas fantasias. Fantasias que surgem na
análise do sintoma e do seu deciframento,
já que a causa do sintoma nem sempre está
no passado. A causa do sintoma pode estar
no presente, na inscrição do presente, que
na análise atua como transferência. A construção de fantasias é uma teoria que, tal
como um mito, tende a responder aos enigmas que o sujeito se coloca. Por isso, tudo
pode se complicar, pois o analista também
tem suas fantasias, sua teoria, sua história,
assim como a história e o presente do movimento psicanalítico, mas, também, pode
oferecer possibilidades ao analista em relação à escuta ou pode limitá-la. Suas fantasias podem limitar a escuta, pois têm pontos cegos. As teorias que entram na sessão,
para serem aplicadas ou confirmadas, obstaculizando as possibilidades do analisando
de construir uma teoria pessoal, uma teoria
sobre sua história.
A seguir, apresentamos uma digressão
literária, ilustrando com um caso clínico.
O GUARDIÃO DE MEMÓRIAS
Este é o título do livro escrito por
Kim Edwards, em 2007, que descreve uma
passagem das vidas de alguns personagens.
Na introdução ele situa o leitor com o enredo da história fictícia:
Casados há poucos anos, Norah e David
esperavam felizes a chegada de seu primeiro filho. Mas a alegria duraria pouco. O que
deveria ser uma boa notícia transforma-se
num terrível pesadelo. Norah dá à luz duas
crianças: Paul, um menino saudável, e Phoebes, portadora da síndrome de Down. David
lembra-se da complicada infância ao lado de
uma irmã com a mesma doença. Desejando
ardentemente poupar a esposa e a si mesmo
desse sofrimento, ele decide expulsar a filha
de suas vidas. Mas o preço dessa decisão acaba sendo alto demais. Pouco a pouco a culpa corrói o núcleo da família, e durante os
25 anos seguintes cada um vai lentamente
se fechando em torno de suas próprias angústias. Atormentado pelo arrependimento,
David fica obcecado por fotografar imagens
de crianças. Norah, cada vez mais afastada
da vida do marido, entrega-se ao álcool e a
pequenas infidelidades, buscando em vão
distrair-se da avassaladora dor da perda.
Enquanto isso, Paul sente na pele a rejeição
dos pais, que parecem mais envolvidos na
suposta morte da irmã do que na sua vida.
Em outra cidade, porém Phoebes cresce feliz
e cercada de cuidados pela mãe adotiva, que
luta para dar à menina uma vida digna e livre
de preconceitos.
O enredo dessa história é a rejeição,
a solidão, a dor e o luto. Recebi esse livro
de um paciente, como forma de pagamento
das sessões (além desse, foram mais três),
depois de recombinações do contrato de
trabalho, porque ficou desempregado durante um mês e passou a vender livros de
ficção. Ele deu as obras de que dispunha e
percebo que essa foi endereçada a mim.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009
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A interpretação nos estudos psicanalíticos
Assim transcorre uma análise!
De Narciso a Édipo, da transferência a
contratransferência.
Pablo, nome fictício, é solteiro, tem
vinte e cinco anos, mora com o pai desde os
três. É filho do segundo casamento da mãe,
o filho caçula. Quando os pais moravam
juntos, ele acompanhava o pai no trabalho.
Não se lembra da mãe como uma pessoa
sustentadora e confiável.
Depois de alguns anos, os pais se separaram. O pai desconfiava da fidelidade da
mulher, tinham brigas e discussões. A mãe
ficou com os dois filhos do primeiro casamento. Pablo foi embora com o pai, sem
oposição materna. Independente da decisão do pai salienta que jamais ficaria com
ela, uma mulher fria, desligada e distante. Apresenta-se como heterossexual, teve
duas namoradas. Elas tinham problemas
familiares, com carências que ele não conseguia tolerar. Ficou com Andréa três anos
e terminou o namoro quando percebeu que
não sentia saudades dela. Lembrava-se de
encontrá-la nos fins de semana para um
contato sexual.
Nas lembranças infantis, conta que
ficava na casa de famílias para que o pai
pudesse trabalhar e dos jogos sexuais com
crianças, que traziam alívio e satisfação. Sua
primeira paixão, com cinco anos, foi por
uma menina da mesma idade. Dos cinco
aos vinte anos até sentiu algo com a mesma intensidade, mas depois isso não mais
aconteceu. Na adolescência, assistia a filmes pornográficos, masturbava-se até ficar
esgotado e pensava em relações homossexuais. Achava-se feio, tímido e inseguro.
Apanhava dos colegas da escola.
No início do tratamento, frequentava
parques e banheiros públicos para encontros com homens desconhecidos. Seguia a
vida acompanhado de Hades com a sensação de estar só, perdido, caminhando para
o fundo do poço. Na mitologia grega, Hades
é o deus do submundo e das riquezas dos
mortos e governa os subterrâneos da Terra.
106
O desejo e a exposição pública eram
esporádicos, provocados pelo vazio, pela
constatação de não contar com ninguém,
não ter garantias. Comenta que gosta de
olhar mulheres na rua e quer uma mulher
que possa compreendê-lo sem exigências.
Depois de dois anos de tratamento,
não se expõe sexualmente, mas a masturbação é uma compulsão que aparece de
tempos em tempos. Às vezes, quando vê
uma mulher bonita, imagina histórias, conversas, encontros, que nunca acontecerão.
Atualmente está ficando com uma colega,
inclusive nos fins de semana.
Não se acha incapaz, mas lhe faltam
palavras quando está perto de alguém que
admira, principalmente se a pessoa é bonita, vivaz, inteligente.
O vínculo com o pai é escasso. Ele é
muito brigão, autoritário, reclama de tudo,
um ressentido. Desde os dezesseis anos não
passam juntos as comemorações no final do
ano, brigam constantemente. Ele é um homem queixoso e irritadiço, tem problemas na
próstata e faz tratamento. Lembra que chorou uma vez quando o viu deitado na maca
de um hospital, gritando de dor, sem atendimento médico, porque não tem plano de
saúde. Quando adoecem, recorrem a postos
de saúde ou ao Pronto Socorro Municipal.
O guardião de memórias, expressão
que uso quando penso nesse paciente, tem
alguns amigos na vizinhança, colegas de
faculdade, com quem sai algumas vezes.
Frequenta um grupo de jovens, trabalha
num projeto de ensino não formal, acompanhando mães e crianças com vulnerabilidade social. Foi diagnosticado com déficit
de atenção e depressão por um psiquiatra,
toma medicações.
A mãe mora no interior. Pablo vai
visitá-la uma vez por ano, em seu aniversário,
por pressão dos amigos. Ela conta intimidades
com seus namorados, o modo como os homens a querem e a chamam de gostosa. É diabética, mas adora fazer doces para os namorados. Doces que ele tem que experimentar.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009
A interpretação nos estudos psicanalíticos
A aparência de Pablo é frágil. Percebemos sua idealização e ironia quando diz que
gostaria que seu quarto fosse como nossa sala
de trabalho, arrumada e organizada, já que
não consegue se livrar dos papéis, livros e roupas espalhados no chão. Às vezes, chama-me
de Dom Quixote e denomina-se de Sancho
Pança. Quem é Dom Quixote, Sancho Pança e onde fica a Dulcineia? Inveja e projeção
numa aparente passividade e polidez.
Fixação, frustração, carência e privação. Como ressignificar sua história? Uma
história com desconhecidos, com momentos de medo, de rompimento e perdas, de
choros incontroláveis, pois não sabia se o
pai voltaria para buscá-lo nas casas em que
ficava quando ele saía para trabalhar.
Hornstein (2008) comenta que a história pessoal não é linear. Supõe limites
entre a história recente e a história infantil. “Ela conhece turbulências, bifurcações,
fases móveis, estágios. São um conjunto de
devires confrontado com risco, incertezas
que envolvem evoluções, progressões, regressões e rupturas.” (p.53).
A compulsão à repetição é uma simbolização de que se está no meio do caminho entre o repetido e a criação. Criação de
um Eu, de um projeto futuro que não se dobre pela nostalgia do que foi perdido.
Para Ferro (2008), as homossexualidades são campos que precisam ser arados.
Há uma forma de manifestação que serve
para aplacar uma parte de si mesmo, temida
e violenta, impossível de ser contida, que é
sedada com a masturbação, ou com a sodomização, por isso é projetada no outro. Há
um funcionamento masculino no mundo
interno que necessita ser aplacado, cindido,
como meio de lidar com as defesas primitivas e administrá-las.
Também há outra forma que remete a
um aconchego defensivo, desde um autoerotismo, que nega a ausência e a alteridade,
até modalidades muito excitadas, acompanhadas por um cortejo de angústia, culpa
e recriminação, que funcionam como uma
droga, um antidepressivo, uma forma de
eliminar a angústia.
Outra classe se refere à homossexualidade do tipo feminino que comporta uma
harmonia indiferenciada, funcionando
como uma barreira em relação às emoções
primitivas, protoemoções, temidas e violentas, que precisam ser amortecidas.
Em termos de funcionamento mental, Ferro (2008) salienta que pode haver
uma homossexualidade masculina e uma
homossexualidade feminina, tanto em
homens como em mulheres. Nesse caso,
é preciso administrar os hiperconteúdos
mentais, em relação aos quais nunca houve
suficiente continência.
O que falta para o guardador de memórias? Alguém que faça um papel perdido, que exerça uma função deteriorada. Alguém que sinta o que sente e transforme em
linguagem o que precisa, em palavra o que
não foi nomeado. Penso que esse é o lugar
do analista, o lugar em que sou colocada
como analista em fantasia.
Na situação transferencial, percebemos a parte primitiva e cindida, temida e
difícil de ser contida, que depois é encenada
fora da sessão.
Numa das sessões, apontamos para
a situação de adoção, a partir do livro que
nos ofereceu. A maneira como queria ser
adotado por nós para suprir as demandas
insatisfeitas na relação com seus pais. Ele
silencia e depois comenta que nada escapa
dos psicanalistas.
As relações parentais são frágeis, não
consegue conviver com eles, os pais, nem exprimir sua raiva. Vive ruminando um bico
molhado na pimenta e compulsivamente
experimenta vivências catastróficas. Busca
aconchego no próprio corpo ou no corpo
do outro, atua para fugir da depressão.
A parte narcisista assume o controle
da parte saudável da personalidade e promove vínculos perversos, como um escape
da angústia depressiva. Os atos perversos
ilustram o discurso de um sujeito dividi-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009
107
A interpretação nos estudos psicanalíticos
do no apego com o outro; conectado com
o objeto da pulsão, causa do desejo (objeto
a), representante do significante mestre, a
metáfora paterna.
Nesse caso, a análise parece constituir-se numa experiência de significação
desvelando os sintomas trocadilhos, que
estão na base do jogo de significantes. O inconsciente aponta os significantes, segundo
as leis da linguagem, que deslizam sem cessar, que não se detém em significados.
O significante como causa de gozo nos mostra
que a linguagem traça as vias do gozo, promove seus caminhos, suas ruas e avenidas, seus
compartimentos e comportas favorecendo
umas, dificultando outras e impossibilitando
ainda outras (QUINET, 2003, p. 143).
Atualmente, sua atividade masturbatória diminuiu. Já não representa uma posição excitante e antidepressiva, uma espécie
de caleidocóspio de possibilidades com um
divisor comum, uma mania para afastar o
medo, o colapso.
Aí reside o trabalho analítico: captar a
função da homossexualidade no funcionamento mental do paciente para que pense
nos enganos construídos para suprimir o
impacto dos sofrimentos emocionais.
Assim como há muitas homossexualidades, há diversas manifestações das
depressões. Em algumas, a perda do outro
ritualiza o desamparo infantil. Um desamparo ameaçador, pois o outro não está à disposição do sujeito, mas permanece como
uma ausência onipresente.
Na depressão, o amor por si mesmo
é empobrecido, esvaziado de sentido e de
metas futuras. A perda não elaborada mobiliza a agressividade contra o objeto e contra si mesmo. As marcas afetivas preservam
a memória do outro no psiquismo, movimentam as pulsões, a representação e a palavra (HORNSTEIN, 2008).
A história desse rapaz configura-se em
diferentes lugares com perdas e separações.
108
Suas vivências de satisfação e de dor apontam uma forma de organização psíquica na
qual a fantasia insiste, a palavra é um interdito como o gozo tecido numa linguagem na
qual o desejo busca formas para se encarnar
num corpo que precisa permanecer infantil.
A falta de investimento parental, o amor não
correspondido, reduziu seu amor próprio. O
que predominou foi a ferida narcísica, a agressividade contra o objeto e contra si mesmo.
O guardião de memórias evidencia a
dor da sobrevivência não assegurada. Clama pelo direito de existir, porque os outros
não ofereceram um espaço e tempo regados
na ilusão, criatividade e simbolização. Sua
vida é árida com alterações de humor, atuação e impulsividade.
Por vezes, as escolhas amorosas representam uma repetição das ligações infantis, uma manutenção do superego severo
e punitivo, não permitindo o investimento
afetivo de cuidar de si mesmo sem atacar o
presente e o futuro numa constante agressão e busca de punição.
O superego denota uma realidade
complexa, distingue o bem e o mau, culpabiliza. O superego é um cortejo de autoacusações e o ideal do ego fica perdido, abalando o narcisismo. Para se defender da cólera
do superego, recorre à transgressão, mostra
o desejo extraviado, desorientado, a fraqueza e a perda de si mesmo.
Isso o leva à transgressão, ao desafio,
à indiferenciação, pois a discriminação entre a fantasia e a realidade implica reconhecimento do sujeito como ator de sua ação.
Na capacidade de reconhecimento, de
ver o que o outro não vê, o trabalho analítico
precisa ser retomado, o inconsciente, como
uma verdadeira essência, precisa ser reunido e separado, vivenciado nas narrativas que
aludem a uma parte de si mesmo, uma parte
que Pablo coloca em contato comigo.
Nessa perspectiva, sua fala é o dito e
o mal-dito, racionalização e negação, um
cenário do mundo interno. Desse modo, a
interpretação pode assegurar percurso da
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009
A interpretação nos estudos psicanalíticos
simbolização num movimento constante
para produzir pensamentos.
Na linguagem saturada de subentendidos e de tropeços nos atos e nas palavras,
nas rupturas da ordem do recalcado, procuramos questões do presente para apontar
seu estilo de vida e o futuro.
Acreditamos que, para interpretar o
material do paciente, é necessário descobrir
seu significado e, principalmente, o significado que tem para ele, pois assim poderá
sentir-se sustentado afetiva e emocionalmente. A realidade psíquica não pode ser
confundida com a realidade material. Tem
a ver com o inconsciente, com a realidade
interna subjetiva.
É na capacidade de identificação, de
adaptação do analista às necessidades do
paciente, que pode ser resumida a idéia de
colocar-se no lugar do outro, de construir
a confiabilidade no objeto. O resultado do
tratamento analítico consiste em criar no
interior da comunicação um espaço potencial, para que a análise tenha lugar.
As manifestações narcísicas podem ser
consideradas a partir do modelo continenteconteúdo de Bion (GRINBERG, 1991). A definição do narcisismo é inseparável de uma
definição do Eu, uma dificuldade específica
de elaboração edipiana, que se contrapõe
à modalidade de relação dual e fusional de
ideias de um fora. Entendemos que o processo de crescimento e de sentimento de apropriação do mundo suscita as angústias e as
imagens espaçotemporais-distorcidas.
Assim como a existência do eu requer
o outro, pois ambos se constituem numa interação, num vínculo influenciado por um
mundo interno e um mundo externo a imagem interna é apreendida nas identificações
com os outros, na progressiva internalização dos relacionamentos objetais, traduzidos em diferentes linguagens, infligindo
uma marca no narcisismo.
É preciso fazer-se amar pelos outros,
agradá-los, para conquistar seu amor. Assim
começa a incompletude, o desejo de recupe-
rar a perfeição narcísica, o desejo insatisfeito,
o desejo incestuoso (NASIO, 1999).
Green (1988) usa a expressão Narcisismo de vida, narcisismo de morte, título
de uma das suas obras, para ilustrar o que
denomina de processos de ligação e desligamento psíquico. O principal objetivo da
pulsão de vida é a função objetalizante, criar
uma relação com o objeto, mas também
transformar estruturas em objetos, mesmo
quando esses não estão mais em questão.
A pulsão de morte tem como objetivo
exercer uma função desobjetalizante com
o desligamento. O ataque aos vínculos não
ocorre apenas contra a relação com o outro,
mas contra o ego, contra a capacidade de
buscar ligações.
O discurso do narcisista é recitativo
e narrativo, como se a simples desconexão da linguagem tivesse o poder de destruir a imagem do self, perseguida pelo
despedaçamento.
A frieza e a indiferença tornam-se
escudos para proteger o self do narcisista e
afastá-lo da angústia de intrusão.
Diria inclusive que o que caracteriza a estrutura narcisista é este ponto fraco na armadura ou no brasão. Ponto rapidamente percebido pelo objeto, que sofre por se ver mantido
assim à distância, excluído da relação de proximidade, congelado pelo sujeito narcisista
(GREEN, 1988, p. 178).
A imagem narcísica é uma das condições do aparecimento do desejo e do reconhecimento. Compõe-se de um conjunto
de representações que circulam em torno
de uma falta. Uma falta que permanentemente busca a satisfação, o prazer.
É na manifestação do narcisismo que
emerge a identidade inscrita ou marcada
pelo conhecimento construído com o outro, na clínica.
O narcisismo altera a capacidade de pensar sobre as experiências, pois está relacionado
com um ideal de bem-estar e de autoestima.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009
109
A interpretação nos estudos psicanalíticos
Pensamos que Pablo está entre o vivido e a reconstrução. Entre o reencontro
com o objeto fantasiado e o objeto real.
Para Hornstein (2008), no narcisista
há um longo caminho até a aceitação de
si mesmo e de um vínculo com o outro.
Assim como um compromisso entre o que
permanece e o que muda, a compulsão à
repetição é uma simbolização que se repete. O inconsciente não é só o reprimido,
também é o repressor ao desvelar as pulsões e seus derivados.
Ao aceitar uma pessoa como paciente
não se faz apenas uma escolha. Na clínica
a escuta põe em suspensão os interesses
teóricos em prol da singularidade e do tratamento, em benefício da construção de
pensamentos. Por isso, pensamos que permanecer ensimesmado, com um sistema
defensivo enraizado em si mesmo, é o patrimônio das memórias herdadas desse jovem
guardião, que tem muito para sentir e tecer
internamente.
Analisar é uma árdua tarefa. Nesse
caso, requer a elucidação da função teórica
em relação à escuta e ao poder da agressividade no movimento associativo do paciente. O trabalho analítico nos confronta com
a violência secundária quando não percebemos a capacidade de transformação do
paciente, quando desconhecemos os enigmas que temos para elucidar: os retalhos de
uma história lembrada.
Keywords
Analytical listening; interpretation; narcissism;
perversion.
Abstract
The psychoanalytic treatment is a history of
meetings. Analysing speech, it offers a subject; the
analyst begins to listen. The asymmetry not always is lasting, so the transfer brings histories and
imaginary significations. The analytical process is
complex, it is a tangle of actions, interactions and
110
reciprocal actions. The analyst punctuates the
speech with interpretations, tie space and time,
it tries to cancel the work of the impulse death.
To illustrate these reflections I present a history
between so many people others, which worry and
make possible changes of apex, of looking, on the
constitution and psychological structuring I eat
in case of the Guardian of Memories.
Referências
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STEIN, C.“L’enfant imaginaire”, Paris : Denoel,
1971.
Tramitação Recebido : 16/07/2009
Aprovado : 18/08/2009
Nome : Maria Beatriz Jacques Ramos
Endereço : Av. Protásio Alves, 1981/309
CEP : 90410 – 002, Porto Alegre/RS
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Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009
Transamérica:
na encruzilhada da sexuação
Transamerica: on the crossroads to sexuation
Marli Piva Monteiro1.
Palavras-chave
Transexualismo; travestismo; homossexualismo; Nome-do-Pai; pênis; castração; falo.
Resumo
O conflito que envolve a decisão de um transexual entre realizar a cirurgia para mudar de sexo ou
cuidar de um filho recém-descoberto é o ponto principal do trabalho. O diagnóstico diferencial e
os problemas do transexualismo são abordados nos aspectos psicanalíticos tomando como pano de
fundo o filme Transamérica.
A condição para que alguma coisa seja
considerada cômica é que haja duas pessoas
envolvidas – uma, a que constata o cômico,
e a outra, na qual o cômico é constatado.
Há formas variadas do cômico desde
o ingênuo, que é quase natural porque há
uma inibição inexistente no indivíduo no
qual é constatado, o non sense, o absurdo e
nas relações humanas nos movimentos, gestos, modos, atitudes e traços de caráter. Por
isso é possível tornar a si próprio cômico em
relação a outras pessoas, para diverti-las e
divertir-se, em situações como disfarces, caricaturas, desmascaramentos, paródias, imitações e o travestismo. Mas pode-se utilizar
também o cômico para tornar uma pessoa
ou situação desprezível, privá-la de reivindicações e autoridade.
No entanto a própria comicidade tem
sempre seu aspecto trágico como bem assinalou o compositor Billy Blanco quando
disse em uma de suas canções: “O que dá
pra rir dá pra chorar, questão só de pesos e
medidas...”
Acho que com este prólogo já vai justificada a escolha do filme Transamérica, sua
ligação com esta jornada e, de quebra, um
sinal de que a nossa música pode ser veículo
para estudar psicanálise.
1
O filme surgiu no mesmo período em
que outros filmes com temas bem próximos
começaram a ser explorados como O segredo de Brokeback Mountain e Capote.
Duncan Tucker (2005), diretor e roteirista estreante foi instigado a fazer o filme
após uma conversa com a atriz transexual,
Katherine Cornella com a qual dividiu uma
casa durante quatro meses sem perceber que
se tratava de um transexual.
Aparece a película como despretensiosa comédia que, no entanto, revelou Felicity Huffman como uma grande estrela, que
convence no papel e foi indicada ao prêmio
máximo de Hollywood. Aliás, outra indicação para o Oscar tornou o filme famoso, a de
melhor música.
Bree (Sabrine Bree Osbourne) seria
uma pálida caricatura não fosse a excelente performance de Felicity. Dado curioso
dos bastidores é que Huffman apelidou de
“Andy” a prótese peniana que usou durantes
as filmagens.
O transexualismo, tema principal do
filme, foi assim designado por um americano
chamado Harry Benjamin nos anos 50, mas
suas origens remontam tempos mais antigos.
Antes do Império Romano, não há
referências registradas sobre homens que
Médica graduada pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Pós- graduada em Tradução pela UFBA. Membro
efetivo do Círculo Psicanalítico da Bahia.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.111-116 – Novembro. 2009
111
Transamérica: na encruzilhada da sexuação
viviam como mulheres ou vice-versa.
O filósofo judeu, Filo, morador de Alexandria no século I d.C. é o primeiro a
destacar homens travestidos e vivendo
como mulheres, os quais eram emasculados, tiravam-lhes o pênis. Esses
homens eram escravos e depois utilizados como guardiões dos leitos de seus
senhores – eram os famosos eunucos.
O mesmo procedimento foi também
usado, anos mais tarde, para que se produzissem cantores líricos a exemplo do
famigerado Farinelli, que foi por sua vez
tema de um filme.
Muitos imperadores romanos tinham características efeminadas e se
travestiam. O mais célebre caso dentre
eles é o de Nero, que, após chutar a esposa, Pompéia, que estava grávida, acabou matando-a e depois, movido pelos
remorsos, resolveu procurar alguém
igual a ela para redimir-se. Encontrou a
semelhança num escravo, Sporus e contratou seus cirurgiões para transformálo em mulher e casou-se com ele vestido
de noiva e com direito a enxoval. Um
outro imperador romano, Heliogábalo,
casou-se formalmente com um escravo
de avantajado físico e adotou perante ele
o papel de esposa, oferecendo grandes
somas em dinheiro ao cirurgião que o
equipasse com uma genitália feminina.
Há histórias, não confirmadas, de
que o papa João VIII, nomeado em 885,
era mulher travestida de homem e que
seu nome de origem era Giliberta que
depois mudou para “John Anglicus” e
foi papa por dois anos.
Existem também referências
(Vieira 2000) de que, no meio médico
medieval, havia uma mulher formada
na Escola de Medicina de Salerno, chamada Trotula, que teria escrito tratados
112
de cosmetologia. Cogita-se que Trotula era homem e se travestia para poder
tratar das mulheres, ofício proibido aos
homens de então.
Em épocas posteriores, encontramos o célebre caso de Chevalier d`Eon,
que vivia na França e ninguém sabia
se era homem ou mulher; considerado
rival de Madame Pompadour, acabou
como espião de Luis XV na corte da
Rússia. Em alguns períodos parecia mulher em outros era homem e só no dia
de sua morte descobriu-se que era um
homem. No século XV, num povoado de
Champignon, surgiu uma mulher que se
apresentou como homem, chegando a
casar-se duas vezes porque sua primeira
mulher morrera. O estranho é que nenhuma das duas esposas jamais se queixou do seu desempenho sexual. Ela possuía um pênis artificial que ela mesma
fabricara e com o qual praticava o coito
com as mulheres.
Millot (1988) chama a atenção
para a importância do diagnóstico diferencial. O diagnóstico diferencial do
transexualismo é com o travestismo e o
homossexualismo. O travestismo constitui o uso de roupas do sexo contrário.
O travesti, porém, experimenta prazer
erótico ao vestir-se dessa forma enquanto o transexual sente-se como se fosse
de um sexo diferente anatomicamente
do seu. Não há nenhum prazer erótico
nisso. O homossexual tampouco se confunde com o transexual porque a questão para o homossexual é a atração por
pessoas do seu mesmo sexo – existe um
componente erótico aí também. Mas o
transexual sente-se mulher num corpo
de homem. Para um homem transexual
vestir-se de mulher é vestir-se conforme
sua identidade, nada tem de prazer eró-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.111-116 – Novembro. 2009
Transamérica: na encruzilhada da sexuação
tico ou sexual. O transexual revela seu
desinteresse pela coisa sexual e pela relação com o órgão macho. O órgão sexual
é desinvestido sexualmente e não tem
significação psíquica.
Para o travesti o pênis é o representante do falo materno e adota valor
de fetiche.
Para Stoller apud Millot(1998), que
é um dos maiores estudiosos do assunto,
a questão do transexual é de identidade
de gênero e não de identidade sexual.
De acordo com esse autor, há, para
os dois sexos, uma “camada primária
fundamental” que corresponde à identificação com a mãe originária. Para ele, os
dois sexos se identificam primeiro com a
mãe. Para Freud originalmente os dois
sexos estão do lado macho, a questão é
saber como a menina depois se torna
mulher. Para Stoller apud Millot(1988),
é o contrário, o problema é definir como
um ser no início feminino torna-se homem. Em seguida a esta camada primordial, há uma outra, a de “impregnação do meio” quando há a designação
simbólica – você é menino ou menina.
Além disso, há um “care taking” especial
para cada um dos sexos. É isto que vai
dar a identidade de gênero.
O terceiro nível de identificação é
o Édipo que só vem confirmar a posição
anterior. Para Stoller apud Millot(1988),
é a relação com a mãe que define o transexual. As mães de transexuais são mulheres vazias, habitadas pela ausência de
desejo e com acentuados traços depressivos. Na adolescência, teriam desejado
ser meninos, fizeram casamentos de
conveniência e acomodaram-se.
A criança transexual é produto
de um nascimento esperado por muito
tempo e desejado como menino, recebe
nome de menino e, até de herói, muitas
vezes, e representa o que preenche a mãe
(o falo) e geralmente são crianças belas.
Para Stoller apud Millot(1988), é
comum a presença de doenças precoces
nessas crianças, o que facilita um tempo
demorado de contato corpo a corpo com
a mãe, como se fosse seu prolongamento. Às vezes se desenha como prolongamento do braço da mãe, o pai não tem
lugar neste relacionamento – forclusão
do Nome-do-Pai – o que impede a significação fálica do pênis.
O que continua intrigando os pesquisadores é por que querer livrar-se do
pênis.A operação é para eles questão de
vida ou morte, e a decisão ocorre às vezes após uma situação de luto.
Mas há um aspecto curioso que é
o desejo de perfeição embutido na perspectiva desta cirurgia – com a ablação do
pênis, o transexual quer ser uma mulher
perfeita. Um transexual inglês chegou
mesmo a dizer que queria ser uma mulher na menopausa. Outros dizem que
querem ser “deliciosamente limpos”, “purificados” da protuberância e tornar-se
normais. É a fantasia do gozo absoluto.
O transexual precisa extirpar o órgão sexual macho para se realizar como
falo da mãe – o pedacinho de carne a mais
sobra em relação à identificação fálica.
O falo não é de um sexo nem de
outro, é a massa da sexuação, e a marca é
excessiva para a identificação fálica.
Segundo Lacan apud Dör (1991), o
transexual confunde o órgão com o significante, ou seja, confunde o pênis com
o falo, com a idealização imaginária.
Assim, de um lado, o transexual
tenta livrar-se da sexuação, mas, de outro, realiza o ser fálico (aquele que pode
ter o falo) – o Outro completo, não bar-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.111-116 – Novembro. 2009
113
Transamérica: na encruzilhada da sexuação
rado. É como se tentassem fazer existir
A Mulher inteira, escapando à posição
fálica, mortífera. Desejam na verdade
um mais além do sexo.
Situação com características próprias é a do transexualismo feminino.
Para Stoller apud Dör(1991), sendo a
primeira identificação materna para
ambos os sexos, é preciso que haja uma
influência paterna preponderante para
neutralizar precocemente a feminilidade
primordial. Stoller apud Dör(1991) considera que os transexuais femininos não
tiveram existência simbólica satisfatória, pois foi muito cedo neutralizada. As
transexuais femininas inserem-se mais
facilmente em comunidades masculinas
quando procuram vestir-se e comportarse como homens, casam-se com mulheres
e têm filhos por inseminação artificial.
Há prevalência da simbiose com
o pai e efeitos de condicionamento que
encorajam a criança precocemente na
via das estereotipias da masculinidade.
O curioso é que com as mulheres
acontece uma situação diferente da dos
homens – mulheres travestidas de homens quer sejam travestis quer homossexuais não referem ter prazer erótico com
isso. Seriam então todas transexuais?
Conforme Dör (1991), a cirurgia
apenas dissipa o temor de serem desmascarados como mulheres, mas às vezes
catalisa a descompensação do sujeito.
A intervenção cirúrgica é a realização de uma ideia delirante. A maioria
declara, depois, viver uma existência infernal marcada pela insatisfação, as drogas, culminando com o suicídio.
A situação jurídica é ambígua. Seria desejável uma medida consistente que
pudesse conter a atividade descontrolada
dos cirurgiões. A questão tem caracterís114
ticas mais complexas para decidir se deveria ser autorizada ou não a troca de sexo
por via jurídica. Os juristas respaldam-se
na apreciação dos terapeutas e tentam
avaliar os efeitos a longa distância, procurando informações de como ficam os
pacientes operados e os outros.
A cirurgia aparece como medida
paliativa, não curativa para um problema que é de origem psicopatológica,
conclui Dör (1991). .
No Brasil existe uma Resolução do
Conselho Federal de Medicina (CFM)
de no. 1.481, datada de 1997, autorizando, em caráter experimental, em hospitais universitários e públicos, a cirurgia
de transgenitalização. Posteriormente,
em 2002, uma nova resolução, de no.
1.652, autorizou a neocolpovulvoplastia
– a construção da vagina, no caso dos
homens, reconhecendo o bom resultado cirúrgico para a transformação do
fenótipo masculino para o feminino e
as dificuldades técnicas das neofaloplastias – a construção de um pênis, no caso
da transformação do fenótipo feminino
para o masculino.
A seleção de pacientes deve ser
feita por uma equipe multidisciplinar; o
paciente deve ter:
a) mais de 21 anos
b) desconforto com o sexo anatômico atual
c) desejo expresso de eliminar os
genitais, perder as características primárias e secundárias do
próprio sexo
d) permanência desses distúrbios
de forma contínua e consistente, por no mínimo, dois anos
e) ausência de características físicas inapropriadas para a
cirurgia
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.111-116 – Novembro. 2009
Transamérica: na encruzilhada da sexuação
f) ausência de outros transtornos
mentais.
É exigido também o consentimento livre e esclarecido (documentado).
Os aspectos legais, como a necessidade de alteração do Registro Civil
com mudança de prenome e sexo, ainda
são aspectos controversos.
Em São Paulo, um juiz permitiu
a um transexual operado, chamar-se
João e colocar adiante da designação de
sexo – transexual. Fatos como esses são
questionados pelos transexuais como
discriminatórios.
Além disso, o paciente adaptado
ao novo sexo tem o direito de contrair
matrimônio por ter adquirido os direitos do novo sexo.
Por envolver problemática sociofamiliar, no Brasil, pelo menos até agora,
só se tem permitido cirurgia de solteiros
e viúvos. Também não fica o transexual
isento de prover pensão alimentar.
Como vimos no início, o cômico encerra um aspecto trágico (FREUD, 1905)
e a tragicidade no filme está expressa pela
convocação do lugar de pai no mesmo
momento em que outra convocação poderosa surge claramente – a mudança de
sexo. Todos nós, acostumados ao estilo
americano de fazer filmes, não nos surpreendemos com a maneira superficial e
quase inconsequente de tratar de tão grave
questão. Se, por um lado, como vimos, é
possível a um transexual psicotizar após a
cirurgia ao tentar colocar-se fora da sexuação – condição precípua para o ingresso
na comunidade dos neuróticos, de outro,
há a injunção. Assim, podemos falar aos
psicanalistas: essa demanda decisiva para
a função paterna, por si só, já poderia determinar o ingresso no surto psicótico.
Incapaz de assumir a função pa-
terna, Bree tenta atribuí-la aos próprios
pais, tarefa na qual fracassa como já era
previsto, pois não é de um pai real que
se trata no caso, mas de um pai simbólico, aquele que se reconhecendo faltante
(um ser incompleto), portanto, castrado, pode simbolicamente representar
a lei e apresentar-se como guardião do
falo, mas não seu possuidor. No entanto,
sendo ele mesmo o próprio falo, não há
como prover o filho dessa dádiva imaginária ocupando o lugar da metáfora
paterna, do Nome-do-Pai, enfim.
Este realmente é o grande drama
de Bree, que provavelmente não se concluiria com a solução de realização de
um delírio.
Keywords
Transsexualism; travestism; homosexualism; name-of-the-father; penis; castration;
phallus.
Abstract
The conflicts involved in the decision of a
transexual between his decision to submit
to a surgery to change sex or taking care of
a son is focused in this work. The differential
diagnosis and the problems concerning the
surgery are considered on a psychoanalitic
point of view with the background of the film
Transamerica.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.111-116 – Novembro. 2009
115
Transamérica: na encruzilhada da sexuação
ReferênciaS
DÖR, J. Estrutura e Perversão. Porto Alegre :Artes Médicas,1991.
FREUD, S. Os chistes e sua relação com o Inconsciente (1905). ESB Vol. VIII. Rio de Janeiro:
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MILLOT, C; POMMMIER, G. Transexualismo/
Identidade Feminina. Transcrição 1. Salvador :
Tramitação Recebido : 04/06/2009
Aprovado : 29/08/2009
Nome : Marli Piva Monteiro
Endereço : Av. ACM 1034 sl 121c,
Itaigara
CEP : 41825 – 000, Salvador/Ba
Fones : (71) 3248 8541 / 3359 2555
E-mail : [email protected]
Fator. 1988.
VIEIRA, R. T. Aspectos psicológicos, médicos e
jurídicos do Transexualismo. Psicologia InFormação. Ano 4 No. 4. jan/dez 2000.
TUCKER, D. Transamérica. Filme americano.
Duração: 103m. 2005.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. RESOLUÇÃO CFM nº 1.652/2002. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a
Resolução CFM nº 1.482/97. Disponível em:
http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/
cfm/2002/1652_2002.htm. Acessado em 21 de
agosto de 2009.
116
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.111-116 – Novembro. 2009
As diferenças que nos constituem e as
perversões que nos diferenciam
The differences which constitute us and the
perversions which differentiate us
Mercês Muribeca1
Palavras-chave
Psicanálise, Perversões Sexuais, Parafilias, Normalidade x Anormalidade.
Resumo
Este artigo percorre o conceito de perversão através de diversos textos freudianos. Dando especial
atenção aos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905), em que Freud tenta desenvolver uma
compreensão da etiologia das perversões, opondo-se à opinião popular acerca da sexualidade em três
pontos básicos: a época do surgimento da pulsão sexual; a natureza necessariamente heterossexual
do objeto e a limitação do objeto sexual à cópula. Nesse momento, Freud trata de definir a perversão
em referência a um processo de negatividade, baseia-se no axioma da neurose como o negativo da
perversão. Posteriormente, insere as perversões, a exemplo das neuroses, como núcleo do complexo
de Édipo para, em 1927, no artigo O Fetichismo, definir a recusa da castração como mecanismo
essencial da perversão; a noção de clivagem do ego é percebida como processo de defesa e a construção
do fetiche como substituto do pênis materno. Por fim, a perversão é uma circunstância da espécie
humana e o arranjo que foi possível ao sujeito em sua luta pela sobrevivência psíquica.
São indeléveis as páginas que o amor ou a dor escrevem
no livro do coração.
S. Albuquerque
INTRODUÇÃO
Antes de Freud defender a tese da
existência de uma sexualidade infantil
possuidora de seus próprios regulamentos e características, acreditava-se que as
crianças eram desprovidas de sexualidade, vivendo inocentemente, distanciadas
de toda ideia, sentimento ou afeto que implicasse cunho sexual. Ao mundo infantil
era interditado qualquer tipo de fantasia
ou prazer sexual.
É, portanto, nesse cenário de incredulidade que Freud, no ano de 1905, publica os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, que, certamente, revoluciona a
compreensão dos fenômenos sexuais, pro-
duzindo mudanças radicais na concepção
da sexualidade humana. Este artigo está
dividido em três partes. Na primeira, discorre sobre as aberrações sexuais, introduzindo pela primeira vez a palavra pulsão a
fim de diferenciar a sexualidade humana
– pulsional – da sexualidade dos animais
(instintual), pois, ao contrário da fixidez
do instinto, a pulsão admite variações em
relação ao objeto e ao objetivo sexual. Na
segunda, expõe as mais variadas formas da
sexualidade infantil, apresentando a matriz
da teoria da libido. E, na terceira, estuda a
puberdade, numa passagem da sexualidade
infantil à sexualidade adulta.
É importante destacar que, ao longo
dos anos, os Três Ensaios são submetidos a
1 Doutora em Psicologia (Fundamentos y Desarrollos Psicoanalíticos) – Universidad Autónoma de Madrid –
Espanha. Psicanalista da Sociedade Psicanalítica da Paraíba (SPP).
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009
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As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam
várias revisões, pois, na medida em que
Freud evoluía em seus conceitos teóricos,
acrescentava novas ideias, modificando
sensivelmente o conteúdo existente em
sua edição original.
Freud abre o primeiro capítulo descrevendo os processos psicológicos das
chamadas aberrações sexuais, através dos
diversos desvios existentes quanto ao objeto sexual e quanto à finalidade sexual.
Assim, introduz os termos: objeto sexual
(pessoa de quem procede a atração sexual)
e alvo sexual (ato a que a pulsão conduz)
aludindo a que frequentemente ocorrem
desvios em relação tanto ao objeto quanto
ao objetivo sexual.
Vamos nos deter a estudar a primeira parte desses Ensaios, nos quais Freud
classifica as perversões em fenômenos de
duas ordens: (a) transgressões anatômicas
quanto às regiões do corpo destinadas à
união sexual; (b) retardamento nas relações intermediárias com o objeto sexual.
Nesse sentido, poderíamos dizer que as
perversões sexuais seriam transgressões
da função sexual tanto na esfera do corpo
quanto na do objeto sexual. Porém, talvez
fosse importante ressaltar que não se trata propriamente de uma transgressão da
função sexual, que é a de promover o prazer, mas sim de uma transgressão da lei,
convencionada pela civilização, que elegeu a procriação como função sublime da
sexualidade. Pois sabemos que, quando
as pessoas fazem sexo, não estão preocupadas com a perpetuação da espécie, mas
estão buscando o prazer.
Nesse primeiro capítulo dos Três
Ensaios, Freud vai dizer que todas essas
aberrações ou desvios destroem no adulto a ideia de uma pré-formação, de uma
finalidade, porque o objetivo atribuível a
esses atos sexuais não visa a um fim biológico de procriar, mas sim ao prazer.
Nos Três Ensaios, é possível considerar que a pulsão sexual se manifesta na
busca da satisfação em diversos objetos
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parciais. Esta ideia está presente no modelo da progressão da libido. E é com o
objetivo de proporcionar uma compreensão dos destinos das pulsões sexuais que
Freud formula a noção de zonas erógenas,
sempre relacionadas com o prazer que
podem suscitar em determinados órgãos
do corpo. Assim, ao referir-se à pulsão sexual, ele adverte que ela está formada por
inumeráveis componentes, as pulsões parciais, ligadas a diferentes partes do corpo,
as zonas erógenas.
Portanto, as excitações sexuais estão localizadas em regiões do corpo, zonas erógenas, com pulsões parciais que
funcionam num estado anárquico, desorganizado, que caracteriza o autoerotismo.
O indivíduo encontra prazer no próprio
corpo – nos primeiros tempos de vida, a
função sexual está intimamente ligada à
sobrevivência. O autoerotismo é “o estrato sexual mais primitivo”, age por conta
própria e exige apenas sensações locais de
satisfação.
Dessa forma, a sexualidade infantil é tida como polimorfa, porque se
manifesta em diversos órgãos do corpo
sem que isso implique uma manifestação patológica. Portanto, a sexualidade
na infância é prazerosa, sob a forma de
estímulos, em diversos pontos do corpo,
ou seja, a sexualidade infantil apresenta uma tendência perverso-polimorfa
que é autoerótica, mas que não pode
ser considerada como uma perversão
sexual propriamente dita. Para Freud,
a disposição perversa é parte da constituição normal de todas as pessoas.
Nesse sentido, não é uma transgressão:
passa a ser transgressão na medida em
que se preconiza que o sexo deve estar
inscrito em rituais (casamento) e deve
ter como objetivo a procriação (moral
judaico-cristã), e, nesse sentido, a perversão passa a ser transgressão porque
vai contra a lei, a regra estabelecida
como normalidade.
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As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam
ENTENDENDO O CONCEITO DE
PERVERSÃO
Em Fragmentos da análise de um
caso de histeria (1905[1974], p. 53),
Freud pôde dizer que: “Na vida sexual de
cada um de nós, ora aqui, ora ali, todos
transgredimos um pouquinho os estreitos limites do que se considera normal”.
Assim, originalmente, a perversão
está relacionada à sexualidade, pois diz
respeito a práticas sexuais que extrapolam
o objetivo do coito. Nesses casos, o orgasmo é obtido através de práticas ou objetos
desviantes do normal, sendo as perversões o resultado do desenvolvimento da
pulsão sexual em zonas erógenas distintas
dos genitais.
Em Vocabulário da Psicanálise, Laplanche e Pontalis (1992, p. 341) definem
perversão como sendo o:
Desvio em relação ao ato sexual normal,
definido este como coito que visa a obtenção do orgasmo por penetração genital,
com uma pessoa do sexo oposto. Diz-se
haver perversão: onde o orgasmo é alcançado com outros objetos sexuais ou através
de outras regiões do corpo onde o orgasmo
acha-se totalmente subordinado a certas
condições extrínsecas, que podem mesmo
ser suficientes, em si mesmas, para ocasionar prazer sexual. Num sentido mais
abrangente, perversão tem a conotação da
totalidade do comportamento psicossexual que acompanha tais meios atípicos de
obter-se prazer sexual.
Corroborando o pensamento freudiano, os autores do Vocabulário (p. 342)
afirmam que, em psicanálise, só se deve
falar de perversão a respeito da sexualidade quando definem:
[...] a sexualidade humana como sendo, no
fundo, perversa, na medida em que nunca
se desliga inteiramente de suas origens, que
a fazem procurar sua satisfação não numa
atividade especifica, mas no ganho de prazer ligado a funções ou atividades que dependem de outras pulsões.
Em Vida e Morte em Psicanálise, Laplanche (1985) lembra que Freud, nos Três
Ensaios, descreve a pulsão por excelência,
que é a pulsão sexual. É a sexualidade que
representa o modelo de toda pulsão e é,
provavelmente, a única pulsão propriamente dita. É bom ressaltar que a sexualidade humana é sempre uma psicossexualidade. Ou seja, o ser humano, como ser
desejante, atribui sentido ao sexo e subverte a natureza, que impõe padrões fixos
para o sexo dos animais, possibilitando
vários destinos para a pulsão e tornando a
sua satisfação uma escolha tanto em relação ao objeto, quanto ao próprio objetivo
pulsional.
Freud, em sua 21ª conferência, O
desenvolvimento da libido e as organizações sexuais (1933[1974], p. 376), enfatiza
que:
O que torna a atividade dos pervertidos tão
inconfundivelmente sexual, por mais estranhos que sejam seus objetos e fins, é o fato
de, via de regra, um ato de satisfação pervertida ainda assim terminar em orgasmo
completo e emissão de produtos genitais.
Em uma passagem dos Três Ensaios
(1905[1974], p. 151), Freud confessa que,
às vezes, nas mais variáveis formas de perversões, a qualidade do novo alvo sexual é
de tal ordem que requer uma apreciação
especial. Vejamos o que ele disse a esse
respeito:
Algumas delas afastam-se tanto do normal
em seu conteúdo que não podemos deixar
de declará-las “patológicas”, sobretudo nos
casos em que a pulsão sexual realiza obras
assombrosas (lamber excrementos, abusar
de cadáveres) na superação das resistências
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As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam
(vergonha, asco, horror ou dor). Nem mesmo nesses casos, porém, pode-se ter uma
expectativa certeira de que em seus autores se revelem regularmente pessoas com
outras anormalidades graves ou doentes
mentais. Tampouco nesses casos pode-se
passar por cima do fato de que pessoas
cuja conduta é normal em outros aspectos
colocam-se como doentes apenas no campo da vida sexual, sob o domínio da mais
irrefreável de todas as pulsões. Por outro
lado, a anormalidade manifesta nas outras
relações da vida costuma mostrar invariavelmente um fundo de conduta sexual
anormal.
Ainda nos Três Ensaios de 1905, ele
usa o termo inversão sexual para falar a
respeito dos homossexuais, incluindo-os
dentro do quadro das perversões. Assim,
quando fala dos invertidos, classifica-os
como: absolutos (quando o objeto sexual
é do mesmo sexo); anfígenos ou hermafroditas sexuais (quando o objeto sexual pertence a ambos os sexos). Explica que alguns invertidos convivem pacificamente
com a inversão, enquanto outros a sentem
como uma compulsão patológica, havendo casos em que a libido se altera no sentido da inversão após haver sido submetida
a uma experiência dolorosa com o objeto
sexual normal. A expressão homossexualidade só será utilizada por Freud em seus
acréscimos a partir de 1910.
Roudinesco e Plon, em Dicionário
de Psicanálise (1998), comentam que no
século XIX a homossexualidade havia sido
classificada como uma degenerescência
pelo saber psiquiátrico, mas acabou sendo
reconhecida, em 1974, como uma forma de
sexualidade entre outras. Neste ano, a American Psychiatric Association (APA) risca a
homossexualidade da lista de doenças mentais. Ainda nessa mesma época, o termo homossexualidade também é retirado da Classificação Internacional de Doenças (CID),
livro elaborado pela Organização Mundial
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da Saúde (OMS) e em 1987 o termo perversão desaparece da terminologia psiquiátrica
mundial e é substituído pelo termo parafilia, que não inclui mais a homossexualidade. De sorte que o termo parafilia substitui
a idéia de perversão sexual na literatura médico – psiquiátrica na década de 80.
Em 23 de março de 1999, o Conselho Federal de Psicologia (CEF) edita a resolução de número 1/99, a qual declara no
Art. 3º que: “Os psicólogos não exercerão
qualquer ação que favoreça patologização
de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”, reconsiderando
que “a homossexualidade não constitui
doença, nem distúrbio e nem perversão
e que os psicólogos não colaborarão com
eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”.
Em consulta ao Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais
(DSM IV), encontramos que as parafilias
(gosto pelo acessório) são caracterizadas
por anseios, fantasias ou comportamentos sexuais recorrentes e intensos que envolvem objetos, atividades ou situações
incomuns e causam sofrimento ou prejuízo na vida do indivíduo. Certas fantasias e comportamentos associados com
parafilias podem iniciar na infância ou
nos primeiros anos da adolescência, mas
tornam-se mais definidos e elaborados
durante a adolescência e início da idade
adulta. Os transtornos tendem a ser crônicos e vitalícios, mas tanto as fantasias
quanto os comportamentos frequentemente diminuem com o avanço da idade
em adultos. VISITANDO ALGUMAS PARAFILIAS
As principais parafilias, segundo o
DSM-IV, são: exibicionismo (exposição
dos genitais), fetichismo (uso de objetos
inanimados), frotteurismo (tocar e es-
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As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam
fregar-se em uma pessoa sem o seu consentimento), pedofilia (foco em crianças
pré-púberes), masoquismo sexual (ser
humilhado ou sofrer), sadismo sexual
(infligir humilhação ou sofrimento), fetichismo transvéstico (vestir-se com roupas
do sexo oposto) e voyeurismo (observar
atividades sexuais).
Entre as parafilias sem outra especificação, localizamos: zoofilia (ato sexual
com animais); necrofilia (cadáveres); escatologia telefônica (telefonemas obscenos);
parcialismo (foco exclusivo em uma parte
do corpo); coprofilia ou excrementofília
(obtenção de prazer durante a evacuação das fezes ou com a sua manipulação);
clismafília (prazer obtido com a aplicação de líquidos dentro do reto, através do
ânus ou introdução de objetos estranhos);
urofilia (prazer e excitação sexual obtido
com o contato pelo corpo ou ingestão de
urina); cunilíngua (ato de praticar sexo
oral aplicando a língua na vúlva e/ou clitóris); felação (sexo oral feito no genital
masculino); anilíngua ou anilingus (significa literalmente o intercurso da língua
de alguém com o ânus de outrem); dendrofília (relação sexual com plantas ou
frutas); acrotomofilia (preferência sexual
por pessoas que tenham alguma parte de
seus corpos amputada); erotofonofilia (a
excitação ocorre com a possibilidade de
matar o companheiro, coincidindo essa
morte com o próprio orgasmo); gerontofília (atração sexual por pessoas idosas)
entre muitos outros. Procuraremos analisar alguns desses focos parafílicos.
A pedofilia, por exemplo, é caracterizada por um forte desejo alimentado por fantasias e práticas sexuais com
crianças pré-púberes. Alguns pedófilos
limitam suas atividades a despir e observar a criança exibir-se, masturbar-se ou
tocá-la. Outros realizam felação, penetração da vagina, boca ou ânus da criança com seus dedos, objetos estranhos ou
pênis. Essas atividades são explicadas
com racionalizações de que possuem “valor educativo” para a criança, ou de que
esta obtém “prazer sexual” com os atos
praticados. Enquanto a pedofilia envolve atividades sexuais com crianças prépúberes de ambos os sexos, a pederastia
é o contato sexual entre um homem de
idade e um rapaz bem jovem (adolescentes masculinos).
O exibicionismo é uma forma de
excitação erótica que envolve a exposição dos próprios genitais a um estranho
a fim de excitar-se sexualmente. Às vezes,
o indivíduo pode se masturbar durante a
exposição para, casualmente, atingir o orgasmo. Geralmente, não existe qualquer
tentativa de atividade sexual com o estranho. A excitação provém da exposição do
corpo, ou parte dele, para um outro.
O voyeurismo envolve o ato de
olhar indivíduos, comumente estranhos,
sem suspeitar que estejam sendo observados, que estão nus, a se despirem ou em
atividade sexual. O ato de observar serve
à finalidade de obter excitação sexual, e
habitualmente não é tentada qualquer atividade sexual com a pessoa observada.
Freud, nos Três Ensaios (19051974], p. 147), comenta que:
(...) o prazer de ver (escopofilia) transforma-se em perversão: (a) quando se restringe exclusivamente à genitália; (b) quando
se liga à superação do asco (o voyeur – espectador das funções excretórias); ou (c)
quando suplanta o alvo sexual normal, em
vez de ser preparatório a ele.
Assim, tanto na escopofilia quanto
no exibicionismo, o olho corresponde a
uma zona erógena; no caso da dor e da
crueldade como componentes da pulsão
sexual, é a pele que assume esse mesmo
papel. A pele, que em determinadas partes do corpo se diferenciou nos órgãos
sensoriais e se transmudou em mucosa, é
assim a zona erógena por excelência.
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As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam
UM DESTAQUE AO SADISMO E AO
MASOQUISMO
No masoquismo sexual, encontramos o ato de ser humilhado, espancado, atado ou submetido a qualquer tipo
de sofrimento. O transvestismo forçado pode ser buscado por sua associação com a humilhação. É a humilhação
de ser forçado a vestir roupas do sexo
oposto, não as roupas em si, o foco da
excitação sexual. O indivíduo pode ter
um desejo de ser tratado como um bebê
indefeso e de usar fraldas (infantilismo).
Uma forma particularmente perigosa de
masoquismo é a asfixiofilia ou hipoxifilia, na qual a pessoa tenta intensificar o
estímulo sexual pela privação de oxigênio. Essa excitação sexual pela privação
de oxigênio pode ser obtida por meio de
compressão torácica, garrotes, ataduras,
sufocação com saco plástico, máscara
ou substância química, podendo ocorrer mortes acidentais.
Já o sadismo sexual consiste em
praticar atos nos quais o indivíduo deriva
excitação sexual do sofrimento psicológico ou físico da vítima. Atua segundo seus
anseios sexuais sádicos com um parceiro
que consente ou não em sofrer dor ou
humilhação. As fantasias ou atos sádicos
podem envolver atividades como: atar,
espancar, chicotear, queimar, administrar choques elétricos, estuprar, esfaquear,
estrangular, torturar, mutilar ou mesmo
matar suas vítimas.
Sadismo e masoquismo ocupam
entre as perversões um lugar especial, já
que o contraste entre atividade e passividade que jaz em sua base pertence às
características universais da vida sexual.
E, portanto, da subjetividade de qualquer
sujeito, pois a pulsão de morte refere-se
fundamentalmente à morte do próprio
sujeito, da sua própria matéria e apenas
indiretamente se expressa em agressão ao
outro.
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Freud, nos Três Ensaios (1905-1974],
p. 148), define o masoquismo como aquilo que:
[...] abrange todas as atitudes passivas perante a vida sexual e o objeto sexual, a mais
extrema das quais parece ser o condicionamento da satisfação ao padecimento de dor
física ou anímica advinda do objeto sexual.
[...] É freqüente poder-se reconhecer que o
masoquismo não é outra coisa senão uma
continuação do sadismo que se volta contra a própria pessoa....
Mais adiante, depois da formulação
da pulsão de morte em Além do principio
do prazer (1920), Freud reformula essa
ideia e postula um masoquismo original,
anterior ao sadismo. Já em Uma Criança é
Espancada (1919 a), ele conclui, por uma
operação lógica, que há uma fantasia original, ou fundamental, e recalcada, que
é masoquista e que serve de base para as
outras duas etapas de desenvolvimento
da fantasia de espancamento. Percebe o
estreito vínculo entre as tendências masoquistas e a sexualidade, tomando em conta os efeitos erógenos da dor.
Nesse sentido, Freud faz do par sadismo/masoquismo a expressão mais eloquente da erotização da pulsão de morte,
ou seja, a fusão das duas pulsões. A erotização da dor entra nessa fusão e muito
provavelmente o perverso, atento a um
prazer determinado, pode confundir o
desejo com a dor.
Em Uma Criança é Espancada, Freud
descreve que as fantasias de espancamento
surgem nas causas acidentais da primitiva
infância e permanecem intencionalmente retidas com o propósito de obter uma
satisfação autoerótica, podendo ser considerada como um traço primário de perversão. Assim, a perversão não é um fato
isolado na vida sexual da criança, senão
todo o contrário, ela encontra lugar entre
os processos típicos de desenvolvimento,
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As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam
para não dizer normais. A perversão infantil pode ainda vir a tornar-se base para
a elaboração de uma perversão que tenha
um sentido similar e que persista por toda
a vida e consuma toda a sexualidade do
indivíduo.
Essa fantasia de espancamento,
como fantasia fundamental de todo indivíduo, que pode estar colocado na posição passiva, masoquista, ou ativa, sádica
(na posição de sujeito ou de objeto) seria
considerada o alicerce de toda fantasia
subjetiva, e não apenas dos perversos.
Na origem, somos perversos, e o complexo de Édipo é que vai, em sua função de
normatização, de introdução da norma,
da lei, fazer recalcar ou não essas pulsões,
tornando o indivíduo neurótico, ou não,
dependendo da eficácia da incidência da
norma imposta pela triangulação edípica.
Neste artigo, a transformação do
sadismo em masoquismo se dá através
da influência do sentimento de culpa que
participa do ato do recalque. Este sentimento de culpa se relaciona com a masturbação da primitiva infância e tem sua
raiz calcada no Complexo de Édipo. De
tal maneira que a origem das perversões
infantis, de uma forma geral, seria provinda do complexo de Édipo.
A esse respeito, Freud (1905[1974],
p. 149) sustenta que:
A particularidade mais notável dessa perversão reside (...) em que suas formas ativa
e passiva costumam encontrar-se juntas
numa mesma pessoa. Quem sente prazer
em provocar dor no outro na relação sexual é também capaz de gozar, com prazer, de qualquer dor que possa extrair das
relações sexuais. O sádico é sempre e ao
mesmo tempo um masoquista, ainda que o
aspecto ativo ou passivo da perversão possa ter-se desenvolvido nele com maior intensidade e represente sua atividade sexual
predominante.
Lembramos que Laplanche, em
Vida e Morte em Psicanálise (1985), analisando a questão da agressividade e do sadomasoquismo, revela que antes de 1920
a pulsão de agressão não aparecia nos textos de Freud, assim como o termo agressividade estava marcadamente ausente.
Explica que agressividade não é o mesmo
que sadismo, portanto pesa a diferença de
que na agressividade não há componentes
sexuais, enquanto no sadismo e no masoquismo existem claramente componentes
sexuais. Um filme coreano que relata bem
essa relação amorosa patológica de sadomasoquismo é Mentiras (LIES, 1999), do
diretor Jang Sun Woo, vetado na Coreia
por ser considerado um filme de alto teor
pornográfico.
Laplanche (1985) esclarece que a
questão do sadismo e do masoquismo,
assim como das pulsões que os movem,
inquieta o pensamento de Freud de tal
maneira, que, em 1920, em Além do principio do prazer, propõe a existência de um
masoquismo primário, com a intenção de
introduzir a pulsão de morte. Esta nova
tese é confirmada em 1924 com O problema econômico do masoquismo, quando a
existência desse masoquismo primário é
tida como certa. Assim, antes de 1920, o
sadismo engendra o masoquismo, para só
depois de 1920, o sadismo ser engendrado pelo masoquismo primário.
Portanto, em Uma Criança é Espancada (1919) e em Além do princÍpio do
prazer (1920), surgem duas ideias que são
desenvolvidas de forma mais completa
em O problema econômico do masoquismo
(1924), que são: as enigmáticas tendências masoquistas do ego e a ideia de que
poderia existir um masoquismo primário.
Então, a questão do sadismo para Freud
é posterior ao masoquismo primário. Ele
pensa que, provavelmente, o prazer desta
perversão sexual está em castigar um desejo edípico.
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As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam
OUTRO FOCO PARAFILICO: O
FETICHISMO
Transportando-nos ao foco parafílico do fetichismo, encontramos o uso
de objetos fetiches, tais como: calcinhas,
meias, sapatos ou outras peças do vestuário feminino. O fetichista frequentemente
se masturba, enquanto segura, esfrega ou
cheira o objeto do fetiche, ou pede que
seu parceiro use-o durante seus encontros
sexuais.
Freud, em seu artigo O Estranho
(1919 b) e em A cabeça de Medusa, escrito em 1922 e publicado em 1940, observa
que a cabeça decapitada de Medusa simboliza o efeito aterrorizante dos genitais
castrados da mulher, tendo o cuidado de
explicar que isso não ocorre com qualquer
mulher, mas tão somente com os genitais
da mãe. É, precisamente, com o objeto
fetiche que o perverso obtura a noção da
falta de pênis na mulher.
O que caracteriza a perversão para
Freud é a presença de uma organização
psíquica baseada na recusa (Verleugnung).
Em 1927, com Fetichismo, ele defende a
tese de que o fetiche é o substituto do pênis da mãe, ligando-o à recusa da castração, isso porque o fetichista é aquele que
nada quer saber daquilo que vê. Tornamse, tanto a renegação como a afirmação da
castração, elementos chave na constituição
do fetiche. Portanto, o perverso reconhece
a castração, mas não a aceita.
A respeito dessa renegação, Hugo
Bleichmar (1984, p. 77), em Introdução ao
Estudo das Perversões, enfatiza:
O fetiche, que, para a consciência, é um objeto de prazer, de amor – sem que se saiba
por quê – para o inconsciente representa
o falo; ou seja, no inconsciente a equação fetiche-falo permite manter a crença
de que a mãe tem falo e renegar, assim, a
castração; no inconsciente, a castração,
simultaneamente, existe e não existe. [...]
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Na consciência, o sujeito reconhece que a
mulher não tem pênis e, no entanto, não
tem angústia de castração consciente, não
pensa conscientemente na castração; no
inconsciente, em troca, crê na castração
e, ao mesmo tempo, a renega mediante a
equação fetiche-falo.
Roudinesco e Plom (1998) destacam
que, de 1905 a 1927, Freud passou de uma
descrição das perversões sexuais para uma
teorização do mecanismo geral da perversão
que já não era apenas o resultado de uma
predisposição polimorfa da sexualidade
infantil, mas a consequência de uma
atitude do sujeito humano confrontado
com a diferença sexual. Também apontam
a relevância do papel de Lacan em retirar
a perversão do registro das aberrações
sexuais para apresentá-la como uma
estrutura. Nesse sentido, Lacan entendia
a perversão como um componente do
funcionamento psíquico do homem, sendo
que a estrutura perversa “se caracterizaria
pelo anseio do sujeito de transformar-se
em objeto de gozo”.
Assim, do ponto de vista estrutural,
na perversão existe um mecanismo de
renegação, recusa, desmentido (Verleugnung). O conflito se dá na cisão interna do
ego, que em parte recusa e em parte reconhece a realidade. Na neurose, prevalecerá
o recalque (Verdrängung). O conflito é entre o Ego e o Id. Os sintomas são: histeria,
neurose obsessiva, fobias. Na psicose, o
mecanismo é o da forclusão (Verwerfung),
ou seja, há uma rejeição (Verwergung) da
percepção da realidade. O conflito se dá
entre o Ego e o mundo externo. Nesse aspecto, de acordo com Ferraz (2000), na
psicose, a maior parte do ego desliga-se
da realidade, mesmo que, em um canto
recôndito, ele mantenha o vínculo com
ela. Já no perverso, a coexistência de duas
atitudes opostas em relação à castração,
durante toda a sua existência, seria a característica marcante.
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As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam
Ainda segundo Ferraz (2000), o
sintoma perverso, como todo e qualquer
outro sintoma – neurótico, psicótico, psicossomático ou psicopático –, por mais
que nos impressione ou até mesmo cause
incômodo, constitui sempre o arranjo que
foi possível ao sujeito em sua luta pela sobrevivência psíquica.
O fetichismo transvéstico envolve o
ato de vestir-se com roupas do sexo oposto, mantendo uma coleção de roupas femininas, que usa intermitentemente. Em
geral se masturba, imaginando-se tanto
como o sujeito masculino quanto como o
objeto feminino de sua fantasia sexual.
Nos Três Ensaios (1905), quando
Freud aborda a doutrina da bissexualidade, menciona que ela foi expressa em sua
forma mais crua por um porta-voz dos
invertidos masculinos quando confidenciou ter um cérebro feminino num corpo
masculino.
Certamente, esse é um dos maiores
dramas vividos por aqueles que sofrem
de transtorno de identidade de gênero. O
transexual é uma pessoa que repudia seu
sexo anatômico e está decidido a mudá-lo.
É um homem que se sente mulher, injustamente envolto em um corpo de homem
e deseja eliminar seus órgãos genitais para
converter-se em mulher; ou é uma mulher
que deseja adquirir genitais masculinos
e viver como homem. Ambos solicitam
mudar sua identidade sexual mediante intervenção cirúrgica. Repugnam-lhes seus
próprios órgãos sexuais, preferem vestir e
portar-se como o outro sexo e não se consideram homossexuais.
Colette Chiland (1999, p. 220), que
desenvolve um rico trabalho sobre o transexualismo em seu livro Cambiar de sexo,
coloca que: “o transexual nega que padece um transtorno psíquico, somente sofre
de um erro da natureza que não lhe deu o
corpo apropriado ao que se sente ser”.
A respeito de como se sente o transexual, vale a pena assistir Meninos não
choram, (Boys Don’t Cry, 1999) do diretor
Kimberly Peirce, um filme que, seguindo as ideias expostas no livro Cambiar
de sexo, expõe a vida de um transexual
feminino-masculino.
Confrontando a homossexualidade com o transexualismo, Bonnet (1992)
reforça que na homossexualidade há
uma repugnância pelo sexo oposto, que
conduz a uma rejeição definitiva e radical; enquanto no transexualismo há uma
repugnância por seu próprio sexo, que
conduz a uma mutilação irreversível.
Freud, em sua 21ª conferência, O desenvolvimento da libido e as organizações
sexuais (1933[1974], p. 375), assegura que
se as perversões forem descritas como:
[...] indicações de degeneração, ou o que
quer que seja ninguém ainda teve a coragem de classificá-las como algo que não sejam fenômenos da vida sexual. Apenas em
virtude delas justifica-se afirmarmos que
sexualidade e reprodução não coincidem,
pois é óbvio que todas as perversões negam
o objetivo da reprodução.
Freud trata, então, de definir a perversão em referência a um processo de negatividade e numa relação dialética com a
neurose. Em 24 de janeiro de 1897, numa
carta a Fliess, em Fragmentos da análise
de um caso de histeria (1905[1901]) e, em
seguida, nos Três Ensaios (1905[1974], p.
155), ele faz da neurose o negativo da perversão quando afirma que: “os sintomas
se formam, em parte, às expensas da sexualidade anormal; a neurose é, por assim
dizer, o negativo da perversão”.
Com isso sublinha o caráter selvagem, polimorfo e pulsional da sexualidade perversa: uma sexualidade infantil
em estado bruto, cuja libido se restringe
à pulsão parcial. De forma que a célebre
frase de Freud quer dizer que, mesmo que
existam muitos componentes parciais da
pulsão sexual, eles não podem ser consi-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009
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As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam
derados como perversões da sexualidade.
A tendência neurótica é a manutenção de
alguns desses componentes, substituindo,
assim, uma possível fixação numa única
prática sexual. Considerando estes fatores, se pode dizer que as fantasias inconscientes dos neuróticos se assemelham às
atitudes conscientes das pessoas perversas, ou seja, uma é o negativo da outra.
Portanto, o neurótico fantasia aquilo que
o perverso pratica.
Em Fragmentos da análise de um
caso de histeria (1905[1974], p. 54), defende que:
Todos os psiconeuróticos são pessoas de
inclinações perversas fortemente acentuadas, mas recalcadas e tornadas inconscientes no curso de seu desenvolvimento. Por
isso suas fantasias inconscientes exibem
um conteúdo idêntico ao das ações documentadas nos perversos.
Em Moral sexual civilizada e doença
nervosa moderna (1908), explica que define as neuroses como o negativo das perversões porque nas neuroses os impulsos
pervertidos, após terem sido reprimidos,
manifestam-se a partir da parte inconsciente da mente, e mais, porque as neuroses contêm as mesmas tendências, ainda
que em estado de repressão, das perversões positivas.
Em Cinco lições de psicanálise (1910
[1974], p. 43), mais especificamente na
quarta lição, Freud assevera que:
As neuroses são para as perversões o que
o negativo é para o positivo. Como nas
perversões, evidenciam-se nelas os mesmos componentes instintivos que mantêm os complexos e são os formadores de
sintomas.
E ao falar da semelhança entre atividade sexual infantil e perversões sexuais,
em sua 20ª conferência, A vida sexual dos
126
seres humanos (1917[1974], p. 369), verifica que:
Esta semelhança, contudo, é evidente: se de fato uma criança tem vida sexual,
esta não pode ser senão uma vida sexual
de tipo pervertido; pois, exceto quanto a
alguns detalhes obscuros, as crianças são
desprovidas daquilo que transforma a
sexualidade em função reprodutiva. Por
outro lado, o abandono da função reprodutiva é o aspecto comum de todas as
perversões. Realmente consideramos pervertida uma atividade sexual, quando foi
abandonando o objetivo da reprodução
e permanece a obtenção de prazer, como
objetivo independente.
ELUCUBRAÇÕES FINAIS
O perverso, então, seria aquele
que se empenha em destruir a lei, para
depois reconhecer dolorosamente que
ela é permanente? Poderíamos pensar
que o perverso seria alguém empenhado em distorcer, mesclar, triturar, liquefazer, metamorfosear, de tal maneira
a origem das coisas, que, ao final desse
processo caótico, nada mais pudesse ser
distinguido?
Seria, então, o perverso uma espécie de feiticeiro da realidade? Realidade
que ele não tolera e, por carregar consigo o germe da onipotência infantil, tenta
alterá-la construindo um mundo indiferenciado, onde ele e a mãe são unos, todos
os poderes emanam dele e a realidade é
aquilo que ele fabrica?
Pois bem, não é qualquer realidade que o perverso não tolera, ele distorce
tudo aquilo que pode confrontá-lo com a
castração, por causa da própria angústia
de castração.
Se a perversão está claramente delineada como uma condição intrínseca à
sexualidade humana, existiria perversão
em termos de patologia? O que Freud ressalta como patológico e aberração incon-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009
As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam
testável no que se refere à sexualidade, é
a utilização de pessoas sexualmente imaturas (crianças) e criaturas indefesas (animais), como objetos sexuais. Os desvios
perversos, típicos da sexualidade humana, poderiam ser considerados como sintoma patológico a partir do momento em
que se configurassem como fixação, ou
seja, o indivíduo passa a apresentar uma
limitação do prazer à determinada prática perversa, ocorrendo a substituição das
práticas normais.
Joyce McDougall (1997) corrobora este pensamento de Freud e designa o
rótulo de perverso para aquele indivíduo
totalmente indiferente às necessidades e
desejos do outro.
As perversões, como sintomas psicológicos, devem possuir um sentido, um
significado para o indivíduo. Para ela,
a prática sexual considerada patológica
representa não somente uma solução a
fim de evitar sofrimentos psíquicos insuportáveis – uma forma de sobrevivência
psíquica –, mas constituem também uma
tentativa de construir um sentimento de
identidade sexual. Poderíamos pensar que
a identidade sexual de cada ser humano
é construída na história de suas relações
objetais, por meio de um processo eminentemente psíquico. Por fim, McDougall utiliza a expressão neossexualidade,
em vez de perversão, para explicar essas
novas formas de organizações psíquicas
inovadoras, resultantes de intensos investimentos libidinais.
Recentemente, Roudinesco (2008,
p. 13) afirmou que “os perversos são uma
parte de nós mesmos, uma parte de nossa
humanidade, pois exibem o que não cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós mesmos”.
Muitas coisas ainda devem ser ditas sobre o funcionamento do psiquismo
humano. Freud, em suas elaborações teóricas, sustentava que o psiquismo era o
palco, por excelência, onde se encenavam
os dramas e as tragédias da angústia humana. Seu pensamento irrequieto se reflete em seus escritos deixando sempre
um movimento interno de inquietude em
quem acompanha a leitura de sua construção teórica. Nesse sentido, almejamos
que nossos estudos nos impulsionem
sempre a seguir buscando esse saber que
não se esgota nunca.
Keywords
Psychoanalysis; sexual perversions; paraphilia;
normality versus abnormality.
Abstract
This article covers the concept of perversion
through various Freudian texts. It pays particular attention to the Three Essays on the Theory of
Sexuality (1905) where Freud tries to develop an
understanding of the etiology of the perversions,
as opposed to popular opinion about sexuality,
in three basic points: the time of onset of sexual
drive, the necessarily heterosexual nature of the
object, and the limitation of the sexual object to
copulate. At this point Freud tries to define the
perversion in reference to a negativity process,
based on the axiom of the neurosis as the negative of the perversion. Thereafter he inserts the
perversions, such as the neuroses, as the core of
the Oedipus complex. In 1927 he defines, in the
article The Fetishism, the refusal of castration as
a key mechanism of perversion, the concept of
cleavage of the ego in a process of defense, and
the construction of the fetish as a substitute for
the maternal penis. Finally, the perversion is a
circumstance of the human species, and the arrangement that was possible to the subject, and
his struggle for mental survival.
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Tramitação Recebido : 30/06/2009
Aprovado : 28/08/2009
Nome : Maria das Mercês Maia
Muribeca
Endereço : Av. Nossa Senhora dos Navegantes 370 1º andar – Tambaú
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Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009
Um caso clínico em questão:
neurose ou psicose?
A clinic case and a theorical dilemma: neurosis or psychosis?
Nadja Ribeiro Laender1
Palavras-chave
Neurose, psicose, psicose ordinária, estrutura, sintoma.
Resumo
Este artigo se originou de um questionamento clínico da analista diante do impasse teórico colocado
pelo atendimento de uma cliente. Confrontar a orientação diagnóstica passível de depreender-se da
clínica psicanalítica freudiana e da clínica de Lacan é, portanto, o que nos levou a avaliar, a partir dos
diagnósticos, o alcance da teoria clínica da psicanálise praticada em nossos dias. Nesse confronto,
privilegiaremos as referências que possam articular-se ao que tradicionalmente se diagnosticava
como “neurose” ou como “psicose”, a problematizar e questionar essa divisão tradicional.
A clínica psicanalítica de nossos dias
depara-se com uma dificuldade a mais em
seu manejo: a palavra perdeu o seu poder,
o simbólico encolheu ou se modificou. Algumas pessoas que temos recebido parecem
ignorar solenemente o que seu sintoma quer
lhes dizer ou pouco se queixam dele. Apesar
de todo trabalho feito pelo analista tendo
como visada a retificação subjetiva, na esperança de que se instaure um sintoma analítico e a análise se inicie, e debalde todo o
esforço, o sujeito do inconsciente continua
adormecido, o que leva a indagar se os mitos
ou as narrativas em torno do sintoma estão
realmente escasseando ou estamos nos deparando com uma nova clínica que atesta a
falência de nossas ferramentas edipianas.
Embora haja diferença na apreensão
do sintoma, entre a psicanálise e a medicina,
em seus primórdios, era o olhar da medicina
que o nomeava, e as histéricas respondiam
com suas conversões a esse Outro do saber
médico. A medicina e a psiquiatria entendiam e entendem o sintoma como um distúrbio indicativo de um estado mórbido que
1
tem uma função de signo. O cliente se queixa, o médico faz um levantamento do sintoma através das evidências clínicas, enquadra
num diagnóstico a doença e utiliza a propedêutica adequada. O grande achado freudiano foi justamente o de subverter a noção de
sintoma como signo, que leva à sua leitura
causal, portanto exclui toda a sua significação subjetiva e o separa da noção de corpo
como organismo, demonstrado de forma
exemplar pelas histéricas. No entanto, a via
trilhada por Freud na apreensão do sintoma
parece estar em desacordo com o que estamos vivenciando em nossos consultórios. O
sintoma elevado à categoria de enigma, portador de uma mensagem cifrada do inconsciente, está cada vez menos frequente de ser
encontrado.
O caso clínico Maria das Dores, que
norteou esse artigo, chega ao consultório da
analista com relatos de somatizações constantes, que tem seu clímax em um “aperto”
no peito da cliente que a leva a ter a sensação
de sufocamento. Maria encarna a figura da
poliqueixosa médica. Ela frequenta os seus
Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Membro do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Membro da International
Federation of Psychoanalytic Societies.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009
129
Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?
consultórios sempre que um novo achaque a acomete, pois o seu corpo produz
dores diversificadas. Seu quadro clínico
se caracteriza pelos seguintes aspectos:
enorme dificuldade em falar, convívio
social restrito, fala colada no significante, simbólico muito pobre atestado por
não sonhar, não cometer atos falhos,
recordações sempre ligadas aos fatos do
presente e uma reclusão ao leito, que ela
mesma se impôs, diagnosticada pelos
médicos como depressão. As lembranças do passado aparecem em alguns momentos pontuais e encontram-se ligadas
a fatos traumáticos. Sua fala refere-se
quase sempre aos acontecimentos do
seu cotidiano, mas isenta de qualquer
crítica que a fizesse implicar-se em algo.
Falar para ela é um problema, pois “falar dói” e a faz ter sintomas que variam
de dor na garganta, a rouquidão, dor de
cabeça, potencializada por uma dor no
peito que a leva a pensar, algumas vezes,
em se esfaquear para ver se melhora.
Das Dores formou-se no segundo grau, tendo cursado magistério.
Exerceu, primeiramente, a profissão de
vendedora em uma loja de departamento, depois, com o seu fechamento, vai
trabalhar como ajudante de professora
numa escolinha infantil. Ela percebe,
então, sua dificuldade tanto motora (eu
era muito lenta para recortar, fazer os
cartazes para sala), quanto sua falta de
jeito para lidar com os pais dos alunos
(detestava ter que conversar com eles, sou
muito tímida, me sentia toda enrolada).
Pouco tempo depois é despedida e vai
conseguir um novo emprego em uma
empresa de transporte de sua cidade,
onde trabalha desde 2000.
Maria fala muito pouco, e conseguir dados mínimos para começar a
fazer um diagnóstico ou mesmo a montagem de um pensamento clínico demandou um esforço extra por parte de
sua analista, que ficou desde o primeiro
130
momento intrigada com os dados esparsos, pobres e desconexos e, sobretudo, a
ausência de sexualidade e alheamento
social de sua cliente.
Trabalhar com ela é um constante desafio. A sensação que se tem é de
que ela suga as energias do analista, testa
a sua paciência e, além de tudo, põe à
prova o seu saber, porque chegar a um
diagnóstico estrutural é complicadíssimo. Ora pode-se considerá-la psicótica
por sua fala colada no significante, pobreza de simbolização e uma transferência erotizada, ora uma histérica decidida
que demanda uma suplência de mãe,
por tê-la perdido ainda muito pequena,
alguém que dê fim à sucessão de abandonos ocorridos ao longo de sua vida.
Como sua questão corporal é hipertrofiada, trabalhar a palavra e seus significados não surte efeito. Ela não se escuta
e também não escuta as intervenções do
analista.
Das Dores foi criada pela tia paterna, que se muda para sua casa após a
morte de sua mãe enquanto ela era ainda
bem pequena. Sua tia assume o lugar da
mãe, mas é descrita como uma pessoa
cruel, que lhe batia com varinha de cipó
por qualquer motivo, deixando marcas
para que ela se lembrasse. Enquanto
apanhava, Maria não podia chorar nem
fazer escândalo, tinha que apanhar calada. O pai de Maria é um pai temível, que
batia por qualquer motivo nos filhos,
mas, inexplicavelmente, nunca encostou
um dedo em Maria. Seu universo familiar lhe parece hostil e propiciador de
conflitos. Sua história de vida consiste
em uma sucessão de abandonos e perdas ocorridos, em sua maioria, durante
a sua infância. Ela não conversa com a
tia, nem com o pai, nem com os irmãos.
Das Dores é a caçula de uma prole de
sete filhos, sendo dois irmãos e cinco irmãs. Todos são casados, exceto Maria e
um irmão que é toxicômano. Constan-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009
Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?
temente, ela briga com a tia e com o pai
por motivos banais. Diz não gostar deles, nem eles dela.
Após a leitura de um livro no qual
a protagonista tem problemas psicológicos devido a um estupro feito pelo
pai, Maria traz um sonho no qual uma
criança é estuprada. A cena consiste num
quarto meio escuro, no qual alguém segura seus braços, um outro força as pernas para que se abram e a criança sente
dor e sangra muito. Enquanto fala, Maria cruza as pernas com força e seu rosto
reflete desespero. Essa cena, logo após
o relato, é suprimida das sessões, mas
meses depois volta a ser relatada com
frequência. A partir daí, seu quadro clínico se desestabiliza, passa ao ato ingerindo grande quantidade de medicação
psiquiátrica, é submetida a uma cirurgia
ginecológica (retirada de miomas) e o
comportamento de automachucar acontece com mais frequência – retira a pele
do dedo mínimo do pé com alicate para
ver sangue. O sonho vira obsessão. As
dores no corpo recrudescem, seu relato
volta a ser monossilábico, seu mundo
se resume a permanecer na cama até a
hora do trabalho, ir às sessões de análise com o pedido de “me faz esquecer”,
“me deixa morrer”, “me diz uma palavra
de morte.” Atualmente, Maria apresenta
um quadro de anorexia.
Enfim, Das Dores pôs o analista à
procura de teorizações que possam fazer
entender a profusão de sintomas apresentados e delimitar dessa forma a sua
estrutura, propiciando assim um melhor
manejo clínico.
Os casos de Freud em Estudos sobre
a histeria (FREUD [1893-1895],1989),
Miss Lucy e Frau Cäcilie, possuem duas
explicações diferentes para as crises conversivas de suas clientes. No caso Lucy, a
questão da simbolização é predominante. Ao tornar consciente através da fala o
que ela não queria saber, o recalcado se
reintegra na consciência e deixa de ser
motivo de conflito. A conversão se deve
ao recalque da ideia incompatível com
o inconsciente e um órgão do corpo, no
caso, o nariz é superinvestido no momento da ocorrência da cena traumática. A dor psíquica é convertida em dor
somática, ou seja, ela faz uma conversão.
A questão simbólica fica bem evidenciada, assim como o sintoma como uma
formação de compromisso. Exemplo típico de uma formação substitutiva cheia
de indícios do inconsciente, esperando
por uma escuta atenta que possibilitaria
seu deciframento. No entanto, Frau Cäcilie é muito mais um exemplo de fenômenos histéricos que não passavam pela
via da simbolização e que apareciam
como uma dor corporal, devido a que a
descarga da angústia acontece de forma
direta no corpo da paciente, sem ter se
ligado previamente ao simbólico.
Se Freud, em seus primórdios,
descreve o sintoma como uma reminiscência de um trauma efetivamente
ocorrido, logo a seguir, vai se perguntar
sobre a facticidade do trauma, e o sintoma, apesar de continuar a ser um monumento ligado a um evento traumático,
não necessariamente verdadeiro, demonstra a força latente que impulsiona
o psiquismo humano. O sintoma, por
ser sobredeterminado, ilustra o conflito
entre as instâncias psíquicas e é passível
de desvelamento através de uma cuidadosa análise simbólica. Todo sintoma
possui um sentido latente à espera de
decifração, é como os sonhos e os atos
falhos à espera de uma interpretação.
No entanto, o que se encontra no caso
clínico de Maria das Dores é justamente
essa precariedade simbólica, muito mais
compatível com uma descarga direta da
angústia do que com um processo de
simbolização. Suas dores são dores que
a atormentam e não possuem nenhuma significação. O sentido do sintoma,
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009
131
Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?
numa perspectiva freudiana, não consegue explicar o seu padecer. O sintoma
não faz enigma para ela. O real do corpo
é muito mais avassalador do que qualquer tentativa de simbolização.
Mesmo dentro da perspectiva da
segunda tópica, com a descoberta da
pulsão de morte, da compulsão à repetição, do masoquismo primordial e
da reação terapêutica negativa, o sintoma freudiano encerra em seu bojo um
sentido recalcado, que inevitavelmente
esbarra no complexo de castração. Podemos concluir, então, que até o final de
sua vida, Freud manteve a posição do
sintoma como um enigma a ser descoberto e decifrado, e teve como objetivo
de uma análise a possibilidade de tornar
consciente parte do inconsciente que estava recalcado. Ele não explica a inércia
provocada pelo sintoma, por se tratar de
uma satisfação proveniente da vertente
pulsional, dificilmente redutível através
da fala; o lado de gozo do sintoma, embora sinalizado por ele, resta intocado.
Mas, seria Maria das Dores neurótica ou psicótica, se pensarmos com
Freud? A neurose e a psicose se originam
de um conflito entre o ego e o mundo externo. Na neurose há um recalcamento
das representações incompatíveis com
a realidade, o trabalho psíquico é para
manter essa representação recalcada fora
dos limites da consciência. O retorno do
recalcado, as formações do inconsciente, são um material precioso para trabalhar as questões emergentes em um caso
de neurose; o significante se apresenta
como um tesouro que sinaliza o mapa
da mina que leva ao inconsciente.
Na psicose, o ego se afasta de um
fragmento da realidade e tenta reconstruir uma nova realidade via delírio ou
alucinação. O mecanismo de defesa utiliza a regressão narcísica, que desinveste
o mundo externo e introjeta no ego uma
parte da realidade que foi abandonada, e
132
cujo retorno acontece no real. A nova realidade se adapta aos desejos do Id, mas
o preço pago pelo ego é a perda da realidade atestada de maneira exemplar nos
fenômenos delirantes e alucinatórios.
No entanto, Maria das Dores não
se enquadra na neurose, nem na psicose. Seu simbólico, pobre e inexpressivo,
possui pouca representatividade em
seu quadro clínico. Aliás, é um dado
que não permite que ela seja entendida como neurótica devido a uma vida
fantasmática precária, uma ausência de
sonhos e apego ao significado literal das
palavras. Seu mundo interno parece estar desinvestido, as lembranças do passado são escassas e sua fala está ligada
a dados concretos do seu cotidiano. Sua
pouca sociabilidade e atual confinamento ao leito podem ser indicativos de uma
fuga da realidade, mas ela é desprovida
de nenhuma crítica ou tentativa de mudança. Por outro lado, o diagnóstico de
psicose não acena no horizonte como
uma possibilidade. Ela não alucina, não
delira, não possui nenhum distúrbio que
se coadune com o que chamamos de psicose. Ela é apenas uma pessoa estranha,
introspectiva, solitária e infeliz, ou esses
adjetivos indicam uma classe de casos
cuja simples pronúncia arrepia os analistas mais ortodoxos, como borderline,
casos de difícil acesso, inclassificáveis.
Diante de tal impasse, recorremos
à literatura psicanalítica e encontramos
Joyce McDougall e a figura de seu analisando robô ou antianalisando. Em seu
livro, Em defesa de uma certa anormalidade (MCDOUGALL, 1983), ela nos
pareceu muito investida na busca de entendimento e melhoria de seu fazer psicanalítico, além de se mostrar profundamente impressionada com as questões
contratransferenciais suscitadas por tais
clientes. A descrição que ela faz do antianalisando revela-se animadoramente
parecida com o que tínhamos encon-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009
Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?
trado em Maria das Dores. São clientes
que não entram em análise, provocam
sono, fazem o analista sofrer devido às
suas intermináveis repetições e explicações, que os levam a parar de escutá-los,
pois toda intervenção é sentida como
fora de sentido e, obviamente, eles são
refratários a qualquer mudança possibilitadora do novo. Possuem um sistema
de crenças imutável, a organização de
seu mundo é fixada pela inalterabilidade
das regras, criam conceitos e explicações
para si, como uma maneira de forjar sua
identidade própria, e nunca faltam às
sessões. Apesar da similaridade da sintomatologia e dos percalços relatados por
ela, e sentidos também por nós, não há
uma definição quanto ao seu diagnóstico. Eles parecem não ter tido um recalcamento, mas também não apresentam
nenhum fenômeno psicótico. O antianalisando continua no limbo fronteiriço
entre a neurose grave e a psicose.
Porém, se Freud não explica,
McDougall descreve, mas não decifra, e
o primeiro Lacan mostra-se insuficiente
para se entender o quadro clínico Maria
das Dores. É necessário, mais uma vez,
buscar novos paradigmas.
O grande debate ocorrido durante
as Conversações de Arcachon e de Antibes se configurou como um momento
fecundo de troca de experiências, que
culminou no desenvolvimento de uma
teorização clínica, que ainda está sendo estudada e demonstra todo frescor e
força de uma teoria, atenta às mudanças
do seu tempo. Não se acovardou frente
ao desafio e produziu, estando em plena
efervescência, uma reorientação teórica
essencial para que possamos esclarecer
os casos tidos antes como inclassificáveis e hoje, sob nova ótica, como uma
psicose ordinária.
O diagnóstico estrutural na primeira clínica baseia-se na presença ou
na ausência do Nome-do-Pai. Nome-
do-Pai sim é uma neurose. Nome-doPai não é uma psicose. Por muitas décadas, a questão diagnóstica baseou-se
neste conceito, que se mostrava como
um balizador seguro. Até hoje, ele permanece como um conceito axial, mas as
novas leituras dos últimos seminários
de Lacan descortinaram um novo campo conceitual rico e fecundo. Porém,
sabemos da dificuldade encontrada no
caso Maria das Dores diante da questão
diagnóstica. A primeira clínica e a sua
conceituação de psicose é centrada na
problemática da castração e de diversas
manifestações clínicas devido à ausência
do significante Nome-do-Pai e sua consequente falta de significação fálica: P0 e
Φ0. Essa ausência de significante pode
ser detectada clinicamente pelo aparecimento de fenômenos alucinatórios e
distúrbios de linguagem indicativos de
P0. Assim como também Φ0 pode ser
sinalizado pela presença de ideias delirantes ligadas à sexualidade e ao corpo,
algumas passagens ao ato do tipo automutilação, suicídio e a mortificação do
gozo e algumas disfunções corporais.
Lacan, ao descrever a psicose
de Schreber, determina passos vitais
que, de um modo geral, caracterizam
os desencadeamentos nas psicoses
extraordinárias:
1. Apelo ao significante foracluído do Nome-do-Pai.
2. Formação de P0.
3. Formação de Φ0.
Maria das Dores não apresenta um
momento de encontro com Um pai, nenhum indício de P0, no entanto, apresenta sinais de Φ0. Se Φ0 está na dependência
de P0, como tal fato é possível? De novo,
a primeira clínica não consegue responder com o seu arsenal teórico conceitual
a questão diagnóstica de nossa cliente.
Frequentando o núcleo de psicose
da Escola Brasileira de Psicanálise, seção
Minas Gerais, de Raul Soares, tivemos
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009
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Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?
contato com o conceito de psicose ordinária ou psicose não desencadeada.
Alguns dos internos que eram entrevistados nas apresentações de paciente
também não apresentavam fenômenos
delirantes ou alucinatórios e, no entanto, o seu diagnóstico clínico era o
de psicose. Revelou-se importante perceber que, quando o sujeito não apresenta sintomas de uma psicose clínica
e chega até nós com uma inconstância
nas identificações, uma desorientação
quanto a sua existência, estes são indícios que podem nos ajudar a diagnosticar uma psicose ordinária. Com o
conceito de psicose não desencadeada
ou psicose ordinária, pretende-se definir um funcionamento psicótico do
sujeito, sem que se possa localizar um
momento efetivo do desencadeamento
da psicose. De fato, o desencadeamento revela, sem nenhuma dúvida diagnóstica, a existência de uma estrutura
psicótica do sujeito. Quando ocorre o
desencadeamento, esse produz efeitos
clínicos (delírios e alucinações) inerentes ao que Freud nomeou como um
“inconsciente a céu aberto”, e Lacan
explicou como sendo o retorno no real
daquilo que não foi simbolizado devido
à ausência de significação fálica.
Massimo Recalcati, em seu texto
Psicose não desencadeada (Recalcati, 2003), teoriza sobre desencadeamento afirmando que a ausência de transtornos de linguagem não deve ser considerada como um fator conclusivo para que
se descarte o diagnóstico de psicose. Se
o desencadeamento com seus fenômenos elementares não se acha presente na
história de vida do sujeito, uma maneira segura de se chegar até o diagnóstico
de psicose é procurar o modo particular
com que o sujeito estrutura sua relação
com o Outro e com o gozo, ou, ainda, se
o sujeito apresenta fenômenos que afetam o corpo. Ele lista cinco índices que
134
podem referendar uma posição psicótica do sujeito:
1. Uma mortificação real e não simbólica do sujeito, que se apresenta clinicamente como uma deserotização
e desvitalização do corpo
O corpo na neurose é um corpo
colonizado pelo significante do Outro,
que transforma o corpo biológico em
corpo pulsional mediante o tratamento
significante que esvazia o gozo do corpo,
o mortifica, desloca-se e se condensa em
suas zonas erógenas. A não incorporação significante implica um defeito de
erotização do corpo presentificada pela
agressividade, auto e heterodestrutividade, passagens ao ato e operações de
anulação da vitalidade do corpo, e são
exemplos da desfusão pulsional descritos por Freud em O problema econômico
do masoquismo. A pulsão de morte aparece no aparelho psíquico sob a forma de
agressividade, que é desviada para fora
devido à ação da pulsão de vida. Como
a pulsão de morte e a pulsão de vida não
aparecem sozinhas, por se misturarem
em graus variáveis, a sua fusão designaria um grau elevado de mistura entre as
duas, e a desfusão indicaria um funcionamento quase que separado das duas
espécies de pulsão, mostrando a face
mais pronunciada da pulsão de morte
– a agressividade. Recalcati nomeia essa
desfusão pulsional como mortificação
real do corpo que, segundo ele, “demonstra uma espécie de abolição total
do desejo ditado pelo predomínio – fora
do discurso – da pulsão de morte”.
No caso clínico Maria das Dores,
a questão da mortificação real do corpo aparece como um exemplo digno
de nota. O seu corpo parece ser muito
mais um corpo deserdado pelo significante, devido à ausência de erotização
pelo Outro materno, do que um corpo
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009
Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?
pulsional que demandaria a nomeação
do Outro. As dores no corpo, os vômitos
constantes e o emagrecimento acentuado de Maria das Dores são exemplos indicativos de uma desvitalização do corpo, assim como também demonstrativo
de uma deserotização. A sua depressão
com traços melancólicos, o seu desinvestimento libidinal nos laços sociais
vêm confirmar essa hipótese.
2. Transformação da falta em orifício
do corpo percebido como real por
parte do sujeito
Devido à ausência de significação
fálica, as zonas erógenas podem ser sentidas pelo sujeito como orifícios que se
impõem em sua dimensão de real. Recalcati afirma que se trata de um indicador preciso da não localização do gozo
nas zonas erógenas, posto que a significação fálica não ordena simbolicamente
os objetos pulsionais (oral, anal, invocante, escópico). Assim, no caso Maria
das Dores, não foi observada a ocorrência desse fenômeno, embora tendamos a
localizar o seu problema na ausência de
significação fálica.
3. Uso de apoio (Anlehnung) da imagem do outro exemplificado pelas
aderências identificatórias a pares
imaginários que funcionam como
suporte narcísico
Indicativo de uma ausência do
Nome-do-Pai e de um suporte simbólico, evidencia a posição dual do sujeito que pode chegar até a representação
mimética do outro. Se há uma ruptura
desse par imaginário, a psicose que estava sustentada por esta identificação se
desestabiliza e ocorre o surto psicótico.
Tal fato também é observado por
McDougall em sujeitos normopatas. O
par imaginário é formado a partir de
uma identificação do sujeito com figuras
de autoridade: com o pai, com um significante que venha nomear a lei, com o
outro especular ou mesmo com algum
ideal imposto pela cultura.
Esta aderência imaginária remete
ainda ao conceito de compensação imaginária, descrito por Lacan em seu Seminário 3, As psicoses (LACAN [19551956],1988). Igualmente, a pessoa se
utiliza de próteses imaginárias para
compensar a ausência de simbolização.
A relação especular é que possibilita o
não-desencadeamento do sujeito.
A seção clínica de Aix-MarseilleNice, na Convenção de Antibes (DEFFIEUX; SAGNA, 1999), também teoriza
essa questão nomeando-a como sobreidentificação. Ela pode ser observada
em sujeitos pré-melancólicos que apresentam toda uma série de traços muito
mais normativos do que vinculados a
questões do ideal do eu. Uma contradição entre dois traços frequentemente
leva ao desencadeamento.
São traços indicativos de uma
identificação literal ao traço significante
e não com a sua função de representação. Esses traços são tomados do Outro, traduzem uma cópia de um tipo de
ideal, não advindo do eu (moi), mas da
norma social. Trata-se de uma efetividade imaginária que leva a uma articulação da identidade do sujeito e se produz
pela equivalência do sujeito a cada um
dos seus traços, sendo, portanto, compatível com o registro do imaginário e
a adequação biunívoca entre o sujeito e
sua imagem.
A suplência ocorre na articulação
do imaginário e do real, possibilita a sua
montagem e desmontagem e explica
a estabilidade desse tipo de suplência.
Apesar disso, o desencadeamento (sempre latente) pode ocorrer por um motivo corriqueiro, situado, às vezes, mais
no imaginário do que no simbólico, sua
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009
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Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?
ocorrência se deve à perda da cobertura imaginária que desestabiliza o sujeito e provoca a eclosão do desencadeamento. A cura se dá pela nova aderência imaginária que irá reconstruir suas
identificações.
Parece-nos que a descrição feita
acima reafirma e corrobora a tendência,
detectada não só por Lacan e Recalcati,
mas também por McDougall, de sujeitos
que, por aderirem a ideais impostos pela
cultura, conseguem de alguma maneira,
apesar da ausência da metáfora paterna,
se manter instáveis apropriando-se das
insígnias dos Outros e fabricando para
si vestimentas feitas com remendos imaginários, que intermedeiam sua relação
com o mundo.
Quanto à cliente Maria das Dores,
essa identificação aparece muito mais
na transferência com a analista do que
com pessoas de seu convívio cotidiano.
Sua transferência é eivada de erotismo,
o que se demonstra por sua piora todas
as vezes que sua analista tira férias ou
por sua raiva quando ocorre algum atraso em seu horário. Também é digno de
nota o fato de Maria jamais ter faltado às
sessões durante esses anos todos.
4. Presença de práticas ou de alterações no corpo com a finalidade
de introduzir no real a função de
castração
As mutilações, as inscrições sobre
o corpo e as práticas anoréxicas ou bulímicas são tentativas de inscrever no real
do corpo a castração que não ocorreu
no simbólico. Se por um lado ocorre, na
neurose, uma falha na inscrição da significação fálica ao se formar a imagem
do corpo próprio, de tal sorte que uma
espécie de S1 vem preencher essa falha
da imagem fazendo as vezes do falo; por
outro, na psicose, as marcas no corpo
têm a função de borda como contenção
136
de um gozo sem limites. As marcas no
corpo produzem um efeito de armadura
que detém o gozo, impedindo-o de ir ao
encontro de sua infinitização. Mas, se o
gozo infinito na psicose rompe os diques
que o contêm, ele pode acarretar toda
sorte de mutilações no corpo. Pode-se
aventar que a condição do não-todo na
psicose não garante as bordas necessárias para conter o gozo infinito, de sorte
que ela lança mão da mutilação e de outras formas de inscrição no corpo para
delimitá-lo, assim como também pode
ser um recurso de extrair o gozo não regrado da psicose.
Recalcati descreve a anorexia
como uma tentativa de separar o significante do corpo que leva a uma desvitalização, entendida como uma “castração atuada do gozo excessivo”. Segundo
ele, essa prática é frequente em sujeitos
psicóticos que não desencadearam suas
psicoses.
No nosso entender, o quadro de
anorexia apresentado por Maria das
Dores nos últimos meses evidencia de
maneira surpreendente essa tentativa de
separação ou expulsão do mal-estar inominável que a acomete. Não podemos
deixar de rememorar a sua atuação de
retirar a pele do dedo do pé, após alguma sessão em que ela se sentia particularmente angustiada, como uma extração do mal-estar inominável que a acometia e hoje é deslocado para o sintoma
anorético.
5. Dificuldade de se inscrever em um
vínculo social estável
Há um desligamento gradual do
sujeito com o Outro até chegar ao isolamento ou à errância. Na Conversação de
Arcachon (SAGNA; DEFFIEUX, 1998),
Hervé Castanet apresenta um quadro
clínico em que o sujeito vai se desligando aos poucos das coisas do cotidiano,
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009
Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?
até chegar à errância e sumir no anonimato da multidão. Ele faz pequenas rupturas, configurando um processo lento e
gradativo em que ele vai se desconectando do trabalho, da família, até chegar
ao abandono de seu analista. Sua queixa recorrente é “Vivo no nevoeiro”. Finalmente, ele desaparece engolido pelo
nevoeiro.
Quanto a Maria, esse movimento de desligamento gradativo do Outro
vem se apresentando sob a forma de depressão. Tudo se configura a partir de seu
término com o namorado e da primeira
experiência sexual adulta. Só depois ela
apresenta o quadro de depressão, que
ao longo dos anos vai impedi-la de ir a
barzinhos, dançar, namorar ou mesmo
ir à igreja. Se ela ainda está trabalhando,
deve-se ao fato de estar indo ao analista,
que tenta impedir que mais esse laço se
desfaça.
A possibilidade de haver um quadro de psicose sem o aparecimento de
um desencadeamento abre uma nova
perspectiva no estudo das psicoses: as
psicoses ordinárias.
A questão concernente às psicoses
ordinárias é justamente desvelar novos
meios de abordar uma clínica que não
responde mais a uma abordagem típica,
centrada no mito edípico e no Nomedo-Pai. Desse modo, articular Nomedo-Pai e sintoma mostrou-se mais do
que necessário para entender o percurso
de Lacan até a segunda clínica.
O deslocamento da primeira clínica começa paulatinamente com os
conceitos de Nome-do-Pai e sintoma.
A pluralização dos Nomes-do-Pai se faz
em paralelo com a passagem do sintoma prenhe de sentido, passível de deciframento, lugar-tenente de um inconsciente estruturado como uma linguagem, para o sinthoma que está fora do
inconsciente, que usa o nó borromeano
para enodar o simbólico, o imaginário e
o real. No final, o Nome-do-Pai não vai
passar de um sinthoma, ao localizar o
gozo do sujeito e articular sujeito e linguagem. Do mesmo modo, uma amarração sintomática pode enlaçar os registros sem a presença do Nome-do-Pai, o
que nos leva a concluir que o ponto de
amarração pode ser tanto o Nome-doPai quanto o sintoma.
Vamos dizer que essa concepção
da clínica do sintoma surge como uma
contraposição à primeira formalização
dos tipos de sintomas denominada descontinuísta, porque exatamente a clínica
descontinuísta se baseia no fator ordenador do Nome-do-Pai. O Nome-doPai é tido como um elemento que faz
parte do sistema; ao mesmo tempo em
que está fora, ele está dentro, mas está
dentro de maneira a ordenar os elementos do sistema.
Já na clínica do sintoma, na clínica da aparelhagem do sintoma, na clínica borromeana, vamos encontrar uma
perspectiva continuísta que enfatiza não
as oposições, mas as gradações. O que
interessa não é o fator diferencial, não é
o elemento do sistema, mas sim o fato
de que há diversas formas de aparelhamento do gozo. O que diferencia, portanto, não são mais as oposições, mas as
distintas espécies, formas, meios de aparelhamento, as formas de enlaçamento
dos diferentes registros.
A grande inovação de Lacan na
segunda clínica foi tratar a variabilidade e as gradações dos tipos de sintoma e
recorrer ao uso das topologias dos nós.
Com relação à variabilidade do sentido, não é mais o elemento ordenador
que interessa, mas o próprio sistema, a
própria configuração, a própria maneira
em que se dá, em que ocorre o chamado
ponto de capitonê. As formas de sentido,
a variabilidade de sentido do sintoma
continua existindo, a varité (Neologismo criado por Lacan com a junção das
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009
137
Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?
palavras francesas variété e vérité. Varité
= vari(é)té + vérité) do sintoma continua existindo, mas ela não decorre mais
da presença desse efeito organizador do
Nome-do-Pai, decorre sim das distintas formas de amarração e de grampeamento dadas pelo aparelho do sintoma.
A varité do sintoma já não tem relação
com o sentido, mas sim com a verdade
do sujeito. Uma verdade que é variável,
que retorna das falhas do saber, que denota a variedade de verdades que estão
envolvidas no sintoma. Sob esta ótica, o
elemento só interessa quando levado em
consideração o sistema. Então, os diversos elementos presentes não interessam
mais. Eles não devem ser considerados
como na sua própria lógica interna, mas
devem ser considerados na medida em
que fazem parte de um sistema de organização, de articulação.
Então o Nome-do-Pai vale menos
pelo fato de constituir-se como o elemento crucial para produzir uma ordenação
do que pela sua equivalência aos sintomas. Se o fator crucial do Nome-do-Pai
com relação aos outros elementos era
preservar o seu valor transcendente do
sistema, agora ele vale como sendo um
equivalente à própria aparelhagem do
sintoma. Ele assume um valor inerente,
intrínseco ao próprio sintoma.
O modo de enodamento particular à estrutura de Joyce, que prescinde
do Nome-do-Pai, torna-se o paradigma
do sintoma lacaniano. O enodamento
não-borromeano do imaginário, real,
com um simbólico operado por um ego
costurado por um sintoma de escritura,
é entendido por Lacan como um desabonamento do inconsciente, porque a
articulação de sua cadeia significante S1
– S2 não remete a nenhuma significação
dada pelo Outro, é letra sem Outro, que
localiza e fixa um gozo opaco. O sinthoma torna-se o quarto termo, que na topologia aparece como o quarto nó, que
138
pode ser ou não borromeano. O sintoma passa a ser definido como a maneira
pela qual cada um goza do inconsciente,
enquanto o inconsciente o determina, e
se antes a questão da metáfora abordava
o processo de fala, agora o que se busca
é o processo de escrita do gozo.
Para Lacan, o sinthoma tem como
função reparar a falha estrutural do
enlaçamento. Ele é o quarto elemento,
suplência à função do pai, considerado
como um dos Nomes-do-Pai, porque,
além de fixar o gozo na letra, ele é um
elemento que prescinde da cadeia de
significantes e que tem como função a
nominação ao enlaçar os outros três registros: o real, o simbólico e o imaginário. Lacan, tendo em mãos o conceito de
sinthoma, constrói um novo avatar para
a psicanálise, a clínica das suplências,
que é também chamada de foraclusão
generalizada ou a clínica do real; quer
dizer, a lei do sujeito se encontra em seu
sintoma, é o que ele tem de mais particular, une em um traço o significante e
o gozo.
No nosso entender, a grande virada lacaniana concernente ao sintoma é
a possibilidade de o sintoma existir sem
ser necessário um conflito. Miller acredita que a segunda clínica, ao privilegiar
o sintoma sem o conflito, desarticula
a questão do sofrimento e delimita a
questão do gozo. Ele diz: “A dificuldade
é retirar a perspectiva de conflito apesar
do sofrimento e privilegiar o real da satisfação. A clínica dos nós é uma clínica sem conflito (MILLER, 1997, p.52)”.
Miller diz que se trata de uma clínica de
enodamento e não de oposição, por se
caracterizar muito mais como uma clínica de arranjos, que permite a satisfação, do que uma clínica cuja questão é
o sofrimento. Essa afirmação parece vir
a calhar com o que se encontra hoje na
clínica psicanalítica. Os pacientes que
procuram os analistas não possuem
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009
Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?
uma pergunta sobre o seu ser e, além do
mais, não querem se fazer perguntas que
os levem a uma busca interior. O que os
incomoda é uma inadequação ao status
quo vigente, que desestabiliza a rotina
de suas vidas enquadradas num consumismo alienante, possibilitador de um
arremedo de ser.
O processo apresentado por Maria
das Dores coloca em evidência uma estrutura original do sintoma encontrado
em alguns casos de psicose ordinária. Na
ausência de qualquer tipo de desencadeamento, o seu sintoma pode ser atribuído
a Φ0. Nos embasamos no fato de que o
falo é o significante do sexo, intermedeia
as questões do amor e das relações sexuais, localiza o sujeito do lado homem ou
mulher na sexuação e ainda significantiza o ser do sujeito; por isto, no nosso entendimento, os problemas de Maria das
Dores são da ordem de Φ0. Ela constrói
uma representação de seu ser que ajuste
o trauma ocorrido em sua infância, encarnado em seu corpo por uma dor que
o contorna e o sustenta. O gozo de seu
sintoma se inscreve em seu corpo como
dor, “um aperto” que se desloca a seu belprazer e a torna prisioneira de um gozo
cuja significação lhe escapa totalmente. A significação sexual lhe escapa por
completo; ela quer transar porque todas
as moças fazem e gostam, uma tentativa
especular para ser normal, igual a elas.
No entanto, à menor possibilidade de realização do ato, ela entra em angústia e se
afasta o mais rápido possível da cena.
A segunda clínica privilegia muito
mais flexibilidade nas amarrações e enlaçamentos que cada sujeito faz com seu
sintoma e as soluções encontradas por
ele para se estabilizar. Além do mais,
mesmo a noção tão estranha a princípio
de Φ0 sem a ocorrência de P01 pode ser
entendida se pensarmos que a maneira
singular que Das Dores arrumou para
si foi a de ter um aperto, um sintoma
que faz grampo, dá um significado a sua
existência e que a acompanha desde sua
infância, que a faz viver um pouco diferentemente dos outros, mas inserida
num laço social mínimo. O que importa
na clínica borromeana é a varité do sintoma, as diversas formas de enlaçamento, o aparelhamento de gozo que cada
sujeito engendra para si. É o saber fazer
com o sintoma, servindo-se dele.
Para finalizar, gostaríamos de
marcar um fato curioso. Por ser uma teoria que ainda está em elaboração, ela se
apropria de significantes de uso cotidiano como grampo, laço, enodamento, enlaçamento, ligar ou desligar, assim como
de muitos termos referentes à primeira
clínica, que são empregados para explicar os fenômenos específicos da segunda
clínica. As operações para um tratamento nãoedípico do gozo, como a compensação imaginária, a metáfora delirante e
a suplência frequentemente são citadas
nas Conversações de Arcachon (SAGNA;
DEFFIEUX, 1998) e em Antibes (DEFFIEUX; SAGNA, 1999), embora com
conotações diferentes de seu emprego
anterior. Enquanto na primeira clínica
o sentido era dado pela articulação fornecida a posteriori, hoje o que encontramos é o termo grampo para exemplificar a amarração dos quatro registros,
mas ainda assim utilizando-se do ponto
de capitonê como referência. Temos a
impressão de que a variedade, as gradações e os diversos enodamentos, que demonstram a fluidez da segunda clínica,
aparecem também na flexibilidade de se
nomear seus instrumentos.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009
139
Um caso clínico em questão: neurose ou psicose?
Keywords
Neurosis; psychosis; ordinary psychosis; structure; sinthome.
Abstract
This article is based on a clinic case that led
the analyst into a theorical dilemma. It reflects a gap between neurosis and psychosis,
the classical psychoanalytic division. It seems
that the Freudian or the structuralist perspectives are uncapable of answering what we
currently see in some of our clients. This article looks for new approaches that may help
to deal with these issues
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Zahar, 2001. p.161-183.
Tramitação Recebido : 24/06/2009
Aprovado : 27/08/2009
Nome : Nadja Ribeiro Laender
Endereço : Av. Francisco Salles, 1614 /
604 – Santa Efigênia
CEP : 30150 – 221, Belo Horizonte/MG
Fone : (31) 3281-9689 / Fax: (31) 32871170
E-mail : [email protected]
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009
A criança em situações de adoção
e a clínica psicanalítica:
o registro identificatório e os recursos no
processo de simbolização
The adopted child and the psychoanalysis:
the identificatory register and the sources in the symbolization process
Noeli Reck Maggi1
Palavras-chave
Adoção, registro identificatório, processo de simbolização.
Resumo
O trabalho aborda as marcas originárias, desde a constituição, do psiquismo humano em crianças
que são adotadas e faz referência a casos clínicos em que as associações transferenciais revelam a
possibilidade de retranscrição da história do paciente. O texto traz elementos sobre a formação psíquica
e as manifestações sintomáticas que podem se manifestar a partir da perda do objeto originário materno.
A análise teórica e a ilustração com os casos da clínica psicanalítica fundamentam-se especialmente
na perspectiva de Piera Aulagnier, Françoise Dolto, Donald Winnicott e Silvia Bleichmar.
A ADOÇÃO E A CONSTITUIÇÃO DA
SUBJETIVIDADE
O tema da adoção e a análise de casos
clínicos acompanhados de reflexão teórica
constituem o presente estudo. As vivências
traumáticas de crianças que são expostas a
experiências de abandono e de desamparo
desde o estabelecimento dos primeiros vínculos produzem um efeito que se traduz em
reflexão e possibilidade de novas perspectivas
de trabalho, tanto para gestores institucionais
quanto para profissionais na área da saúde. A literatura referente a este tema remete
às experiências dos vínculos iniciais entre a
criança e os pais, sejam os adotivos, sejam os
biológicos. A criança, por encontrar-se em
momento de extrema fragilidade, expressa-se
pela necessidade de sobrevivência; o adulto,
por desejar a adoção, expressa-se pela ansie-
dade e expectativa de que seus objetivos sejam atendidos. Se, por um lado, a criança que
vive o caos desintegrador do pós-nascimento
experimenta a necessidade de um ambiente
acolhedor, por outro lado, o adulto, ao iniciar
com a criança a formação dos primeiros vínculos, pode estar confuso por reviver a sua
experiência primitiva das relações de objeto.
Há que se ter entendimento sobre
quanto a criança e o adulto encontram-se em
situação caótica, embora se suponha que seja
o adulto, como portador do objeto contensor,
que possibilite à criança dar sentido ao que
está experimentando. Esses estudos não preenchem as lacunas a respeito deste tema, embora procurem clarear cada vez mais nosso
atendimento, seja como gestores de instituições dedicadas ao cuidado da infância, como
pais, educadores ou psicanalistas. O trabalho
aqui desenvolvido fundamenta-se na teoria
1 Psicóloga. Psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Doutora em Educação pela UFRGS. Professora do Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.141-146 – Novembro. 2009
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A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: o registro identificatório...
psicanalítica, especialmente em autores que
dedicaram estudo às primeiras inscrições
psíquicas na constituição do sujeito humano:
Aulagnier (1979), Winnicott (1975, 1993),
Dolto (2006), Bleichmar (1994).
Silvia Bleichmar (1994) afirma que,
no psiquismo de crianças adotadas ou que
sofreram algum tipo de negligência, há uma
interrupção no encadeamento entre o que o
sujeito viveu num momento prévio da vida
e o momento atual. A fratura é uma representação mal localizada, refere-se a algo que
ficou nas margens do sujeito, significando
um rompimento. O sujeito ficou aprisionado
numa posição imaginária, sem condições de
reordenar o desejo na ordem simbólica.
As primeiras inscrições maternas
parecem definir as possibilidades do metabolismo das referidas marcas por parte da
criança. O suporte do acolhimento materno tem de estar presente desde os primeiros
tempos de instalação do processo arcaico e
originário, mas também terá de ceder lugar
ao pai (função paterna) para poder enfrentar as rupturas subsequentes. Ao separarse do objeto originário, a criança necessita
transcrever a sua história para não revelar
através do ato alguns nexos que não permitem a interpretação da sua experiência.
A análise pode tecer o entramado do
que não foi falado, mas reendereça a uma
representação mal localizada. Quando se
fala dos primeiros tempos da constituição
psíquica, abre-se a possibilidade de pensar
os movimentos e as falhas no ordenamento
do desejo e no processo de subjetivação.
A atividade clínica pode facilitar a nomeação dos elementos que tecem a trama inicial da vida do sujeito, até então impedida de
se tornar consciente. Os movimentos do paciente e do psicanalista se superpõem e podem
transcrever, através das associações transferenciais, o que está à margem de ser instaurado como experiência psíquica própria.
Vera tem oito anos e vem ao consultório acompanhada de uma tia paterna. O
motivo da consulta é, segundo os familiares,
o excesso de retraimento e a falta de diálogo,
especialmente com a mãe. A menina revela
142
dificuldade de relacionamento com as irmãs
e resistência para se identificar com as normas e rotinas estabelecidas pela família. Expressa-se de modo mais espontâneo na escola, quando está entre colegas de aula. Nas
festas, prefere ficar próxima de pessoas com
maior idade; sente-se, dessa forma, mais descontraída. Durante o trabalho clínico, vai aos
poucos falando das suas dificuldades.
É filha adotiva e diz não saber quem
são os seus pais biológicos. Expressa dúvidas
sobre as razões da sua adoção e justifica esse
sentimento porque nunca lhe foram confirmados os verdadeiros motivos por que os
pais biológicos a abandonaram. Através do
contato que estabelece com as pessoas, necessita confirmar que é amada, reconhecida e
verbaliza seu desafeto frente aos maus tratos,
molestamento ou exclusão que observa no
seu contato social. Expressa, através do trabalho clínico, sofrimento e angústia quando
fala da infância inicial. Vive em uma família
que diz tê-la adotado como filha, embora os
registros de identificação tragam o nome dos
avós paternos. No atendimento clínico, Vera
manuseia e observa atentamente os detalhes
dos braços e pernas de uma boneca retirada
dentre jogos e demais brinquedos. Tece comentário sobre as lesões no corpo da boneca
e levanta como possibilidade a agressão física
de um adulto. Nesse momento, Vera desfaz-se
da boneca e lembra a fala de sua avó quando
ainda pequena, em um tempo da sua infância
durante o qual não gostava de se alimentar.
Vera parece viver em busca de uma filiação. Seu nome, os documentos legais, os espaços por ela ocupados não dão sentido à sua
existência; necessita a cada dia reeditar a sua
história. Compartilho dos seus momentos de
dor durante a análise, especialmente ao sentir
a paciente buscar sentido no que faz, falar de
seus desejos e vivenciar o caos interno para
reconhecer-se como pessoa diferenciada. Por
vezes elege uma pessoa a quem idealiza e com
a qual se identifica maciçamente como uma
forma de recuperar a sua subjetividade. A tia e
madrinha que a acompanha desde os primeiros tempos da adoção e que ainda faz o papel
de mãe totalmente boa é a pessoa a quem Vera
dedica seus afetos mais genuínos.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.141-146 – Novembro. 2009
A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: o registro identificatório...
Medo, ódio e idealização são revividos com frequência pela paciente, que parece não conter a angústia de fragmentação
experimentada quando bebê. Na mesma
intensidade em que manifesta seu apreço e
apego ao trabalho desenvolvido nas sessões
clínicas, expressa rechaço diante das intervenções, conferindo, de modo persistente, a
presença de um adulto que possa suportar
e conter a sua ansiedade. O abandono aos
três meses de idade, a fragilidade nas relações objetais dos primeiros tempos de vida,
a ausência da palavra que dá nome à sua
pessoa através da função materna e paterna necessitam de uma reconstituição. Aos
poucos Vera se autoriza a falar e reconstituir
imagens dos objetos internos a partir das
pessoas, espaços e objetos de suas relações.
Sua persistência e assiduidade às sessões
clínicas, as manifestações espontâneas enquanto joga, e as associações com situações
do cotidiano parecem permitir à criança
abandonada a reescritura da sua história.
Para falar do psiquismo em crianças
adotadas, Bleichmar (1994) busca na atividade clínica as marcas identificatórias da mãe
sobre o filho. Segundo a autora, o elemento
que aparece através do ato não foi transcrito. Seu estatuto não é interpretável, apenas
possível de ser ligado, e isto coloca o analista
na posição de estabelecer nexos, nos quais a
ponte deve ser construída, já que as vias estão
rompidas. Nesses casos, produziu-se uma fratura na simbolização. O narcisismo derivado
da função materna exerce função na constituição do psiquismo, nos modos de inscrição e de ligação do que a autora denomina o
entramado de base, de modo a impedir que
a identificação caia no vazio. A passagem do
autoerotismo ao narcisismo é propiciada nos
cuidados precoces da mãe, nas ligações que
ela proporciona a partir da diferenciação instaurada pela própria sexualidade.
No relato de um caso clínico, Bleichmar
(1994) apresenta as condições em que João,
um menino com sete anos e que foi adotado aos quatro meses, desenvolve um jogo no
qual se organizam e se desarticulam situações
de conflito no decorrer de sua infância. O me-
nino separa animais hostis dos que não o são,
através de cercas de plástico que caem a cada
momento. Ao perceber a inércia do fazendeiro, que no jogo também está caído, o menino reconcilia-se e sorri com a intervenção da
terapeuta de que esse homem inerte do jogo
poderia ser útil. Na sequência, o paciente, que
parece estar em estado de devaneio, se aninha
ao lado da terapeuta e, com a mão, contorna
o sofá onde está sentada e a saia que veste.
As questões levantadas pela autora sugerem
a necessidade de que a criança transcreva na
sua história as marcas dos primeiros meses de
vida em que, separada do objeto originário,
foi atendida por enfermeiras na sala onde permaneceu até que se concretizou a adoção.
Os signos de percepção decorrentes
das primeiras experiências com o objeto
constituem o aparelho psíquico. Em crianças com experiência de adoção, quando o
objeto originário se perdeu, a recaptura das
inscrições primordiais, como cheiro, voz e
acolhimento podem potencializar os seus
recursos para o processo de simbolização.
As formas de relação do sujeito com o Outro e a contenção da angústia e da dor são
observadas na sua experiência vivencial, reafirmando a concepção inicial de que algumas marcas poderão ou não ser transcritas.
Piera Aulagnier (1979) refere-se ao
movimento da cura na criança adotada e
que foi afastada dos pais quando ela transforma os fragmentos mnêmicos dos primeiros tempos de vida em uma construção histórica. Através do pictograma e das
identificações primárias, um tempo não
falado pode ser recapturado pelo simbólico. A ruptura existe quando os elementos se
perderam, quando não houve inscrição, ou,
ainda, quando houve uma interrupção no
processo de identificação da criança com
um terceiro na relação mãe-filho.
Piera Aulagnier reconhece a antecipação da palavra da mãe para que a criança
possa situar-se num registro de existência de
um corpo e, portanto, de uma subjetividade.
Para ela os enunciados que vêm do exterior
e de que a criança se apropria inicialmente através da repetição, constituem o Eu do
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.141-146 – Novembro. 2009
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A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: o registro identificatório...
sujeito. O Eu investido passa a apropriar-se
do que lhe foi designado, transformando-o
em projeto pessoal. Nesse momento, cujo
tempo não é o cronológico, mas um tempo
de separação e diferenciação, o Eu transforma os elementos da construção pictográfica
em atividade de prazer e de pensar. O risco
para a constituição psíquica é que o destino
do investimento libidinal tenha como único
objetivo o prazer, ao invés de ser transformado em atividade de pensar.
O que Aulagnier propõe em seu estudo sobre constituição psíquica do sujeito
é ver como se dão as atividades de representação. A autora entende por representação o equivalente psíquico do trabalho de
metabolização própria do organismo. Na
atividade psíquica, o corpo recebe as informações e as metaboliza. Existem três processos que se sucedem temporalmente na
atividade psíquica, sendo que a emergência de cada um resulta da necessidade que
se impõe à psique de tomar conhecimento
de propriedades do objeto. São eles os processos originário, primário e secundário e
se expressam em função de atividades que
lhes são próprias. Esses registros se constituem em período muito precoce do desenvolvimento da criança – nos primórdios da
relação com a mãe – e a sucessão desses registros no tempo não é mensurável.
Na instância do processo originário
prevalece o autoengendramento, em que não
se evidenciam os segmentos da relação e em
que ainda não estão situados os sujeitos implicados nela. Porque prevalece a unidade EuOutro, só pode haver registro no processo de
memória do bebê quando o corpo materno
inscreve suas marcas sobre o filho. A indiferenciação é prioritária nessa cena em que a
mãe abastece o filho de interpretações a respeito do que emerge para ela na situação, e é
esse tempo histórico-vivencial do psiquismo
que a criança adotada necessita recapturar.
No desenvolvimento inicial, a mãe,
olhando para o filho, empresta a sua voz, o
seu sorriso, todos os sentimentos e expectativas que possam conferir algum significado
para a criança. Não é dessa criança que ela
144
fala, mas de si mesma, num desejo de atribuir
uma certa continuidade de existência. O que
marca no corpo do bebê é denominado pictograma. O toque, o olhar, o encontro com a
voz da mãe são representações pictográficas.
Fome, dor, desejo de proteção são anunciados
na fala mãe-bebê. Não é somente a mãe que
fala, mas também um bebê que ela traz dentro de si. As interpretações feitas por essa mãe
trazem as representações que foram inscritas na sua história pessoal. A mãe atribui um
nome a partir de sua história, do seu discurso,
que é subjetivado, das marcas historicamente
constituídas.
O registro do originário se dá através
de um corpo falado a partir das funções
sensoriais – um canal por onde escoam
as experiências de revitalização para a sobrevivência, tanto de um corpo somático
quanto psíquico. Esses registros constituem
o pictograma. O analista pode intervir nas
associações do paciente para atribuir sentido à experiência vivida, de modo a tornar
cognoscíveis para o Eu os elementos do pictograma inacessíveis ao conhecimento.
A partir daí, surge o chamado processo primário, que é regido pela onipotência
do desejo do outro. O discurso da mãe é
prevalente sobre a imagem que a criança
terá de si mesma. Nesse processo de identificação primária, aos poucos a criança vai
se apropriando do discurso materno e vai,
ao mesmo tempo, se alienando nele. A mãe
interpreta e deseja o bebê com alguns códigos e qualificativos, e o bebê se reconhece
nos mesmos, passando a aspirá-los como
se fossem originalmente seus. É sobre esse
processo de identificação primária que Aulagnier (1979) anuncia a formação do Eu e a
necessidade da presença do terceiro, como
uma referência demarcando a incompletude
do discurso manifestado pela mãe. A autora explica que a criança ocupa uma função
simbólica a partir do discurso que lhe é dirigido, e um lugar nas relações de parentesco. Os termos pai, filho, mãe, antepassados
designam uma função que é independente
do sujeito que a encarna durante a sua existência. Nesse sentido, prevalece a mobilida-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.141-146 – Novembro. 2009
A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: o registro identificatório...
de dos ocupantes no registro identificatório,
em oposição à fixidez da função relacionada ao símbolo. Assim, na adoção, o sujeito
busca um lugar no registro identificatório
entre os atores que passam a fazer parte de
sua vida. Vera idealiza a madrinha como a
mãe completa e boa e elege a mãe adotiva
como objeto persecutório. Nas sessões de
análise, a relação de transferência que dissocia a mãe-analista como boa ou má, aos
poucos dá lugar à percepção de um mesmo
objeto, capaz de ser amado e odiado.
Aulagnier também faz uma destacada
referência à angústia de castração como um
tributo que todo sujeito tem de pagar como
uma condição para ser sujeito de seu discurso. Mesmo com sete anos, o menino adotado
busca na terapeuta resposta para a negligência sofrida em função de os pais biológicos
o terem abandonado. João reedita a sua história para encontrar sentido nas lacunas e
fraturas no curso do desenvolvimento e que
provocam fracasso na simbolização.
Dolto, ao se referir à adoção, diz que
o ser humano não é redutível a seus vínculos biológicos. Para a autora, é na cultura e
na linguagem que as relações se tornam estruturantes. O encontro entre a mãe e um
casal que procura adotar uma criança teria como resultado uma mãe tranquilizada
pela doação de seu bebê a um casal feliz, e
uma criança saudável. O ato simbólico de
fala e registro da doação “eu te confio a este
senhor e a esta senhora, que serão teu pai e
tua mãe”, segundo Dolto (2006, p.87), torna-se um registro compartilhado entre mãe
biológica, pais adotivos e a criança.
Nesse sentido, a adoção deveria ser
feita o mais cedo possível, com o cuidado
de que essa decisão não se transforme em
posse dos pais sobre o filho.
É isso que torna uma criança psicótica: ser
o centro do amor dos pais adotivos, ser o
substituto do filho, e não o filho deles. Para
encaixar no molde do filho imaginário dos
pais, ele é obrigado a se identificar com eles,
o que um filho genético não precisa fazer, já
que é a continuação deles. O filho adotivo é a
continuação deles imaginariamente, antes de
o ser simbolicamente. Aliás, ele pode se tornar simbolicamente sua continuação, o que
nunca poderá acontecer se for reduzido ao
estado de fetiche dos pais, em vez de ser seu
descendente (DOLTO, 2006, p.93).
Essas considerações nos fazem pensar
que a adoção pode favorecer um suporte familiar de referência para que a criança possa
se identificar, constituir a sua subjetividade
e ter acesso a uma rede social. As inscrições
que uma criança adotada traz no seu psiquismo podem favorecer os recursos para um
processo de simbolização operante, desde
que a separação do objeto originário materno seja nomeado e ressignificado no sentido
dinâmico das fantasias, de modo a libertá-la
da angústia em relação ao que viveu.
As possibilidades de ruptura, trauma
e quebra de fé no desenvolvimento inicial
da criança podem ser originadas pelo rompimento no processo desadaptativo da mãe
em relação ao bebê, no dizer de Winnicott
(1993). Na linguagem psicanalítica, o ser
humano se desenvolve a partir de uma realidade psíquica externa, em que é possível descrever os objetos, lugares e pessoas
com as quais se compartilha a experiência.
Há também, nessa experiência psíquica, a
realidade interna, onde o sujeito se percebe e sente, tanto a riqueza quanto a pobreza pessoal, herança própria da organização
da personalidade. Entre a experiência cotidiana diretamente observada através dos
condicionantes sociais e a realidade interna subjetiva, movida pelo inconsciente, há
uma terceira área a que Winnicott (1975)
designou de espaço potencial.
Nas crianças em situação de adoção,
o exercício do que Winnicott (1993) denomina de mãe suficientemente boa exige do
cuidador atenção permanente às possibilidades de enfrentar frustrações e perdas,
uma vez que o sujeito sofreu ruptura do
vínculo básico com o gestor. Essas crianças
podem apresentar dificuldades iniciais para
conceber a incompletude da condição humana a partir da renúncia da idealização ou
do próprio processo de ilusão.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.141-146 – Novembro. 2009
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A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: o registro identificatório...
Nestes casos, no momento em que a função paterna começa a se instalar, há uma ruptura no vínculo, uma vez que o fracasso ambiental se situa além dos limites da capacidade do
sujeito para lidar com a frustração. Para Winnicott (1975), as perdas precoces na infância,
como a morte ou o afastamento prolongado
dos pais, podem significar o risco de perder a
espontaneidade e a capacidade de brincar. Para
o psicanalista e precursor dos estudos sobre a
origem da criatividade e da capacidade de brincar, a criança privada é notoriamente inquieta e
apresenta um empobrecimento da capacidade
de experiência no campo cultural.
Os efeitos da perda em qualquer estádio primitivo remetem a um exame do
espaço potencial, área que, segundo Winnicott (1975), se situa entre sujeito e objeto. O
fracasso da fidedignidade ou perda do objeto podem significar, para a criança, perda
da área da brincadeira e perda de um símbolo significativo. Ao analisar os efeitos da
depressão dos pais sobre o estado emocional das crianças que se encontram em fase
inicial do desenvolvimento, o autor expressa
sua preocupação sobre os prováveis riscos
de uma perturbação profunda no psiquismo infantil. No início, o filho necessita de
uma adaptação materna quase completa às
suas necessidades, para que mais tarde possa suportar o fracasso provocado pela mãe
na continuidade dos cuidados.
Os aportes teóricos e clínicos de Piera
Aulagnier (1979) alertam sobre as possibilidades de restituir e reconstituir a história do
sujeito que vive a busca de sentido para a sua
existência. Embora o tema da adoção seja o
objeto central dessa reflexão, não podemos
supor que, se os bebês forem bem cuidados,
especialmente pelos pais biológicos, os problemas sejam minimizados. Na constituição
do psiquismo, enquanto crianças recebem o
acolhimento que lhes é oferecido e expressam os recursos da simbolização através
da criatividade espontânea, outras podem
revelar mecanismos de resistência à independência pessoal, fazendo os pais sentir-se
responsáveis por tais manifestações.
146
Keywords
Adoption; identificatory register; symbolization
process.
Abstract
The present paper approaches the early marks
since the constitution of the human psyche in
children who are adopted and makes reference to
clinical cases in which the transferential associations disclose the possibility of a retranscription
of the patient’s personal history. The paper elicits
elements of the psyche formation and symptomatic manifestations that can be revealed upon the
loss of the early maternal object. The theoretical
analysis and the illustration through clinical cases
are based on the psychoanalysis, especially in the
perspective of Piera Aulagnier, Françoise Dolto,
Donald Winnicott and Silvia Bleichmar.
Referências
AULAGNIER, P. A violência da interpretação. Trad.
M. C. Pellegrino. Rio de Janeiro : Imago, 1979.
BLEICHMAR, S. A fundação do inconsciente: desejos de pulsão, desejos do sujeito. Trad. K. B. Behr.
Porto Alegre : Artes Médicas Sul, 1994.
DOLTO, F. Destinos de Crianças: adoção, famílias de
acolhimento, trabalho social. Trad. E. Brandão. São
Paulo : Martins Fontes, 2006.
WINNICOTT, D. A família e o desenvolvimento individual. Trad. M. B. Cipolla. São Paulo : Martins
Fontes, 1993.
_____. O Brincar e a Realidade. Trad. J. O. A. Abreu
e V. Nobre. Rio de Janeiro : Imago, 1975.
Tramitação Recebido : 17/08/2009
Aprovado : 08/09/2008
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Psicanálise e Odontologia na
rebeldia inconsciente
Psychoanalysis and Dentistry in the unconscious rebellion
Ricardo Azevedo Barreto1
Marlene Guirado2
Palavras-chave
Psicanálise; análise de discurso; odontologia.
Resumo
Este trabalho faz um balizamento de considerações acerca da noção psicanalítica de inconsciente,
ressignificando-a sob o crivo de uma análise de discurso assentada no pensamento de Marlene
Guirado. Tal percurso possibilita, em um duplo movimento, acompanhar a rebeldia inconsciente e de
seu conceito, ilustrando-a por meio de cenas na Odontologia.
Quer dizer que eu me contradigo?
Pois bem, então me contradigo [...]
INTRODUÇÃO
Sucção do polegar, bruxismo, fobia ou
trauma do atendimento odontológico, vivências emocionais dos pacientes com lábio
leporino e de seus familiares, relação entre
dentista e paciente são apenas algumas das
situações que contornam a importância da
Psicanálise para a Odontologia.
À guisa de ilustração das intensas experiências emocionais no contexto de atenção odontológica, mencionemos a cena de
uma criança que pediu à mãe uma sopa de
pizza, deixando escapar seu desejo por iguarias italianas, após fazer uma cirurgia de palato, já que só podia se alimentar restritivamente com líquidos ou comida pastosa.
Walt Whitman
Neste texto, de modo delimitado, vamos trilhar algumas considerações sobre
uma noção de inconsciente depreendida
da perspectiva psicanalítica já no termo da
Análise Institucional do Discurso proposta por Guirado ([1995] 2006, 2000, 2007),
exemplificada por nós em cenas contempladas da Odontologia.
O INCONSCIENTE
É inquestionável a centralidade da noção de inconsciente no âmbito da(s) teorias(s)
da Psicanálise e na constituição do(s)
método(s) de trabalho dos psicanalistas.
O inconsciente, cujos efeitos são reconhecidos no ofício psicanalítico em esque-
Psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia pela USP. Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico de
Sergipe e do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CEPSIC da divisão
de Psicologia da FMUSP e professor da Universidade Tiradentes. Editor da Revista.
2
Psicóloga, psicanalista, analista institucional e professora doutora livre-docente do Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo. Autora de livros que articulam Psicanálise e Análise do Discurso. Criadora do
método da análise institucional do discurso. Orientadora do autor supracitado em seu doutorado.
1
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.147-152 – Novembro. 2009
147
Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente
cimentos, lapsos ao falar, equívocos no
agir, sonhos, chistes, sintomas, entre outros exemplos, é vetor que atravessa toda
a obra freudiana e conceito polissêmico,
com várias nuanças, nos desdobramentos da instituição criada por Freud: a
Psicanálise.
Zimerman (1999) comenta a respeito do inconsciente como o que há
de mais arcaico no aparelho psíquico,
relacionando-o, por meio da genética,
às pulsões com suas energias e protofantasias (fantasias primitivas). Também o
associa às representações de coisa e ao
processo primário.
Diz nosso interlocutor (1999,
p.83):
[...] uma função que opera no sistema
Inconsciente e que representa uma importante repercussão na prática clínica
é que ela contém as “representações de
coisa”, as quais consistem em uma sucessão de inscrições de primitivas experiências e sensações provindas de todos
os órgãos dos sentidos, como o da visão,
audição, tato, etc., e que ficaram impressas na mente da criança numa época
em que ainda não havia palavras para
nomeá-las. Funcionalmente, o Inconsciente opera segundo as leis do “processo primário” [...].
Kusnetzoff (1982) fala da metapsicologia freudiana fundamentada nos
modelos tópico, dinâmico e econômico.
No primeiro tópico, o aparelho psíquico
é concebido por inconsciente, pré-consciente e consciente; no segundo, por id,
ego e superego.
O novo Tópico inaugura uma nova
linguagem prática. No Primeiro Tópico,
148
a linguagem é predominantemente
fisicalista:
catéxias,
representações,
forças, recalques, etc. No Segundo
Tópico, o modelo é antropomórfico, e
parece então que as instâncias “falam”.
O Superego, por exemplo, será “sádico”,
uma parte do Ego “luta” contra outra
parte, e assim por diante. Desta forma,
existe uma aproximação analógica
entre a teoria do aparelho psíquico e a
vida fantasmática que “habita” dentro
do sujeito (KUSNETZOFF, 1982, p.
127-129).
Poderíamos reconhecer, na segunda tópica freudiana, três personagens na cena intrapsíquica do sujeito: de modo bastante simplificado,
o id como polo do desejo, o superego
como juiz interno gerador de culpas
e o ego no agenciamento das defesas;
o inconsciente está presente nas três
instâncias em maior ou menor grau,
distintamente da primeira tópica em
que ele era visto como exclusividade
de um sistema. Além disso, problematizaríamos a dinâmica dessa cenografia intrapessoal tripartite, levando
em conta o peso que Freud confere ao
recalque e ao modelo da neurose nas
teorizações que tecem relações entre
inconsciente e recalcado. Remontagens da cena, por exemplo, de “um inconsciente a céu aberto”, como costumeiramente falamos de pacientes com
estrutura psicótica, ou, até, peculiaridades em casos de estrutura perversa
em que há dimensões particulares no
desenvolvimento moral. Os fenômenos psicossomáticos nos exigiriam outras considerações.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.147-152 – Novembro. 2009
Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente
De acordo com Laplanche e Pontalis (1994), o inconsciente, como adjetivo, é referido por vezes como conjunto de conteúdos não existentes no
campo da consciência. Na primeira
tópica do aparelho psíquico, é um dos
sistemas, cujos conteúdos são delineados como representantes pulsionais,
regidos por meio de mecanismos como
o deslocamento e a condensação. Eles
buscariam retorno ao campo da consciência e ação, todavia seu acesso ao
pré-consciente/consciente ocorreria
por meio de formações de compromisso e distorções da censura. Nossos
interlocutores chamam atenção ainda
para a implicação entre inconsciente e desejos infantis. Dizem também
que, na segunda tópica, o inconsciente
é posicionado qualificando o id, mas
também, parcialmente, o ego e o superego. Comentam que muitas características atribuídas ao inconsciente na
primeira perspectiva se manteriam no
id na segunda tópica freudiana.
No panorama do avanço das
duas tópicas de Freud, enfatizamos
giros epistemológicos na estratégia
de pensamento. Ressaltamos, por outro lado, embora não entremos muito
nesses meandros, que existem particularidades entre os diversos autores
da Psicanálise quanto à noção de inconsciente. Podemos falar, por exemplo, de Melanie Klein e da importância que configura às ansiedades nas
posições esquizoparanoide e depressiva. Com Lacan e a escola francesa de
Psicanálise, falaríamos, entre outros
aspectos, de “um inconsciente estruturado como linguagem” e da cadeia
de significantes.
O INCONSCIENTE NAS
INTERFACES DA PSICANÁLISE
COM A ANÁLISE DO DISCURSO
Guirado (2000), aproximando
a Psicanálise da Análise do Discurso
francesa de Dominique Maingueneau,
faz articulações entre inconsciente e a
noção de polifonia: várias vozes constitutivas do discurso, o que multiplica os
sentidos em um mesmo dito. Propõe,
então, uma escuta psicanalítica dos indicadores de polifonia, de divisão que
se opera no discurso:
Pensar a polifonia como condição de
divisão no discurso e como abertura à
possibilidade de escutar o modo de organização da fala, na clínica psicanalítica, é
poder prescindir de uma imagem tão poderosa como a dessa divisão de três em
um, já quase um mito religioso (GUIRADO, 2000, p. 66).
Sobre a polifonia, Guirado
([1995] 2006, p. 50) salienta:
[...] Muito embora não seja o único a
tratar do assunto, é Ducrot quem mais
sistematicamente o faz, sendo difícil
não ser referido por todos os analistas
do discurso quando afirmam que se
torna necessário ir além do sujeito e do
conteúdo do enunciado [...] usa, ele, a
imagem de “vozes” (tomada de empréstimo a Bakhtine) para configurar este
argumento que implode a tendência de
unidade e homogeneidade nas falas.
A autora (2000, p. 75) ainda delineia algumas dimensões do trabalho
analítico:
Ironias, equívocos, denegações, pressupostos, discursos relatados, meta-dis-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.147-152 – Novembro. 2009
149
Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente
cursos, polifonias, enfim um festival de
tonalidades discursivas à escuta clínica,
uma orquestração de estranhamentos
sucessivos. Boas condições de análise,
no horizonte.
Desse modo, reconhece Guirado
(2000, p. 69): “resgata a significação no
contexto, no dizer, no mostrar e não no
dito, num inconsciente pessoal [...]”
Essa visão de Psicanálise na perspectiva de Guirado (2000) se contrapõe
a uma substancialização do inconsciente ao construir outros modos de operar
com a clínica psicanalítica ou com a Psicanálise em outros contextos, pensando,
entre diversos aspectos, com base em
suas fontes teóricas, em indicadores de
heterogeneidade no discurso. Como desenhou a autora, uma clínica psicanalítica na sombra do discurso.
Em tal posicionamento, não
nos referimos a personagens ou vozes
dentro do sujeito numa tripartição,
pois a subjetividade é pensada em
sua constituição-efeito no discurso,
visto como polifônico e não tripartite
na perspectiva guiradiana. Em vez da
obrigatoriedade de aproximações de
noções como as de pulsão e recalque,
entre outras clássicas à obra freudiana, aportes epistemológicos externos
ao campo psi mobilizam o lugar psicanalítico com matrizes conceituais
da Análise do Discurso francesa de
Maingueneau, como, por exemplo, a
de gênero discursivo, em seus diferentes níveis de abrangência. Localizemos: rebeldia na e da Psicanálise
reconhecida com força instituinte.
Não foi essa uma das grandes lições
de Freud ao revisar tantas e tantas vezes seus conceitos?!
150
EXEMPLIFICANDO COM CENAS
ODONTOLÓGICAS
Barreto (1999), em seu trabalho
na área da Odontologia, comenta a interlocução de uma dentista com uma
paciente de nove anos: “se tiver vontade de vomitar, levanta a mão! [...] agora, por favor, solta a mão, a perna. Fica
calma. Coitado do algodão! Quem vê,
pensa que a tia [...] tá judiando de você
[...]” (p. 43) (primeiro exemplo). Em
um momento seguinte, a mesma dentista, com um paciente de três anos,
diz: “oi, tudo bem? Como está bonito
[...] Mas não estou chorando?! [...]” (p. 45)
(segundo exemplo). Outra odontóloga
fala para uma criança também de três
anos: “vamos abrir a boca que a gente
precisa limpar o dente” (p.46) (terceiro
exemplo).
Tais situações supramencionadas
e similares são nomeadas por Barreto,
em sua dissertação de mestrado e na
síntese desta (1999 e 2003), como uma
indiferenciação, uma espécie de troca
ou sobreposição de lugares no discurso
de profissionais.
Sobre o primeiro exemplo, não é
o algodão que é coitado, com certeza!
Por uma determinada concepção de
inconsciente, poder-se-ia perguntar:
quem o será? O coitado do algodão é
algum tipo de efeito inconsciente da
dinâmica pressão/repressão? É o retorno do recalcado, evidenciando as posições do id, ego, superego e as vicissitudes da pulsão?
Mas pensemos na cena, não
para além dela. O lugar da paciente é
associado à possibilidade do adverso,
vontade de vomitar, ao que o acordo é
poder levantar a mão. Por outro lado,
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.147-152 – Novembro. 2009
Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente
a dentista, no antagonismo da relação,
solicita que a criança solte a mão, e não
apenas, mas a perna, por favor (ou por
fervor?). O pedido é que fique calma ou
coopere. No tensionamento dos lugares, da paciente e da dentista, o vocábulo coitado é abruptamente associado ao
algodão, que parece pular para fora da
boca nos movimentos da paciente, obstaculizando o trabalho da profissional.
Ao outro, a tia, dentista, pode ser vista,
ou não vista, judiando da criança.
A cena da rebeldia inconsciente
na Odontologia está desenhada. São
múltiplas as possibilidades de significação do termo (deslocado?) algodão.
Nas posições discursivas da cena, são
encontradas pistas ao sofrimento da
dentista e também da paciente durante
o atendimento odontológico.
No segundo exemplo, as imagens
deslizam do “[...] tudo bem? Como está
bonito [...]”, endereçadas ao paciente,
para uma posição discursiva à dentista que causa estranhamento. “[...] Não
estou chorando?! [...]” deixa ambíguo,
na identificação, quem chora. No terceiro exemplo: “vamos abrir a boca
[...]” e “[...] a gente precisa limpar o
dente” mostram que o sujeito singular
se perde.
De quais lugares de enunciação
emergem tais falas? Quanto tais acontecimentos discursivos dizem da cena
odontológica?
Destaquemos, aliás, que temos reconhecido tal mecanismo de indiferenciação nas relações humanas com bebês, crianças, idosos e pessoas em adoecimento de modo geral. Muitas vezes,
seus cuidadores falam por eles ou até
assumem dois lugares no discurso: de si
próprios e do outro.
Na abordagem psicanalítica localizada, pensar em tais cenas como indicadores de divisão no dizer, polifonia,
é não marcá-las, necessariamente, ou
inicialmente, como reedição de imagos
infantis ou provas incontestáveis de
uma mente tripartite. Nas múltiplas (e
não indubitavelmente triádicas) facetas no e do dizer, é que emergem, nessa
perspectiva teórico-metodológica, os
efeitos de subjetivação/singularidade.
Aos psicanalistas, há, portanto,
um desafio enorme no terreno da Psicanálise/Odontologia por existirem
situações notáveis em que a expressividade do humano se apresenta não apenas no corpo anátomo-fisiológico, mas,
sobretudo, na rebeldia inconsciente ou
de seu(s) conceito(s).
Keywords
Psychoanalysis; discourse analysis;
dentistry.
Abstract
This
paper
considers
about
the
unconsciousness psychoanalytic notion to
renew it under the screen of a discourse
analysis seated by Marlene Guirado’s
thought. In a double movement this way
allows to follow the unconscious and its
concept rebellion through Dentistry scenes.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.147-152 – Novembro. 2009
151
Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente
Referências
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para bebês: lugares e nuances. 1999. 122 f. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto
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Paulo. 1999.
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GUIRADO, M. A clínica psicanalítica na sombra do discurso: diálogos com aulas de Dominique Maingueneau. São Paulo : Casa do Psi-
Tramitação Recebido : 08/09/2009
Aprovado : 29/09/2009
Nome do autor principal : Ricardo Azevedo Barreto
Endereço : Centro de Saúde Prof. José
Augusto Barreto
Av. Gonçalo Prado Rollemberg, 211, Sala
606, Bairro São José
CEP : 49010 – 410 Aracaju/Se
Fone : (79) 3214 6906
E-mail: [email protected]
cólogo, 2000.
GUIRADO, M. Psicanálise e análise do discurso: matrizes institucionais do sujeito psíquico.
Edição revista e ampliada. São Paulo : EPU,
2006.
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Martins Fontes, 1994.
ZIMERMAN, D. E. Fundamentos psicanalíticos:
teoria, técnica e clínica – uma abordagem didática. Porto Alegre : Artmed, 1999.
152
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.147-152 – Novembro. 2009
Os paradoxos do conceito de resistência:
do mesmo à diferença
The paradoxes of the concept of resistance:
from the same to the difference
Rodrigo Ventura1
Palavras-chave
Resistência; diferença; conflito pulsional; compulsão à repetição.
Resumo
O presente artigo tem como principal objetivo problematizar o conceito de resistência no discurso
de Freud. Mediante a articulação com a obra filosófica de Michel Foucault, a hipótese deste artigo
aponta para a possibilidade de pensar a resistência em si implicada na mudança subjetiva, ou seja, na
produção do novo e da diferença no processo de subjetivação. 2
Não se sabe do que o homem é capaz ‘enquanto
ser vivo’, como conjunto de forças que resistem.
Michel Foucault
INTRODUÇÃO
É sempre em torno de alguma forma
de mudança e transformação subjetiva que
gira a experiência psicanalítica. Em outras
palavras, é apostando no surgimento do
novo e da diferença diante das fixações e
inércias da psique humana que a psicanálise
se afirma como uma terapêutica da alma.
Longe de um ideal de cura, a prática
analítica está implicada na constituição de
formas de subjetividade ou modos de existência que sejam capazes de lidar com os
conflitos de força insuperáveis e inerentes à
vida.
Em oposição à normalização e à submissão da subjetividade na atualidade, a psicanálise está irremediavelmente comprometida com
o vir a ser das subjetividades, ou seja, com a
produção do novo e da diferença no processo
de subjetivação.
Entretanto, em oposição à produção
do novo e da diferença, o conceito de resistência foi caracterizado ao longo de toda a
obra freudiana como uma força que se manifesta como obstáculo à análise e, principalmente, contra toda e qualquer mudança
ou transformação subjetiva decorrente do
tratamento analítico.
Mesmo que, paradoxalmente, o trabalho de combate e superação da resistência do paciente seja fundamental para que
qualquer mudança se torne possível, na leitura predominante da teoria psicanalítica,
a resistência em si sempre apontou para a
conservação do mesmo e para a evitação de
qualquer tipo de mudança.
Nesse contexto, o principal objetivo
deste trabalho é problematizar o conceito de
resistência na obra freudiana, na tentativa
de revelar outros paradoxos e outras vias de
interpretação do mesmo. Mediante a arti-
Psicanalista e membro efetivo do Circulo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro; engenheiro graduado pela PUC-Rio; pós-graduado em Filosofia pela PUC-Rio. Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ.
2
Este artigo é resultado do trabalho de pesquisa realizado no Mestrado de Teoria Psicanalítica da UFRJ orientado por Joel Birman.
1
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009
153
Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença
culação com o pensamento filosófico de
Michel Focault, que define a resistência
como uma força inventiva, móvel e produtiva na luta contra a submissão das
subjetividades, tentaremos ler de maneira diferente essa noção em Freud.
É importante frisar que problematizar a resistência nos âmbitos da psicanálise não representa desconsiderar
sua pertinência e importância teórica e
clínica, mas sim apostar na capacidade
de lançar luz sobre outros aspectos desse
termo.
Na contramão da leitura tradicional da psicanálise e com a ajuda das
lentes foucaultianas, a nossa hipótese
de pesquisa consiste na possibilidade de
pensar a resistência em si implicada na
mudança subjetiva, ou seja, na produção
do novo e da diferença no processo de
subjetivação. Pretendemos indicar que,
no próprio discurso freudiano, a resistência é mais paradoxal do que parece,
visto que mais do que meio de mudança,
esta também pode ser força de mudança
em si.
O ENCONTRO DE FREUD COM A
RESISTÊNCIA
No texto Os Estudos sobre a Histeria (1893-1895), é possível perceber
Freud às voltas com uma de suas maiores realizações: a invenção de um instrumento teórico-clínico para análise da
psique humana. No entanto, o que vale
ser ressaltado nesse texto, em que é possível identificar os primeiros passos dessa
invenção, não é simplesmente a história
da superação de uma série de obstáculos
que se colocaram em seu caminho, mas
justamente a história da descoberta desses obstáculos. Segundo Birman (1981,
p. 171): “um dos traços geniais de Freud
é o de ter tido a coragem de transformar
os obstáculos com que se defrontava
em questões a serem resolvidas”. Assim
154
como a hipnose, Freud também observou que a técnica da pressão podia falhar na tarefa de suscitar as lembranças
esquecidas, apesar de toda a insistência
empregada junto ao paciente. Quando
isso acontecia, Freud percebia que havia
encontrado uma oposição para penetrar
em uma camada mais profunda da cadeia de representações.
Portanto, as dificuldades em utilizar a hipnose, bem como a técnica da
pressão, revelaram a presença de um
importante obstáculo à terapia analítica: a resistência dos pacientes, quando
se tentava acessar as suas representações
inconscientes.
A primeira vez que o termo resistência aparece na teoria freudiana é no
relato do caso clínico da Srta. Elizabeth
Von R: “No curso desse difícil trabalho,
comecei a atribuir maior importância à
resistência oferecida pela paciente na reprodução de suas lembranças” (FREUD,
1893-1895, p. 178).
A resistência aparece na clínica
como força contrária a qualquer tentativa de rompimento do isolamento estabelecido pelo recalque a um conjunto de
representações. Ou seja, sempre que o
trabalho de análise se aproxima de uma
representação recalcada, a resistência se
manifesta, tentando impedir esse trabalho, como obstáculo à rememoração.
Nesse contexto, Freud reconhece
que qualquer mudança no estado de seus
pacientes exigiria um percurso muito
mais laborioso do tratamento, haja vista o tempo e o esforço empregados no
processo de superação do obstáculo imposto pela resistência ao trabalho de associação livre.
Por meio de meu trabalho psíquico,
eu tinha de superar uma força psíquica
nos pacientes que se opunha a que as representações patogênicas se tornassem
conscientes. [...] A tarefa do terapeuta,
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009
Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença
portanto, está em superar, através de seu
trabalho psíquico, essa resistência à associação (FREUD, 1893-1895, p. 283/284).
Diante do fenômeno clínico da resistência, Freud foi abandonando de vez
a sugestão deliberada existente nas técnicas da hipnose e da pressão, passando
a apostar no fluxo de associações livres
do paciente, sem constrangimento, sem
crítica e guiada pelo acaso. E ao perceber
e conceituar teoricamente o fenômeno
clínico da resistência, Freud abandonou
as técnicas utilizadas até então em sua
terapêutica e começou a trilhar um caminho singular rumo à criação da própria psicanálise.
Também nesse momento da obra
freudiana, é possível observar a relação
direta do conceito nascente de resistência com outros importantes elementos
do edifício teórico da psicanálise, tais
como: o recalque, a interpretação dos sonhos e, principalmente, a transferência.
Com relação ao recalque, a resistência pode ser considerada a manifestação exterior desse mecanismo de
defesa, cuja função é manter fora da
consciência uma representação ameaçadora. Quanto mais o trabalho analítico se aproxima de uma representação recalcada, maior e mais intensa é a
resistência contra esse trabalho. Com
relação aos sonhos, a resistência atua
tanto no processo de formação do sonho, impondo a censura como agente
deformador dele, como também dificultando, seja pelas dúvidas ou esquecimentos, o trabalho de interpretação
deste sonho. Já em relação à transferência, é precisamente o silêncio que
acomete o paciente, interrompendo
o processo de associação livre, que
faz Freud considerar a transferência
como o pior obstáculo à análise, servindo inteiramente aos propósitos da
resistência.
Desde essa época, Freud não tinha dúvidas em afirmar que tudo o que
interrompe, atrapalha ou impede o trabalho analítico deveria ser considerado
uma forma de resistência. Portanto, a
resistência surge como obstáculo e força contrária diante de qualquer tentativa
de tornar consciente algum conteúdo
inconsciente e recalcado do paciente.
NA TRILHA DA RESISTÊNCIA
Seguindo a trilha da resistência até
os últimos trabalhos de Freud, deparamo-nos inicialmente com o caso Dora,
no qual Freud, em sua análise posterior
do suposto fracasso desse caso clínico,
começou a perceber a importância da
transferência para o êxito terapêutico.
Fui obrigado a falar da transferência
porque somente através desse fator pude
esclarecer as particularidades da análise
de Dora. O que constitui o seu grande
mérito e que a fez parecer adequada para
uma primeira publicação introdutória, a
saber, sua transparência incomum, está
ligado a seu grande defeito, que levou a
sua interrupção prematura. Não consegui dominar a tempo a transferência...
(FREUD, 1905, p. 113).
Se esse fenômeno é incontornável,
visto que se produz em qualquer relação
entre médico e paciente, ao mesmo tempo é indispensável para a condução de
uma análise, já que sua escuta e interpretação são essenciais para o processo
de cura. A transferência, a partir desse
caso, estabelece-se, então, como principal resistência e principal aliada do tratamento psicanalítico: “A transferência,
destinada a constituir o maior obstáculo
à psicanálise, converte-se em sua mais
poderosa aliada quando se consegue
detectá-la e traduzi-la para o paciente”
(FREUD, 1905, p. 112).
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009
155
Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença
Entretanto, apenas nos artigos sobre a técnica, publicados entre 1911 e
1916, é que Freud definitivamente alça a
transferência como conceito estratégico
e aprofunda os diversos desdobramentos
da relação entre a transferência e a resistência. Nesses artigos, é possível identificar a entrada em cena da repetição, que
passou a ocupar um lugar importante na
relação entre a resistência e a transferência, já que muitos pacientes, resistindo à
regra fundamental da psicanálise, repetiam em ato uma recordação recalcada.
Diante da compulsão à repetição, o analista tem que travar uma luta contínua,
no campo da transferência, para tentar
transformar a repetição em recordação.
O que nos interessa, acima de tudo, é, naturalmente, a relação desta compulsão a
repetição com a transferência e com a resistência. Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e que a repetição é
uma transferência do passado esquecido,
não apenas para o médico, mas também
para todos os outros aspectos da situação
atual. [...] Quanto maior a resistência,
mais extensivamente a atuação (acting
out) (repetição) substituirá o recordar
(FREUD, 1914a, p. 166).
Continuando o nosso percurso,
nos deparamos com a perda da hegemonia do ego como pólo exclusivo de
resistência nos contornos finais do conceito de resistência na obra freudiana.
No texto Inibição, sintoma e angústia
(1926), Freud postula a existência de
cinco formas de resistência espalhadas
por todo aparelho psíquico, a saber: três
formas de resistência ligadas ao ego (a
resistência do recalque, a resistência de
transferência e o ganho secundário da
doença), a resistência do id (compulsão
à repetição) e a resistência do superego
(reação terapêutica negativa).
156
Por fim, analisando seus últimos
trabalhos, especialmente o texto Análise terminável e interminável (1937), é
possível observar que o tom pessimista
de Freud se acentua quanto à eficácia da
técnica psicanalítica e sua possibilidade
de promover a cura. Nesse momento,
percebemos Freud dando o testemunho
de que a tarefa de superação das resistências é muito mais árdua e complexa
do que ele próprio imaginava.
A partir dessa análise histórica,
conseguimos perceber a centralidade do
trabalho de combate e superação das resistências, ao longo de todo o desenvolvimento da obra freudiana. Se, no início,
Freud afirma que: “A tarefa do terapeuta,
portanto, está em superar, através de seu
trabalho psíquico, essa resistência à associação” (FREUD, 1893-1895, p. 283/284),
mais de vinte anos depois, essa posição
é visivelmente acentuada: “Na verdade,
chegamos a compreender, finalmente,
que a superação dessas resistências constitui função essencial da análise. [...] A luta
contra esta resistência faz parte de toda
análise” (FREUD, 1916-1917, p. 298).
Tendo em vista que qualquer mudança no paciente teria que passar obrigatoriamente por esse combate incessante contra as suas resistências, identificamos que o aspecto fundamental
desse conceito reside na luta contrária
a qualquer mudança ou transformação
subjetiva. Em outras palavras, as resistências de um paciente apontam primordialmente para a manutenção do
status quo e conservação do mesmo,
pois são “forças poderosas que se opõem
a qualquer modificação na condição do
paciente” (FREUD, 1916-1917, p. 300).
Mais uma vez, Freud radicaliza sua posição no final de sua obra, sentenciando
que “a coisa decisiva permanece sendo
que a resistência impede a ocorrência de
qualquer mudança – tudo fica como era”
(FREUD, 1937a, p. 270).
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009
Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença
Independentemente de qual instância psíquica resiste ou qual momento
do desenvolvimento da obra freudiana
seja considerado, a leitura predominante da teoria psicanalítica aponta para a
resistência como luta pela conservação
do mesmo e evitação do novo e da diferença na vida dos pacientes.
Nesse ponto, revela-se a característica paradoxal da noção de resistência. Ao mesmo tempo em que é obstáculo contra qualquer tipo de mudança
psíquica, a resistência, desde que interpretada e elaborada, também é meio
através do qual uma transformação subjetiva poderia acontecer. A resistência
como meio de mudança, mas não como
mudança em si.
Superar, lutar e combater são os
verbos mais comumente utilizados por
Freud para se referir ao trabalho do
analista com as resistências do paciente, evidenciando o campo de batalha
em que se transforma a prática analítica. É justamente este trabalho de superação das resistências do paciente
que traz à tona as relações de poder que
existem entre analista e paciente. Desde
os primórdios da clínica psicanalítica,
quando ainda utilizava as técnicas da
hipnose e da pressão, passando pela sugestão que se manifestava também no
plano da transferência, até o conceito
de construção, observamos Freud tendo que lidar com a questão do poder
em sua clínica.
RESISTÊNCIA E PODER: A
POSSIBILIDADE DE MUDANÇA
A partir do momento em que são
evidenciadas as relações de poder na
clínica psicanalítica, que transformou
o setting analítico em um campo de batalha, é possível tentar estabelecer uma
ponte entre a teoria freudiana e o pensamento de Foucault, mais especificamen-
te o momento de sua obra denominado
genealogia do poder.
Aqui, é importante esclarecer que
o interesse nessa ponte reside na ressonância do discurso de Foucault sobre a
teoria psicanalítica ou, em outras palavras, em como utilizar a obra de Foucault como chave para pensar de maneira diferente o conceito de resistência nos
âmbitos teóricos da própria psicanálise.
Não se trata de tentar encontrar Freud
defendendo literalmente a hipótese desta pesquisa, mas de ler em Freud essa
mesma hipótese, com a ajuda das lentes
poderosas da filosofia foucaultiana.
De acordo com Foucault, o poder
não possui uma essência ou uma natureza universal; o que existe são formas e
relações localizadas e espalhadas de poder em um nível molecular da sociedade. Todos estariam imersos nas relações
de poder, não sendo o poder algo que se
possui, mas algo que se exerce em relações de várias naturezas, inclusive nas
relações que se estabelecem na experiência psicanalítica.
Na visão foucaultiana, não haveria
exterioridade entre as relações de poder
e de resistência. Ambos frequentariam o
mesmo campo de batalha. Não se trata
de um contrapoder organizado em uma
“grande recusa”, mas de resistências plurais e locais. Onde existisse poder, existiriam resistência e possibilidade de luta.
Esta resistência de que falo não é uma
substância. Ela não é anterior ao poder
que ela enfrenta. Ela é coextensiva a ele e
absolutamente contemporânea [...] Para
resistir, é preciso que a resistência seja
como o poder. Tão inventiva, tão móvel,
tão produtiva quanto ele (FOUCAULT,
1979, p. 241).
No entanto, a resistência é luta
aqui e agora e não mera promessa de um
futuro melhor. Segundo Foucault, histo-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009
157
Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença
ricamente, as várias formas de resistência articulam-se em três principais tipos
de luta: i) contra as formas de dominação (étnica, social e religiosa); ii) contra
as formas de exploração que separam os
indivíduos daquilo que eles produzem;
e iii) contra as formas de sujeição, ou
seja, contra a submissão da subjetividade, sendo esta última a mais importante
para ele na atualidade, tendo em vista
que:
São lutas que questionam o estatuto do
indivíduo: por um lado, afirmam o direito de ser diferente e enfatizam tudo aquilo
que torna os indivíduos verdadeiramente
individuais. Por outro lado, atacam tudo
aquilo que [...] força o indivíduo a se
voltar para si mesmo e o liga à sua própria identidade de um modo coercitivo
(FOUCAULT, 1995, p. 235).
De acordo com Foucault, essas lutas não são nem a favor nem contra o indivíduo, mas sim batalhas contra os dispositivos de poder que confinam e fixam
o indivíduo à sua própria identidade,
subjugando-o e tornando-o “sujeito a”.
Dessa forma, a resistência caracteriza-se
essencialmente pela luta que é capaz de
produzir novas formas de subjetividade
através da recusa das individualidades
que foram impostas historicamente. “A
ideia não é descobrir quem somos, mas
recusar quem somos e transformarmonos” (FOUCAULT, 1995, p. 235). Resistir é lutar contra duas formas principais
de sujeição:
Uma que consiste em nos individualizar
de acordo com as exigências de poder,
outra que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade sabida e conhecida,
bem determinada de uma vez por todas.
A luta pela subjetividade se apresenta
então como direito à diferença e direito
à variação, à metamorfose (DELEUZE,
1998, p. 113).
158
Dessa maneira, é possível observar que o conceito de resistência na obra
de Foucault mostra-se diretamente ligado ao processo de subjetivação, ou seja,
à produção de formas de subjetividade
ou modos de existência (modos de agir,
sentir e dizer o mundo). Para esse filósofo, não se sujeitar é resistir e se abrir
para outros e novos modos de ser sujeito
e de estar no mundo.
OUTROS PARADOXOS DA
RESISTÊNCIA
A partir desse momento, tentaremos estabelecer as condições de possibilidade para defender a nossa hipótese
de pesquisa que, influenciada diretamente por Foucault, pretende apontar
outros paradoxos da resistência na obra
freudiana.
Porém, logo de início, aparece a
seguinte e espinhosa questão: Como
é possível estabelecer uma articulação
entre o conceito de resistência na obra
freudiana, que aponta primordialmente
para a conservação do mesmo, com o
conceito de resistência na obra foucaultiana, que se apresenta como luta pela
transformação da subjetividade?
Ao longo deste trabalho, ficou claro
que as relações de poder se exercem nas
dimensões mais capilares, cotidianas e
ordinárias das relações humanas, estando presente inclusive e principalmente na
experiência analítica. Considerando que,
na visão foucaultiana, onde há poder, há
resistência e é justamente isso que se observa na obra freudiana, ou seja, a resistência se manifestando perante o poder
do analista, é possível perceber um solo
comum entre os conceitos de resistência
das obras de Freud e Foucault. Esse solo
comum, longe de tentar igualar ou submeter um conceito ao outro, estabelece as
bases para arriscarmos defender a nossa
hipótese de pesquisa.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009
Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença
Resta agora, sem desconsiderar a
forma como a noção de resistência foi
construída ao longo da obra freudiana,
tentar encontrar, no próprio Freud, outras vias de leituras dessa noção. E para
tal, decidimos ancorar a nossa hipótese
de pesquisa no segundo dualismo pulsional da teoria psicanalítica: pulsão
de vida (Eros) x pulsão de morte, evidenciando a relação entre esse dualismo e a resistência como compulsão à
repetição.
Estando sempre mescladas em
maior ou menor intensidade, Eros
une e liga, enquanto a pulsão de morte desune e fragmenta. O processo de
simbolização, que implicaria dar um
sentido à força pulsional, estabelecendo circuitos para a pulsão mediante a
sua inscrição no mundo em objetos de
satisfação, está a serviço de Eros. Já a
pulsão de morte trabalha para a fragmentação e a separação das sínteses
instituídas por Eros.
Os dois princípios fundamentais de Empédocles – amor e discórdia – são, tanto
em nome quanto em função, os mesmos
que nossos dois instintos primevos – Eros
e destrutividade, dos quais o primeiro se
esforça para combinar o que existe em
unidades cada vez maiores, ao passo que
o segundo se esforça por dissolver e destruir as estruturas a que elas deram origem (FREUD, 1937a, p. 263).
A pulsão de morte não pode nunca ser erradicada, já que a pulsão por
excelência, antes de ser capturada pelo
psiquismo em suas cadeias de representações, é pulsão de morte. A única forma de se contrapor à pulsão de morte é
a partir de Eros como princípio de afirmação da vida. Não é à toa que, em sua
carta ao cientista Albert Einstein, discutindo os motivos pelos quais o homem
faz a guerra, Freud afirma que:
Não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem;
pode-se desviá-los num grau tal que não
necessitem encontrar expressão na guerra. Nossa teoria mitológica dos instintos
facilita-nos encontrar a fórmula para métodos indiretos de combater a guerra. Se
o desejo de aderir à guerra é um efeito
do instinto destrutivo, a recomendação
mais evidente será contrapor-lhe o seu
antagonista, Eros. (...) A psicanálise não
tem motivo para se envergonhar se nesse ponto fala de amor (FREUD, 1933a,
p. 205, grifo nosso).
Dessa forma, a vida teria sempre,
como condição de possibilidade, a marca de Eros a se afirmar contra a morte
iminente, anunciada pela força constante, insistente e repetitiva da pulsão de
morte (BIRMAN, 2003). Porém, a pulsão de morte seria a condição de possibilidade para que Eros pudesse realizar
seu trabalho, ou seja, para que Eros pudesse unir, seria necessária a fragmentação causada pela pulsão de morte. Sem
o poder disruptivo e libertário da pulsão
de morte, capaz de fragmentar as ordens
e organizações instituídas por Eros, não
é possível que outras e novas ligações
possam ser constituídas.
Assim sendo, não se trata de eleger uma das pulsões como fonte da diferença, mas de valorizar a mescla e o
conflito pulsional como responsáveis
pelo movimento de desunião e união,
de fragmentação e ligação. É exatamente
esse movimento característico da dinâmica agonística das pulsões, ou seja, o
dualismo pulsional, que é capaz de produzir o novo e a diferença no processo
de subjetivação.
O conceito resistência, como compulsão à repetição, está diretamente relacionado ao dualismo pulsional, tanto
como expressão da pulsão de morte, já
que o que não está inscrito na cadeia
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009
159
Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença
de representações se repete indefinidamente e compulsivamente, quanto
como expressão de Eros, em sua tentativa de ligação da energia livre e sem
representação.
Vale lembrar que Freud não deduziu a pulsão de morte da agressividade,
mas sim da compulsão à repetição. Segundo Freud, foi a “[...] compulsão à repetição que primeiramente nos colocou
na trilha da pulsão de morte” (FREUD,
1920, p. 66).
A compulsão à repetição, como
dupla face de Eros e Tânatos, ao mesmo
tempo em que é uma tentativa de ligação,
de encontrar destinos para o excesso de
excitação do trauma e da pulsão de morte, também encarna a face demoníaca e os
próprios limites dessa tarefa. Levar a pessoa a experimentar infinitamente de novo
o rol de desgraças do trauma não garante a interrupção desse ciclo repetitivo, já
que a inscrição do traumático no campo
das representações não é garantida.
Tendo em vista que é na tentativa
de ligação psíquica que um símbolo antes
inexistente pode emergir, podemos afirmar que a repetição diferencial, ou seja, o
surgimento do novo, em meio à repetição
sempre da mesma coisa, acontece a partir
do trabalho de Eros. Porém, esse trabalho
só é possível em decorrência da pulsão de
morte que, como pura força ainda não ligada a nenhuma representação, incita à
repetição compulsivamente.
Conclusão
Inspirados diretamente por Foucault, é possível concluir que a resistência em si, como compulsão à repetição,
também está implicada diretamente na
produção do novo e da diferença no
processo de subjetivação.
Alargando a interpretação dominante da noção de resistência na obra
freudiana, esse paradoxo apontou que,
160
além de ser meio através do qual a mudança é capaz de se processar, a resistência em si pode também ser considerada
uma força de mudança subjetiva.
Como compulsão à repetição, a
resistência não obedece apenas ao aspecto que foi identificado como central
na obra freudiana - que a resistência é
a luta para conservação do mesmo. Ao
contrário, a compulsão à repetição problematiza o conceito de resistência em
Freud, deslocando a resistência do mesmo para a diferença.
De acordo com o Novíssimo Dicionário Latino Português (1993), etimologicamente o verbo resistir vem do latim
resistere, cuja raiz - sistere - também está
presente nas palavras: desistência, insistência, persistência e existência.
Logo, se resistir pode, de fato, ser
desistir, remetendo para o abandono do
trabalho analítico, resistir também pode
apontar para insistir, persistir e existir.
Ao reinventar a própria vida nos arranjos pulsionais inéditos que a compulsão
à repetição é capaz de produzir, resistir
pode ser re-existir, ou melhor, existir de
formas novas e diferentes.
Trabalhar na construção de destinos para a pulsão é trabalhar na invenção de novas possibilidades de expressão
das excitações no universo psíquico e no
campo da alteridade, ou seja, na criação
de novas formas de subjetividade que sejam capazes de enfrentar os dispositivos
de captura e fixação de identidades individuais. Nesse contexto, Birman (2006,
p. 363) afirma que:
A invenção e a criação seriam então as
resultantes maiores desse processo sempre recomeçado, na medida em que pressupõem, como sua condição concreta de
possibilidade, a existência de uma subjetividade que possa ser permanentemente
inventada e recriada contra um fundo homogeneizado de fixações estabelecidas
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009
Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença
Longe de qualquer ideal de cura,
uma prática psicanalítica comprometida com o vir a ser da subjetividade, com
a produção de um estilo singular para
a existência e com a invenção permanente da vida, deve acolher, no campo
da transferência, toda e qualquer forma
de resistência, para que os lampejos do
novo e da diferença possam emergir no
âmago do mesmo.
Keywords
Resistance; difference; instintual conflict;
compulsion to repeat.
Abstract
The main objective of the present article
is to question the resistance concept in
Freud’s speech. By the articulation with
Michel Foucault’s philosophical work, the
hypothesis of this article points to the possibility of thinking the resistance in itself
implicated in the subjective change, in
other words, in the production of the new
and the difference.
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Tramitação Recebido : 02/07/09
Aprovado : 02/09/2009
Nome : Rodrigo Cardoso Ventura
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Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009
Incesto:
caminhos e descaminhos frente ao horror
Incest: path and deflect front of the horror
Stetina Trani de Meneses e Dacorso1
Palavras-chave
Incesto; consequências psíquicas; subjetividade dos abusados; reação ao trauma; violência erotizada;
grupo incestuoso.
Resumo
Este texto propõe uma reflexão sobre as vicissitudes da organização psíquica de mulheres adultas
que sofreram abusos sexuais na infância. Não há preocupação com a definição de estrutura. Para tal,
utiliza-se de teóricos que pensaram sobre o assunto e de vinhetas clínicas para construir questões e
hipóteses sobre as consequências na subjetividade dessas mulheres.
(...) porque um século de cartas e de experiência lhe
ensinara que a história da família era uma engrenagem
de repetições irreparáveis, uma roda giratória que
continuaria dando voltas até a eternidade, se não fosse
pelo desgaste progressivo e irremediável do eixo.
Gabriel García Márquez
A escolha deste tema se deve a vivências incestuosas que nos últimos anos têm
chegado até à clinica. Os que vêm com essa
dor são adultos que passaram pela seguinte situação: olhares, relações sexuais, bolinações... Nossa questão, sem preocupação
com um diagnóstico de organização psíquica, é: como esses adultos administraram
esse trauma? Que consequências provocam
em suas relações amorosas? Para pensá-las,
privilegiamos a escuta clínica singular: cada
uma das situações e pessoas com sua especificidade. O tema é complexo, ficamos tentados a todo instante a analisar a dinâmica
familiar, a organização psíquica do pai ou
da mãe. Pensamos que, se assim o fizermos,
é como se estivéssemos submetendo novamente ao silêncio aquele que foi violentado,
1
em decorrência de sentimentos e dificuldades provocadas em nós pela escuta daqueles
que sofreram situações de abuso. Em momentos de discussão do tema, vários colegas
contribuíram ajudando-nos a pensar através
de sua clínica e nos proporcionando novas
articulações. O assunto é amplo e penoso.
Algumas questões surgidas na clínica
e nas supervisões acadêmicas despertaram a
nossa atenção. Foram pontos que requerem
uma escuta, um pensar e uma troca maior.
São: o traumático do abuso e a administração psíquica desse excesso excitatório e
erógeno; a angústia de aniquilamento ou de
morte; a manutenção da ternura e identificação com o abusador; relação de cuidado
com a mãe que é, na maioria das vezes, uma
figura ambígua e percebida como frágil.
Psicanalista-CBP-RJ. Professora titular do curso de Psicologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora
–CES.JF. Mestre em Psicologia AWU-USA. Supervisora e coordenadora de seminários na formação em
Psicanálise Sobrap-JF. Mestranda em Letras-Ces.JF. Membro efetivo de Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBP –RJ) e da Sociedade de Estudos Psicanalíticos de Juiz de fora – SEP-JF
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163
Incesto: caminhos e descaminhos frente ao horror
A situação é angustiante também
por aquilo que nos leva a ocupar o lugar de analista, isto é, o oferecimento de
uma escuta da qual não se pode escapar.
Referindo-se ao trabalho do analista e
à transferência, Freud nos diz que chamamos o demônio e depois tememos e
queremos que ele recue (1912). Ao ouvir
sobre o incesto, nos deparamos com o
demônio, mas, ao vê-lo, ficamos de frente ao “horror”.
Comecemos pensando o lugar do
pai na família, na sua relação com a filiação no grupo. Julien (1997) esclarece que,
na Roma Antiga, o pai exercia o poder
absoluto em sua família – chefe da casa,
se apodera da mulher e a faz conformarse à condição legal de mãe; além disso,
possui direito irrestrito sobre os filhos.
Nesse período, a paternidade é autorreferencial. O patriarca autoriza-se como
pai de uma criança, reconhecendo-o
como filho. O que define a paternidade
não é a consanguinidade. A paternidade
é adotiva e voluntária. Com o advento
da tradição judaico-cristã, o pai é aquele
que o casamento designa. A criança tem
por pai o marido da mãe. O direito de
paternidade sobre a criança repousa não
mais sobre o poder político ou religioso,
mas sobre um laço prévio – a cerimônia
de produção dos cônjuges.
Sigmund Freud, em Totem e Tabu
(1913), relata o constructo mítico da
horda primeva, quando se estabelece o
tabu do incesto e a exogamia. Princípio
das religiões, regras e deuses protetores
– totens. Quando o mundo se mostra
assustador, faz-se necessário que o ser
humano se sinta de alguma forma protegido e com a sensação de que tem para
o que, para quem e para onde recorrer
na busca de proteção e garantias.
164
Nesse texto, Freud conclui que as
duas proibições do totemismo, matar o
pai e ter uma mulher do clã como objeto
sexual, coincidiam com os dois crimes
do Édipo: matou o pai e casou com a
mãe. O pai morto é idealizado, garantindo o pacto entre irmãos; há a renúncia ao gozo sem limites, e todos podem
exercer a sexualidade respeitando a regra
comum. Esse constructo funda a civilização. O pai edipiano substitui o pai gozador, curvando-se ele também à lei que
enuncia. A horda primeva é a origem do
mito edipiano. A proibição instaura o
desejo incestuoso. A tese freudiana é que
o desejo de incesto é inerente ao homem
e só um interdito, formulado como uma
lei, pode afastá-lo dele (ROUDINESCO;
PLON, 1998).
Existe um funcionamento que se
apresenta na maioria dos casos de abuso. As famílias se isolam do social. O “de
fora” é o desconhecido que provoca angústia, porque, supomos, denuncia os ritos, leis, funções e papéis sociais. Razon
(2007), baseado em pesquisas, também
se deparou com essa situação. A autora
analisou que o grupo não se submete a
nenhuma regra, só àquelas oriundas de
um pai totêmico, tirânico, aterrorizador e violento. Todo o grupo sucumbe
à violência traumatizante, o grupo é fechado em si mesmo. Nenhum interdito
articula as relações entre cada um dos
protagonistas. Nesse universo, cada um
desliza na pele do outro, nenhum limite
psíquico e corporal existe.
Meu pai não gostava de ninguém na nossa casa. E nem a gente podia ir à casa das
pessoas. Hoje, nós, irmãos, somos iguais.
Gostamos de estar juntos e de amizade
também. Mas quando começa a querer
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.163-170 – Novembro. 2009
Incesto : caminhos e descaminhos frente ao horror
ver toda hora, ficar ligando, a gente logo
se afasta (P., 39 anos, molestada pelo pai
dos 9 aos 12 anos).
Em Totem e Tabu, Freud também
aborda a questão da identificação, dos
irmãos ao pai da horda, comunhão totêmica (com o pai e entre si pelo traço
comum de ideal de ego), articulando
aquela ao objeto perdido. Com a identificação, existe uma outra perspectiva
para analisar a rivalidade entre irmãos
(HERSOG; MOGROBI, 2006) no complexo de Édipo. O ideal da criança será
processado a partir de exigências feitas
e consequentes demonstrações de afeto
dos pais quando a criança cumpre as
exigências. Dessa forma, o ideal constitui um modelo a ser seguido e às expensas dos investimentos eróticos dos
pais. A atividade erótica cede sua energia para formar o ideal que, por sua vez,
censura os impulsos sexuais, mantendoos recalcados
O investimento objetal nos pais
frustra-se diante da proibição cultural
do incesto. Cedendo espaço às identificações, a criança molda-se, desta forma, à imagem dos objetos perdidos. Em
Totem e Tabu, o pai é responsável pela
coesão do grupo, mas em Psicologia das
massas e análise do eu (1921), o representante paterno pode ser um projeto ou
um líder, que vão constituir o ideal do
grupo.
Allouch (2005) diz que o pai
sedutor é escandaloso, porque aparece pedindo outra coisa nos circuitos
da demanda. Ora, ele não o pode enquanto pai. Enquanto pai, sua demanda está bloqueada, congelada, fixada.
O escândalo não se deve tanto a que o
pai sedutor seduza, nem tanto ao mal
que faz à criança ao erotizá-la: o escândalo se dá em que, ao seduzir, ele
se destitui enquanto pai. A questão é
que não há pai sedutor. Um pai sedutor se destitui enquanto pai, fica fora
de seu si paterno. Pai sedutor=não há
mais pai. Isso faz sentido na clínica?
Que é o que nos interessa como clínicos? Pensamos que algumas questões
de pacientes podem se encaixar nesta
análise: “(...) ele era mulherengo, não
precisava fazer isto comigo, por que o
fez?(...) Eu tive pai até os nove anos,
depois é outra pessoa..” Se analisarmos
essas questões pelo olhar de Allouch,
o pai se afasta de seu lugar de protetor e instala o pai da horda, o que usa
de todas as mulheres,instalando o desamparo num período de vida no qual
é impossível buscar a sensação ( e sabemos que é assim) de amparo por si
mesmo, tendo de lidar com dois registros: pai e homem sedutor.
Ferenczi (1988) aborda a situação
como linguagem da ternura e da paixão. Analisa que seduções incestuosas
se produzem quando um adulto e uma
criança se amam; a criança tem fantasmas lúdicos. O jogo toma uma forma
erótica, porém permanece na ternura.
Os adultos com predisposição psicopatológica vão confundir as brincadeiras
das crianças com os desejos de uma pessoa com maturidade sexual. Deixam-se
levar pelos atos sexuais sem pensar nas
consequências. Primeiro, as crianças
odeiam, depois se sentem física e moralmente sem defesa. Sua personalidade
fraca não consegue reagir contra a autoridade impositiva dos adultos. O medo
excessivo obriga as crianças a obedecer
automaticamente, esquecendo-se de si e
identificando-se com o agressor.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.163-170 – Novembro. 2009
165
Incesto: caminhos e descaminhos frente ao horror
Uma situação emocional que chama a atenção e está presente na maioria
dos casos de abuso é a ternura mantida
em relação ao abusador. São duas ideias
incompatíveis convivendo juntas: a raiva
pela violência vivida e a manutenção da
ternura. Pensei em algo como fragmentação, cisão. Ferenczi analisa esse estado emocional. Para o autor, ocorre uma
introjeção do agressor, que desaparece
como realidade externa, e torna-se intrapsíquico. O que é intrapsíquico pode,
seguindo o princípio do prazer, ser modelado e transformado de maneira alucinatória positiva ou negativa. Assim, a
ternura é mantida:
Meu pai era muito homem! Com orgulho, continua: Todos nós parecemos com
ele: somos bravos, falamos claro, não
mentimos e respondemos na hora (M.,
42 anos, molestada pelo pai dos 10 aos
14 anos, família de 5 filhos: 4 mulheres
e um rapaz)
Nos textos de Freud citados anteriormente, é analisada a submissão decorrente da própria fragilidade do ser
humano, que vai amar e ceder àquele
que alimenta e protege, amando-o pelo
que recebe, procurando cumprir as exigências percebidas oriundas deste. Desamparo que não termina, mas que vai
tomando outras feições e defesas ao longo da vida de cada um, utilizando-se dos
vários objetos externos que, investidos
das representações internas, vão propiciar uma sensação de segurança e proteção. Mas se faz necessário que se tenha
podido confiar e acreditar, em algum
momento, que alguém podia cumprir
esse papel. É isso que nos faz acreditar
seja lá no que for, senão o caminho fica
muito árduo e solitário, quiçá impossível
166
em algumas situações, na busca e crença
de possíveis amparos.
Falhando os artifícios usados para
possibilitar segurança, o desamparo vai
provavelmente surgir, provocando o sentimento de perigo e, consequentemente,
angústia. Em Inibição, sintoma e angústia (1926), a angústia é uma resposta à
sensação de perigo, assim possui uma
representação psíquica. O perigo analisado em nível da realidade num primeiro momento é visto posteriormente
como a ameaça sentida por cada sujeito
particularmente em sua vida psíquica.
Enquanto Freud vai desenvolvendo
seu pensamento, a angústia surge vinculada ao temor de castração. Aí a pulsão
funciona como perigo para o eu. O aparato psíquico possui uma barreira protetora para o excesso de excitação. Quando
a carga excitatória é excessiva, rompendo esse aparato, o resultado é catastrófico para um psiquismo em organização.
Aqui podemos levantar a teoria da sedução. Num segundo momento, Freud, em
carta a Fliess, diz não acreditar mais em
suas neuróticas e se refere à realidade psíquica em prol da realidade concreta, mas
também menciona que todas as fantasias
e representações psíquicas se apoiam em
um dado de realidade. Assim, podemos
pensar que o corpo foi violentado, não
importando o tipo de violação que ocorreu, no sentido de trauma que nos referimos anteriormente, recebendo uma carga
excessiva de erotização. Em psicanálise,
vale a construção de cada um, mas nessas
situações temos de lidar com uma situação factual. O aparelho perceptual é que
permite a apreensão do mundo. Se ele foi
invadido por um excesso, como o elabora, já que a partir daí a pulsão exigirá um
trabalho à mente, forçando a construção
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.163-170 – Novembro. 2009
Incesto : caminhos e descaminhos frente ao horror
de uma representação? Essa abordagem
nos auxilia a pensar as representações
construídas sobre as relações amorosas,
a sexualidade, filiação. Em várias situações de abuso, a consequência desse excesso de erotização não foi o repúdio às
relações amorosas, nem à sexualidade,
como encontramos em vários teóricos
que trabalharam o tema, mas uma sexualidade, talvez um pouco mais exacerbada,
sem que possamos nos referir a traços de
promiscuidade. O que chama a atenção,
nesses casos, é o prazer em dizer que os
filhos (homens e mulheres) puxaram ao
pai no gostar de sexo. É algo a se analisar
com mais profundidade e calma.
Se desviarmos o olhar por um momento para a mãe nessa situação, encontramos o trabalho de Mello Neto e Martinez (2002). Eles a analisam como o primeiro aparelho de para-excitação, como
objeto de investimento libidinal. Se ela
falha, a criança é jogada ao desamparo.
Quando a mãe falha como escudo para o
excesso de excitação, protegendo a criança
desse excesso, deparamo-nos com questões angustiantes das mulheres que vêm à
clinica com vivências de incesto e que demoram um tempo para formulá-las: “minha mãe desconfiava, percebia, sabia? Ou
não? Como minha mãe não percebeu algo
de errado comigo? Como ela não percebeu o que acontecia? Acho que ela não ia
acreditar em mim...” Como entender que
a mãe saísse e as deixasse a sós com um
pai que tudo podia? Quando não havia limites a esse pai da horda! Essas frases são
presentes em todos os casos.
Pensemos a angústia nesta situação articulada ao desamparo da criança
diante de uma situação em que se encontra submetida ao objeto violentador. A angústia, como um sinal, pode
ser analisada partindo das colocações
clínicas como um estado emocional de
alerta e ao mesmo tempo uma apreensão em relação ao contexto em volta:
“ minha mãe saía e eu ficava sozinha
com ele, não sei porque ela me deixava...aí eu corria para o quintal, para a
rua, tinha que ficar me escondendo e
ele chamando...e não podia contar para
ninguém” (p. 38 anos) .
Para
pensar
as
possíveis
consequências desse ter que dar conta
de si sozinha, recorremos novamente a
Ferenczi (1988) em seu texto Confusão
de línguas entre adultos e crianças, e
encontramos sua análise do estádio da
ternura. O autor qualifica esse estádio
como o período de amor objetal passivo,
que é quando a identificação antecede
ao amor objetal. Se nessa fase de ternura
se impõe às crianças mais amor ou um
amor diferente do que desejam, isso pode
proporcionar as mesmas consequências
patógenas que a privação do amor. São
situações que podemos considerar como
traumáticas, já que implicam um excesso
excitatório num psiquismo infantil que
não possui meios de elaboração. Ferenczi
expõe consequências que também
percebemos em nossa clínica. A aflição
extrema e a angústia de morte parecem ter
o poder de despertar e ativar subitamente
disposições latentes, ainda não investidas
e que esperavam a sua maturação em
quietude. Após a agressão sexual, a criança
pode desenvolver emoções de um adulto
já maduro. Nessa situação, podemos falar
de progressão traumática.
As pessoas relatam que sentem
que algo lhes aconteceu, ficavam mais
espertas, perceptivas, entendiam o mundo à sua volta e achavam as pessoas de
sua idade muito “tolas e burrinhas”.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.163-170 – Novembro. 2009
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Incesto: caminhos e descaminhos frente ao horror
Ferenczi (1988) articula o abuso
sexual com a angústia de morte e o sentimento de aniquilamento. Aqui me lembro de um texto de Costa (1984), em que
ele analisa que é violenta toda experiência
em que não se consegue prazer; levanta
então, a questão do abuso sexual, em que
uma situação da ordem da erogeneidade
e eroticidade vai provocar uma angústia
de morte, porque o sexual é usado para
destruir, aniquilar, destituir o outro de
sua vontade para submetê-lo.O ”estar paralisado” é uma afirmação constante nas
pessoas que passaram por abuso sexual.
O fluxo pulsional em si não é angustiante, mas o é se o aparelho psíquico
não consegue direcioná-lo, a angústia
não é da pulsão, mas do quantum excitatório. No abuso sexual, a vítima tem
desenvestido o objeto abusador e realiza
movimentos defensivos no seu aparato
psíquico que vai se unir ao estado de
angústia realístico e ainda administra o
quantum excitatório invasivo, oriundo
da sexualidade destrutiva adulta.
O que corre perigo na violência
sexual não é a identidade sexual do sujeito, mas é a desagregação do núcleo da
identidade egoica, daí a angústia de morte, o aniquilamento. Lembramos aqui o
conceito de a posteriori de Freud, quando o significado de uma vivência vem
no “só depois”. Se retomarmos a teoria
de sedução de Freud, num segundo momento, vamos trabalhar com a realidade
psíquica e não com a realidade concreta.
É uma leitura que nos auxilia a pensar a
sexualidade aparentemente normal, que
encontramos na clínica. Enquanto não
é a identidade sexual atingida, mas sim
uma desagregação egoica, encontramos
em vários casos uma contenção na vida
social: trabalho e casa. Existe sempre
uma angústia circulando qualquer si168
tuação fora do contexto casa-trabalho,
algo da ordem da tragicidade...
A angústia de morte provoca o sentimento de aniquilamento. Não existe uma
representação que possa acalmar, não há
uma descarga possível para a tensão que
se estabelece perante a situação de alerta.
Poderíamos nos referir a uma angústia
realística. Afinal, a situação se repete e todos relatam um estado de expectativa: vai
acontecer novamente, mas pode ser em
qualquer noite, quando a família assiste à
televisão, no momento do banho, quando
vão ser colocados na cama para dormir....
Essa angústia pode ser considerada fóbica ou é de morte? Esse estado de
alerta ocasiona uma angústia que ninguém consegue explicar. Mas a situação
é da ordem do aniquilamento: são ameaçados para não falar, têm de suportar
em silêncio os toques abusivos, sem
ter para onde ou a quem recorrer. Nos
relatos há um cuidado para proteger
a mãe, de forma que ela não tome conhecimento da situação porque, senão,
“sofreria demais”. Entre a ideia de que
quem cuidava sabia e nada fez e o pensamento de alguém que deveria saber
cuidar, mas é tão frágil que deve ser cuidado por aquele que realmente é frágil,
as pessoas escolhem a última hipótese
e fazem de tudo para que a primeira
ideia fique distante de si. É interessante
ressaltar que a clínica nos mostra que,
quando a primeira ideia- da mãe que
sabia, mas preferia não saber – começa
a se apresentar à consciência, o que primeiro emerge é a raiva, uma raiva surda, constante e não muito intensa. E as
filhas não compreendem por que afinal
a mãe é frágil, que é a segunda ideia utilizada para explicar a não intervenção
da mãe. O mais interessante ou triste,
enfim, não sabemos se cabe um adjeti-
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Incesto : caminhos e descaminhos frente ao horror
vo, é que geralmente as filhas abusadas
pegam para si o encargo de cuidar das
mães na velhice. Essa raiva as faz sofrer
muito. São situações muito angustiantes, porque de qualquer jeito o sofrimento é insuportável. Se a mãe é frágil,
ficam sós com sua dor sem os cuidados;
na outra situação, se a mãe preferia não
saber, continuam com a dor do desamparo aumentado pela confirmação de
que alguém não queria cuidar.
Em algumas situações, a angústia
de morte que provoca um aniquilamento
da identidade é resolvida construindo-se
uma possibilidade de salvar pessoas que
se encontram à sua volta. É uma construção que justifica a escolha de ser o objeto
de abuso. Para que outros irmãos não o
sofram, para que a violência não recaia
sobre a mãe, para que ele fique calmo
e não maltrate a família inteira, porque
ela era a mais “forte”, portanto capaz de
suportar as investidas. Prevalece a ideia
da mãe frágil. E podem suportar o que
sofreram construindo para si a imagem
de fortes, decididas, protetoras.
Essas representações parecem
provocar uma calma, um estado de sentimento indecifrável, que consideramos
pertinente chamar de angústia. Angústia, aqui, como o sentimento indecifrável, sem uma nomeação, sem algo que o
possa definir. Sem a representação que
possa acalmar o sentimento da razão
pela qual se está passando por aquela situação. No fundo, o que fica permeando
a mente é como foi que foram escolhidas
e por quê? Em algumas situações, a palavra que surgiu foi “eleita”.
Na primeira apresentação dessas
ideias, houve discussões sobre se tínhamos
casos de câncer no aparelho reprodutor em
mulheres que sofreram abusos. Esse questionamento abre outra via também exten-
sa e complexa! O corpo atuando, como
dizia Freud, e não descarregando. O corpo
erógeno citado por Costa (1984), quando
o sexual é usado de forma destrutiva com
desejos de morte num outro violentado.
Não temos casos de câncer, mas de fortes
dores no baixo ventre, que levaram a exames de todos os tipos ao longo de muitos
anos, já que as dores começaram por volta
dos quinze anos. Em momentos distintos
da análise, foi questionado se as dores,
quem sabe, não poderiam ser decorrentes
de sofrimento psíquico, e nos dois casos,
após uns dois a quatro meses, as dores foram diminuindo até parar. Não consideramos que essas dores estejam sanadas, mas
que houve uma reorganização econômica
e dinâmica nessa representação corporal,
pois é algo que requer mais tempo. Mas
uma primeira hipótese possível é que esse
corpo erógeno atuava a violência e era punido por sua erogeneidade. Atuando prazer e desprazer! Contudo a delicadeza da
situação com suas consequências requer
mais aprofundamentos e cuidados para
essas afirmações.
Como dissemos no inicio, é um
tema em elaboração. Esperemos com
calma o que a clinica nos apontará a posteriori. Afinal, é um trabalho de ir e vir,
teoria e prática, escuta e construção.
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Incesto: caminhos e descaminhos frente ao horror
Keywords
Incest; psychic consequences; subjetivity of
abused; reaction to trauma; erotized violence; incestuous group.
Abstract
This text propose a reflection on the vicissitudes
of the psychic organization of adult women who
support sexual abuse in the infancy. For such,
use are the theorists Who reflect of this theme
and clinical vignettes and questions assumptions about the subjectivity of this women.
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Tramitação Recebido : 02/07/2009
Aprovado : 31/08/2009
Nome : Stetina Trani de Menezes e
Dacorso
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Algumas evidências da fundação ética da
psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’
Some evidences of the ethical foundation of psychoanalysis
at ‘The Psychotherapy of Histeria’
Vinicius Anciães Darriba1
Anne Marcelle Coelho Bencke2
Erick Bonatelli Cardim2
Paula Beatriz Mitter de Carvalho2
Dirceli Adornes Palma de Lima2
Germano Manoel Pestana2
Diviane Helena de Oliveira3
Palavras-chave
Psicanálise; ética, clínica; psicoterapia da histeria; Freud.
Resumo
No último capítulo dos Estudos sobre a histeria – escrito por Freud e intitulado A psicoterapia da histeria –
o autor, ao problematizar os parâmetros da clínica médica, esboçou alternativas a estes que, conforme se
busca verificar, instauraram a prática analítica. Sua nova posição – de descontinuidade e de inauguração
– instaurou uma posição ética à qual o artigo remete. Desde esta posição, a clínica da histeria aponta
para dificuldades e limitações tomadas não como um empecilho à aplicação do método a ensejar seu
aprimoramento, mas como o que incita uma decisão ética da ordem do desejo em Freud.
INTRODUÇÃO
O último capítulo dos Estudos sobre a
histeria (BREUER; FREUD, 1987 [1895a]),
escrito por Freud e intitulado A psicoterapia da histeria, destaca-se, talvez mesmo em
comparação com outros textos produzidos
pelo autor, por abordar em conjunto questões estritamente associadas ao trabalho da
análise. A partir do testemunho do que se
apresentava a ele, ao voltar-se para a clínica
problematizando os referenciais usuais da
prática médica, Freud penetrou em questões
como a direção do tratamento, seus limites,
o lugar do médico, o papel do paciente. Ao
problematizar todos esses parâmetros para a
clínica, já esboçou respostas que, conforme
buscaremos verificar neste artigo, antecipam o que viria a constituir enunciados decisivos da psicanálise com relação a tais parâmetros. Podemos dizer, por exemplo, que
as observações relativas a médico e paciente
já configuram posições mais próximas do
que se consagrou como as do analista e do
analisante.
O que é notável é o fato de que, a rigor,
nesse momento, ainda não havia psicanálise, havia Freud. No texto em questão, cujo
Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFPR, vice-coordenador do Laboratório de Psicanálise dessa universidade. Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, Psicanalista.
2
Equipe de pesquisa vinculada ao Laboratório de Psicanálise da UFPR. Graduandos em Psicologia.
3
Equipe de pesquisa vinculada ao Laboratório de Psicanálise da UFPR. Graduada em Psicologia.
1
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009
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Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’
título introduz o termo “psicoterapia”,
o trabalho clínico ainda conserva a designação de “método catártico”, embora
seja visível o gradativo distanciamento
em relação ao que se propunha originalmente com ele. Igualmente, Freud ainda
não consolidara um conjunto de hipóteses e conceitos que pudessem constituir
uma teoria psicanalítica. No mesmo ano
de 1895, em que redigiu A psicoterapia
da histeria, Freud preparou os manuscritos do Projeto para uma psicologia
científica, em que tentava estabelecer
como base teórica para seu pensamento um aparelho neuronal. A que se deve
então a antecipação, neste momento, de
considerações muito precisas acerca do
que viria a constituir a clínica psicanalítica? Por que se observa, neste texto, um
“ultrapassamento” tão claro do lugar de
saber a partir do qual o autor ainda tenta
referendar seus enunciados?
Há um comentário do editor inglês da obra que talvez se dirija ao ponto que aqui abordamos. Ele afirma, em
relação a esse volume, que o que Freud
“nos relata não é simplesmente a história da superação de uma série de obstáculos; é a história da descoberta de uma
série de obstáculos a serem superados”
(STRACHEY, 1987 [1966], p.23, grifo do
autor). Efetivamente, o texto de Freud é
pontuado de referências a obstáculos que
ele verificava se imporem ao método.
Entendemos, no entanto, que, mais do
que a consideração de tais obstáculos, o
que coloca Freud na trilha de uma ruptura clínica e teórica é sua resposta não
ter sido pautada pelo aprimoramento do
método (para que o objeto ceda), e sim
pelo ceder ao objeto. Ou seja, afirmamos
que a resposta de Freud, nesse momento
crucial, não é técnica, mas ética. A passagem do método catártico à psicanálise,
da posição de médico à de analista, não
é uma necessidade técnica, mas uma decisão ética. Decisão ética pela qual algo
172
da ordem do desejo em Freud mudou o
universo da clínica para nós. O desejo
em Freud fundou uma ética.
Este artigo retoma, então, o texto A psicoterapia da histeria, propondo
tal leitura: ser ele representativo, se não
paradigmático, de um momento de fundação da psicanálise, no qual se verifica, portanto, uma descontinuidade em
termos do pensamento de Freud. Por se
tratar de um texto clínico, a descontinuidade se evidencia neste terreno, embora
seja determinante do que se seguiu em
termos teóricos. Essa descontinuidade
será aqui trabalhada a partir de diferentes eixos temáticos que entendemos
compor a obra.
FREUD E O SABER MÉDICO
A formação médica de Freud se faz
presente mediante os termos utilizados:
‘doença’, ‘médico’, ‘etiologia’, ‘diagnóstico
diferencial’, ‘patogênico’. Trata-se, então,
de significantes usuais da clínica médica, que apontam ao longo do texto para
seu emprego em um sentido não usual,
inédito. Em outros contextos, em que o
saber médico comparece no desenvolvimento dos argumentos de modo mais
amplo que por um viés nominativo, o tributo pago a ele pelo autor implica certas
ressalvas com relação ao que resulta da
prática de seu método. Isso fica claro, por
exemplo, quando a questão do diagnóstico diferencial da histeria em relação às
outras neuroses é anunciada como uma
das duas dificuldades de aplicação do
método sobre as quais versará a obra.
O diagnóstico, ato médico por excelência, deve possibilitar a delimitação
dos quadros clínicos aos quais o método
se aplica. No caso do método catártico,
Freud se depara com alguns problemas
de precisão quanto ao diagnóstico, que
ensejam preocupação ao médico que ali
se encontra.
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Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’
Ocorreu então algumas vezes que, apesar
do diagnóstico de histeria, os resultados
terapêuticos se revelaram muito escassos
e nem mesmo a análise trazia à luz nada
de significativo. Em outras ocasiões ainda, tentei aplicar o método de tratamento
de Breuer a casos de neurose que ninguém poderia confundir com histeria, e
assim verifiquei que eles podiam ser influenciados e, na verdade, esclarecidos.
(FREUD, 1895a, p.254)
Não promete boa repercussão um
método proposto para o tratamento da
histeria que não se mostra efetivo em
casos diagnosticados como de histeria e
que, ao contrário, se mostra efetivo em
casos de neurose, em que o diagnóstico de histeria está descartado. A saída
pouco ortodoxa que Freud adota é considerar que o mecanismo psíquico que
fundamenta o método não é patogmônico da histeria e deixar, em cada caso,
que a decisão quanto ao diagnóstico
fique na dependência do resultado da
investigação.
A inflexão aí efetuada por Freud,
com relação à lógica do diagnóstico,
introduz um requisito temporal fundamental quanto ao lugar que tal diagnóstico veio a ocupar na experiência da psicanálise. Joël Dor, ao tratar do tema, indica que, na psicanálise, a relação entre o
diagnóstico e a indicação de um método
de tratamento “não remete a uma relação de implicação lógica como é o caso
na clínica médica” (DOR, 1994, p.15).
Isso porque seu campo de investigação
clínica se delimita pela dimensão do dizer; não qualquer dizer, mas aquele que
se estabelece pela relação transferencial.
Sendo assim, o que baliza o diagnóstico
advém do tratamento em curso, do método em operação, não sendo aplicável a
exigência da anterioridade.
Outro embaraço de Freud diante
da tradição do diagnóstico na clínica
médica aparece associado a sua perspectiva etiológica. Embora declare ter sido
“obrigado a reconhecer que, na medida
em que se possa falar em causas determinantes que levam à aquisição de neuroses, sua etiologia deve ser buscada em
fatores sexuais” (FREUD, 1895a, p.255,
grifos do autor), ele se preocupa em
distinguir sintomas psicogênicos e não
psicogênicos. A preocupação em delimitar, no campo da etiologia, o que seria e o que não seria objeto da aplicação
de seu método, não o livra da evidência
de que “quanto a outros sintomas desses
[não psicogênicos], parece que, de alguma forma indireta, eles são eliminados
junto com os sintomas psicogênicos, do
mesmo modo que, afinal, de alguma forma indireta dependem de uma causação
psíquica” (ibidem, p.261).
Finalmente, o que nos parece particularmente representativo da relação
de Freud com o saber médico é o modo
como recorre a analogias com referências deste na tentativa de elucidar o que
estaria em jogo em sua clínica. Dentre
cerca de uma dezena dessas analogias
e comparações, que não valeria a pena
reproduzir aqui, destacam-se aquelas
que fracassam no objetivo da elucidação, fracasso assinalado pelo próprio
autor. Deste modo, ao dizer que o material patogênico com que está lidando
se comportaria como um corpo estranho, e que o tratamento atuaria como a
remoção desse corpo estranho do tecido vivo, Freud apresenta ressalvas importantes, julgando-se em “condições
de ver onde essa comparação fracassa”
(ibidem, p.282). Diferente da relação do
corpo estranho com as camadas de tecido que o circundam, o grupo psíquico patogênico pertence, nas palavras do
autor, tanto ao ‘eu normal’ quanto à organização patogênica. A fronteira entre
os dois é fixada de modo convencional,
o tratamento não consiste em extirpar
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Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’
algo, mas em permitir a circulação até
então impedida.
Mais adiante, em outra comparação, a mesma reserva se repete por parte
de Freud. Trata-se agora da descrição
de seus tratamentos como operações
psicoterapêuticas, da “analogia com a
abertura de uma cavidade cheia de pus,
a raspagem de uma região cariada, etc”
(ibidem, p.293). Como antes, o autor
afirma que a analogia se justifica menos
pela remoção do que é patológico do
que pela criação de condições para que
o processo avance no sentido da recuperação. Em última instância, entendemos que essas analogias valem menos
pela tradução por parâmetros médicos
ou, constatada a insuficiência destes,
pela introdução de alguma outra imagem ilustrativa. O apelo a tais analogias
acaba tendo a função de apontar para o
que escapa neste esforço de transmissão.
Se, neste momento, é o saber médico
que oferece as imagens e palavras para
Freud, o encaminhamento dado por ele
indica que sua experiência clínica não é
toda representada e dita por ele.
Essa limitação em transmitir a psicanálise por meio de representações espaciais é constatada por Freud em outros
textos. Um bom exemplo se encontra em
O mal-estar na civilização (1930[1929]).
A discussão que nos interessa inicia-se
no ponto em que Freud, no decurso da
obra, se interroga sobre a possibilidade
de conviver o que é próprio de um eu
primário com o que posteriormente caracterizaria o eu. À pergunta “terei eu o
direito de presumir a sobrevivência de
algo que já se encontrava originalmente
lá, lado a lado com o que posteriormente
dele se derivou?” (FREUD, 1930[1929],
p.86) ele responde afirmativamente, recorrendo a partir daí a uma série de analogias que poderiam ilustrar a situação.
O primeiro exemplo que apresenta – o
das espécies animais – é rapidamente
174
abandonado, visto que as espécies inferiores sobreviventes não são, de modo
geral, os verdadeiros ancestrais das espécies mais desenvolvidas atuais. Freud
ensaia, então, uma outra analogia, em
um campo a que recorre com frequência
em sua obra. Ele apela a uma imagem
arqueológica, à imagem da Roma antiga
revivida pelos historiadores.
Freud pergunta o que se encontraria, na atualidade, das diferentes fases
históricas atribuídas à cidade. Com exceção do pouco que ainda resta intacto,
o que se tem são restos escassos, que se
confundem seja com restaurações posteriores e suas próprias ruínas, seja com
a confusão da metrópole atual. Freud
propõe, então, que imaginemos Roma
não como uma habitação humana, mas
como uma entidade psíquica, “uma entidade onde nada do que outrora surgiu
desapareceu e onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a
existir, paralelamente à última” (ibidem,
p.88). Isso definiria um problema para a
representação que deveríamos fazer de
Roma, pois conteúdos diferentes teriam
que estar justapostos no espaço. Concluindo ser inapropriada a comparação, Freud ainda cogita a analogia com
o corpo humano – que ele reputa ser
um objeto de comparação mais estreitamente relacionado – mas se depara mais
uma vez com a impossibilidade de uma
representação espacial, já que os órgãos
da infância não poderiam se sobrepor
ao que compõe o organismo adulto.
Tanto no exemplo da cidade de
Roma quanto no do corpo humano, o
que Freud diz justificar o esforço de estabelecer a analogia é a demonstração
do “quão longe estamos de dominar as
características da vida mental através de
sua representação em termos pictóricos”
(ibidem, p.89). A questão da ‘preservação na esfera mental’, que se apresenta
para Freud, implica, então, a problema-
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Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’
tização da lógica de organização espacial a que o pensamento usualmente se
submete. Isto é, a representação de dois
conteúdos sobrepostos em um único espaço é uma imagem absurda em referência à lógica do espaço que nos é comum.
O pensamento que aí se impõe a Freud
desafia, portanto, sua representação espacial. Ao retomarmos A Psicoterapia
da histeria, podemos dizer que o limite
lá verificado, quanto às analogias com o
saber médico, já anuncia a irredutibilidade da experiência da psicanálise a esquemas representacionais emprestados
de outras disciplinas. A experiência que
se estabelece a partir de Freud resiste ao
acoplamento ao saber, especificamente
ao saber médico no texto de 1895.
AS DIFICULDADES DO PROCESSO
Imediatamente em seguida à discussão do problema diagnóstico, Freud
anuncia que irá enumerar dificuldades
de seu processo terapêutico. Em relação
às exigências que recaem sobre o médico, ele destaca que, além de ser laborioso
e exigir muito tempo, faz-se necessário
o interesse pelos acontecimentos psicológicos e, também, pelos pacientes.
Quanto a esses acontecimentos, Freud
contrapõe não ser necessária uma tal
aprovação pessoal para tratar, por exemplo, um paciente reumático ou tabético.
Ele localiza aí, então, uma particularidade de seu tratamento no que diz respeito
ao modo de o médico se implicar na decisão de tomar alguém sob seus cuidados. Algo em sua experiência inicial já
lhe revela, portanto, que essa decisão do
analista, com respeito às demandas que
lhe são endereçadas, se inclui como um
elemento do processo da análise.
Do lado do paciente, Freud diz que
as exigências não são menores. O fato de
que o processo conduz, em suas palavras, ao que é íntimo e secreto, torna-o
aplicável apenas acima de um certo nível de inteligência e com uma confiança
que faz a relação com o médico avançar
para o primeiro plano. Podemos pensar
esse nível de inteligência nos termos do
‘não saber’ do paciente neurótico, que
Freud adiante diz tratar-se, de fato, de
um ‘não querer saber’. Entenderíamos,
assim, esse nível em termos da possibilidade de uma análise avançar apesar do
‘não querer saber’.Vemos, ainda, Freud
aproximar-se do tema da transferência,
o qual se apresenta, nesse texto, como
um tema intersticial, remotamente nomeado. Embora inicialmente associada
ao que faz obstáculo ao processo, ao que
é indevido, Freud acaba por concluir
que “esse novo sintoma, produzido com
base no modelo antigo, deve ser tratado
da mesma forma que os sintomas antigos” (FREUD, 1895a, p.292). Já antecipa, assim, a posição em relação à transferência que pauta seus futuros escritos:
não se trata de algo a ser evitado, mas da
própria via pela qual o trabalho da análise se dá.
O que entendemos ser fundamental sublinhar aqui, no modo como Freud
toma o que se apresenta como obstáculo
no processo, é o que podemos extrair de
seu comentário de que:
a razão exige que ressaltemos o fato de
que esses obstáculos, embora inseparáveis de nosso método, não podem ser
atribuídos unicamente a ele. Pelo contrário, está bastante claro que eles se baseiam nas condições predeterminantes
das neuroses a serem curadas [...] (ibidem, p.262).
Ou seja, como dissemos na abertura do artigo, Freud não aponta para
o aprimoramento do método a fim de
que os obstáculos sejam vencidos. Não
se trata de fazer o objeto ceder, mas antes de ceder ao que no objeto resiste ao
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Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’
método. O autor entende, assim, que
esse lugar do que não se conforma ao
método não deve ser subtraído, na medida em que fala do que é constitutivo
na neurose. Se quisermos avançar um
pouco mais, fala que o constitutivo na
neurose é correlato de certo ponto limite do saber com que é abordado. Como
diz Paul-Laurent Assoun, “o neurótico,
muito mais que objeto de estudo, é portador de uma exigência simbólica estruturante do próprio saber clínico” (1996,
p.35). Freud não impõe ao neurótico,
portanto, o saber consagrado; mas, ao
contrário, toma o que ali está em jogo
não como aquilo a que o saber será aplicado, mas como aquilo de que o saber
derivará. Freud entende, por exemplo,
que “um médico não pode atribuir-se a
tarefa de alterar uma constituição como
a histérica” (FREUD, idem, p.259).
O que não se conformou ao método não definiu um não lugar, próprio
da histeria para seus contemporâneos,
mas teve para Freud lugar de causa. Para
além da questão de por que o desejo em
Freud encontrou justamente o caminho
que o levou até a histeria, vale mais destacar a posição inédita que esse encontro fundou. Diante dos obstáculos, que
vimos o autor associar não à precariedade do método, mas ao constitutivo da
histeria, a resposta não se define por um
artifício técnico e sim por uma posição
ética. Posição ética que entendemos ter
possibilitado, consequentemente, a introdução do inconsciente. Ou seja, essa
mudança de posição, que foi ao mesmo
tempo uma invenção provida pelo desejo de Freud – não sem importância que
tenha se produzido em resposta à histeria – fez, de um mesmo golpe, com que
o inconsciente passasse a existir. Afinal,
como o próprio autor indica muito tempo depois, a existência do inconsciente
só se verifica na análise (FREUD, 1937).
O inconsciente de Freud, hipóte176
se não verificável pelo saber no qual foi
formado, é efeito do que o desejo fundou
em termos éticos. Nos termos conhecidos em que Lacan enuncia, o inconsciente freudiano, frágil em seu estatuto
no plano ôntico, é ético (LACAN, 1985).
O psicanalista francês ressalta, ainda,
que “o importante não é que o inconsciente determina a neurose” (ibidem,
p.27). Quanto a isso, diz já ter Freud
feito o gesto pilático de lavar as mãos:
“mais dia menos dia, vão achar talvez
alguma coisa, determinantes humorais,
pouco importa – para ele dá na mesma”
(idem). O fundamental é que, através do
inconsciente, a neurose se conforma ao
real da clínica. Real que se apresentou
sob a forma dos obstáculos ao método e
que só se sustentou na medida em que a
posição de Freud localizou neles a função de um sujeito. Podemos dizer, então,
com Miller, que: “a primeira incidência
clínica da ética da psicanálise é o próprio sujeito” (MILLER, 1997, p.235).
A RESISTÊNCIA
Freud toma, por tudo que vimos, o
obstáculo como resistência. E no modo
como apresenta a resistência, remetenos, como dissemos, à função de um
sujeito. Função que aparece na medida
em que, com a inclusão da resistência
como um operador da clínica, a relação do paciente com o médico excede o
terreno do atender ou não aos objetivos
do tratamento. O impasse de Freud se
apresenta, em um primeiro momento,
como uma questão de o paciente ser ou
não hipnotizado, pré-requisito até então
para o sucesso do tratamento. Ao elucidar o impasse introduzindo a noção de
resistência, a relação entre o médico e o
paciente não se vê mais reduzida à mediação pela aplicação de um método que
supõe a técnica da hipnose. A resistência
toma o impasse como índice de um ato
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009
Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’
(de defesa), o que por sua vez convoca à
suposição de um sujeito, não localizável
nem no médico nem no paciente conforme tomados em uma relação dual.
Podemos concluir do que dissemos acima que o abandono da hipnose
não é uma questão técnica, mas ética.
Em termos do que representa a inclusão da resistência, a hipnose pode ser
abandonada por se tornar irrelevante.
Mais do que isso, se, ao sair do estado
hipnótico, como o autor observa, o paciente não tem consciência do que disse,
o abandono da hipnose revelaria também o interesse de que o paciente assuma seus ditos, responda por eles. O que,
a rigor, não estaria em jogo, ainda, nos
artifícios de que Freud inicialmente se
valeu para substituir a técnica da hipnose; como, por exemplo, a pressão da mão
sobre a testa do paciente. Freud indica,
efetivamente, que o tratamento tem de
ir além de descobrir e revelar os motivos
da resistência: “ainda que pudéssemos
adivinhá-lo, o paciente não saberia o que
fazer com a explicação a ele oferecida e
não seria psicologicamente modificado
por ela” (FREUD, 1895a, p.283). Não
se está diante, então, de uma questão
cognitiva. Mais do que ter consciência
desses motivos, o desafio está, diz Freud
no texto, em despojá-los de seu valor,
substituí-los por outros. É nesse ponto
que a pergunta quanto aos meios de que
dispomos para tal recebe dele uma resposta de aguda antecipação daquilo que
fundamenta o lugar do analista: “É aqui,
sem dúvida, que deixa de ser possível
enunciar a atividade psicoterapêutica
em fórmulas” (ibidem, p.275).
Não há uma fórmula para o que
Freud designou como o trabalho de superar as resistências do paciente. Vale
notar que, no enunciado acima, ele inclui a ausência de dúvida quanto a isso,
o que nos leva a pensar que Freud está
falando do mais próprio da experiência
que fundava. Logo em seguida, assinalada a ausência de fórmulas, Freud nos
surpreende com a superposição de uma
série de modelos.
Trabalha-se com o melhor da própria
capacidade, como elucidador (ali onde a
ignorância deu origem ao medo), como
professor, como representante de uma
visão mais livre ou superior do mundo,
como um padre confessor que ministra a
absolvição, por assim dizer, pela permanência de sua compreensão e de seu respeito depois de feita a confissão (idem).
São modelos usuais, familiares, mas
que, superpostos, não traduzem, nenhum
por si mesmo, o que seja este trabalho. E,
o mais importante, indicam que Freud
não busca outro modelo, nem mesmo
um que fosse a síntese desses modelos. O
trabalho do analista, até então não nomeado, não inclui o modelo. Implica mais a
inclusão de um furo em cada um desses
modelos e nos outros que possam vir a
se propor neste lugar. Lugar a não todo
ser dito, sustentando o registro do impossível, ao qual tal ofício se dirige, como
Freud nos disse mais tarde em ‘Análise
terminável e interminável’ (1937).
Se não há modelo proposto, não
deixa de haver no texto indicações
acerca dos limites deste trabalho. Por
exemplo, que a tarefa terapêutica consiste unicamente em induzir o paciente
a reproduzir as impressões patogênicas,
verbalizando-as com uma expressão de
afeto, que “uma vez realizada essa tarefa, nada resta ao médico para corrigir ou
eliminar” (ibidem, p.276). Adiante, diz
ter aprendido com admiração que “não
estamos em condições de impor nada ao
paciente sobre as coisas que ele aparentemente ignora, nem de influenciar os
produtos da análise pela provocação de
expectativas” (ibidem, p.286, grifos do
autor). Verificamos tratar-se nas duas
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009
177
Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’
observações de uma limitação do trabalho do analista. Ou seja, Freud se destitui
gradativamente do lugar de quem trabalha na análise. Trabalhar menos para não
fazer impasse ao trabalho do analisante.
E, como deduzido mais tarde pelo autor,
submeter-se ao processo da análise para
suportar não trabalhar pelo analisante.
Nos termos do texto de 1895, Freud previne o médico quanto a não interferir no
paciente em sua reprodução das ideias.
Não estamos aí no terreno do que ele
havia identificado como obstáculo, incontornável por remeter ao constitutivo
da neurose, mas no do impasse engendrado do lado do analista. Freud previne
também, por outro lado, quanto a não
superestimar a ‘inteligência’ inconsciente do paciente e deixar a cargo dela a direção de todo o trabalho. Este acréscimo
é importante por não permitir tomar a
prevenção quanto a não interferir com o
paciente no sentido de descaracterizar a
presença do analista.
A DIREÇÃO DO TRATAMENTO
A transferência convoca o analista,
e Freud, já nesse texto de 1895, entrevê
ser por meio dela que poderá efetivarse “o importante papel desempenhado
pela figura do médico na criação de
motivos para derrotar a força psíquica
da resistência” (ibidem, p.291). Complementa, afirmando que a cooperação do
paciente para o tratamento se torna um
sacrifício pessoal a ser compensado por
algum substituto do amor. Entendemos
que ele antecipa aí a noção de um amor
transferencial, uma demanda de amor
sem o que a trajetória delineada para a
cura não se viabilizaria. Quanto à ideia
de um sacrifício pessoal, Freud já havia
observado antes que “grande número
dos pacientes que se adequariam a essa
forma de tratamento abandonam o médico tão logo começam a suspeitar da
178
direção para a qual a investigação está
conduzindo” (ibidem, p.262). Arrematemos essa associação do sacrifício pessoal e do amor transferencial com uma
citação de Ferenczi:
No apogeu da transferência, vemos o paciente aceitar sem resistência até o que há
de mais desagradável; ele encontra manifestamente no sentimento de prazer que
acompanha o amor de transferência um
consolo para a dor que, de outro modo,
essa aceitação lhe teria valido. (FERENCZI, 1993, p.395).
Ao falar do manejo do amor transferencial, em Observações sobre o amor
transferencial (1915[1914]), Freud diz
não haver para ele um modelo na vida
real. A pergunta de “como deve o analista comportar-se, a fim de não fracassar
nessa situação, se estiver persuadido de
que o tratamento deve ser levado avante, apesar desta transferência erótica”
não é respondida pelo autor, que apenas
estabelece dois parâmetros éticos fundamentais: nem retribuir, nem buscar a supressão de tal transferência. Entendemos
que, no seminário dedicado à transferência (1960-61), Lacan encontrou com que
avançar através do discurso de Sócrates
em o Banquete de Platão. Mediante essa
referência, o modo de o amor operar no
processo analítico se desprende do mito
da complementaridade, que estaria no
horizonte da demanda amorosa; ao contrário, a verdadeira via amorosa seria
aquela que se constrói com a inclusão da
impossibilidade do encontro sem falta.
Sem recusar a esfera do amor, operar-seia desde esse lugar, sem negar o impossível que está em seu cerne, dirigindo-se a
ele, para dele fazer alguma coisa.
Enunciado semelhante Freud proferiu, no final do texto de 1895, ao se
perguntar sobre a finalidade do tratamento. A problematização, nesse caso,
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009
Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’
teve por objeto a noção de felicidade. A
questão de que parte é a inevitável objeção de que, relacionando a doença com
as circunstâncias e os acontecimentos
da vida, e não podendo alterá-los, como
se proporia a ajudar o paciente? Freud
responde que haverá muito a ganhar
transformando o sofrimento histérico
em infelicidade comum. É esta última
expressão que nos interroga. Em que
consiste tal infelicidade comum? De
imediato, podemos concluir que não
está sendo proposta a troca da histeria,
da neurose, pela felicidade. Mas por algo
que se apresentaria a partir do impossível da felicidade, nomeado infelicidade
comum.
Mais de três décadas depois, no já
citado O mal-estar na civilização, Freud
retomou o tema da felicidade. Essa designou ali o que ele verifica mostrarem
os homens como propósito e intenção
de suas vidas. Associada ao princípio
do prazer, define um programa que se
encontra “em desacordo com o mundo
inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo” (FREUD, 1930
[1929], p.94). É ainda acrescentado que
“ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se
acha incluída no plano da ‘Criação’ (ibidem, p.95). Adiante, no entanto, Freud
indica que, se o programa de tornar-se
feliz não pode ser realizado, “não devemos – na verdade, não podemos – abandonar nossos esforços de aproximá-lo
da consecução, de uma maneira ou de
outra” (ibidem, p.102).
Consideramos que essa discussão,
efetuada na última década da obra freudiana, elucida a última passagem de A
psicoterapia da histeria, na qual o autor
se orienta pelo que chamou de infelicidade comum. Afinal, encontramos explicitado em O mal-estar na civilização o
apontamento do impossível da felicidade. Com o acréscimo ali de que este não
se traduz pela infelicidade, mas por uma
busca que tem por condição a afirmação
do impossível. Entendemos encontrar
aí, a posteriori, a indicação do que fundamenta a posição de exceção, irredutível, da psicanálise no campo da clínica
já em 1895 e a qualquer tempo: a direção
ao impossível, ao incurável.
Keywords
Psychoanalysis; ethics; clinics; psychotherapy
of hysteria; Freud.
Abstract
In the last chapter of Freud’s ‘Studies on Hysteria’, named ‘The Psychotherapy of Hysteria’
– the author, as he problematizes the medical clinical parameters, outlined alternatives,
which established analytical practice. His
new standing – one of rupture and newness –
created a new ethical criterion that is studied
at this paper. Since this standing, the clinic of
hysteria aims to difficulties and limitations,
not as an obstruction to the psychoanalytical
method’s application, but as an ethical choice
of Freudian desire’s command.
Referências
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introdução. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1996.
DOR, J. Estruturas e clínica psicanalítica. Rio de
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Paulo : Martins Fontes, 1993.
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BREUER, J.; FREUD, S. Estudos sobre a Histeria [1895a]. Edição standard brasileira das obras
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1987. v. II
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009
179
Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’
_____. Projeto para uma Psicologia Científica
(1950 [1895b]). In: Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro:
Imago, 1987. v. I
_____. Observações sobre o Amor Transferencial (1915 [1914]). In: Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro :
Imago, 1987. v. XII
_____. O Mal-Estar na Civilização (1930
[1929]). In: Edição standard brasileira das obras
psicológicas completas. Rio de Janeiro : Imago,
1987. v. XXI
_____. Análise Terminável e Interminável
[1937]. In: Edição standard brasileira das obras
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LACAN, J. O Seminário, Livro 8: A Transferência
[1960-61]. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1992.
LACAN, J. O Seminário, Livro 11: Os Quatro
Conceitos Fundamentais da Psicanálise [196364]. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1985.
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Brasil. Rio de Janeiro : Jorge Zahar., 1997.
STRACHEY, J. Prefácio geral do editor inglês
[1966]. In: FREUD, S. Edição standard brasileira
das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro :
Imago, 1987. v. I
180
Tramitação Recebido : 02/07/2009
Aprovado : 08/09/2009
Nome do autor principal: Vinícius Anciães Darriba
Endereço : Universidade Federal do
Paraná, Departamento de Psicologia
Praça Santos Andrade, s/nº, sl 220,
Centro
CEP : 80020 – 300, Curitiba/Pr
E-mail : [email protected]
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009
Psicanálise e religião
Psychoanalysis and religion
Tarcisio Andrade1
Palavras-chaves
Psicanálise; clínica psicanalítica; religião; sociologia; sujeito.
Resumo
Partindo de recortes da história da Psicanálise, da filosofia, da arte e da sociologia, o autor enfatiza
o papel da transgressão na constituição do sujeito e, sob essa ótica, analisa o mito de Adão e Eva.
Numa aproximação entre religião e psicanálise, a partir de um caso clínico de um paciente com forte
vinculação religiosa, são analisados a transferência, as bases da escolha do sacerdócio e sua ancoragem
de natureza edipiana, e a religião como sintoma neurótico. Por fim, o autor fala de uma outra religião
possível, de crentes não alienados a um Deus todo poderoso, mas protagonistas responsáveis pelos
seus próprios atos, sem, contudo, abdicarem da sua proteção.
Um dia Freud, dirigindo-se a Breuer, a
quem seu pai no leito de morte transmitira
a tarefa de cuidar do filho, disse: “Chega um
dia que temos de abdicar de todos os pais e se
por de pé sobre os próprios pés”. Uma alusão
à autonomia, ao sujeito constituído na responsabilidade pelos seus próprios atos. Nessa mesma direção, em seu livro “A negação
da morte”, Ernest Becker (1973), pensador e
filósofo americano, a propósito da tentativa
do também pensador e psicólogo americano
William James de conciliar as paixões humanas e a entrega a Deus, menciona um dos
seus preceitos favoritos: “Filho do homem,
fique de pé sozinho, para que eu possa falar
com você.” Sobre isso, diz Becker: “se os homens se apoiarem demais em Deus, não irão
conseguir o que precisam fazer neste mundo
com as suas próprias forças.”
Raul Seixas, em sua canção “Sapato
36”, fala-nos da desobediência, um conceito
de conotação negativa porque associado à
transgressão. Mas, ao falar de desobediência, ele nos fala da constituição do sujeito na
1
responsabilidade pelos seus atos. Diz Raul:
“Eu calço é 37, meu pai me dá 36, dói, mas
no dia seguinte aperto meu pé outra vez”. E
adiante: “Pai, eu estou indo embora, quero
partir sem brigar, já escolhi meus sapatos
que não vão mais me apertar”. Trata-se da
autonomia, da diferenciação do sujeito na
relação com o Outro. Nesse contexto, algumas vezes se inscreve o uso de drogas quando, diante do não lugar de uma existência
própria, não subjetivada, o usuário passa a
se constituir no real de suas transgressões.
O universo do uso de drogas é separado por uma linha imaginária entre usuários e
não usuários. Para os não usuários, sobretudo, quando representados pelos jovens, pelas crianças, por nossos filhos, oferecemoslhes toda a proteção, tudo o que for possível
para mantê-los distantes do mal, lugar ocupado pelas drogas no imaginário social. Entretanto, quando um integrante desses mesmos grupos, alvo de toda a nossa atenção e
cuidado, é descoberto fumando um baseado, já não é mais o mesmo que antes, pulou
Médico e psicanalista associado ao Círculo Psicanalítico da Bahia. Doutor em Medicina, pesquisador nas
áreas de Psicologia Médica e do abuso de substâncias psicoativas. Professor dos Cursos de Graduação e
Pós-graduação da Faculdade de Medicina da Bahia – UFBA, onde é também o coordenador da Aliança de
Redução de Danos Fátima Cavalcanti – ARD-FC, Serviço de Extensão Permanente voltado para a atenção
às pessoas que usam drogas.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.181-185 – Novembro. 2009
181
Psicanálise e religião
o muro, transpôs a linha imaginária e
agora – sobretudo se for negro e pobre –
passa a ser visto como drogado, viciado,
maconheiro, perigoso. Essa situação nos
remete ao mito de Adão e Eva, no qual
a droga ocupa o lugar do fruto proibido
oferecido por Satanás (traficante), cujo
consumo leva à expulsão do paraíso.
No paraíso, segundo a Bíblia, tudo
é suprido sem demandar qualquer esforço; lá Adão e Eva, numa dependência
completa de Deus, se constituem – assim
podemos admitir – num casal patético
de animais diferenciados. Como castigo pela desobediência, Deus sentenciou
o homem a comer o pão do suor do seu
próprio rosto e a viver as dores de sua
existência. Adão e Eva foram, portanto,
condenados a uma existência própria, à
percepção de si mesmos, de sua finitude.
Logo, à luz do mito da gênesis do homem,
no âmbito da concepção religiosa de um
Deus provedor de todas as coisas, bastando para isso que o homem lhe obedeça
sem questionamentos, o que nos possibilitou a passagem do lugar de alienação
à assunção da condição de sujeitos, nos
tornando seres de falta, castrados, desejantes, enfim, o que nos possibilitou a
passagem da natureza à cultura, foi o ato
de desobediência, mediado por Satanás.
Em conversa pessoal com um aspirante a pastor evangélico, ele me dizia dos princípios de sua Igreja: “o homem continua sendo um ser para receber de Deus toda a provisão de suas
necessidades, mas isso não acontece,
devido à sua desobediência, pois continua cedendo à tentação do Satanás”.
Ainda nessa conversa, ele me falava do
paralelo entre o pecado original e a saída dos filhos da casa dos pais, o que
se dá em um momento marcado por
possibilidades de autonomia daqueles,
mas também pela desobediência, alguns deles sendo, literalmente, expulsos de casa.
182
Vejamos um pouco da religião na
prática clínica.
Um homem jovem, de nível instrucional médio, de classe proletária,
evangélico praticante e fervoroso, me foi
encaminhado com queixa de ejaculação
precoce. Devido a sua pouca condição
financeira, eu o tomei em acompanhamento cobrando-lhe um valor simbólico. Ao final de cada sessão, o seu pagamento se acompanhava sempre de
agradecimentos, cujo conteúdo denotava reverência. Ao longo de oito meses,
pude ver com ele sua forte ligação com
a mãe, pessoa que efetivamente lhe proveu os cuidados e os meios necessários
ao seu desenvolvimento físico e mental.
Embora pouco manifesta, fazia-se evidente a sua rivalidade com o pai; este,
autoritário, ausente no cuidado com os
filhos, pouco preocupado com a família e muito envolvido com sua atividade profissional. Em relação à namorada,
o paciente se colocava no papel de pai
bondoso, tolerante, e a protegia afetiva
e financeiramente. Em vários momentos, tornou-se evidente que ela ocupava
para ele o lugar da mãe, e a ejaculação
precoce – que algumas vezes acontecia
mesmo antes da penetração – vinha em
socorro de uma relação impossível, uma
vez que imaginariamente incestuosa. Por
algum tempo, o paciente não voltou a se
queixar dessa dificuldade, tendo decidido que só voltaria a ter relações sexuais
após o casamento conforme preconizava a sua religião.
Passo agora a relatar fragmentos
das três últimas sessões desse cliente:
Um dia, ele pediu que eu terminasse a
sessão quinze minutos mais cedo, pois
tinha “algo a tratar comigo fora da relação profissional e não queria tomar meu
tempo”. Disse-lhe que ali não havia um
dentro e um fora da sessão, mas no tempo solicitado eu o avisaria. E o fiz. Ele
se levantou e me entregou um presente.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.181-185 – Novembro. 2009
Psicanálise e religião
Era uma Bíblia e um livreto dos quais
ele passou a me explicar alguns conteúdos. Terminadas as suas colocações, eu
lhe disse que havia uma diferença entre
querer me fazer ver algo e estar disponível para me ajudar se eu lhe fizesse
demanda e que era isto o que acontecia entre ele e a namorada, em que ele
se antecipava às supostas necessidades
dela. E acrescentei: é diferente ser um
facilitador de ser um provedor do que
se supõe seja a necessidade do outro;
essa última posição está fadada ao fracasso, à desobediência e à ingratidão
de quem recebe e, por consequência,
à frustração do provedor. Incontinenti
dei-me conta de que esta minha colocação guardava relação com as queixas
dele de que sua namorada não reconhecia a sua dedicação e que as mulheres
pareciam gostar mais de homens que as
maltratavam.
Na sessão seguinte, após um período de quase dois meses que incluíram
minhas férias, ele disse que havia terminado o namoro e justificava o término
da relação racionalmente, mas parecia
sofrer com a situação. Quando ele se referiu à data do término do namoro, eu
lhe disse que o que parecia ter uma data
definida, na verdade era uma construção – numa alusão à sua análise.
Na última sessão, vinte dias após,
ele me disse que foi a uma clínica para
tratamento de disfunção sexual e teve
o diagnóstico de hipersensibilidade da
glande, tendo lhe sido prescrita uma
medicação sublingual spray ao custo de
R$2.200,00 e que, devido a esse compromisso financeiro, não daria continuidade ao tratamento comigo. Eu tive a sensação de que ele havia sido enganado ao
buscar de forma imediata a solução que
eu não havia lhe oferecido e, ainda, que
aquele ato era dirigido a mim.
Em uma outra sessão, que antecedeu as três últimas relatadas acima,
ele me dissera que teve um pensamento absurdo: se juntar com uns amigos e
dar uns murros em um colega de trabalho. Achei que o murro estava dirigido
a mim, mas por alguma razão não lhe
disse nada. Ao final da sessão, ele confirmou a minha percepção ao me comunicar que talvez não viesse mais às sessões.
Ele mantinha comigo uma relação de
ambivalência, cuja matriz era a relação
com o pai.
Freud chamava a atenção para,
de um lado, a posição passiva feminina diante do pai e a fé, e do outro a
posição ativa masculina e a descrença.
Em seu livro “Crer depois de Freud”,
Carlo Eduardo Morano, psicanalista,
teólogo e filósofo espanhol, fala-nos,
mencionando inclusive diversos estudos realizados entre religiosos, que,
embora a apresentação seja a da figura
do pai/padre, é a relação com a mãe
que está por trás da escolha religiosa. Diz ele “Essa escolha desempenha
muitas vezes a função psicológica de
excluir qualquer tipo de compromisso sexual, de modo a manter o sujeito
apegado, infantil e inconscientemente,
à sua mãe. Uma situação edipiana não
resolvida é patente como pano de fundo dessa exclusividade amorosa”. Trata-se de mães presentes, cuidadosas e
pais distantes e omissos que são posteriormente internalizados pelo superego – em dissonância com o pai real
– com as características de perfeição e
onipotência que lhes foram atribuídas
na primeira infância.
A história da relação de Freud
com seus pais é oposta à referida acima
para o religioso. Descrente de uma força
superior, estoico e atribuindo ao próprio
homem toda a responsabilidade pela sua
existência, Freud teve em Amalie a mãe
autoritária, narcisista, distante das necessidades dos filhos e incapaz de vê-los
fora da perspectiva de objetos de sua sa-
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.181-185 – Novembro. 2009
183
Psicanálise e religião
tisfação e orgulho pessoal. Isso era bem
evidente na sua relação com Freud, o filho famoso, em detrimento dos demais.
Porém Jacob, seu pai, era bondoso, dócil
e tolerante (RIZZUTO, 2001).
Freud fala da religião como uma
manifestação neurótica, uma neurose
coletiva, e diz que a obsessão é a religião
particular do neurótico. A esse respeito,
Morano (2003) chama a atenção que a
transferência no âmbito das relações
dos fiéis com os religiosos é favorecida
pela confidência e privacidade da relação e se constitui num terreno fértil para
relações marcadas por traços histéricos
e obsessivos, uma vez favorecidas pela
intensa repressão sexual e pela ambivalência. Esta última é uma marca das relações de poder e submissão.
No que diz respeito às manifestações histéricas, a relação entre os
religiosos e as mulheres se caracteriza
pela intimidade, em que o homem, em
princípio, garante o lugar da impossibilidade, porque dessexualizado. Por
outro lado, algumas mulheres que fazem parte do ciclo social mais próximo dos religiosos desempenham em
relação a eles o papel de mães zelosas
e protetoras. Quanto à neurose obsessiva, as demandas feitas pelos fiéis ao
apelarem repetidamente ao sacerdote
pelo perdão de suas transgressões, com
este último no papel de pai bondoso e
provedor incondicional, carrega consigo o desejo de vê-lo fracassar alguma
vez nas tentativas de livrá-los da culpa.
Nesse particular, o perdão aos erros de
sua namorada do cliente mencionado
acima, seguia-se de novas transgressões
da parte dela, claramente em desacordo
com princípios e valores morais cultivados por ele, numa provável tentativa de que em algum momento ele não
mais a perdoasse – como efetivamente
ocorreu – e ela viesse a se constituir sujeito de seus próprios atos.
184
A dominação medra no terreno das fraquezas do dominado, o que
está em sintonia com a percepção de
Freud da religião como sintoma neurótico. Por outro lado, a pessoa dominada goza desta condição, à medida que,
naquilo que ela faz – e o faz em nome
do Outro – se evanesce da condição de
sujeito, de ser de falta e de desejo; tudo
é feito em nome do Deus, da Ciência,
do Estado. Se o imperativo da atualidade é gozar a qualquer preço, como nos
aponta Melman (2003), a alienação a
um Deus todo poderoso é terreno fértil
para a proliferação de seitas e religiões
com esse perfil, o que efetivamente vem
acontecendo de forma acelerada em
muitos países.
Ao lado da religião como um sintoma neurótico, cuja origem remonta
à extrema desvalia da criança, em seus
momentos iniciais, em face das adversidades do mundo externo, em particular
no contexto das relações parentais, há
uma outra religião traduzida na ação de
missionários nas lutas contra a dominação e a injustiça e pelo exercício da
cidadania e do direito, sobretudo, entre
as populações menos favorecidas. Essas
práticas, longe de se constituírem uma
deturpação política dos textos religiosos,
são, também, uma tradução deles. Tratase de um Deus mais próximo do humano; os seus seguidores são admitidos em
toda a sua potencialidade e capacidade
de transformar o mundo a partir de suas
próprias forças, mas que, ainda assim,
por si mesmos, sozinhos, não serão capazes de tudo, não encontrarão todas
as respostas e necessitam se sentir protegidos. O mito de Adão e Eva contém
essa visão mais abrangente da religião, à
medida que, ao colocar o homem diante
da responsabilidade por si mesmo, Deus
não o abandona. Situações banais do
nosso cotidiano traduzem a necessidade de um Deus de proteção: o que pode
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.181-185 – Novembro. 2009
Psicanálise e religião
o passageiro diante da possibilidade de
um acidente aéreo como os que têm vitimado centenas de pessoas. Antes da
decolagem, eu rezo.
Keywords
Psychoanalysis; the practice of Psychoanalysis; religion; sociology; subject.
Abstract
Taking account little pieces of the history of
psychoanalysis, philosophy, arts and sociology the author emphasize the transgression as
part of the subject constitution and how it appears on Adam and Eve myth. Coming close
to religion and psychoanalysis, he takes the
psychoanalytic treatment of a faithful to God
patient as motivation to analyze the transference, the chosen of a religious life under the
light of the psychoanalysis and the religion as
a neurotic symptom. The author points out
other kind of faith followers, who not completely dependent of God, are protagonists of
their own lives, without giving up the protection of God.
Tramitação Recebido : 04/06/2009
Aprovado : 09/09/2009
Nome : Tarcísio Matos de Andrade
Endereço : Av. Trancredo Neves, 1632 /
1004
Ed. Trade Center – Torre Norte, C. das
Árvores
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Referências
BECKER, E. A negação da morte. . Rio de Janeiro: Record, 1973
FREUD, S. O mal-estar na Civilização (1930).
Edição Standard brasileira das Obras psicológicas
completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro :
Imago, 1974. v XXI.
_____. O futuro de uma Ilusão (1927). Edição
Standard brasileira das Obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro :
Imago, 1974. v XXI.
MELMAN, C. O homem sem gravidade – gozar
a qualquer preço. Rio de Janeiro : Companhia de
Freud, 2003
MORANO C. D. Crer depois de Freud. São Paulo: Edições Loyola, 2003
RIZZUTO, A. Porque Freud Rejeitou Deus. São
Paulo : Edições Loyolas, 2001
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.181-185 – Novembro. 2009
185
Normas de Publicação1
1.
Serão publicados apenas trabalhos inéditos de Psicanálise e textos de colaboradores
convidados pela Comissão Editorial. Entendem-se como inéditos os que não foram
publicados, nem no todo nem em parte, em periódicos, capítulos de livros nem em
anais de eventos.
2.
Os trabalhos serão publicados em língua portuguesa ou em língua estrangeira. Ficará
a cargo do autor a tradução para o português do resumo dos trabalhos enviados em
outro idioma.
3.
Poderão também ser publicados:
3.1 Reflexões sobre a Psicanálise, articulando-a com outras áreas do conhecimento;
3.2 Casos clínicos;
3.3 Entrevistas;
3.4 Resenhas;
3.5 Ensaios.
4.
A estrutura dos trabalhos deverá estar de acordo com as normas abaixo:
4.1 Todo trabalho deverá ser obrigatoriamente acompanhado de:
4.1.1 Folha de rosto com o título do trabalho, nome dos autores e titulação. No
corpo do trabalho não deverá constar o nome dos autores, com o objetivo de
manter o anonimato na avaliação feita pelo corpo editorial.
4.1.2 Título em português e em inglês no corpo do trabalho.
4.1.3 Palavras-chave, de três a cinco, que identifiquem o conteúdo, para a completa
descrição do assunto e, quanto à localização, após o título.
4.1.4 Resumo expressando o conteúdo, salientando os elementos novos e indicando sua importância. Deverá ser colocado antes do texto e não deve exceder a
duzentas e cinquenta palavras.
4.1.5 Keywords deverá suceder o texto e antes das referências.
4.1.6 O abstract deve ser colocado após keywords.
4.1.7 Referências. Citadas como no exemplo a seguir:
4.1.7.1 Registrar as referências em ordem alfabética conforme os exemplos, observando os detalhes de dois pontos, abreviaturas e vírgulas, bem como qualquer
outro assinalado abaixo:
1
186
Normas atualizadas para as edições de 2010.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.186-189 – Novembro. 2009
Normas de Publicação
a) de livro
AUTOR. Título em itálico: subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação:
Editora, ano de publicação.
Exemplos:
CERVO, A. L. Metodologia Científica: para uso dos estudantes universitários. 2. ed. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1978.
PIMENTEL, D. O sonho do jaleco branco: saúde mental dos profissionais de
saúde. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe, 2005.
b) de capítulo de livro
AUTOR DO CAPÍTULO. Título do capítulo. In: Autor do livro (colocar
__. se o autor for o mesmo). Título em itálico: subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação: Editora, ano de publicação. Número do volume (se
houver). Intervalo das páginas.
Exemplos:
FREUD, S. Sobre a psicoterapia [1905]. In:___. Edição standart brasileira
das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro:
Imago, 1989. v.VII. p. 239-251.
LAMBOTE, M. C. O tempo anunciador. In: __. Estética da melancolia. Rio
de Janeiro: Companhia das Letras, 2000. p. 103-109.
PIMENTEL, D. Interfaces entre a Psicanálise e Psiquiatria. In:___; ARAUJO, M.G. (organizadoras). Interfaces entre a Psicanálise e Psiquiatria. Aracaju: Círculo Brasileiro de Psicanálise, 2008. p.9-13.
c) de artigo de revista
AUTOR. Título do artigo. Título do periódico em itálico, local de publicação
(cidade), número do volume, número do fascículo, páginas inicial e final,
mês e ano.
Exemplos:
PIMENTEL, D; VIEIRA, M.J. Perfil e saúde mental dos psicanalistas.
Psychê, São Paulo, n. 15, p. 155-165, jun. 2005.
BERNARDES, W.S. Condenação, desmentido, divisão. Reverso, Belo Horizonte, v. 26, n. 51, p. 115-122, set. 2004.
d) outros modelos de referência, consulte os editores ou o site do Círculo Brasileiro de Psicanálise.
5.
Tabelas e gráficos deverão ser enviados em separado, numerados, com as respectivas
legendas e indicação da localização no texto entre dois traços horizontais.
6.
As citações deverão estar acompanhadas de suas fontes, com as respectivas páginas.
6.1. Direta: Quando é extraído um trecho literal, copiado fielmente do original.
Neste caso é obrigatório colocar sobrenome e ano da obra, além da página.
As citações diretas podem ser de dois tipos, conforme o número de linhas.
6.1.1.
Até três linhas
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.186-189 – Novembro. 2009
187
Normas de Publicação
Aparece incorporada ao texto, entre aspas.
Ex.a: Como diz Pontalis (1998, p. 274): “Nossas memórias para serem
vivas, nossa psique, para ser animada, devem se encarnar”.
Ex.b: “O objetivo da análise é preparar o paciente para a autoanálise” (GREEN,
1988, 302).
6.1.2 Mais de 3 linhas
Devem ser destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda, com letra
menor (tamanho 10) e espaçamento simples. Não há necessidade de colocar
entre aspas.
Ex.: Conforme Freud (1919):
Recusamo-nos decididamente a transformar em propriedade nossa
o paciente que se entrega a nossas mãos em busca de auxílio, a conformar o seu destino, impor-lhe nossos ideais e, com a soberba de
um Criador, modelá-lo à nossa imagem, nisso encontrando prazer
(1999, p.424)
6.2. Indireta: texto baseado na obra do autor consultado.
Ex. a: Diversos autores citam a importância do estudo das perversões para
entender as psicopatias da vida cotidiana (CLAUVREUL, 1990; DOR, 1991;
ANDRÉ, 2003; CORRÊA, 2006).
Ex. b: A concepção médica de oposição, entre o normal e o perverso, se desfaz,
segundo Corrêa (2006), à medida que o inconsciente vai sendo revelado.
Ex. c: Para a psicanálise, o Sujeito não seria natural como queria Sade, seria
um Sujeito irremediavelmente dividido, como demonstrou Freud, ao que Lacan acrescenta que isso aconteceria pela relação dele, Sujeito, com a linguagem (LACAN apud LEITE, 2000).
7.
Não serão aceitas notas de rodapé, salvo as da primeira página do artigo com a titulação dos autores.
8.
Cabe ao Conselho Consultivo de cada sociedade participante do CBP, o exame e
aprovação dos trabalhos, em primeira instância, de seus respectivos sócios, e o
encaminhamento à Comissão Editorial, já dentro das normas de publicação da
revista, que decidirá sobre a sua publicação de acordo com a programação da
revista.
9.
A Comissão Editorial reserva-se o direito de recusar os trabalhos que não se enquadrem nas normas citadas ou não tenham qualidade editorial.
10. Os originais deverão ser enviados em duas vias, devidamente numeradas e rubricadas,
com espaço simples, fonte Times New Roman tamanho 12, não excedendo 15 laudas.
O título do trabalho deve conter no máximo dez palavras e o tamanho da fonte, em
negrito, é 14.
10.1 188
Os originais deverão ser encaminhados também em mídia eletrônica no
Word 1997-2003.
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.186-189 – Novembro. 2009
Normas de Publicação
10.2 Os autores deverão enviar os originais para a sede do Círculo Brasileiro de
Psicanálise, com carta dirigida aos editores, autorizando a publicação e ratificando ser um trabalho inédito. A carta deve conter o título do trabalho, nome
do(s) autor(s) com sua titulação acadêmica e institucional, e o endereço físico
e eletrônico do autor principal.
10.3 Os trabalhos deverão ser enviados para:
CBP – Revista Estudos de Psicanálise
Praça Tobias Barreto, Ed. Centro Médico Odontológico, 510, sala 1208
CEP: 49015-130 – Aracaju – Se
Para receber a Revista Estudos de Psicanálise ou obter outras informações entre
em contato com:
CBP
Praça Tobias Barreto, Ed. Centro Médico Odontológico, 510 – Sala 1208
CEP: 49015-130 - Aracaju – Se
Tel. (79) 3211-2055
[email protected]
www.cbp.org.br
Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.186-189 – Novembro. 2009
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Roteiro de avaliação dos artigos
1.
Título claro e preciso sobre o conteúdo do artigo.
2.
Resumo claro e preciso sobre o conteúdo do artigo, contendo no máximo 250
palavras.
3.
Palavras-chave adequadas ao conteúdo em número máximo de cinco.
4.
Abstract e Keywords conforme instruções.
5.
Normas para citações e referências conforme instruções.
6.
Relevância do tema.
7.
Clareza de pensamento.
8.
Consistência e coerência na fundamentação teórico-metodológica do trabalho.
9.
Linguagem, considerando objetividade, estilo e correção.
10. Aspectos éticos de acordo com a Resolução CNS 196/96 sobre privacidade e anonimato
das pessoas envolvidas, e declaração de conflito de interesses.
11. O artigo deverá conter conclusão ou considerações finais.
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Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p. 190 – Novembro. 2009
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ReferênciaS - círculo psicanalítico de sergipe