ESTUDOS DE PSICANÁLISE ISSN - 0100-3437 Publicação do Círculo Brasileiro de Psicanálise Novembro/2009 – Aracaju-Se Número 32 Estudos de Psicanálise Aracaju-Se N. 32 P. 13 - 190 Novembro /2009 Indexada em: CLASE (UNAM – México) IndexPsi Periódicos (BVS – PSI) – www.bvs-psi.org.br CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior ANPPEP – Associação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia Esta revista é encaminhada como doação para todas as bibliotecas da Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de Psicologia – ReBAP Ficha Catalográfica ESTUDOS DE PSICANÁLISE. Aracaju. Círculo Brasileiro de Psicanálise, n.32, nov., 2009. 190 p. Semestral. ISSN: 0100-3437 – 28 x 21cm 1. Psicanálise – periódicos Revista Estudos de Psicanálise EDITORES DA REVISTA Déborah Pimentel (CPS) Ricardo Azevedo Barreto (CPS) CONSELHO EDITORIAL Cecília Tereza Nascimento Rodrigues (CPS) Déborah Pimentel (CPS) Maria das Graças Araújo (CPS) Patrícia Aranda Garcia de Souza (CPS) Ricardo Azevedo Barreto (CPS) CONSELHO CONSULTIVO Anchyses Jobim Lopes (CBP/RJ) Carlos Antônio Andrade Mello (CPMG) Carlos Pinto Corrêa (CPB) Cibele Prado Barbieri (CPB) Fernando Cesar Bezerra de Andrade (SPP) Isabela Santoro Campanário (CPMG) Luis Martinho Ferreira Maia (SPP) Marcelo Wanderley Bowman (CPP) Noeli Reck Maggi (CPRS) Stetina Trani de Menezes e Dacorso (CBP/RJ) Rodrigo Cardoso Ventura (CBP/RJ) CAPA Trabalho em tapeçaria Título: Madona com cactus Maria Aparecida Nascimento Dias Psicóloga e Psicoterapeuta infantil Imagem cedida pela autora ENDEREÇO DA REDAÇÃO Praça Tobias Barreto, nº 510 – São José Ed. Centro Médico Odontológico, 12º andar, s. 1208 CEP: 49015 - 130, Aracaju/Se [email protected] www.cbp.org.br PROJETO GRÁFICO Valdinei do Carmo EDITORAÇÃO DE TEXTO E IMAGEM Antônio Almeida Valfredo Avelino dos Santos REVISÃO Prof. José Araújo Filho (UFS) Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP DIRETORIA Presidente Déborah Pimentel Vice-presidente Cleo Malmann Primeira Secretária Patrícia Aranda Garcia de Souza Segunda Secretária Maria das Graças Araújo Primeira Tesoureira Cecília Tereza Nascimento Rodrigues Segunda Tesoureira Patrícia Aranda Garcia de Souza Editores da Revista Déborah Pimentel e Ricardo Azevedo Barreto Consultoria Administrativa e Diretoria Científica Carlos Pinto Corrêa Cibele Prado Barbieri Maria Mazzarello Cotta Ribeiro Anchyses Jobim Lopes Revista Eletrônica e home-page Cibele Prado Barbieri Representante junto à Articulação das Entidades Psicanalíticas Brasileiras Anchyses Jobim Lopes Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP INSTITUIÇÕES FILIADAS Círculo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro – CBP/RJ Av. Nossa Senhora de Copacabana, 769/504 – Copacabana CEP: 20050-002 – Rio de Janeiro – RJ Tel.: (21) 2236 0655 Fax: (21) 2236 0279 E-mail: [email protected] Site: www.cbp-rj.org.br Círculo Psicanalítico da Bahia – CPB Av. Adhemar de Barros, 1156/101, Ed. 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Clovis Figueiredo Sette Bicalho Final de análise: uma revisão sistemática da literatura End of analysis: a systematic revision of literature Déborah Pimentel Maria das Graças Araújo Maria Jésia Vieira Mães e crianças vivendo com hiv/aids: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade HIV – Positive mothers and children: fear, anguish and silence making childhood invisible Juliana Marques Caldeira Borges Jorge Andrade Pinto Janete Ricas Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise? Transgression, crime, neurosciences: impasses to the knowledge of psychoanalysis? Julio Cesar Diniz Hoenisch Pedro José Pacheco Carlos da Silva Cirino Mecanismos oníricos e figuras de linguagem Oniric mechanisms and figures of speech Luís Maia Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista Psychoanalytical formation challengers: reflexions about the analyst’s psychoanalysis Marcelo Wanderley Bouwman The interpretation in psychoanalytic studies Maria Beatriz Jacques Ramos 103 A interpretação nos estudos psicanalíticos 111 Transamérica: na encruzilhada da sexuação Transamerica: on the crossroads to sexuation Marli Piva Monteiro 117 As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam The differences which constitute us and the perversions which differentiate us Mercês Muribeca 129 141 147 153 Um caso clínico em questão: neurose ou psicose? A clinic case and a theorical dilemma: neurosis or psychosis? Nadja Ribeiro Laender A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: o registro identificatório e os recursos no processo de simbolização The adopted child and the psychoanalysis: the identificatory register and the sources in the symbolization process Noeli Reck Maggi Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente Psychoanalysis and Dentistry in the unconscious rebellion Ricardo Azevedo Barreto Marlene Guirado Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença The paradoxes of the concept of resistance: from the same to the difference Rodrigo Ventura 163 Incesto: caminhos e descaminhos frente ao horror Incest: path and deflect front of the horror Stetina Trani de Meneses e Dacorso 171 Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’ Some evidences of the ethical foundation of psychoanalysis at ‘The Psychotherapy of Histeria’ Vinicius Anciães Darriba Anne Marcelle Coelho Bencke Erick Bonatelli Cardim Paula Beatriz Mitter de Carvalho Dirceli Adornes Palma de Lima Germano Manoel Pestana Diviane Helena de Oliveira 181 Psicanálise e religião Psychoanalysis and religion Tarcisio Andrade 186 190 Normas de Publicação Roteiro de avaliação dos artigos Editorial Com o passar dos anos, O Círculo Brasileiro de Psicanálise alcança, em 2009, o número 32 da revista Estudos de Psicanálise, marca histórica de lutas e conquistas. Neste volume, comemorativo dos 40 anos do nosso periódico, procuramos fazer um recorte da pluralidade fecunda do pensamento psicanalítico em nosso meio com contribuições de importantes membros de nossa Federada e expoentes de diferentes instituições de nosso país. Ressaltemos que nossa revista, lançada em 1969, é uma publicação científica, indexada nas bases de dados CLASE (UNAM-México) e IndexPsi Periódicos (BVSPSI), bem como distribuída à totalidade da Rede Brasileira de Bibliotecas da Área de Psicologia, ultrapassando as fronteiras da brasilidade ao alcançar diversos outros países, por exemplo, por meio do portal PEPSIC- Periódicos Eletrônicos em Psicologia [www.bvs.psi.org.br]. Não podemos deixar de agradecer as contribuições desbravadoras dos editores anteriores da revista, à guisa de ilustração, Carlos Perktold (MG) e Cibele Prado Barbieri (Ba). Sentimo-nos honrados no biênio vigente por Sergipe ter representatividade na Presidência e Diretoria do Círculo Brasileiro de Psicanálise, produzindo esta renomada publicação na articulação dos esforços de todos nós. Por outro lado, fomos agraciados com uma capa nas cores do Nordeste que reveste os preciosos escritos que aqui se encontram com a sensibilidade de uma artista local e o trabalho de muitos. No reconhecimento das condições particulares de construção do saber psicanalítico e de sua práxis, cabe na atualidade a criativa reinvenção da Psicanálise com os pensadores deste campo epistêmico e psicanalistas em seu cotidiano. A falta marca nossos processos de subjetivação, e a História não tem fim, enquanto existirem aqueles que a façam às rupturas da repetição. Portanto, o respeito às lições de Freud e seus seguidores e o desvelar contínuo do não saber balizam os movimentos necessários aos profissionais de um novo tempo em suas reconstruções teóricas e metodológicas assentadas na Ética psicanalítica. É nos meandros, e não nos esquecimentos, da relação entre passado e presente que a recriação psicanalítica se mostra potente à resistência da banalização do sofrimento no mundo pós-moderno. Nosso desafio é ainda maior nas cenas da contemporaneidade... Déborah Pimentel e Ricardo Azevedo Barreto Editores Luto e melancolia versus Distimia1 Mourning and melancholia versus dysthymia Anchyses Jobim Lopes2 Palavras-chave Tratamento das depressões, hipermedicalização, tempo e experiência trágica. Resumo O uso excessivo de remédios psiquiátricos, principalmente nos quadros de depressão. A utilização das classificações internacionais contemporâneas como facilitadoras desse abuso. A simplificação de vários quadros clínicos diferentes sob o rótulo de distimia. A ideologia cognitivo-comportamental e reducionista induzindo à medicalização. A Psicanálise como método terapêutico e visão de mundo opostas às daquelas que embasam o rótulo de distimia. Tempo, finitude e experiência trágica da vida. Sei lidar com a infelicidade, Como aceitar notícias ruins. Posso diminuir a injustiça, Iluminar a ausência de Deus, Ou escolher o melhor véu que combine com sua face. O que está esperando – Tenha fé em minha compaixão química. (...) Venda-me sua alma, Não há outros interessados. (de ‘Anúncio’, Wislawa Szymborska) INTRODUÇÃO: ‘VAI UM PROZAC AÍ?’ Tanto na clínica social do CBP-RJ, quanto no trabalho de consultório e no relato de alunos e colegas, é impressionante a hipermedicalização com a qual chegam quase todos os pacientes. Seja quanto ao número de remédios, seja quanto à dose dos mesmos. O fenômeno não atinge apenas aqueles que poderiam receber o diagnóstico antigo de ‘depressão’, mas a todos os quadros clínicos, mesmo os mais leves. Já data de várias décadas o fato de que os fármacos psiquiátricos são receitados não apenas por psiquiatras, mas, principalmente, por médicos das mais diversas especialidades e, em grande parte, por neurologistas. A má fama causada pelos abusos do poder psiquiátrico, o medo de procurar médico de maluco, aliados à propaganda pelos meios de comunicação de massa sobre as descobertas da neurociência, tudo somado à leitura de autores de grande popularização, como Oliver Sacks, tudo parece corroborar para que o neurologista seja visto por muitos como um especialista dotado de um saber mais científico e confiável que o psiquiatra. 1 Trabalho parcialmente apresentado em versão mais breve no XVII Congresso do Círculo Brasileiro de Psicanálise/VII Jornada Sergipana de Psiquiatria – Interfaces entre a Psicanálise e a Psiquiatria, Aracaju, SE, 30/10 a 1/11 2008. 2 Médico pela UFRJ, residência médica e mestre em Psiquiatria pelo Instituto de Psiquiatria da UFRJ. Bacharel, mestre e doutor em Filosofia pelo Instituto de Filosofia da UFRJ. Professor adjunto de Psicopatologia Geral e Especial de graduação e especialização em Psicologia da UNESA. Membro efetivo e psicanalista do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção Rio de Janeiro. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise-Seção Rio de Janeiro 2000-04 e 2008-10. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise 2004-06. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009 13 Luto e Melancolia versus Distimia Mas o fenômeno da hipermedicalização psiquiátrica atinge todas as especialidades. Quem não passou pela experiência, ou conhece algum familiar ou amigo, que saiu da consulta médica, em qualquer especialidade, mas especialmente clínicos gerais, com uma prescrição da droga mais em moda: Lexotan, Prozac, Rivotril? Nas supervisões coletivas da clínica social e individuais dos candidatos em formação, é constante a procura do tratamento de crianças vindas com diagnóstico de TDA, e sempre medicadas. Igualmente constante é a descoberta de que o problema seja principalmente desarmonia familiar ou outros conflitos ambientais, bem como inútil a medicação. Nas grandes metrópoles brasileiras e mesmo nas cidades de porte médio, é fácil a constatação visual do número impressionante de farmácias, em sua maioria lojas lindas e pertencentes a grandes redes. Lojas tão reluzentes, belas e cheias de mercadorias desejáveis como quaisquer outras do grande consumo. O que confirma a constatação feita há vários anos por um cidadão inglês, funcionário de uma grande transnacional, pessoa viajada por grande parte do Ocidente e Oriente, de que: “em qualquer grande cidade do mundo há um botequim (pub) em cada esquina, mas no Brasil também há uma farmácia em cada esquina”. Hoje consideramos errada essa afirmação: há pelo menos duas farmácias em cada esquina. DSM-IV E CID-10: OU COMO MEDICALIZAR SEM FAZER ESFORÇO O carro-chefe da antiga psiquiatria, fundada por Emil Kraepelin ([1919, 1921] 1991) e Eugen Bleuler ([1924] 1976) ao final do século XIX e as primeiras décadas do século XX, possuía por fulcro a esquizofrenia. A partir da década de 60 do século passado, com o movimento da antipsiquiatria e a partir de críticos e pensadores do porte de um Michael Foucault, a denúncia de 14 que o diagnóstico de esquizofrenia servia para toda sorte de controles sociais e atrocidades, obrigou a mudança do eixo da psiquiatria. Pelo Ocidente afora, se difundiu o movimento antimanicomial, que teve como a mais famosa de suas consequências a proposta de desativação dos hospícios, a partir do trabalho de Franco Basaglia, na Itália, e que chegou até o Brasil, tendo seu ápice na Lei Paulo Delgado. Num movimento paralelo de mudança da grande influência cultural, o eixo da Psiquiatria foi transferido da Europa aos Estados Unidos. No Brasil os nomes e tratados europeus – Mayer-Gross (1969), Bleuler (1976), Henry Ey (1974), Alonso-Fernández (1976) – foram substituídos quase que exclusivamente por um único título americano – Kaplan-Saddock (2007) -. Esse compêndio, em um volume, é em si mesmo o resumo de um tratado em três volumes com edições e leitura muito mais restritas, também é utilizado com exclusividade nos cursos de graduação em Psicologia. E, como mudança clínica mais importante, a doença base da psiquiatria transferiu-se da esquizofrenia para a ‘depressão’. Foram bastante criticadas as modificações ocorridas nas últimas classificações internacionais a CID-10 (1993) e a DSMIV (2002) (apesar de referir-se à psiquiatria americana, o uso da DSM-IV ultrapassa muito suas fronteiras, de modo que também podemos considerá-la uma classificação internacional). Se, por um lado, em itens como em transtornos somatoformes e transtornos dissociativos, houve a criação de diagnósticos novos e mais precisos, assim como houve um pequeno abrandamento na possibilidade de colocar em qualquer paciente mais grave o rótulo de esquizofrenia, por outro lado o abandono de diagnósticos clássicos, que tivessem alguma origem psicanalítica ou em uma compreensão dinâmica dos transtornos, foi muito recriminado. As mais novas versões das classificações internacionais, além da preocupação Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009 Luto e Melancolia versus Distimia obsessiva em se desvencilhar de tudo que pudesse cheirar a Psicanálise, também o fizeram com toda antiga psiquiatria originária da psicopatologia fenomenológica. Psicanálise e Fenomenologia partem de conceitos de sujeito, as classificações atuais tentaram justificar-se por um objetivismo absoluto, logicamente também necessitam de uma psicologia dessubjetivada. As novas versões das classificações internacionais tiveram por meta a construção de diagnósticos meramente descritivos, seguidos de longas listas de sintomas. A nosologia psiquiátrica tornou-se uma série de listas de sintomas, seguidas de receitas fáceis para a obtenção de rótulos diagnósticos. Listas utilizáveis com simplificação exagerada por qualquer tipo de profissional, novamente conduzindo ao abuso do conhecimento psiquiátrico, desta vez através da excessiva possibilidade de rotulação e, consequentemente, fornecendo um substrato pseudocientífico para a hipermedicalização. Também é apontada a ideologia subjacente a DSM-IV e CID-10, profundamente comprometidas com a teoria cognitivo-comportamental. A psicanalista e historiadora Elisabeth Roudinesco (2008, p.187) resume o projeto das classificações internacionais: (...) abandonar definitivamente a terminologia psicanalítica, psicodinâmica ou fenomenológica – que humanizara a psiquiatria durante 60 anos dotando-a de uma filosofia do sujeito -, para substituí-la por critérios comportamentais dos quais estava excluída qualquer referência à subjetividade. Um excelente estudo realizado e publicado no Brasil por um psiquiatra – A psiquiatria no divâ – entre as ciências da vida e a medicalização da existência (AGUIAR 2004) -, confirma, através de um estudo prático, a hipermedicalização e confirma as críticas feitas às classificações internacionais (acreditamos que o título do livro deva ter sido uma escolha comercial, não há conceitos ou interpretações psicanalíticas maiores no texto). Mas, e nisso consideramos o grande mérito do livro, o autor estuda criteriosamente os mecanismos de indução ao consumo de remédios psiquiátricos. Mostra como os diagnósticos e listas da DSM-IV e CID-10 serviram a uma difusão simplificada, mecanicista e nada terapêutica dos diagnósticos psiquiátricos, como essa simplificação foi utilizada pelos grandes laboratórios para propaganda de seus produtos e como essa propaganda é comercialmente difundida não apenas pelas publicações médicas, mas, principalmente, pelos meios de comunicação de massa. O reducionismo nosológico tornou a rotulação psiquiátrica acessível não apenas aos profissionais de outras áreas, mas ao público leigo em geral. Sem ter crítica da manipulação mercadológica, os diagnósticos são vendidos à população, seja em artigos de revistas e jornais ou pela televisão e pela internet. Sempre sob a capa de descobertas científicas novíssimas e revolucionárias, reduzindo uma doença ou traço de comportamento a uma explicação genética, algo do tipo: foi descoberto o gene que torna levadas as crianças, ou por que os homens tendem a ser mais infiéis que as mulheres, ou você pensa que está desanimado com a vida, mas pode ser distimia. Em revistas tais matérias são frequentemente seguidas com listas de perguntas em questionários com o título: veja se você também tem... A observação corriqueira mostra como os diagnósticos e listas de sintomas possuem difusão em revistas semanais, em publicações para o público feminino e em revistas de divulgação científica popularizada (usualmente todas das mesmas editoras). Aguiar (2004) descreve que, induzidos à crença reducionista de que todo o problema advém do transtorno X ou Y, o público já chega ao consultório ou ambulatório, de qualquer nível social, trazendo seu próprio diagnóstico: doutor eu sou bipolar. Sairia Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009 15 Luto e Melancolia versus Distimia do escopo do atual trabalho uma crítica de como, mais recente que o termo distimia, o termo bipolar tornou-se um modismo, aproveitando-se das variações humanas universais do humor ao longo dos dias. Para quem trabalhou extensa e intensivamente em instituições psiquiátricas, e lidou com pacientes verdadeiramente portadores da antiga psicose maníaco-depressiva, hoje transtorno depressivo maior e transtorno bipolar, a vulgarização do termo bipolar soa ofensiva à gravidade dos sintomas dos reais portadores do transtorno e de seu sofrimento. Diante de tal certeza autodiagnóstica – eu sou bipolar -, os médicos, principalmente os de emprego público ou que sobrevivem de convênios (isto é, quase todos), profissionais mal remunerados, com poucos minutos para a consulta, são sutilmente, ou não tão sutilmente, obrigados a ceder ao pedido do paciente pela droga que solucionará todos os seus problemas. O pedido terá mais sucesso se o médico já tiver sido bombardeado pela visita de representantes de laboratórios, pela propaganda em revistas médicas, por uma formação precária ou nula em Psiquiatria e, também, pelos mesmos meios de comunicação que atingiram o paciente. Se não atender ao pedido do paciente, e sem tempo e ânimo para contra argumentar, o médico carregará para o resto de sua vida a culpa de não ter dado ao doente o remédio que solucionaria todos os seus problemas. DISTIMIA: UM EMBRULHO SÓ A mais grave consequência dessa mudança ideológica da criação de novos diagnósticos ocorreu nos transtornos do humor. Nesse item, a DSM-IV e, em um grau quase imperceptivelmente menor na CID10, sob a capa de uma suposta cientificidade, produziram uma involução diagnóstica. Na fúria para eliminar o termo ‘neurose’, as classificações fundiram os diagnósticos 16 de neurose depressiva e personalidade depressiva em uma única categoria clínica: a distimia. Na psicopatologia geral, a palavra distimia referia-se a um sintoma, o da quebra súbita do controle do humor, como, por analogia, disbulia refere-se à quebra súbita do controle da vontade. Contrariamente a sua origem etimológica, o termo distimia foi elevado de sintoma à categoria de diagnóstico. Ao mesmo tempo, o novo uso do termo distimia o tornou impreciso em relação a sua fronteira com o diagnóstico de transtorno depressivo maior. Na neurose depressiva ou depressão neurótica, temos um quadro de hipotimia, surgido a partir de um tempo preciso ou não, mas que nitidamente não existia antes, pelo menos em gravidade. Um quadro clínico que, em sua maioria, não é incapacitante para a vida social e para o trabalho. Na neurose, a ‘depressão’ surgiu há um tempo determinado, incomoda seu portador, muitas vezes com a mescla de ansiedade e depressão ansiosa, e o paciente procura pelo tratamento. As pessoas à volta do paciente podem ou não sofrer com seu transtorno, mas é bem claro que ele sofre muito mais. Certamente trata-se mais de um sintoma subjetivo do que de um sintoma social (aqui nos referimos aos sintomas sociais como transtornos socialmente desagregadores, desde os conflitos intersubjetivos até legais, e não ao conceito psicanalítico de laço social). A experiência clínica mostra como tais pacientes não reagem ou reagem mal aos antidepressivos. Entre pesquisas que classificam taxas altíssimas de incidência e prevalência da ‘depressão’, os pacientes com neurose depressiva constituem um dos grandes mercados para tratamentos psicoterápicos de todos os tipos. Até a CID-9 o diagnóstico de depressão neurótica fora mantido. Em paralelo, na mesma classificação anterior, entre os transtornos de personalidade, era incluído o transtorno afetivo de personalidade, no qual podiam ser englobados, Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009 Luto e Melancolia versus Distimia também, os diagnósticos de personalidade depressiva e de personalidade ciclotímica. Ainda existia em tratados de psiquiatria um termo mais remoto: a personalidade hipomaníaca. Em todos esses diagnósticos, o sintoma é muito mais social que subjetivo. O paciente sofre menos que os outros a sua volta ou, então, simplesmente não sofre. Raramente o portador de um transtorno de personalidade busca tratamento. E, como em todos os outros transtornos de personalidade, aqueles associados com a afetividade também não respondem à medicação. Caricaturalmente, a personalidade depressiva é rotulada por muitos de síndrome da hiena, em referência a um antigo desenho animado infantil, em que a personagem, eternamente queixosa e pessimista, sempre repetia: ó vida, ó azar! Quando associado a queixas hipocondríacas, o diagnóstico é facilmente identificável para o leigo: aquelas pessoas que você se arrepende de perguntar – como vai? A distinção de neurose e transtorno de personalidade é equivalente na obra de Freud à distinção entre neurose transferencial e neurose de caráter, que culminou possuindo por fulcro a distinção psicanalítica entre ego-distônico e ego-sintônico, diferença estrutural básica para a clínica. Curiosamente, os mentores do DSM-IV, em sua ojeriza à Psicanálise, esqueceram de retirar esse conceito, revelando como mesmo a mais descritiva das classificações torna-se incompreensível sem alguma compreensão dinâmica. Na DSM-IV, lemos (2002, p. 642): “(...) as características que definem um Transtorno de Personalidade podem não ser consideradas problemáticas pelo indivíduo (i.e., os traços são ego-sintônicos)”. A classificação atual manteve a categoria genérica dos transtornos de personalidade, mas retirou qualquer diagnóstico referente aos transtornos afetivos de personalidade. Além do transtorno depressivo de personalidade, também foram suprimidos os transtornos de personalidade ciclotímico e hipomaníaco. Tratou-se de uma exclusão específica e notória, uma vez que todos os outros transtornos de personalidade antigos foram mantidos: obsessivo-compulsivo, histriônico, paranoide, esquizoide, antissocial. Sendo assim, todo e qualquer transtorno do humor foi considerado ego-distônico, portanto sempre necessitando de tratamento, medicamentoso, é claro. Neurose depressiva e personalidade depressiva foram fundidas sob a égide da distimia. E nessa um pequeno item, se considerados todos os outros diagnósticos da seção de transtornos do humor, antigamente considerados ‘psicóticos’. Qualquer leigo com acesso à internet ou médico de formação precária em Psiquiatria irá ler hoje a distimia não entre as neuroses e os transtornos de ansiedade – ‘mais leves’ –, mas ao lado da antiga psicose maníaco-depressiva e dos atuais transtornos bipolar e depressivo maior – ‘muito mais graves e sérios’. Movida por uma ideologia declaradamente antipsicanalítica, a redução de todos os quadros de depressão não psicótica no diagnóstico de distimia, embasa a idéia de que todas as depressões são medicalizáveis. A aliança da psiquiatria organicista com a terapia comportamental, que também se expressa com grande intensidade no Brasil, reflete a luta pelo mercado do tratamento das depressões diante de todas as outras formas de psicoterapia, principalmente a psicanalítica. A crítica de que a maioria das depressões neuróticas e das personalidades depressivas não reage ou reage mal à medicação ficou obscurecida pela criação do diagnóstico atual de distimia. O excesso do uso de antidepressivos tem conduzido a uma revisão crescente de sua eficácia e de seus efeitos colaterais (bem compreensíveis, se considerarmos a psicodinâmica dos transtornos de humor), como o aumento de suicídios, assim como os estudos sobre a cessação de seus efeitos após certo tempo. As críticas se tornaram ainda mais agudas nos últimos anos. Se forem reais as hipóteses do aumento da incidência dos Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009 17 Luto e Melancolia versus Distimia quadros de esclerose múltipla e de doença de Alzheimer nos países industrializados do Ocidente, além de causas ambientais como a poluição, o uso excessivo e continuado de medicações psiquiátricas terá de ser pesquisado seriamente como uma das possíveis causas. Mas a ‘era do Prozac’ baseia-se em mais do que em um conflito de interesses de mercado. VINHETA CLÍNICA: CURTA AS PERDAS E DEIXE DE CURTIR OS SOFRIMENTOS Apresentaremos um breve caso clínico. Homem de 54 anos, natural da capital de um estado do Brasil, de onde veio para cursar a universidade no Rio de Janeiro, com formação em área tecnológica, casado, pai de duas filhas, apresentando na primeira entrevista hipotimia, ansiedade, irritação e queixas de insônia e fadiga. Os sintomas relatados tinham surgido há pouco mais de dois anos e vinham se agravando. Mudara de clínico geral e, depois, procurara um psiquiatra. Fora medicado com fluoxetina pelo segundo clínico e com imipramina pelo psiquiatra. No primeiro caso, relatara melhora, mas o alívio dos sintomas teria cessado após “uns seis meses”; no segundo caso, relatava que o remédio “descera quadrado” (sic). Nos últimos seis meses, também apresentara dores precordiais. Procurou um cardiologista e fez uma série de exames, inclusive um acompanhamento cardiológico de 24 horas. Foi constatado sofrimento cardíaco, mas a cineangiocoronariografia não revelava obstruções significativas, sem haver indicação para uma angioplastia nem, muito menos, uma intervenção cirúrgica. O próprio cardiologista apontou causas predominantemente psíquicas e, por muita insistência de sua filha mais velha, o paciente acabou procurando tratamento psicanalítico. Com duas sessões semanais, após um início de tratamento em que se atinha 18 a problemas cotidianos, descobrimos uma conjugação de três fatos principais. Casado desde que se formara na universidade, aos 23 anos, há mais de quinze anos seu relacionamento com a mulher vinha se deteriorando e nos últimos anos fora reduzido a quase nada. Sua esposa iniciara uma profissão quando as filhas eram pré-adolescentes; tinha sido muito bem sucedida, tornandose financeiramente independente. Os dados do casamento eram relatados com indiferença: “(...) é o destino natural dos casamentos, que nem o de meus pais”. O paciente tivera uma ascensão profissional contínua desde sua formatura e trabalhara por dezesseis anos em uma grande multinacional. Há quatro anos fora demitido e iniciara uma pequena empresa. Tinha ciência de que nunca mais galgaria o status profissional anterior e, embora menor, a renda atual era suficiente, mas não trabalhava mais na área profissional em que se formara. Também se sentia solitário e inseguro por ser o único responsável pela firma atual. E, em terceiro lugar, o paciente falava sempre de suas filhas como se fossem duas adolescentes incapazes e, por falha na primeira entrevista, eu não havíamos indagado a idade exata delas. Foi com mais de dois meses de tratamento que fomos surpreendido com o fato de que tinham 25 e 27 anos, já formadas e com pós-graduação, sendo que a mais velha se preparava para um pós-doutorado nos Estados Unidos, e a mais nova planejava brevemente morar com o namorado. Passamos dois anos e meio elaborando essas três grandes perdas. O paciente acabou considerando que seu casamento estava “falido” (sic), experimentou fases de grande raiva e ressentimento com a mulher, fazendo extensos relatos de todos os problemas ocorridos durante trinta anos. Apesar de não seguir uma religião, vimos como sua sólida formação em colégios católicos do interior, bem como sua Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009 Luto e Melancolia versus Distimia imagem de uma família patriarcal grande na infância alimentavam uma idealização sobre casamento e filhos, de cuja importância ele mesmo não tinha consciência. Também teve de ser feito o luto quanto à perda de sua posição profissional, pelo fato de que seu conhecimento profissional se tornara obsoleto, e pela aceitação da perda da ilusão sobre a falsa segurança, dada por trabalhar para uma grande empresa, da qual “vestira a camisa” (sic) e que subitamente o descartara. Luto para o qual foi mobilizada tanta raiva quanto o do casamento. Quanto às filhas, das quais sempre fora muito próximo, o paciente passava pela popular síndrome do ninho vazio, tendo inclusive fantasias de que o insucesso delas as mantivesse morando consigo. Tanto quanto ao casamento, quanto à profissão e às filhas, era perceptível o investimento narcísico, o sentimento de falha em todas as suas reparações de objetos infantis por meio da família e trabalho e um excessivo eu ideal, que julgava com severidade seu “fracasso na vida” (sic). Após dois anos de tratamento, todos os sintomas iniciais tinham desaparecido. Os sintomas cardíacos foram os primeiros, em menos de seis meses. O paciente divorciou-se, o que, para sua grande surpresa, foi muito bem aceito pela ex-esposa. Depois de dois breves relacionamentos, o paciente passou a ter um “namoro firme” (sic) com uma mulher alguns anos mais jovem, divorciada e com filhos, companheira com a qual começou a realizar seu antigo sonho de viajar mais nas férias. Também passou a aceitar com maior segurança sua situação profissional e o afastamento das filhas, com as quais mantinha contato bastante próximo e, para exaspero delas, passou, em conjunto com sua ex-esposa, “a pedir netos” (sic). Consideramos esse paciente como paradigmático, por ter tido perdas simultâneas nas três grandes áreas mais significativas da vida para a maioria das pessoas. Mas não consideramos que tenha sido uma Psicanálise no sentido tradicional do termo. Além do tratamento apenas com duas sessões semanais, a neurose infantil e a constelação edípica foram trabalhadas, com o reconhecimento dos ataques aos objetos infantis, para tornar parte do eu ideal em ideal do eu, permitindo que o paciente pudesse sentir seus lutos. Porém não se tratou de um trabalho tão extenso e maciço como havíamos idealizado. Em palavras do paciente, que iniciara o tratamento se dirigindo a mim como você, mas depois, durante mais de dois anos, sempre se dirigia a mim como “senhor” e “doutor”, que “reencarnava” (sic) seu falecido pai. A alta foi solicitada pelo próprio paciente, e não consideramos que a transferência tenha sido desfeita tanto quanto desejaríamos. Mas o paciente já não precisava tanto de seu grande pai da infância e de todo seu julgamento severo (inclusive do analista com seu eu ideal em busca da meta de uma análise ideal). Nas três áreas mais importantes para a maioria das pessoas, sob o peso do eu ideal e de um considerável grau de agressividade recalcada, inconscientemente o paciente traíra sua via e a si mesmo, “o que chamo ceder de seu desejo” (LACAN, 1997, p. 285). Traíra seu coração, no sentido figurado do termo, agora este lhe cobrava, em sentido concreto, uma libra de carne do coração (SHAKESPEARE, 1990). Hoje a possibilidade de traição é universal, tanto pela transformação de qualquer um ao longo da vida, que tem se tornado cada vez mais longa, quanto do mundo, de transformações cada vez mais rápidas. O que há de comum entre os 20 anos e os 50? Há de se metamorfosear o desejo, no que apelidamos: “hoje se passa por várias reencarnações na própria vida”. Ao final do tratamento, o paciente relatava que sua vida tinha sido “novamente colocada em movimento”, que acabara a “estagnação” (sic). Dentre os sintomas da depressão, o sentimento de estancamento do presente, sem perspectivas nem fantasia, cessara. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009 19 Luto e Melancolia versus Distimia PSICANÁLISE: APOLOGIA DO LUTO E DO TRÁGICO A Psicanálise foi construída a partir de uma visão trágica da natureza humana. Freud era um notório pessimista, e todos os fatos sócio-políticos da primeira metade do século vinte reforçaram sua visão de mundo e da natureza humana. A Psicanálise possui centrais conceitos como trauma, castração, objeto, falta, finitude e, principalmente, o conceito de pulsão, cuja satisfação integral ou permanente, em obediência ao princípio de prazer, seria a morte. Mais recentemente, os termos desamparo e ressentimento apareceram tanto na literatura psicanalítica como em outras áreas do conhecimento sobre o sujeito (KEHL, 2004). É atribuído a Freud o dito de que “o estado natural da humanidade é um estado de branda infelicidade”. Em parte, porque o conceito freudiano de felicidade não é o de uma satisfação exclusivamente individualista, mas o de realização limitada dentro das possibilidades reais. Satisfação que é fruto de um pacto que visa à continuidade e produtividade do sujeito e da sociedade. A ideologia freudiana está na contramão da ideologia da sociedade de consumo globalizada, do consumismo desenfreado e lucrativo, para alguns. Coloca-se contra o imediatismo do gozo absoluto e mortífero, promessa do consumismo imediato e irrefreado, e da ilusão de um eu absoluto. A Psicanálise defende a satisfação parcial ao longo do tempo finito do eu e da cultura, procurando aumentar o mais e melhor possível a vida e o pouco deste tempo de que realmente dispomos, o que só possível se temos diante de nós o outro. Mesmo essa possibilidade de felicidade e satisfação bastante limitadas, defendida por Freud e desvirtuada por aqueles seus seguidores que se tornaram apóstolos do adaptacionismo, foi criticada por Lacan, que aprofundou o suporte do trágico na Psicanálise. Uma satisfação, mesmo que 20 dentro dos limites do princípio de realidade, calcada na sublimação e na genitalidade, Lacan a rotulou como “o serviço dos bens”. A ética da análise não é uma especulação, que incide sobre a ordenação, a arrumação, do que chamo serviço dos bens. (...) se expressa no que se chama de experiência trágica da vida. (...) a relação da ação com o desejo que habita a dimensão trágica se exerce no sentido de um triunfo da morte (LACAN, 1997, p.375-376). A sedução do gozo do consumo parte da ilusão de que, preenchendo toda falta, o tempo presente torne-se absoluto, logo a morte não exista. Uma vez que o gozo nunca acontece, só resta repetir cada vez mais rapidamente a tentativa. Do engodo de um presente absoluto, cai-se no outro extremo, uma aceleração maníaca do tempo, através do vício pela busca da novidade, como se ela também nos tornasse sempre novos e imortais. Ambos os extremos unem-se por uma ideologia de uniformização e massificação do tempo; afinal, quem faz o tempo do consumo não é em realidade o consumidor, mas o produtor. E se a negação do tempo e do trágico por um instante parar de funcionar: o consumo de mais um produto de solução imediata, por exemplo, fluoxetina ou cocaína. O trágico tem em um de seus pilares o tempo como sempre se escoando, e finito, o Ser-para-a-morte heideggeriano. Não por menos no Seminário 7, em sua análise do trágico, Lacan cita nominalmente o pensador alemão (HEIDEGGER apud LACAN, 1997, p. 356). Tal como Hamlet, segurando o crânio de Yorick e voltando-o para a plateia, diz: “vá ao quarto de minha senhora e diga-lhe – deixe-a passar mais de um dedo de maquiagem – que ela acabará assim”. Mas o escoar do tempo trágico, se é inexorável, também é mais lento e viscoso, coloca o ser humano diante do dilema de não ceder de seu desejo, mas de ao menos Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009 Luto e Melancolia versus Distimia iludir-se com a idéia de perpetuá-lo em outro, seja por meio de filhos ou de objetos culturais. O tempo do deprimido, sendo também um tempo mais lento, não serve ao tempo do consumismo, pelo contrário, o denuncia. Acusação inconsciente, mas estéril, se o tempo não for novamente posto em movimento, pela elaboração do luto e pelo apropriar-se da sabedoria de que cada um e cada desejo possuem seu próprio tempo. Em O Tempo e o Cão (KEHL, 2009), além de várias críticas ao abuso da medicalização e da negação da depressão, há uma extensa análise da temporalidade do deprimido, objeto no passado de estudos e brilhantes descrições, não da Psicanálise, mas da psiquiatria fenomenológica. A Psicanálise também é brutalmente contra a tendência atual de busca por resultados rápidos, da propagação do happy end como ideal de vida e da ideia de que todo sofrimento é patológico. De européia para americana, da ênfase na esquizofrenia para as ‘depressões’, do psicanalítico e fenomenológico ao comportamental, não por acaso a mudança do eixo da psiquiatria foi acentuada pela globalização e difusão pela indústria cultural de massa americanizada, com seu ideal de competitividade e sucesso. Tornou-se fato corriqueiro na áreas psi e social que as drogas alucinógenas idealizadas pela contracultura dos anos 60 e 70 do século passado foram substituídas pelas que fornecem a ilusão de poder e sucesso, drogas que mascaram todo sentimento de perda e de desamparo: cocaína e fluoxetina. Como processo terapêutico, a Psicanálise não oferece ilusões de satisfação plena e felicidade permanente. A revivência e a elaboração das perdas, antigas e recentes, constituem-se em pilares do processo psicanalítico. Mas as perdas só podem ser revividas e elaboradas se a agressividade e a ambivalência, constitutivas de todo ser humano, tiverem espaço e tempo para serem manifestadas em uma terapia: a diferença entre luto e melancolia. Sem dúvida, a to- mada de conhecimento limitada do lado escuro de nós mesmos é algo de que todos gostaríamos de ser poupados, se fosse possível. Claro que a Psicanálise é um tratamento caro, mesmo que as sessões sejam o mais baratas possível em uma clínica social, por causa da frequência e duração do tratamento, e torna-se ainda mais dispendioso em termos de investimento afetivo e comprometimento pessoal. Se a fluoxetina funcionasse o tempo todo e para todos, seria perfeita. CONCLUSÃO: A VANTAGEM EM SE SER SEMPRE DO CONTRA Cabe ao psicanalista defender a antiga neurose depressiva, muitas vezes seu principal ganha-pão, na certeza de que só a Psicanálise pode ajudar eficaz e duradouramente o paciente. A transmissão da Psicanálise em instituições à margem do poder público lhe dá o dom da liberdade diante dos modismos diagnósticos, mesmo sob a capa de sistemas globalizantes e mais científicos de nosologia. Só nos resta repetir e estender tanto para o psicanalista enquanto terapeuta, como para Psicanálise enquanto terapia, o que já escrevemos em outro texto sobre as próprias instituições que formam esse terapeuta e transmitem essa forma de terapia: Apesar de todos os narcisismos e querelas históricas, ficou claro o quanto as sociedades psicanalíticas são, ou tentam ser, entidades democráticas nas quais os próprios membros são os donos. Autogestão, propriedade dos meios de produção, participação direta nas Assembleias: termos que os arúspices da globalização vaticinam como ultrapassados, antieconômicos e impeditivos para a competição. Ainda bem que no mundo das cadeias do fast – fast-food, fast-religion e fast-university – a Psicanálise está onde sempre esteve: na contramão (LOPES, 2005, p. 12). Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.13-22 – Novembro. 2009 21 Luto e Melancolia versus Distimia Keywords Treatment of depressions; over medication; time and tragic experience. Abstract Abusive use of psychiatrical drugs, mainly concerning depression diagnosis. Use of the international mental and behavior disorder classifications facilitating this abuse. Over simplification of diverse clinical diagnosis under the label of distimy. Cognitive behavioural ideology inducing over medicalization. Psychoanalysis as an opposite therapeutical method and world view. Time, finitude and tragic experience of the life. 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A primeira impressão do leitor perante os minicontos é uma certa perplexidade quanto às mensagens subjacentes e à rapidez dos acontecimentos num diminuto texto. A sua propositada concisão é tão surpreendente, que, para saborear a riqueza e a densidade de alguns deles, se exigem conhecimentos gerais não encontrados no leitor padrão. Cinema, televisão, literatura, mitologia, psicanálise, gírias de época, história, filmes e seus diretores e experiência de vida, em geral, são fundamentais para compreender a dimensão do texto e o desejo do narrador. Como em toda boa literatura, o subjacente e o não dito são a chave para o seu entendimento, magia perceptível pelo leitor bem informado. O miniconto abaixo é de Ricardo Corona: PSICONTODÉLICO – Põe na língua. – LSD? – É. – E o leitor? – Dê-lhe o fio de Ariadne. Seu título nos remete a “psicodélico”, uma palavra em desuso, contemporânea do LSD e de uma era na qual a gíria do momento era “podes crer!”. Se, em certas circunstâncias históricas, até o almoço do bandejão do restaurante de estudantes ou era ou não era dialético, houve também outra época na qual tudo foi psicodélico. Naquelas ocasiões, dialético ou psicodélico explicavam tudo. Antonio Houaiss curiosamente menciona que a palavra refere-se às produções intelectuais sob efeito alucinógeno e, entre parênteses, cita LSD. Psicodélico é formado do grego psico + delos e significa aquilo que é visível, manifesto e evidente. Diz-se também das visões coloridas e fragmentadas que essa droga provoca. Mestre Aurélio, numa quarta explicação dessa palavra no seu dicionário, informa ser “aquilo que se distingue do meio tradicional, ou pela decoração, ou pela atitude, ou pela maquilagem, ou pela roupa”. Na década de 1960, psicodélico era o uso do LSD na língua e, aí, ver o mundo sem angústia ou depressão. Nada diferente, portanto, daqueles que preferem vê-lo hoje energizado com pó. Esse miniconto é um diálogo, e a primeira frase, Põe na língua, é, numa leitura imediata, a ordem de um mestre que ensina o caminho da salvação para seu discípulo. Ela pressupõe uma pergunta não formulada 1 Psicólogo pela PUCMINAS e psicanalista em Belo Horizonte. É integrante da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), da Associação Internacional de Críticos de Arte (AICA), órgão da UNESCO e do Instituto Histórico e Geográfico de Minas Gerais. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.23-30 – Novembro. 2009 23 O máximo no mínimo de um personagem oculto, um pedido de esclarecimento do que fazer com algo desconhecido em mãos. Essa frase é também uma recomendação médica ao paciente que não sabe como usar o medicamento. Ou ainda, uma outra ordem sem afetividade, seca e objetiva: “Põe na língua”. Em seguida o interlocutor oculto, que nunca se queixou do que sentia e nenhum diagnóstico lhe foi dado, faz uma pergunta-resposta com naturalidade, demonstrando conhecer esse objeto mágico capaz de medicar qualquer doença, mesmo aquelas de queixas nunca relatadas: “LSD?” O ácido lisérgico, ou LSD, está para o mundo das drogas assim como IBM está para o mundo dos negócios. Ele foi posto na língua portuguesa e em dicionários de outros idiomas ocidentais desde quando nasceu em laboratório, por volta daquela década. Esse ácido é o resultado da hidrólise de certos alcalóides vegetais, cristalinos, alucinógenos, e foi difundido entre os ripongas, desbundados, roqueiros e certos intelectuais do underground das décadas seguintes. Foi a porta de saída de um mundo cujos moradores estavam angustiados por causa da castração política da ditadura militar no Brasil, a guerra fria entre países hegemônicos de esquerda e de direita, o potencial e iminente perigo de devastadora guerra nuclear, acrescido também de boa dose de dificuldades pessoais de seus usuários, deslocada para a política. Foi também a primeira das drogas pesadas na escalada iniciada pelos baseados, época de uma geração que fez e venceu uma revolução de usos e costumes com os aforismos: “Faça amor, não faça a guerra” e “Paz e amor”. E, com a mesma naturalidade 24 com que foi feita a pergunta, vem a resposta do mestre: “É”. Mas esse é um texto ficcional, um miniconto, um curto diálogo entre dois personagens, no qual o leitor aparece como se fosse um voyeur que, de algum lugar, os observa. Os dois interlocutores o vêem como um sujeito de olhar pidão, que tem a esperança de receber o mesmo encantamento. O segundo daqueles faz, então, uma pergunta como se fosse surpreendido pelas ilegalidades do acontecimento e do diálogo, ou sentisse o pedido implícito do segundo personagem que, empático, entende que o leitor do momento está na mesma situação que ele, precisando da mesma salvação, e se coloca no lugar de seu advogado de defesa, perguntando: “ e o leitor?”. É uma pergunta gentil como se se falasse “... e o meu irmãozinho, leva o quê”? Ou uma censura de alguém desconfiado, como se um outro leitor, no futuro, fosse um policial ou alguém careta, cuja obrigação fosse interromper o tráfico dos dois. Aí, o primeiro personagem, não querendo correr riscos e certo de que um prêmio de consolação deva ser garantido, fecha o miniconto imaginando que o leitor é igual a um corrupto menor, que aceita uma quimera como consolo, ou um desesperado de plantão à procura de um guia para sair de onde está. Essa passagem pode ser lida ainda como se o autor visse no leitor alguém muito especial e soubesse que a decisão de percorrer qualquer caminho da vida é dele, mas que, por ser o meu leitor, um mimo lhe seja dado como prêmio. Através de uma condensação definitiva, receita-lhe a compensadora panacéia: “Dê-lhe o fio de Ariadne”. Para falarmos de Ariadne e o seu fio de lã, é preciso nos remeter à mitologia grega, em especial aos mitos de Teseu e do Minotauro. O Minotauro é o Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.23-30 – Novembro. 2009 O máximo no mínimo fruto da traição de Pasifae, esposa do rei Minos, com o Touro de Creta, por quem ela se apaixona perdidamente. O infante gerado nesse relacionamento traiçoeiro é um monstro, metade homem, metade touro, cuja deformação causa rejeição e repulsa a Minos, seu pretenso pai. Este, envergonhado do suposto filho, o aprisiona no labirinto construído por Dédalo, composto de zigue-zagues infinitos e sem saída. O Minotauro tinha compleição de homem forte e de touro viril, e o seu pasto eram sete rapazes e sete moças inocentes, escolhidos todo ano entre os atenienses. O sacrifício dos jovens foi a punição da guerra perdida por Atenas, imposta por Minos, rei de Creta. Ele, por influência maléfica da perversa mulher, se transforma de rei sábio e justo em déspota exigente e cruel. Quando Atenas envia o terceiro pagamento consecutivo, remete junto com mais treze sacrificados o jovem e heroico Teseu, que parte com sua clava, tomada de Perifetes, a quem derrotara anos antes. Sua missão de bravo guerreiro é derrotar o Minotauro e sair vitorioso do Labirinto. Antes de sua partida, Ariadne se apaixona por ele, tece e lhe fornece um novelo de lã com o qual ele marca seu caminho de volta e, deixando o Minotauro derrotado, de lá sai triunfante. Minotauro é metáfora de tudo aquilo de que nos envergonhamos e preferimos manter longe de nós e do Outro. O Labirinto de Dédalo é a querência de nossa intimidade, reservatório primitivo das energias psíquicas onde moram as pulsões e os nossos mais íntimos e avassaladores desejos, endereço completo do Id, um postulado freudiano. É o lugar cheio de caminhos sem fim, onde precisamos encontrar e/ou construir uma saída que nos humanizará. A saída não será encontra- da sem a ajuda de alguém: um grande amor, um amigo do peito, o psicanalista, o terapeuta ou ainda o traficante, esse anti-Ariadne pós-moderno, e as drogas, o fio de lã em moda. Sabedor de que as dificuldades emocionais, angústias e depressões são as normas deste novo mundo globalizado, o personagem sugere que cada leitor, colocado no mesmo lugar de desespero daquele, precisa do mesmo remédio. O LSD é o Lenço Sem Documento do verso de Caetano Veloso, elemento capaz de unir o narrador, os personagens e o leitor num conluio afetivo. Para o narrador, aquele é uma presa oferecida a qualquer Minotauro contemporâneo, a aguardar um Teseu que o auxilie a combater o seu cotidiano entediado ou endiabrado e o retire desse labirinto metafórico. Hoje não é somente o leitor, essa espécie em extinção, que anda à procura de um equivalente da lã de Ariadne, mas todos nós, porque, se os caminhos internos de Dédalo são muitos, a saída é uma só. Segundo miniconto, de Beto Vila: – Diz que me ama – Aí é mais caro Houve uma época na qual as operárias do amor ficavam confinadas em casas suspeitas, endereços sobre os quais ninguém tinha dúvidas. O mundo mudou, e uma de suas alterações foi o desaparecimento daqueles locais, chamados de rendez-vous, denominação francesa para um lugar destinado a uma atividade profissional nascida globalizada. A libertação sexual feminina, vinda com a criação do anticoncepcional nos anos 1960, o aumento da produção dos automóveis, a chegada dos motéis e uma recente ética, irmã gê- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.23-30 – Novembro. 2009 25 O máximo no mínimo mea de outra moral, foram itens construtores de nova vida sexual da mulher e que, aparentemente, acabariam com a mais velha profissão do mundo. Mas isso não ocorreu. A eterna existência de pessoas que, por motivos inconscientes, preferem amor comprado, fez com que as operárias continuassem suas atividades e se espalhassem. Hoje elas são encontradas em guetos de certas ruas das cidades, e nem elas têm pudor para fazer suas ofertas, nem seus fregueses para explicitar sua procura. Suas ofertas ficaram públicas e notórias em páginas e mais páginas dos classificados dos jornais das grandes cidades e incluem novas formas de perversões sexuais trazidas pelo neoliberalismo. Nesses anúncios, como num supermercado de qualidade, há de tudo, inclusive impensáveis concorrências às velhas profissionais. Se a procura muda, muda-se também a oferta, é a ordem capitalista. Agora ela é de homens, travestis, homossexuais, lésbicas, mulheres casadas, rapazes heterossexuais e até senhoras maduras; passa pela atividade, passividade, sadomasoquismo, sexy shop e mais uma quantidade de opções que alegram a vida de muitos. Mas aos fregueses interessados é preciso ressalvar que há também muita propaganda enganosa nas ofertas. Essas operárias têm uma ética, passada de veteranas para novatas, que inclui itens como: não há beijo na boca dos clientes; não se fala de amor, o pagamento não é a prazo, e o cliente vigarista não é protestado em cartório, mas leva uma surra à vista, aplicada pelo diligente cafetão mais próximo. O preço dos serviços, como em qualquer negócio, varia de acordo com o que o cliente quer: a forma e a duração da transa, a presença ou ausência de soutien ou ainda se quer carinho. Tudo 26 isso tem um custo para elas, que, como fundamental regra do sistema econômico vigente, é transferido para o consumidor final. Mas nestas cláusulas de contrato verbalizado há limites: há coisas que elas não fazem. Preferem perder o negócio a aderir a insuportáveis perversões de clientes que fazem corar veteranas profissionais pelas loucuras propostas. O miniconto de Beto Vila, constituído de duas linhas apenas, começa com: – Diz que me ama. A frase pressupõe a existência de alguém que sente uma incompletude no que recebe. Na primeira linha não se tem ideia de onde ele está nem a quem se dirige. O personagem da primeira pessoa do singular quer se assegurar de que uma doação seja revestida de amor, esse invólucro invisível que faz dos relacionamentos afetivos algo especial. Feito o pedido, a resposta é dada com a rapidez inerente à negociação de toda pistoleira que conhece os gatilhos da própria vida e daquelas alheias: – Aí é mais caro. Rapidez que se repete na narrativa do texto porque, numa primeira e imediata leitura, percebe-se que se trata de um diálogo entre uma profissional e um cliente e que o contrato inicial entre eles, não revelado na primeira frase, não continha cláusula de fornecimento do exigido agora. O primeiro personagem quer modificá-lo. O pedido pode ser atendido, mas é preciso alterar outras cláusulas, e aquela do seu preço original é a principal. Quanto mais se fornece, maior é o preço, é outra regra preservada pelo segundo personagem. Mas ninguém imagine que o conteúdo desse diálogo seja privilégio da dupla heterossexual de cliente-freguês. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.23-30 – Novembro. 2009 O máximo no mínimo Considerando os relacionamentos pós-modernos tão em voga no mundo globalizado, ele pode ocorrer com qualquer tipo de dupla. Nas heterossexuais, cujos casamentos são realizados em igrejas e cartórios, com direito a fotos em Caras, essas mesmas cláusulas ficam recônditas em contratos (in) conscientes e, como o dinheiro compra até amor verdadeiro, “o mais caro” está estacionado em cheques bancários e cartões de crédito sem limites. Além dessas, o miniconto abre a perspectiva de uma outra leitura polissêmica na palavra “caro”, ensinandonos que, quando se diz que se ama, tudo é mais caro sim, por ser mais querido, mais amado, mais desejado. Era assim que Hélio Pellegrino respondia aos seus futuros clientes que achavam as suas sessões psicanalíticas “caras”. Terceiro miniconto, de Adriane Mirtes: Caiu da escada e foi para o andar de cima. O narrador relata experiências de vida e é irônico com a morte. Na primeira leitura, ele, gozador, triste ou bem informado de algo que o leitor desconhece, relata um literal acidente; desses que podem ocorrer com qualquer um: “caiu da escada”. A queda nos faz pensar que, como consequência, alguém morreu; daí a frase seguinte “foi para o andar de cima”. “Andar de cima”, na nossa cultura e língua, é metáfora de céu ou do seu substituto: qualquer lugar em que as pessoas acreditam existir após a morte, aquele país, como dizia Shakespeare, “de onde nenhum viajante jamais retornou”. O narrador parece dar uma informação ou uma explicação para alguém que, perguntando por Fulano ou Beltrano, recebe a indicação do novo endereço da vítima. Nos regimes ditatoriais, é também a explicação dada sobre algum amigo, ou adversário do poderoso de plantão e que, descuidado ao andar nas escadas do poder ou da clandestinidade, caiu e desapareceu para sempre do cenário político. Uma outra leitura, própria de países democráticos nos quais os adversários não são jogados de helicópteros em alto mar, nem enterrados vivos e menos ainda executados em praça pública, é metáfora do fato político mágico de alguém “cair pra cima”. Ocorre sempre com aqueles funcionários que, pela honestidade ou desonestidade, impedem algum superior de realizar uma negociata ou uma corrupção. Impossibilitado, legalmente, de demiti-lo e decidido a levar vantagem pessoal no cargo que ocupa, o chefe decide pela sua promoção. Remove-o para um novo e melhor lugar acima do atual, posto no qual ele não importunará nem tomará conhecimento dos negócios em andamento no andar de baixo. Cai para cima, no jargão de funcionários públicos. Sem poder reclamar, porque recebeu um prêmio, o funcionário é deslocado para longe e, no seu lugar, entra alguém escolhido para defender os interesses da chefia. O fenômeno, para quem ainda não foi vítima dele nem o viu acontecer, está registrado no filme M. Butterfly, de David Cronenberg, no qual um contador é enviado para Pequim nos anos 1960 e precisa descobrir as falcatruas dos funcionários da embaixada francesa local e ainda enfrentar as armadilhas de hábeis diplomatas corruptos. Ingênuo politicamente, o contabilista aceita do embaixador a sua absurda promoção a vice-cônsul. Despreparado intelectualmente para o cargo e para viver num país do qual ele desconhecia a língua, usos e costumes, Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.23-30 – Novembro. 2009 27 O máximo no mínimo além das políticas americana e francesa para o sudeste asiático e sem leitura diária dos jornais locais, cai da escada política preparada só para ele. Em curto tempo, vem a ordem de Paris para seu retorno e é demitido. Ponto para os corruptos franceses de Pequim. Ponto para a burocracia do cair pra cima. Fenômeno idêntico pode ser observado no Brasil na nomeação de certos políticos para cargos fora do Brasil em países europeus. Entre o risco de ver políticos fazerem declarações nefastas ou conspirações que fizessem o governo escorrer e cair de algum degrau metafórico, sacrifica-se o cargo que poderia ser melhor dirigido por um funcionário de carreira, para se livrar de alguém inconveniente no território nacional. Esses políticos caem pra cima em capitais europeias. A promoção para se livrar de alguém é comum também nas igrejas, em especial na Igreja Católica e seus integrantes. Logo após 1964, Dom Helder Câmara saiu do Rio, “promovido” para Recife onde incomodava menos os militares de plantão no Palácio do Planalto. Quarto miniconto: VIOLÊNCIA Foi ao bar comprar cigarros E nunca mais voltou. Até onde estou informado, o conto não tem autor definido. Foi, inicialmente, publicado nos anos 1970 nas primeiras edições do “Pasquim”, jornal de saudosa memória, e virou sinônimo de chacota, piada e pilhéria cada vez que se sabia de alguma mulher abandonada pelo marido, namorado ou amante. Curiosamente, as duas frases não eram mencionadas quando a mulher abandonava o marido. Naqueles anos, esse miniconto foi tão citado 28 quanto a velha piada na qual o sujeito deve receber a notícia da morte da mãe em diferentes e pausados telegramas, com a mensagem inicial de “sua mãe subiu no telhado”, seguido de outros até o desfecho final. Quando eu era garoto no bairro Carlos Prates, em Belo Horizonte, minha família teve uma vizinha, Dona Fernanda. Como todos os casais da rua onde morávamos, ela e o marido lutavam pela vida nos anos 1950 com as dificuldades próprias dessa estratificação social. O casal tinha cinco filhos, todos meus amigos de infância. De seu marido tenho uma única lembrança: uma silhueta de um homem baixo, envelhecido aos 35 anos, sempre de chapéu e de olhar afetuoso. Gostava de caçar, pescar e nas férias anuais viajava para o Mato Grosso, provavelmente para o Pantanal, passando temporadas de, no máximo, vinte dias. Não me lembro qual era sua atividade, mas com certeza era o único profissional naquele bairro que viajava nas suas férias. Todos os seus contemporâneos e vizinhos as passavam em casa, aproveitando para fazer os consertos domésticos, acumulados durante o ano. Assim, aqueles pais contemporâneos dos meus e que eram funcionários públicos, comerciários, industriários, securitários ou bicheiros, que não tinham a mesma sorte do Sr. Antônio Celso, se tornavam marceneiros, bombeiros ou eletricistas nos seus vinte dias de lazer. Para os filhos do Sr. Antônio a sua prolongada ausência nas férias tinha o prazo de uma existência, porque naquela época, sem que saibamos o motivo, o tempo passava mais lentamente que hoje. Ele, como tantos de sua geração, era tabagista. Naquela ocasião, ninguém imaginava que fumar causava câncer, e o hábito era pra- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.23-30 – Novembro. 2009 O máximo no mínimo ticado com tanta espontaneidade, que havia um certo glamour na atitude, ratificada por Hollywood nos filmes com Gary Cooper, Bogart, Tyrone Power, Alan Ladd, Burt Lancaster e tantos outros. Além disso, imagino que o cigarro ajudava a espantar os mosquitos nas pescarias do Sr. Antônio Celso. Nada exteriormente ao casal indicava que ele fosse capaz de uma violência doméstica. Eles sempre transmitiram a mesma ideia de felicidade de outros e somente o tempo me ensinou que naquele bairro havia um foco da mais completa loucura conjugal, amargor de tantos, em especial das mulheres. Ao ler o miniconto acima, lembrei-me dele e de uma das mais bravas guerreiras de minha meninice: Dona Fernanda. Certo dia, fomos informados de que o pai de meus amigos estava pronto para uma daquelas viagens de pescaria no Mato Grosso. Seus companheiros o apanhariam em casa com a velha caminhonete que, de tantas viagens ao Pantanal, já conhecia de cor o caminho de ida e o de volta. Pouco antes da sua partida, o Sr. Antônio se lembrou que faltavam os cigarros na sua equipagem de pescaria. Precisava comprá-los porque a saída seria de madrugada e encontrá-los no caminho era uma possibilidade remota. Um dos filhos se ofereceu para buscar. “Não, não precisa. Isso não é coisa para criança comprar”, disse determinado. Ele saiu para fazê-lo e voltou somente trinta anos depois, um prazo equivalente ao “nunca mais” para a mulher e os filhos. Ele deixou amontoados num canto da sala as varas de pescar, molinetes, redes, arma, anzóis, iscas artificiais e algumas mudas de roupas, bagagem provocadora de um vazio que, em poucos dias, cresceu e se transformou numa montanha pesada demais para caber no coração da mulher e das crianças, quando compreenderam que ele não voltaria mais. Ocasionalmente me encontro com um ou outro dos filhos do Sr. Antônio Celso e de Dona Fernanda, hoje todos profissionais bem sucedidos. Em geral falamos dos novos tempos, lembrando e os comparando com aqueles vividos então. Nesses momentos sinto o peso daquela velha bagagem entre nós, e há uma regressão envolvendo nosso encontro e noto que, sem querer, minha presença o empurra para um abismo de tristes lembranças. Aí, o adulto de hoje expõe para o amigo de infância um imutável lugar cheio de faltas afetivas, visível nos olhos de um menino perdido num passado longínquo que, nesse momento, apenas nós dois sabemos existir; um lugar tão grande, que nem todos os peixes do Pantanal reunidos são capazes de preencher. Por certo é humilhante e muito doloroso em qualquer cultura ser mulher abandonada pelo marido com cinco crianças, e D. Fernanda sofreu muito com a violência do ex-marido. Quando ele voltou, não foi recebido por qualquer dos filhos. Mas como o ser humano é sempre imprevisível, o miniconto pode ser lido também como o desejo de certas mulheres e filhos que, por penarem na mão de marido e pai mesquinho no trato pessoal e financeiro com a sua família, aguardam e desejam que ele vá comprar qualquer coisa ali na esquina e aproveite para não voltar nunca mais. Autores de minicontos levam a concisão e a condensação ao mínimo possível e registram filigranas com palavras que o leitor, com microscópios literários, deve pinçar e examinar. Aí poderá degustar os minicontos comme il faut. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.23-30 – Novembro. 2009 29 O máximo no mínimo Keywords Minitales, Teseu; Ariadne; Minos; violence; LSD. Abstract The author analyses four minitales, very condensed tales and full of different readings, under the psychoanalytic and human points of view. Tramitação Recebido : 01/06/2009 Aprovado : 14/08/2009 Nome : Carlos Perktold Endereço : Av. Celso Porfírio Machado, 105 – Belvedere 30320-400 Belo Horizonte, MG Fone : (31) 3286 2247 E-mail : [email protected] 30 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.23-30 – Novembro. 2009 O homem contra o sujeito Man against subject of unconscious Carlos Pinto Corrêa1 Palavras-chave Sujeito; sujeito do inconsciente. Resumo Trata-se de uma abordagem que abrange questões de Filosofia, Ciências Sociais, Literatura e Psicanálise sobre o homem como sujeito da Psicanálise. ... não encontro uma resposta quando me pergunto quem sou eu. Um pouco de mim eu sei: sou aquela que tem a própria vida e também a tua, eu bebo a tua vida. Mas isso não responde quem sou eu! Clarice Lispector DE PESSOA A SUJEITO Parece irresistível a vocação que o homem possui para estar sempre voltado para o seu exterior, fugindo àquilo que tem de mais próximo que é o seu próprio interior. Os olhos do homem levavam-no à contemplação do circundante, como se estivesse permanentemente sendo desafiado pelos órgãos dos sentidos a buscar sempre um encadeamento mais além, escapando de si mesmo. As primeiras disposições do homem primitivo foram de entender a natureza à qual estava submetido. Uma perplexidade ante o desconhecido à qual segue a tentativa de explicações místicas ou sobrenaturais, capazes de aplacar sua angústia ou conformar-se com a submissão. Tomemos como ponto de partida uma das mais interessantes e decisivas peças literárias sobre o homem e sua luta: a Odisséia de Homero (1998). Além de ser um cânone da literatura ocidental, esta obra revela a base arquetípica da própria condição humana que ambientou o surgimento da filosofia grega. 1 Encontramos os personagens enfrentando diversidades em condições metafóricas que bem expressam o antigo ou o atual, a essência do existir que não mudou em 25 séculos. Desse modo, observamos a presença do sagrado com o predomínio da lei divina. Não se trata, entretanto, de uma relação sujeito-objeto, pois a divindade penetra e participa da vida dos mortais. O sobrenatural é acessível através de uma relação próxima entre os deuses e os homens. Eles se odeiam, se amam, se invejam e, até no casamento entre eles, o sobrenatural é apresentado de modo demasiadamente humano. As forças opostas existentes dentro dos homens são, na verdade, um reflexo do conflito entre os deuses que regem o mundo. O simples ato de Odisseu encontrar, providencialmente, um cervo para compartilhar com os companheiros de viagem é prontamente interpretado como intervenção divina a seu favor (HOMERO, 1998). As questões internas estão submetidas a elementos divinos, e tudo que possa levar o homem a algum tipo de reflexão sobre a possibilidade de ser senhor Psicanalista, fundador do Círculo Psicanalítico da Bahia e seu presidente nos períodos de 1971-1983 e 1988-2004. Presidente do Circulo Brasileiro de Psicanálise em dois biênios 1980 – 1984. Vice-presidente da Internationale Foderation Der Arbeitskreise Fur Tiefenpsychologie (Federação Internacional dos Círculos de Psicologia Profunda) de 1977 e 1989, com sede em Viena- Salzburg. Delegado do Círculo Brasileiro de Psicanálise junto à International Federation of Psychoanalytic Societies (Berlim) no período de 1977- 1989. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro 2009 31 O homem contra o sujeito de si mesmo é prontamente explicável por uma vontade superior que submete o homem a um outro intangível e inexorável. Ainda mais metafórica é a caminhada de Odisseu adentrando a terra e conduzindo o seu remo, símbolo das lides do mar. No interior bem distante, depara-se com o agricultor e sua pá de revolver os grãos. Pá e remo são dois objetos tão semelhantes e tão distantes como opostos. A luta do homem na terra e no mar, na vida e na morte, possibilita momentos especiais do existir. Este é o ponto máximo que atinge o ser, como espécie de encontro do Graal. Para nós, uma ilusão, pois sabemos que o sujeito só pode aparecer no lugar onde a pulsão se torna uma representação ligada às redes de representações que compõem o psiquismo. A submissão da vida às condições externas sagradas transforma o que seriam as representações, em real, fazendo parte da luta do homem contra o sujeito. Os primeiros filósofos buscaram também, no infinito, um sentido que sustentasse a vida, argumentando sobre o télos, o logos e o deus. As reflexões sobre as origens também deixavam o homem como contemplador ou como objeto derivado de uma fusão de elementos básicos ou de uma vontade divina, à qual não tinha acesso. O ser era uma instância desde os pré-socráticos. É categorizado por Parmênides como pensar: “ser e pensar são a mesma coisa”. Esta noção de ser está longe de nos levar ao sujeito, já que não permite uma incursão sobre a subjetividade. Fundamenta-se no princípio da identidade e no princípio da não contradição. Estamos aqui longe de uma concepção dialética, de modo que “o ser é, e o não ser não é”. SUJEITO E GOZO Pouco nos ajuda repensar o sujeito da metafísica no que tange à matéria 32 e forma, principalmente por se referir ao predicável (qualidade, quantidade, etc.). Mas, de qualquer forma, é bom lembrar que esta concepção influenciou a todos os filósofos até Kant, que tinha em mente a proposta da oposição entre o objetivo e o subjetivo assumido por outros autores alemães. Para Kant (1999) o sujeito é o eu penso da consciência ou autoconsciência, que determina e condiciona toda a atividade cognoscitiva: “Em todos os juízos sou sempre o Sujeito determinante da relação que constitui o juízo. Para o eu, para o ele ou para aquilo (a coisa) que pensa, a representação é apenas de Sujeito transcendental dos pensamentos”. Como psicanalistas, podemos dizer que em Kant o Sujeito é tomado como atributo do eu. O eu é sujeito na medida em que determina a união entre sujeito e predicado na formação dos juízos. Heidegger (1973) vai-nos mostrar como não só os pré-socráticos, mas também toda a metafísica trataram do ente escapando da conceituação do ser. Ele substitui a pergunta dos filósofos clássicos – o que é o ser? por – qual o sentido do ser? Sua noção de Dasein introduz um significado do ser aí, estar aí, que nos reporta a uma abertura ao subjetivismo. De todos os entes, o homem é o único ao qual é funcionalmente exigida uma solução para o problema do existir. Usando nossos termos, estamos assim ante a angústia da falta primordial do homem, a simbolização necessária ao surgimento do sujeito. A invenção de Heidegger (1973) contaminou o pensamento europeu e gerou polêmica e desconfiança. De sua entrada na França, teve o Dasein traduzido por Être-là, o que provocou estranheza no autor alemão. Palmier sugeriu certa vez traduzir Dasein por être-le-là e quando interrogado em uma palestra sobre o Dasein no ser e no tempo, falou que Das Da des Seins: é o lá do ser. Hei- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro 2009 O homem contra o sujeito degger reagiu prontamente dizendo que não, “pois tudo está aí”. É neste ponto que a filosofia toca especialmente o que a psicanálise vai colocar como sujeito. Lacan (1992), no Seminário O objeto da psicanálise, de 25 de maio de 1966, tomou o quadro de Velásquez, chamando atenção para “você não consegue me ver, lá de onde eu olho você”. O lá está elidido, este mesmo lá que define o Dasein, como se resolvesse dizer que há um ser aí, “[...] neste lugar vazio, intervalo não marcado, está lá onde precisamente se dá a queda do objeto (a) sob esta denominação mantida em suspenso”. Feita esta aproximação, podemos tomar a interessante reflexão de Garcia (1998, p.67), que propõe uma virada na tarefa do pensar filosófico que tem no Dasein espécie de encontro realizador do sujeito, pela questão do objeto (a). A partir daí, o problema se desdobra. É preciso ainda falar de Hegel (1999) e sua aproximação com Freud no conceito de repetição que foi tratado em conferência clássica, pronunciada por Hyppolite (1998) e estudada por Lacan(1998). Wine (1992, p.99) sugere, a partir desta conferência, que: ... a marca hegeliana está reforçada no texto de Freud e no sentido que recebe da teoria lacaniana. O eixo central do texto freudiano se articula de um lado, com o destacarse da função intelectual e do outro, com a pulsão de morte, enquanto disjuntiva, separadora e geradora de negações. O pensamento, como tal, já surge afetado por uma denegação. A negatividade é o fundamento da dialética hegeliana. É a negatividade que comanda o devir criativo do homem, o seu ser para a morte e, finalmente, o seu acesso à sabedoria. O estatuto da negatividade é um dos pilares da reformulação estruturalista que Lacan faz com sua releitura da obra freudiana. Com a Fenomenologia do Espírito, de Hegel (1999), aparece a questão do advento do homem a partir do natural, mas Labarrière (1979) acrescenta que não se trata somente disso, mas da própria estrutura humana como tal, da diferença do homem em relação ao animal e não de sua gênese a partir dele. Aqui, surge um lugar para uma analogia entre o pensamento hegeliano e a teoria psicanalítica de Freud e Lacan, que também pensa o advento do sujeito por via da negação. O quarto capítulo de A Fenomenologia do Espírito de Hegel (1999), conjugado com a leitura do quinto capítulo de Além do Princípio do Prazer (1920) de Freud, aproxima o conceito de pulsão de morte do desejo que ela sustenta. Hegel ajuda a demonstrar o quanto a subjetividade, na teoria psicanalítica, tem como essência a pulsionalidade pura, movimento sem origem e sem fim, que se desloca produzindo novas diferenças. Hegel descreve ainda a estrutura da consciência de si como diferente de outras formas de consciência já descritas. A forma de consciência que é específica do homem é a consciência de si, que é o desejo. E lembra mais, só se chega à sua verdade ao encontrar uma outra consciência viva. Também para Lacan a consciência perde o seu ser enquanto dado estável, ele chama falasser, a falência do ser do sujeito barrado ( ) ao acesso de sua plenitude existencial. Esta interseção da filosofia com a psicanálise proposta por Lacan (1954) se mostra decisiva para o estabelecimento das relações entre os sonhos e o desejo. Foi diante de um público constituído por filósofos que Lacan informou que a descoberta freudiana teria transformado definitivamente todas as concepções anteriores do sujeito, como também do saber e do desejo. O Sujeito da psicanálise não seria o sujeito absoluto estudado por Hegel, nem o Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro 2009 33 O homem contra o sujeito ideal do sujeito abolido da ciência. Para a psicanálise, o Sujeito não seria natural como queria Sade, seria um Sujeito irremediavelmente dividido, como demonstrou Freud, ao que Lacan acrescenta que isso aconteceria pela relação dele, Sujeito, com a linguagem (LACAN apud LEITE, 2000, p.94) . O SUJEITO ESQUECIDO DAS CIÊNCIAS SOCIAIS O pensamento sistematizado científico seguiu a mesma linha reacionária contra o sujeito no aparecimento das ciências. Há uma cronologia cujas explicações se iniciam pelo que está mais distante do homem como a astronomia, a matemática, a física, a química, e só muito posteriormente aparecem as ciências ditas sociais. A ascensão da burguesia e a queda da Bastilha são acontecimentos coletivos que favoreceram o surgimento do pensamento social como indagativo e interpretativo. É intrigante como o homem inicia o estabelecimento da crítica sobre tudo aquilo a que esteve submetido por imposição divina: o poder do rei emana de Deus. A troca de sinais da verdade estabelecida reduziu o novo enunciado: o poder emana do povo e em seu nome deverá ser exercido. Já ficou velha a esperança aqui sintetizada, mas foi a chance de o homem, na ampliação de sua crítica, buscar suas razões internas. Este pensamento social produziu a Sociologia, conhecimento que pretendia revolucionar a posição do homem em seu meio. A ambição de ser ciência levou a sociologia ao abandono de questões primordiais, e Durkheim (1960) estabeleceu as regras do método sociológico. A descrição do fato social como aquele que é geral e exerce coerção, retira a questão da subjetividade e recoloca o homem na sua condição de peça de uma coletividade ou de um 34 conjunto. Da ocasião, a Economia Política chegou mais perto, procurando entender a noção de utilidade, limite e consumo que poderia ter desembarcado na questão do desejo ou a noção de falta econômica que acenava para importantes razões de ordem psicológica. O estabelecimento do valor econômico estava ligado à escassez do produto: em condições normais, o ar não tem preço por sua abundância, o diamante por sua raridade vale muito. Mas nem tudo que é raro tem valor, pois a mediação se dá pelo desejo do homem, e este desejo decorre do sentido de sua falta. Nesta linha de raciocínio, o homem se teria tornado o sujeito da economia, mas foi derrotado pelos números de Keynes, fundador de uma espécie de metaeconomia, que transcende o sujeito. Como lembra Heidegger (1973), o homem usa a ciência apenas para o ente. Sem usá-la para o ser, não poderia chegar ao sujeito. O último rebento da eclosão das ciências sociais foi a Psicologia. Dominados os campos do saber e da tecnologia pelas ciências, finalmente o homem se colocou como objeto de seu próprio entendimento. O aparecimento da chamada psicologia científica nos sugere, mais uma vez, uma tentativa de o homem escapar do sujeito que sempre temeu encontrar. O experimentalismo e o behaviorismo, pedras básicas lançadas por Wundt e William James, formaram os caminhos para explicar a conduta, sem comprometimento, como um fato cuja observação pode esclarecer sobre um bicho que reage a estímulos de modo programado. Digamos que, em seu movimento reflexivo, a psicologia clássica chegou até à consideração da pessoa. O termo expressa a relação do homem com o mundo e, em seu viés etimológico, traz o sentido de persona, personalidade como máscara, que sociologicamente expressa a possibilidade do homem na representação de papéis, Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro. 2009 O homem contra o sujeito mais determinados pelas atribuições que lhe são propostas ou impostas, do que no atendimento de suas questões internas. O SUJEITO DA PSICANÁLISE O aprofundamento definitivo, produzido pela psicanálise na questão do sujeito, está marcado por dois cortes principais. Como foi dito acima, o primeiro decorre da evolução do conceito de pulsão em Freud; e o segundo, dos acréscimos introduzidos por Lacan a partir da Fenomenologia do Espírito, de Hegel (1999). A idéia de pulsão foi introduzida por Freud em 1905 em Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade com o nome de Trieb, mas só em 1914 se torna um conceito, ainda assim como hipótese especulativa. É em 1920, em Além do princípio do prazer, que encontramos um compromisso para alteração estrutural da teoria psicanalítica com a criação da pulsão de morte. Nesse trabalho, o radicalismo do conceito de pulsão, ainda ligado ao instinto, exige de Freud o retorno ao dualismo libidinal criando a pulsão de morte. Este dualismo, em vez de preservar o naturalismo reinante na época, produz um rompimento. A quebra do radicalismo do conceito de pulsão de morte abre a possibilidade de criação do estatuto do sujeito na teoria psicanalítica. Mas é na conferência XXXI, A dissecção da Personalidade Psíquica, de 1932, que, na tentativa de sintetizar a relação fragmentária e conflitante entre eu, isso e supereu, Freud melhor colocou o destino da pulsão previsto pelo tratamento psicanalítico. Wo Es war soll Ich werden (lá onde isso estava o eu deve advir) significa que o eu deve ir-se constituindo a partir do isso (id). Desfeito o mal-entendido que tanta polêmica provocou na tradução para o inglês, torna-se evidente que a origem continua sendo a moção pulsional do isso (id). A organização do eu se dá pela colocação das impressões em cadeias significantes, em inscrições estatuídas. Isto não basta ao eu para ficar aberto às emergências do sujeito e deixar que novas inscrições se façam. Como vemos, o sujeito aparece no lugar em que a pulsão se torna uma representação ligada às representações que compõem o psiquismo. Aqui já entramos nos ensinamentos de Lacan, para entender que o sujeito surge no lugar em que algo do real consegue fazer-se representar no campo do simbólico. Aquilo que em termos freudianos é o lugar de articulação entre a pulsão e o inconsciente, para Lacan é onde o sujeito do inconsciente está. O lugar do sujeito está na interseção entre o real e o simbólico. O sujeito do inconsciente é o instante efêmero da transformação de algo do real pulsional em elemento que venha a constituir o campo simbólico. Mas a psicanálise não restringe o lugar do sujeito ao puramente simbólico. Como lembra Násio (1988), o sujeito é o poder e a potência do significante de significar, potência que é real, contida nas possibilidades da força energética da pulsão. Assim como a pulsão, que só pode ser deduzida e não abordada em si, o sujeito também é deduzido da constelação dos efeitos da representação significante. O HOMEM CONTRA O SUJEITO AUTOBIOGRAFADO A escrita constitui, antes de tudo, o vencimento do desafio da memória, produzindo uma espécie de democratização e dessacralização da palavra, podendo ir até a sua banalização. Platão (DERRIDA, 1997) denunciou que esta exterioridade da escrita se opõe à visão interior da alma ou se define como um pharmakon artificial. Este pharmakon possui a ambiguidade de um remédio Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro. 2009 35 O homem contra o sujeito que cura, ou um veneno que traz a morte. É ainda Platão que afirma que a escrita é desvio, afastamento que não leva de volta à origem, mas ajuda a prescindir da origem. Este afastamento nos conduz a uma perda da verdade possível. O pharmakon é como a associação livre, técnica tão promissora no começo de sua utilização. Através dela, a psicanálise confirmou, a duras penas, o quanto a fixação no discurso produzido era enganosa. Parecia que, pedindo ao paciente para que dissesse tudo o que lhe viesse à mente, teríamos o material reprimido, mas logo se entendeu que as associações ocultavam mais do que revelavam. A associação e o pharmakon não nos conduzem facilmente à verdade do sujeito. O escrito literário, ficcional ou não, memorável ou obscuro tem estado sempre muito próximo da psicanálise. É para nós histórica a pergunta feita a Freud sobre quem seriam os seus mestres. Ele teria apontado para sua estante onde estavam os livros clássicos da literatura mundial e de autores seus contemporâneos. Shakespeare foi fonte constante de inspiração no trabalho de Freud, do mesmo modo que Lacan tomou Joyce, Marguerite Duras, Gide, Sade e outros autores ao tratar de questões cruciais para a psicanálise. Na literatura, existe uma ficção do si mesmo resultante de uma necessidade que todas as pessoas têm de “contar-se”. Existe aquele que conta e aquele que é contado. Sujeitos e objetos da linguagem estão circunscritos basicamente na referência imaginária. A literatura escrita, como já pensava Platão, nos traz duas experiências temporariamente distantes: o pensar e o escrever. Mas existe ainda um terceiro tempo em que o escrito chega ao outro quando ocorre um certo fracasso na representação do “si mesmo” proposto inicialmente. 36 Podemos tomar as autobiografias como uma espécie de ficção sobre si mesmo. Aparentemente, o discurso ou o texto autobiográfico seria uma possibilidade de o sujeito se revelar. Como mostramos em nosso trabalho Criar para quem (CORRÊA, 1999), toda a criação literária tem um destino, e ao escrever esta autobiografia, o autor sempre o faz para um outro. Não se trata de uma posição transferencial na qual poderia emergir o sujeito do inconsciente ante o suposto saber, mas um encontro pretendido com este outro escolhido. É um conflito insolúvel entre o atendimento às demandas internas e o Outro, leitor imaginário quando escreve. Gerbase (2003) lembra que “o sujeito pode ser definido em relação ao fading, ao cansaço que é fruto da relação entre o sujeito e si próprio, não entre o sujeito e o mundo”. Parece-nos que as autobiografias sejam produzidas mais pela relação do sujeito com o mundo e deste modo se oporiam ao sujeito. Entre revelar e ocultar, deve-se lembrar que na literatura da época de Freud predominavam as fontes literárias presas ao romantismo e ao realismo, com narrativas claras que evidenciavam um saber do escritor sobre os personagens. Era como se o autor passasse ao leitor os assuntos já interpretados, cabendo a este uma posição identificatória com quem escreveu. A literatura contemporânea a Lacan, após o surrealismo, se caracteriza pelo rompimento das significações e pela queda do saber do lado do autor. [...] a literatura contemporânea se caracteriza como um ato e não mais como um saber capaz de interpretar (FLEIG, 1998, p.76). Os lapsos, a elisão das excessivas e pormenorizadas descrições, permitem ao leitor um outro tipo de envolvimento em que sua própria interpretação pode Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro. 2009 O homem contra o sujeito dispensar ou prevalecer sobre o pensamento expresso do autor. Assim, também as autobiografias deixaram de ter as extensas e minuciosas narrativas mnêmicas e passaram a oferecer lacunas e linguajar próximos a um saber que não se dá conta da verdade. Por esta via, elas continuam tão obscuras quanto antes, embora mais interpretáveis psicanaliticamente. Sempre é possível um pensar psicanalítico, pois “a experiência psicanalítica não é outra coisa senão o estabelecer que o inconsciente não deixa fora de seu campo nenhuma de nossas ações” (LACAN, , 1998). É claro que toda autobiografia como qualquer obra literária fala do inconsciente, mas é diferente a disposição de psicanalisar ou interpretar psicanaliticamente a literatura da possibilidade do autor querer deixar emergir o sujeito do inconsciente através da obra literária e, principalmente, da autobiografia. Diante da impossibilidade de comunicar o irrepresentável, restará ao autobiografando o consolo de que o homem ganhou a luta contra o sujeito que permanecerá velado no texto. Na poesia, o significante funciona sozinho (va de soi), mas na autobiografia (ne va pas de soi), os significados estão ressignificados pela interpretação do autor que escreve para um outro imaginário. A autobiografia é uma tentativa de ser mestre de si mesmo, espécie de defesa, ao invés do exame da relação do sujeito consigo próprio. A autobiografia é o oposto da sessão analítica. Para concluir, nas ciências, na filosofia, na literatura, sempre existiu uma dificuldade no homem de pensar sobre si mesmo. Sócrates confessava não saber. Pensar é não saber e, mais, quando se pensa não se pretende saber, quando se pretende saber não se pensa. Assim, o homem tem vivido sem saber de si, mesmo com a proposta psicanalítica de revelar o sujeito do seu inconsciente. Keywords Subject; psychoanalytic subject. Abstract This is an approach that adds questions of Philosophy, Social Sciences, Literature and Psychoanalysis about man as psychoanalytical subject. Referências CORRÊA, C. P. Criar para quem. Estudos de Psicanálise. Recife : Círculo Brasileiro de Psicanálise, n. 22, 1999. DERRIDA, J. A farmácia de Platão. São Paulo : Iluminuras, 1997. DURKHEIM, E. [1956]. As regras do método sociológico. São Paulo : Nacional, 1960. FLEIG, M. O dizer poético e a clínica psicanalítica. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre: Psicanálise e Literatura. Porto Alegre, 1998. FREUD, S. [1905] Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In: _____. 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Master Center – Ondina CEP : 40170 – 110 Salvador/Ba Fone: (71) 3247 1813 E-mail: [email protected] Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.31-38 – Novembro. 2009 Perversão, humor e sublimação1 Perversion, humor and sublimation Palavras-chave Humor; Perversão; Sublimação; Final de análise. Cibele Prado Barbieri2 Resumo A autora aborda a questão do final de análise articulando sublimação, perversão e humor para diferenciar o final de análise em que a integração da falta e a queda do Outro produzem humor em relação a um outro tipo de final de análise em que o sujeito destitui o Outro e produz um efeito de humor cínico, como possibilidade. Trabalhando recentemente sobre a questão da perversão, deparei-me com o aparente paradoxo de que, embora o perverso se caracterize pela escolha da satisfação direta das pulsões parciais através do desmentido (Verleugnung), grandes e renomados perversos produziram obras-primas da literatura e da arte, que foram reconhecidas pela Psicanálise como frutos da sublimação (MILLOT, 2004). Roudinesco (2008, p. 13) sublinha as habilidades do perverso de navegar entre o sublime e o abjeto como um verdadeiro dom e arte. Que faríamos sem Sade, Mishima, Jean Genet, Pasolini, Hitchcock e muitos outros, que nos deram as obras mais refinadas possíveis? Que faríamos se não pudéssemos apontar como bodes expiatórios – isto é, perversos – aqueles que aceitam traduzir em estranhas atitudes as tendências inconfessáveis que nos habitam e que recalcamos? A sublimação, para Freud (1905), “é um processo que diz respeito à libido objetal e consiste no fato de o instinto se dirigir no sentido de uma finalidade diferente e afastada da finalidade da satisfação sexual”. Em 1914 ele diz que “a sublimação é uma saída, uma maneira pela qual essas exigências podem ser atendidas sem envolver repressão”. E em 1917, que ela está ligada à possibilidade de dessexualizar as pulsões parciais interditadas pela civilização para assim satisfazer aos interesses da pulsão, sem o constrangimento das regras impostas pela civilização. Em 1923, em O ego e o Id, Freud retoma, dizendo que: A transformação da libido do objeto em libido narcísica, que assim se efetua, obviamente implica um abandono de objetivos sexuais, uma dessexualização – uma espécie de sublimação, portanto. Em verdade, surge a questão, que merece consideração cuidadosa, de saber se este não será o caminho universal à sublimação, se toda sublimação não se efetua através da mediação do ego, que começa por transformar a libido objetal sexual em narcísica e, depois, talvez, passa a fornecer-lhe outro objetivo. Posteriormente teremos de considerar se outras vicissitudes instintuais não podem resultar também dessa transformação; se, por exemplo, ela não pode ocasionar uma desfusão dos diversos instintos que se acham fundidos. Como entender que o perverso que, supostamente, desmente e desafia a lei civi- Texto elaborado para comunicação na XX Jornada do Círculo Psicanalítico da Bahia, 14-15 de novembro de 2008, sobre o tema Humor e Psicanálise. 2 Psicóloga formada pela UFRJ / UFBA. Membro efetivo e presidente do Círculo Psicanalítico da Bahia. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise, biênio 2006-2008. 1 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.39-44 – Novembro. 2009 39 Perversão, humor e sublimação lizatória em sua busca de satisfação, lance mão desse desvio que corresponde à sublimação? Talvez, justamente por essa habilidade de desviar-se dos obstáculos à satisfação pulsional, diante de uma impossibilidade de realizar o ato, o perverso se veja obrigado a formular em outro ato sua recusa da castração enveredando por uma satisfação substitutiva, que acaba por revelar-se como criação, como objeto representativo da Coisa. O exemplo de Sade nos seria instrutivo para confiar nessa hipótese, já que em seus anos de cárcere ele produziu tantas obras literárias (LACAN,1988; ROUDINESCO, 2008). No seminário da transferência, Lacan (LACAN apud FLEIG, 2008, p. 65) diz que Se a sociedade acarreta, por seu efeito de censura, uma forma de desagregação que se chama neurose, é em sentido contrário de elaboração, de construção, de sublimação – digamos a palavra – que se pode conceber a perversão quando ela é produto da cultura. E o círculo se fecha, a perversão trazendo os elementos que trabalham a sociedade, a neurose favorecendo a criação de novos elementos de cultura. Pode parecer muito paradoxal essa afirmação lacaniana, mas é justamente da satisfação das pulsões parciais que advêm os elementos que trabalham a sociedade, a interdição, a censura e a lei. É, obviamente, a restrição da pulsão que promove a civilização e é na sublimação, assim como na perversão, que encontramos um saber-fazer o contorno da interdição para dominar o gozo, promovendo a satisfação e o triunfo narcísico sobre a castração (LACAN apud FLEIG, 2008). Lacan toma a sublimação como operação que envolve a simbolização 40 do objeto pulsional, na medida em que o objeto é elevado à dignidade de Coisa (LACAN,1988). Essa fórmula geral descreve a passagem do objeto causa de desejo (objetos a que recobrem a Coisa [Das Ding]) aos objetos do desejo e define-se como um salto metafórico que implica uma representação, uma criação. Assim sendo, o que se opera na sublimação é que algo do real passa ao simbólico. Se entendemos a perversão, no sentido que André (1995, p. 311) propõe, como modalidade discursiva onde o desmentido funciona como “uma relação particular do sujeito com a linguagem”, podemos compreender melhor essa articulação entre sublimação e perversão, na dimensão do discurso. No humor, algo dessa ordem também acontece. O humor como modo privilegiado de realizar a satisfação que de outra forma estaria fadada à repressão, ou à negação, ou a qualquer outro artifício defensivo é, segundo Freud, um deslocamento de afeto, ou seja, um salto do afeto de uma para outra representação. No artigo de 1927, intitulado O humor, Freud diz que: [...] a produção do prazer humorístico surge de uma economia de gasto em relação ao sentimento (afeto). [...] Como os chistes e o cômico, o humor tem algo de liberador a seu respeito, mas possui também qualquer coisa de grandeza e elevação, que falta às outras duas maneiras de obter prazer da atividade intelectual. Essa grandeza reside claramente no triunfo do narcisismo, na afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do eu. O eu se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade, a permitir que seja compelido a sofrer. Insiste em que não pode ser afetado pelos traumas do mundo externo; demonstra, na verdade, que esses traumas para ele não passam de Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.39-44 – Novembro. 2009 Perversão, humor e sublimação ocasiões para obter prazer. Esse último aspecto constitui um elemento inteiramente essencial do humor. Vamos dar especial atenção à questão do afeto nessas passagens, pois este é um importante diferencial entre o chiste, o cômico e o humor. Em sua dissertação de mestrado em Engenharia de Produção (UFSC), que se intitula Só dói quando eu rio – Um estudo psicanalítico sobre o cômico, o chiste e o humor (2001, pdf), Beatriz Vasconcelos articulou, a partir de um estudo inédito, as relações entre o cômico e o imaginário, o chiste e o simbólico, o humor e o real. Ela sublinha, no texto freudiano, o papel fundamental da imagem na construção do cômico, da linguagem na construção do chiste e do afeto na produção do prazer humorístico. Diz ela: Percebe-se, no texto freudiano, a ênfase na comparação de imagens, própria do cômico. Esta comparação implica em que uma pessoa ria da outra: o que pressupõe uma sensação de superioridade, momentânea ou não. Tal fato aponta para uma via imaginária, marcada pela semelhança, pela pacificação do igual e pela derrisão do diferente. O chiste, modelo do inconsciente, é um jogo desenvolvido, um jogo de linguagem. Por isso mesmo, precisa de um terceiro que o compreenda, senão ele simplesmente não acontece. O chiste apura a linguagem e valoriza essa terceira pessoa, sem, no entanto, criar compromisso com ela. É esse investimento no simbólico, esse aprimorar a língua, driblandoa, esse denunciar no senso o não senso, que caracteriza o processo chistoso. Quanto ao humor, sua marca é o deslocamento de afeto. A palavra afeto no contexto freudiano não tem o sentido de algo suave ou gentil; não há nada de afetuoso nela. Ela significa antes, ser afetado, estar afetado por alguma coisa, isto é, por uma idéia intolerável. Se o cômico não suporta estar afetado, se o chiste mascara este afeto, o humor o enfrenta e o capitaliza. Desafia a dor, o trauma, o não dizível – o real em suma – e produz o riso, ou melhor, o sorriso, pois o humor não é gargalhante. Sorriso, só o riso, o riso só, que compartilha a miséria, os erros, o estranho que habita o sujeito. Não será o humor o riso diante do que não pode ser articulado em palavras? Paradoxalmente, essa seria a sua grandeza: ele opera no limite do inapreensível, face ao não sentido do real. Fugir (cômico), escamotear (chiste), desafiar (humor): possibilidade pequena de alegria que humaniza o sujeito e o torna menos desesperançado. Isto porque, apesar do ditado muito riso, pouco siso, há sabedoria no riso. Talvez a sabedoria advinda dessa mesma falta de siso, de juízo. Dessa mesma falta, que a psicanálise reputa estruturante. No chiste estamos no campo do simbólico, da linguagem, onde o afeto pelo outro fica encoberto. O riso, como descarga de afeto, é de quem faz o chiste e de quem o ouve sem, no entanto, desmascarar o afeto. No cômico é o imaginário que prevalece, a imagem patética, ridícula, estranha, diferente e por isso risível. Explora-se a diferença como abjeção, usando-se o exagero, o bizarro, o não senso, para marcar a distância do semelhante tomado como normal. O cômico surge como descarga direta, pois, o sujeito se alivia por não ser esse outro: “antes ele do que eu”, pois o eu não suporta estar nesse lugar de derrisão. No humor, assim como na sublimação, trata-se de transcrever algo do Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.39-44 – Novembro. 2009 41 Perversão, humor e sublimação registro do não dizível que, se atinge a forma de dito, passa ao registro da linguagem. Como disse Lacan, a linguagem alcança “seu ponto máximo de eficácia quando ela consegue dizer alguma coisa dizendo outra” (LACAN, 1987 p. 156). O humor é a forma de lidar com o real contornando a impossibilidade de satisfação direta, seja de um desejo de morte, seja de um desejo erótico, seja pelo seu caráter de estranho, de horror e insondável. Nesse sentido, podemos tomar o humor como um desvio que neutraliza a angústia, permitindo uma satisfação mesmo que indireta; uma transgressão admitida, um desafio que contesta, denuncia, ao mesmo tempo, que reconhece a lei, o desejo e elabora uma satisfação possível. É disso que se trata, também na perversão, quando o sujeito elabora com seu ato uma saída satisfatória para o impasse entre o desejo e sua interdição, ao se confrontar com a ameaça de castração. O desvio lógico que o desmentido imprime no discurso, o contrassenso com o qual o perverso destitui a lei de sua eficácia, não deixa de se valer dessa propriedade da linguagem de desdizer alguma coisa dizendo outra. É assim que o perverso alcança, às vezes até com humor, o triunfo do seu narcisismo e a afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do seu eu que se recusa a ser afligido pelas provocações da realidade e compelido a sofrer. Isso nos mostra o quanto a perversão, sendo a parte obscura de nós mesmos, parafraseando Roudinesco, nos é familiar. Mais do que isso, Mellman (apud FLEIG, 2008, p.110) num artigo intitulado O perverso supremo, diz que a perversão é nosso espaço natural, no funcionamento social da modernidade: Seria preciso dizer que se talvez nem sempre vemos claramente a perversão é 42 porque não apreendemos bem que ela se tornou nosso espaço natural. O funcionamento social hoje, certamente é muito mais regido pela perversão, isto é, a recusa em fazer da subjetividade daquele com quem lidamos o menor entrave ao exercício de um poder ou de um gozo, não importando o fato de que ele ex-sista. O que importa é que ele realize sua tarefa e isso sem nenhum limite, sem nenhuma barreira, sem nenhuma fronteira. Esse tipo de dispositivo parece fazer parte de nossa fisiologia moderna ao ponto de que mal sabemos de que maneira estamos imersos, tanto a perversão se tornou nosso meio de imersão. Se, na perversão, não há fronteira ou limite para gozar daquele com quem lidamos, é justamente nisso que podemos distinguir humor, sublimação e perversão. Nessas aproximações que fazemos delineiam-se as diferenças que os afastam. O humor, em sua concepção mais positiva, não é resignado. É rebelde, desafiante, mas admite e integra a falta constitutiva do sujeito, coisa que o perverso manipula desmentindo. É preciso distinguir, por exemplo, o final de análise em que o humor resulta da integração da falta, da libertação do gozo do Outro – já que não há outro que dê conta do real –, do arremedo de final de análise pela via do humor cínico que visa à manipulação, à sedução e destituição do outro para, através dele próprio, gozar mais e melhor, livre dos infortúnios da castração. Se, no primeiro caso nos aproximamos da sublimação, no segundo estamos no campo da perversão (BARBIERI, 2003; 2007). Nesse sentido, observamos com alguma frequência, senão a estrutura perversa propriamente dita, ao menos a atuação perversa como traço, compondo quadros de histeria em sujeitos cuja aná- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.39-44 – Novembro. 2009 Perversão, humor e sublimação lise supostamente chegou a um termo, permitindo, inclusive, que se pretendam analistas. O humor, aqui usado no sentido de proclamar a inexistência do Outro, na verdade se revela como artifício para desmentir a falta; como instrumento eficaz para sustentar a posição fálica, o triunfo do narcisismo e a afirmação vitoriosa da invulnerabilidade do eu. Se recalcar a falta para manter a ilusão de ser fálica não resolve o dilema histérico, o humor pode ajudar a desmentir a sua efetividade. Por isso tanto assistimos a atos perversos em boas histéricas, como também podemos nos confundir com a perversão camuflada em pele de histeria, pois o perverso é aliciador, sedutor, quando disso depende para sustentar seu dito (BARBIERI, 2003;2007). É preciso que, pelo menos os analistas, mesmo estando imersos nesse meio, – como nos diz Mellman – vejam claramente a perversão que os rodeia em seu espaço natural, pois cabe ao analista não sancionar atitudes e posturas que favoreçam que o sujeito – investido de um suposto saber sobre o gozo e sua clínica –, se autorize e se proponha ao outro como analista, para dele gozar seja como analisante, aluno ou serviçal, revelando imposturas que só podemos qualificar de perversas (ANDRÉ,1995). O dispositivo do humor pode, então, configurar-se como desvio para gerenciar a angústia diante do real, na qualidade de sublimação, mas pode também revelar-se um desmentido que, além de proteger o sujeito de ter sua precariedade desnudada, favorece, ainda, sob a forma cativante da imagem que o cômico, enquanto ingênuo, simplório, diferente, oferece ao outro, obtenha sua cooperação. Se, no primeiro caso, a saída é simbólica e acolhe a falta, no segundo, é imaginária e a desmente. Entretanto, em qualquer caso, o humor gera discurso, sempre. Mesmo que sem palavras, pois é uma via por onde o sujeito pode deslizar do destino, ou seja, do real, que é mudo, surdo e cego, para o circuito do prazer, da palavra, do riso, do sorriso. Por isso, finalizo com o prazer das palavras de Adélia Prado (1996, p.22). Antes do nome Não me importa a palavra, esta corriqueira. Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe, os sítios escuros onde nasce o ‘de’, o ‘aliás’, o ‘o’, o ‘porém’ e o ‘que’, esta incompreensível muleta que me apoia. Quem entender a linguagem entende Deus cujo Filho é Verbo. Morre quem entender. A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda, foi inventada para ser calada. Em momentos de graça, infrequentíssimos, se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão. Puro susto e terror. Keywords Humor; perversion; sublimation; end of analysis. Abstract The author deals with the question of end of analysis by articulating sublimation, perversion and humor to distinguish the kind of end of analysis where the integration of lack and the fall of the Other produces humor and another kind of end of analysis where the fall of the Other produces a cynical humor effect, as a possibility. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.39-44 – Novembro. 2009 43 Perversão, humor e sublimação Referências ANDRÉ. S. A Impostura perversa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. p. 311-312. BARBIERI, C. A postura perversa é a impostura. In: Estudos de Psicanálise. Círculo Brasileiro de Psicanálise, ag.2007. v.30 p. 35-42. BARBIERI, C. O viés perverso da sexualidade. In: Cógito. Círculo Psicanalítico da Bahia, 2003. v.5 p. 11-17. FLEIG, M. O desejo perverso. Porto Alegre: CMC, 2008. FREUD, S. Tres ensayos para una teoría sexual [1905]. In: ___Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud. 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Acessado em 09/04/2008: teses.eps.ufsc.br/defesa/pdf/7348.pdf Tramitação Recebido : 29/05/09 Aprovado : 13/08/2009 Nome : Cibele Prado Barbieri Endereço : R : João das Botas, 185 /310 – CM João das Botas – Canelas CEP : 41110 – 160, Salvador/Ba Fones : (71) 3249 4461 / 3245 6480 E-mail : [email protected] Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.39-44 – Novembro. 2009 Síndrome do pânico: angústia avassaladora? Quadro nosológico?1 Panic syndrome: overwhelming anguish? Nosologia symptom? Clovis Figueiredo Sette Bicalho2 Palavras-chave Angústia; Síndrome do pânico. Resumo Questionar a cultura da ilusão para tamponar a falta é o que se propõe neste texto. Parte-se da origem da palavra e da definição de angústia para um percurso na obra freudiana (de forma cronológica). Esse percurso é cotejado por outros autores no que tange à estruturação do psiquismo e às possíveis saídas para a angústia. Tornar o homem um ser não faltante é uma busca atual, eterna. Soluções indolores ou quase, eficazes e rápidas são ofertadas com insistência. Obturar toda a falta sem levar em conta sua origem parece ser a solução proposta. Sabemos que a época e o contexto cultural, social e político influenciam a subjetividade do homem e sua inserção no mundo. Os sintomas, podemos dizer, são a forma pela qual o sujeito se expressa diante da cultura e, assim, eles espelham tanto o seu modo de ser quanto seu modo de viver. Faz-se necessária uma contextualização desse homem no espaço e tempo em que se encontra inserido, para que possamos entender o porquê ou o que está acontecendo com as pessoas que nos procuram em nossos consultórios. Haveria na contemporaneidade lugar para as angústias existenciais tão típicas da época freudiana e mesmo até certa altura do século passado? Houve um deslocamento nas questões relativas à subjetividade? O que vem acontecendo com a nossa sociedade para que surjam esses novos sintomas? Qual a implicação da globalização, do mundo sem fronteira da internet, do consumo excessivo de produtos, onde o ter e o aparecer são mais importantes que o ser e seus questionamentos? Podemos conceituar angústia como o estado afetivo advindo do surgimento de uma grande inquietude intrapsíquica que se irrompe perante ameaça real ou imaginária e se mostra através de manifestações corpóreas (sudorese, taquicardia, dificuldades respiratórias e outras). Massermann apud Tallaferro (1989, p.171), em Curso básico de psicanálise, conceitua a angústia como: “O afeto desagradável que acompanha uma tensão instintiva não satisfeita. É um sentimento difuso de mal-estar e apreensão que se reflete em distúrbios visceromotores e modificações da tensão muscular”. Na Classificação de transtornos mentais e de comportamento da CID-10 (1993, p. 137), temos: F 41.0 – Transtorno de pânico (ansiedade paroxística episódica). Os aspectos essenciais são ataques recorrentes de ansiedade grave (pânico), os quais não estão restritos a qualquer situação ou conjunto de Apresentado no congresso do CBP, em Aracaju, sob o título A angústia e a cultura da ilusão em 30 de outubro de 2008. 2 Médico psiquiatra especialista pelo Hospital Espírita André Luiz e psicanalista. Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise no período de 1994-1996 e 1996 -1998. 1 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.45-50 – Novembro. 2009 45 Síndrome do pânico: angústia avassaladora? Quadro nosológico? circunstâncias em particular e que são, portanto, imprevisíveis. Assim como em outros transtornos de ansiedade, os sintomas dominantes variam de pessoa para pessoa, porém início súbito de palpitações, dor no peito, sensações de choque, tontura e sentimentos de irrealidade (despersonalização ou desrealização) são comuns. Quase invariavelmente há também um medo secundário de morrer, perder o controle ou ficar louco. No Novo Dicionário da Língua Portuguesa, de Aurélio Buarque (1986), encontramos: Angústia: 1. Estreiteza, limite, redução, restrição. 2. Ansiedade ou aflição intensa; ânsia, agonia. 3. Sofrimento, tormento, tribulação. A origem do termo alemão Angst nos remete à raiz indo-européia Angh (apertar, comprimir). Posteriormente virão as raízes grega Agchein (estrangular) e latina Angina (sensação de sufocamento, aperto). Nem sempre é possível diferenciar os termos ‘medo’, ‘ansiedade’ e ‘angústia’ entre si. Conforme o contexto, tanto Angst ‘medo’ como Furcht ‘temor’, (palavra também ocasionalmente empregada por Freud) podem corresponder a ‘ansiedade’ e mais raramente a ‘angústia’; entretanto, a rigor, nem Angst nem Furcht correspondem em alemão a ‘ansiedade’ ou a ‘angústia’ (HANNS, 1996, p.62). Na literatura psicanalítica, esse é um tema frequente e atual. Faremos um percurso fundado em Freud, atendo-nos basicamente a seus textos Estudo sobre a histeria (1895), O inconsciente (1915), O ego e o id. (1923), Inibição, sintoma e angústia (1925), Novas conferências introdutórias sobre a psicanálise (1932). Em 1908, no prefácio da 2ª edição de Estudos sobre a histeria (1895), encontramos um incentivo para tal trajetória. 46 Nesse período inicial, com fortes ligações com a neurologia, o tratamento com histéricos abre espaço para a observação de que os sintomas desses pacientes teriam origem em inibições na infância e que iriam ser a causa da angústia posterior. Nós já nos referimos à tendência, por parte do organismo de maneira constante, à excitação cerebral tônica. Uma tendência dessa natureza é, contudo, somente inteligível se pudermos ver qual a necessidade que ela atende. Uma tal perturbação do equilíbrio dinâmico do sistema nervoso – uma distribuição não uniforme da excitação aumentada – é o que constitui a faceta psíquica das emoções. Nesse texto a ancoragem no orgânico vai permitir a caminhada para se constatar que a “excitação aumentada” tem como caixa de ressonância os aparelhos respiratório, cardíaco, gástrico, entre outros. Se a emoção original foi descarregada não através de um reflexo normal, mas por um reflexo ‘anormal’, este último é igualmente liberado pela lembrança. A excitação decorrente da idéia emotiva é ‘convertida’ numa manifestação somática (FREUD, 1895). Com a consequente perturbação da vida sexual, esse histérico, com seu corpo erotizado, encontra a inibição na zona genital. Daí a angústia emerge transvestida de vários sintomas. Não podemos esquecer ser a inibição o mecanismo que impede o sujeito de chegar a um prazer. A fantasia de castração passa a dominar a vida psíquica do histérico. “... a fantasia contém a angústia, e a angústia por fim transforma-se em sofrimento” (NASIO, 1991). Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.45-50 – Novembro. 2009 Síndrome do pânico: angústia avassaladora? Quadro nosológico? Em O inconsciente (FREUD, 1915), o recalque aparece como mecanismo para evitar o afloramento de pulsões, impedindo que o representante ideativo se torne consciente. Dessa maneira, é preciso um trabalho psíquico que leve a uma formação de compromisso, possibilitando que o retorno do recalcado se manifeste como sintoma em que a angústia é seu afeto. Melhor dizendo, os sintomas manifestos via ego têm sua(s) origem(s) no inconsciente ao se vincularem as representações verbais do pré-consciente. A experiência analítica proporciona condições de trazer à tona parte do que é inconsciente. A angústia que vem se manifestar como sintoma passa assim a exigir uma investigação de suas causas. O processo econômico e o dinâmico são conceitos facilitadores para o entendimento do funcionamento psíquico em sua busca de equilíbrio. Em Inibição, sintoma e angústia (1925, p. 109), Freud propõe uma nova teoria que se contrapõe à sua primeira, na qual defendia ser o recalque o causador da angústia. Nesse texto, a angústia causa o recalque. Partindo das funções do ego, vamos detectar que desequilíbrios em sua dinâmica farão surgir as diferentes “afecções neuróticas.” E esse descompasso vai deixar evidente a correlação existente entre inibição e angústia. As perturbações nas funções sexuais, na nutrição, no trabalho, entre outras, passam a ser melhor definidas, e correlacionadas. “A inibição é a expressão de uma restrição de uma função do ego” (FREUD, 1925). Tanto o desenvolvimento da sexualidade na infância quanto sua reflorescência na adolescência são situações exaustivamente exemplificadas como fatores causais de uma inibição. Esse desenvolvimento toma sua evolução dentro de alguns preceitos. Aqui, os conflitos entre id e superego têm no ego sua vitrina. Em 1932, nas Novas conferências introdutórias sobre psicanálise, vimos que, ... estudando as situações perigosas, constatamos que a cada período da evolução corresponde uma angústia que lhe é própria: o perigo do desamparo psíquico coincide com o primeiríssimo despertar do ser; o perigo de perder o objeto (amor), com a falta de independência que caracteriza a primeira infância; o perigo da castração, com a fase fálica; e finalmente o medo do superego, que ocupa um lugar particular, com o período de latência. Sobre o perigo real que o homem enfrenta, suas duas reações podem ser ditas de defesa e fuga. O perigo é conhecido e real, mas a intensidade da reação é desproporcional ao perigo. Esse excedente mostra a presença do elemento neurótico. Outro exemplo é quando ocorre a separação de um objeto em que esta é dolorosa, podendo produzir angústia, luto ou dor. Novamente o possível descompasso entre a intensidade e a reação nos faz averiguar a real “origem dos sintomas”. Aqui é abordada com propriedade a angústia realística – uma reação que nos parece compreensível diante de um perigo – e a angústia neurótica – reação enigmática particular e aparentemente desproporcional. A angústia neurótica é vista sob três condições: forma livre – é flutuante, pronta a vincular-se temporariamente (fobia); forma vinculada – que se fixa em determinadas ideias (obsessão); forma histérica – aqui, a angústia coincide com o sintoma e fixa no corpo (conversão) ou surge independente como um ataque. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.45-50 – Novembro. 2009 47 Síndrome do pânico: angústia avassaladora? Quadro nosológico? Freud, em 1932 (p.107), ao escrever “que o ego é a única sede da angústia – e que somente ele pode produzir e sentir angústia”, estabelece uma posição nova e estável. A excitação ocasionada pelo aumento de desprazer é angústia sinal – aquela que a um sinal intrapsíquico ativa os mecanismos de defesa do ego a fim de manter o equilíbrio econômico, sempre que necessário. A angústia sintoma surge após a entrada em ação dos mecanismos de defesa do ego, acionados pela angústia sinal, e faz com que os sintomas aflorem. Ralph Linton (1970), em O Homem: uma introdução à antropologia, assim como Alvin Toffler (1973), em O Choque do Futuro, discorrem de maneira clara sobre como as mudanças ocorridas entre gerações vão tendo seus intervalos cronológicos diminuídos. O homem de hoje tem um instrumental tecnológico às suas mãos no qual conceitos de distância e tempo estão profundamente alterados. A satisfação imediata é cada dia mais ansiada. No decorrer do século XX, inúmeras revoluções ocorreram levando a uma modificação, em princípio lenta, não só dos valores vigentes, mas também da família, da moral, da sociedade, acelerada por uma transformação radical nos meios de comunicação e no intercâmbio comercial, determinados pelos avanços tecnológicos e científicos. O mundo torna-se uma aldeia global. Todos sabem de tudo no momento mesmo em que o fato acontece, e o acesso aos bens de consumo se difunde em quase todas as estratificações sociais. Paralelamente e em decorrência desse processo, os papéis do homem e da mulher tiveram uma redefinição. As mulheres, com o movimento feminista, libertaram-se dos grilhões machistas e asseguraram o direito ao voto, ao traba48 lho, ao prazer sexual, obtendo um papel econômico e social nunca antes imaginado. Graças à pílula anticoncepcional, a sexualidade se desvincula da procriação, e a mulher, de seduzida, passa a ser a sedutora. Da passividade para a atividade. Freudianamente pensando, tornaramse mulheres com falicidade. Hoje muitas trabalham, se sustentam e, em boa parte, fazem as abordagens de sedução. Como ficou o papel do homem? Com a concorrência feminina, o seu mercado de trabalho diminuiu, a masculinidade deixou de ser medida pela agressividade e ação, e o seu desempenho sexual foi posto cada vez mais em xeque. A falicidade do homem é colocada em questão. Porque na cultura, dois polos que lhe serviam de suporte se fragmentaram: o campo da troca simbólica, onde eles não detêm mais o poder econômico, e o da troca amorosa, onde a maioria das mulheres não se coloca mais no lugar de objeto de desejo do Outro (posição passiva), mas sim no lugar de sujeito de desejo. Do enunciado de uma ideia à sua concretização, o tempo é cada vez mais exíguo. As coisas acontecem no aqui e agora, o ontem ou o futuro tornam-se nebulosas desinteressantes e desnecessárias. É importante ressaltar que, em decorrência dessas transformações psicossociais, observa-se que o diagnóstico de síndrome do pânico tem aumentado e chama a atenção de múltiplos setores estudiosos do assunto. Estará o convívio na sociedade pós-moderna nos obrigando a “resolver” esse incômodo de maneira rápida e até cirúrgica? Serão esses incômodos insuportáveis ao homem da pós-modernidade? A necessidade de tamponamento da angústia cria o efeito “panela de pressão” que, quando rompe, traz essa percepção de morte iminente (síndrome do pânico)? Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.45-50 – Novembro. 2009 Síndrome do pânico: angústia avassaladora? Quadro nosológico? Não suportamos conviver com angústia. Parece causar transtornos conviver com o deslizamento de um afeto até o real e daí ver o surgimento da angústia. Afigura-se aí que o lenitivo cultura da ilusão passa a ser a solução. Uma sociedade cada vez mais violenta, perversa, cheia de fetiches. Mesmo com o advento dos contatos virtuais, das clonagens e de todas essas mudanças que estão por aí, não podemos pensar o ser humano como um sujeito que encontrou a maneira de obturar seu furo e assim deixar de ser um ser faltante. É impossível querer ignorar as etapas de desenvolvimento na estruturação do psiquismo. “Sam estava sob a influência da droga em mais de uma maneira: deixara que o Prozac não só curasse o episódio da depressão, mas também que lhe mostrasse como era constituído.” (KRAMER, 1994). Pergunta-se: Seria apenas o uso químico? A relação transferencial e a intervenção psicoterapêutica não teriam valor? Que constituição é esta à qual alude? Raciocínio como o citado acima nos remete a conjecturas sobre o desejo de que a vida não tenha percalços e que sejamos todos seres completos e perfeitos. Melhor dizendo, narcísicos. Uma vida sem angústia! Igrejas (evangélicas, renovação carismática e assemelhadas) proliferam com grande aceitação e calcam o seu sucesso em promessas nas quais o Senhor Deus suprirá as lacunas existentes no sujeito. Opera-se assim a completude deste. Aos que seguirem os preceitos, a alegria de ser não tem contornos oriundos da dor de existir. Mais uma vez, a tentativa é de obliterar a angústia. Correm-se riscos de danos de maior monta ao se embarcar em aventuras do passado e futuro negados e/ou ao fixar-se no aqui e no agora. O desregramento da relação com o tempo é mais um fator dessa claridade imaginária a ofuscar a dificuldade do homem de se defrontar com seus limites e incapacidade de soluções de efeitos extraordinários, como lenitivo à sua dor e falta. Queremos deixar claro que não pontificamos para que a dor do homem como uma virtude da vida, nem que religiões, pesquisas científicas e psicofármacos devam ser ignorados. Entretanto, não procurar a gênese dos vários sintomas da chamada síndrome do pânico é desprezar o sujeito e o seu desenvolvimento psíquico. Angústia sinal e angústia sintoma constituem dois polos impossíveis de ser neutralizados. Entre eles se deslocam e se produzem a direção e o sentido do ser humano, num constante movimento de busca de seu equilíbrio e apaziguamento. Keywords Anxiety; panic syndrome. Abstract The purpose of this text is to question the culture of ilusion and how it trys to cover the structural failure. The author searches the origin of the word, defining anxiety from Freud’s work in a cronologic way, passing by many contemporary authors that have written about psychical structure and the possible way out for anxiety. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.45-50 – Novembro. 2009 49 Síndrome do pânico: angústia avassaladora? Quadro nosológico? Referências BÉNASSY, M. Le Moi et ses mécanismes de défense – Étude théorique. In: La Théorie Psychanalytique. 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O método utilizado foi revisão sistemática de literatura, tendo como banco de dados a Revista Estudos de Psicanálise, publicação oficial do CBP, indexada no Indexpsi Periódicos, Biblioteca Virtual em Saúde –Psicologia (BVS- Psi). A seleção dos artigos foi feita através de doze palavras-chave: análise terminável/interminável, cura, destituição subjetiva, direção da cura, desenlace, efeitos terapêuticos, esperança de cura, fim de análise, final de análise, finalidade da psicanálise, saída e travessia da fantasia. Encontraram-se vinte e cinco artigos, dos quais sete se repetiam entre os descritores; um, após leitura do resumo, não tratava do assunto em questão; restaram, então, dezessete. Como resultados, encontrou-se que os autores questionam se há um final de análise, a eficácia da psicanálise, falam sobre os destinos da pulsão, sobre o rochedo da castração e a travessia do fantasma, a ética do desejo, o passe e as demandas de felicidade. Uma análise não deve ser forçada até muito longe. Quando o analisando pensa que está feliz na vida, é o bastante. Lacan INTRODUÇÃO Freud, no final dos Estudos sobre a Histeria (1893-1895), diz que o objetivo da Psicanálise, promovendo a suspensão do sintoma, é transformar o sofrimento histérico em infelicidade comum. Sabe-se que a medida da eficácia terapêutica é o efeito da linguagem sobre o gozo sexual do sintoma e a constituição de um saber sobre o sujeito. Lacan, citado por Nasio (1987), em contrapartida, nos disse que o sintoma significa essencialmente o retorno da verdade na falha do saber. Verdade de que o sujeito inquestionavelmente nada quer saber. Só quando o sintoma fracassa, o sujeito percebe, através do seu desamparo e desconhecimento, que nada lhe resta senão a possibilidade de dirigir-se ao saber, que equivale a procurar uma resposta ao enigma deste sintoma que aí é capturado pela transferência. Trabalho produzido na disciplina Metodologia da Investigação do Curso de Doutorado em Ciências da Saúde, sob a coordenação da Profa. Dra. Maria Jésia Vieira. 2 Presidente do Círculo Brasileiro de Psicanálise no biênio 2008-2010 e editora da Revista Estudos de Psicanálise para o mesmo período. Presidente da Academia Sergipana de Medicina. Fundadora e presidente do Círculo Psicanalítico de Sergipe. Doutoranda e Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Sergipe. Professora do Departamento de Medicina da Universidade Federal de Sergipe. 3 Psicanalista do Círculo Psicanalítico de Sergipe e membro da diretoria do Círculo Brasileiro de Psicanálise no biênio 2008-2010. Mestre em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Sergipe. 4 Enfermeira. Professora doutora do Núcleo de Pós-Graduação de Medicina da Universidade Federal de Sergipe. 1 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 51 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura A Psicanálise serve, portanto, para quem deseja confrontar-se com a sua verdade, questionando o sintoma, trocando o gozo pelo saber, numa articulação entre o saber e a verdade, na medida mesmo em que o sintoma analítico, como enigma, se dirige ao sujeito suposto saber, de quem se espera receber significações. Considera-se também que a psicanálise é uma práxis regida pela ética do inconsciente e pelo compromisso que se estabelece entre o sujeito e o seu desejo, permitindo o acesso a uma verdade sempre escondida no enigma do sintoma. Perante essa riqueza e profundidade epistemológica das ideias de Freud e dos seus seguidores, como Lacan, em especial, propõe-se uma revisão sistemática da literatura com o objetivo de identificar as ideias dos psicanalistas do Círculo Brasileiro de Psicanálise sobre o tema final de análise. METODOLOGIA Trata-se de uma revisão sistemática da literatura, ou seja, um estudo descritivo, bibliográfico, documental. A metodologia de revisão sistemática pode ser encontrada nas publicações Cochrane Handbook e no CRD Report produzido pela NHS Centre for Reviews and Dissemination (KHAN et al., 2000; CLARKE; OXMAN, 2000) . A realização desta revisão iniciou-se com a formulação de uma pergunta que definiu qual material seria usado pelo presente artigo e onde localizá-lo. O levantamento de dados considerou apenas a publicação oficial do Círculo Brasileiro de Psicanálise, Revista Estudos de Psicanálise, indexada no IndexPsi Periódicos, Biblioteca Virtual em Saúde – Psicologia (BVS-Psi), único banco de dados relevante para nossos objetivos que consistiam em descobrir como pensavam os psicanalistas dessa instituição sobre o final de um processo psicanalítico. A avaliação crítica permitiu determinar quais estudos iriam ser utilizados 52 na revisão, utilizando, para tal, doze descritores: análise terminável/interminável; cura; destituição subjetiva; direção da cura, desenlace, efeitos terapêuticos, esperança de cura; fim de análise, final de análise; finalidade da psicanálise; saída e travessia da fantasia (Quadro 01). O periódico analisado teve seu primeiro número publicado em 1969 em Belo Horizonte, e o último número é este de outubro de 2009, que não traz, além deste trabalho, nenhum artigo sobre o tema. Foram localizados, portanto, 25 textos, quando considerado separadamente cada um dos descritores, entretanto, em sete deles havia mais de um dos descritores selecionados, tendo, portanto, sido considerados, para efeito da revisão, uma única vez. Encontramos em quarenta anos de publicação da revista, dezoito artigos que contemplam os descritores acima citados. De posse dos dezoitos estudos identificados, procedeu-se à leitura dos títulos e, em seguida, à leitura dos resumos (quando havia) para que houvesse a garantia de que se tratava de textos objeto deste estudo. Excluiu-se o texto de 1969, localizado inicialmente com a palavra chave cura, mas cujo título revelava tratar-se de um artigo sobre psicoterapia de grupo, fugindo do escopo aqui proposto. Restaram, assim, dezessete artigos para serem analisados. Por se tratar de revisão sistemática da literatura produzida no veículo e tempo explicitados, os autores das fontes originais são citados como fontes secundárias, uma vez que a base de construção do texto é o conjunto dos artigos selecionados. RESULTADOS E DISCUSSÃO Se forem consideradas as datas de publicação como fio condutor na evolução do pensamento dos psicanalistas do Círculo Brasileiro de Psicanálise, percebe-se não haver essa configuração, pois usam como referências – 260, no total – quase sempre, os mesmos autores, quais sejam os principais Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura Análise terminável / interminável 01 01 01 Total de artigos 2006 2004 2003 1999 1997 01* Cura Destituição subjetiva Direção da cura Desenlace Efeitos terapêuticos Esperança de cura Fim de análise Final de análise 1995 1994 1993 1992 1990 1989 DESCRITORES 1971 Ano de publicação 01 01 01 01 06 01 01 01 01 01 01 01 01 09 01* 01 01* 01 01* 01 01 01 01 01* 01 02 01 Finalidade da Psicanálise Saída 01* 01 Travessia do fantasma 01* 01 Total de artigos / ano 01 01 01 01 03 02 01 01 02 02 01 01 25** Quadro 1 – Distribuição do total dos artigos identificados por descritores e por ano de publicação Fonte: Revista Estudos de psicanálise (1971 / 2006) * Artigos nos quais constava mais de um descritor, e que, portanto, foram considerados uma única vez para efeito da revisão. ** Dos 25 artigos anteriormente identificados, foram considerados dezessete para a revisão sistemática da literatura. responsáveis pelas obras viscerais fundantes da Psicanálise, a começar por Freud, citado 62 vezes, e os autores pós-freudianos como Ferenczi (cinco vezes), Melanie Klein (três vezes), Winnicott (quatro vezes), Bion (três vezes) e Lacan (27 vezes). Os autores também se aproximam dos pós-lacanianos como Colette Soller (quatro vezes), Juan David Nasio (três vezes), Jacques Alain Miller (sete vezes) e Gerard Pommier (quatro vezes). Também são citados com destaque Kemper (três vezes) e Joel Birman (seis vezes). Entre os autores mais citados, as obras que mais vezes foram usadas como referência nos textos estudados constam do quadro 2. Para analisar os dados obtidos através dos fichamentos dos dezessete artigos consultados, utilizou-se a técnica de análise de conteúdo na modalidade categorial (BARDIN, 2006) e elen- caram-se algumas categorias que se repetiam entre os autores: o que é um final de análise e se há um final; o nó do sintoma e o destino pulsional; o rochedo da castração e a travessia do fantasma; a transferência, o amor de transferência e a ética do desejo; a criação, o cômico e a arte no final de uma análise; eficácia da psicanálise; pacientes graves; o passe e a demanda da felicidade. Há um final de análise? Araújo (1995) questiona se há um final de análise e como se dá isso, aventando a questão da análise pessoal do terapeuta como viés para uma aguçada percepção do final de análise do seu cliente. Lembra que a capacidade de amar, assim como a de trabalhar, são os critérios freudianos Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 53 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura AUTOR BION FERENCZI FREUD KLEIN LACAN POMMIER SOLER TÍTULO DO ARTIGO Atenção e interpretação – uma aproximação científica à compreensão interna na psicanálise e nos grupos (1995) O problema do fim da análise (1927) Análise Terminável e Interminável (1937) Inveja e gratidão (1946-1960) Os quatros conceitos fundamentais da psicanálise (1963-1964) O desenlace de uma análise (1990) Finales de análisis (1988) Variáveis do fim da análise (1991) Quadro 2 – Obras mais citadas como referência nos textos estudados. Fonte: Revista Estudos de psicanálise (1971 / 2006). para o final de uma análise e traz a fala do fundador da Psicanálise, Freud, quando concluía a Conferência XXXI dizendo que a intenção da Psicanálise é “fortalecer o ego, ampliar seu campo de percepção e aumentar sua organização, de maneira que possa apropriar-se de novas partes do id. Onde era o id, ficará o ego” (p.99). Questiona, ainda, qual o momento e quais os determinantes do término de uma análise. Busca Freud, de 1937, para responder, mostrando a questão da castração e a aceitação dos limites como terapeuta e analisandos. Sobre a dificuldade de se escrever sobre o fim de análise, Siqueira (1997) remete a Freud em A Questão da Análise Leiga, de 1926. Ele acreditava, naquele momento, que o objetivo dessa deveria ser o fortalecimento do ego, destacando a importância do estabelecimento dos processos adaptativos, traduzidos na capacidade de trabalhar e amar. Para Ferenczi (1932 citado por ARAÚJO, 1995), existe um final de análise desde que o analista tenha competência e paciência para finalizá-la; último privilegia a questão da fantasia e a sua necessária distinção da realidade e a importância de o analisando conseguir fazer associações realmente livres. Em O Problema do Fim da Análise, Ferenczi, em 1932, argumenta que só é possível chegar ao final de uma análise quando os sintomas se esgotam, assim como todas as formações fantasmáticas (apud SIQUEI54 RA, 1997). Chagas (1992) também traz as ideias de Ferenczi de 1927 para discutir que o sucesso de uma análise acontece quando se vence a compulsão à repetição graças a uma postura mais ativa do terapeuta e com a possibilidade de se dar um fim absoluto à angústia de castração. Suas ideias se opõem às de Freud. Chagas (1992) discute que Freud, em resposta a Ferenczi, retoma ao tema dez anos depois em Análise terminável e interminável (1937) e com base em seus escritos afirma que “toda análise termina ao esbarrar no impasse da castração, e esse impasse é uma questão de estrutura, o que leva a supor o final de análise como uma renúncia do analista frente a esta impossibilidade, pois ‘não se pode curar o incurável ou mudar o imutável’” (p. 55). Essa mesma questão também é discutida por Siqueira (1997). Klein, citada por Siqueira (1997, p. 94), advoga que, no final de análise não há mais necessidade de idealização do analista por parte do analisando para “as suas boas relações com o objeto”. Para os Kleinianos, diz Araújo (1995), as neuroses infantis são uma defesa contra as ansiedades paranoides e depressivas subjacentes. Através da transferência com o terapeuta, o analisando pode lidar melhor com perdas, trabalhando com elementos como reparação, sublimação e criatividade. O trabalho analítico pode ser encerrado quando se criam condições para a gratidão e se estabelece um objeto bom. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura Winicott, em 1969 (apud SIQUEIRA, 1997, p. 95), compara o momento de fim de análise, denominado por ele de “estado de separação” ao estado de individuação – separação de Mahler, na qual verifica-se uma confrontação entre os sentimentos de luto, de perda, de separação “com a perda da onipotência e com os limites: do analisando, do analista, da análise”. Para Winnicott, em 1975, o papel do analista é permitir que o analisando o use como objeto transicional sem se deixar mobilizar pela destrutividade do seu paciente (ARAÚJO, 1995). Para Bion, em 1995, citado por Siqueira (1997, p.94), “quanto mais profunda é a investigação, mais claro fica que uma análise, por mais prolongada que ela seja, só pode ser o começo de uma busca”. Green, em 1990, escreve: ‘O resultado de uma análise não é concluir sobre a incoerência ou a inexistência da história, mas, antes, sobre a descoberta de uma outra coerência histórica que essa, na qual se acreditava antes da análise’ (apud SIQUEIRA, 1997, p.94-5). Lebovici, em 1980, acredita que a conclusão de uma análise se dá quando a neurose de transferência é suficientemente analisada e a neurose infantil reconstituída. (LEBOVICI, apud SIQUEIRA, 1997). O tema de final de análise continua, principalmente nas discussões que se estabelecem sobre morte e luto, conforme visto nos trabalhos de Hausson e Didier-Weill, de 1993, uma vez que a morte simbólica é vivenciada no final de análise (SIQUEIRA, 1997). Para os autores, “Se a transferência é a repetição, a derradeira repetição é justamente a separação. Isso faz parte das vicissitudes do término da análise” (SIQUEIRA, 1997, p.94). Calligaris (citado por SIQUEIRA, 1997) entende que o final de análise diz mais respeito ao analisando do que ao analista, na medida em que o primeiro, ao achar que resolveu seus sintomas, pode decidir sobre o momento do término, cabendo ao analista intervir, quando, de algum modo, esse término é considerado prematuro por ser desencadeado pela situação transferencial. Nasio, ainda conforme Siqueira (1997), entende a transferência como neurose de transferência. Assim, acredita que o final da análise pode ser compreendido ao ser comparado com o término de uma neurose, quando o analista deixa de ocupar para o analisando o lugar do Outro. Nesse momento, que não coincide com o da última sessão, a transferência, deixando de ser vivenciada como uma neurose, passa para outro registro necessário ao término da análise, constituindo-se em transferência simbólica. Nessa perspectiva, Nasio conclui que a análise é interminável, porém o tratamento tem um término. Assim, Nasio destaca dois modos de separação: o objetivo, que corresponde ao último dia do tratamento, e outro, que se dá no espaço intrapsíquico do analisando, de modo lento e gradual, muito após a última sessão. E mais: “O fim da análise ocorrerá quando a demanda de amor não mais se dirigir ao analista, mas para fora da análise” (p.94). Já para Corrêa (1989), o caminho da clínica em direção à cura, sugere uma experiência do real. A clínica revela um difícil processo em que a prevalência dos dados inconscientes estabelecem a forma sui generis de tratamento, no qual ficam alheios às queixas imediatas e à própria formulação do desejo de cura. Uma vez iniciado o tratamento, a questão clínica objetiva será deslocada para o estabelecimento da relação entre o psicanalista e analisando. Em seguida, o sintoma, razão inicial do encontro, será deixado de lado, por ficar reduzido à sua condição simbólica. A cura pretendida, razão maior do encontro entre aqueles sujeitos, ficará dissolvida no subjetivismo da relação que emerge e se estreita (CORRÊA, 1989). Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 55 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura O nó do sintoma e o destino pulsional No sintoma, o Eu está sempre contendo uma possibilidade de gozo, recalcando, controlando a pulsão, ou ainda o sintoma é a defesa do EU com o qual se identifica, contra uma invasão pulsional (DAYRELL, 2003). A partir do texto Inibição, sintoma e angústia (FREUD, 1926 apud DAYRELL, 2003), percebe-se que o Eu é invadido, na inibição, pela pulsão, e isso é o gozo. A inibição, portanto, é um efeito da erotização de uma função do Eu ao responder à falta dos pais, erotização narcísica de poder ser o falo materno ou o eu ideal. A inibição é uma defesa dessa situação erótica. Lacan (citado por DAYRELL, 2003) completa dizendo que a problemática analítica é a mesma da solução da alienação; que se espera que a análise produza a separação da falta materna e da positivação do objeto, ou ainda, a separação do narcisismo primário, da miragem fetichista, isto é, separação entre a falta imaginária no outro e a possibilidade de o sujeito se propor como fetiche que poderia vir a satisfazer e preencher essa falta. Isso é nada mais nada menos que a travessia do fantasma. A análise devolve o paciente à sua história, “reinserindo-o lá onde ele deveria desejar, no lugar ao qual ele pertence, a sua estrutura inconsciente” (DAYRELL,2003, p. 83). “O fim da análise aparece como uma ruptura desse encadeamento fantasmático que desnuda o não subjetivável e isso é uma descoberta que é equivalente a uma destituição do sujeito”, ou seja, a travessia do fantasma (MILLER, 1996, apud DAYRELL, 2003, p. 84). O sujeito, no final da análise, constrói o seu fantasma e pode experimentar o encontro com o real da pulsão e o desamparo em face das exigências pulsionais promovendo uma redistribuição do gozo (DAYRELL, 2003). Lacan, em 1992, a respeito dos destinos do gozo, diz que a elaboração é o trabalho simbólico sobre o real do gozo que não impede 56 ... a repetição que é a mesma e ao mesmo tempo distinta daquela antes do encontro com o real pulsional. Essa repetição diferenciada sobre o fundo de uma antiga repetição perde virulência visto que, fundamentalmente, é uma repetição que não sustenta uma demanda. A demanda do Outro cessa (apud DAYRELL, 2003, p. 84). O inconsciente detém o sonho do gozo narcísico, sendo a travessia do fantasma fundamental – ser o falo imaginário materno, ou seja, ser o objeto que pode responder adequadamente à castração materna – uma característica do fim de análise (DAYRELL, 2003, p. 84). Vale a pena lembrar, ainda que pareça óbvio, que o sintoma em Psicanálise é mais do que um distúrbio, mas um mal-estar que se impõe, cobra e interpela em um ato involuntário que se repete sem que nenhum controle se tenha sobre ele, informando sobre fatos ignorados de uma história, dizendo o que não se sabia antes e o que muitas vezes não se quer saber (CORDEIRO, 2006). O paciente movido pelo sofrimento gerado pelo sintoma procura, na fala, uma explicação para isso e encontra um destinatário para o mesmo: o analista (CORDEIRO, 2006). Para que a díade funcione, o psicanalista precisa ocupar esse lugar do Outro do saber e ... quanto mais o paciente fala do seu sofrimento, mais aquele que escuta torna-se o Outro do seu sintoma, e o sintoma passa a incluir a presença do analista, sujeito suposto saber. De início, o analista é destinatário do sintoma, passando a ser posteriormente sua causa (CORDEIRO, 2006, p.68). Ao analista, segundo Cordeiro (2006) cabe aceitar esse lugar de amado que o paciente lhe atribui para que uma análise possa se desenvolver, sem, no entanto, esquecer da origem desse amor, que nada mais é do que uma expressão do sintoma ligado a fantasias inconscientes e renuncie ao gozo do amor que o analisando lhe oferece. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura Para Cordeiro (2006), o efeito terapêutico de uma análise está ligado diretamente à transferência que utiliza a linguagem como instrumento, reinstalando a capacidade de o sujeito se questionar e sair da sua certeza. Cabe assim, ao analista, reendereçar ao analisando os questionamentos dirigidos a ele, ao suposto saber, para que o sujeito possa confrontar-se com aquilo que o pôs em análise e encontre as suas próprias respostas e saídas para seus conflitos, uma vez que há uma impossibilidade de o Eu sustentar certezas inquestionáveis em uma abertura do Eu para além das certezas narcísicas. Na teoria freudiana, a pulsão é a energia e força fundamental do sujeito, e as suas características são a fonte, a pressão, o objeto e a finalidade, que irão determinar a sua natureza de ser essencialmente parcial, assim como as suas transformações e diferentes destinos (DAYRELL, 2003). Freud, em 1914, no artigo Sobre o narcisismo: uma introdução, tinha apresentado dois outros destinos da pulsão em relação à psicose: a introversão e as regressões libidinais narcísicas. Já Lacan, em 1985, ao destacar o caráter parcial da pulsão, seu fracasso e o inacabamento, realça que o objeto pulsional nunca está à altura da expectativa (referidos por DAYRELL, 2003). Freud (apud DAYRELL, 2003), em texto de 1915, Pulsões e suas vicissitudes, diz que esses destinos não são felizes e que são apenas cinco as formas com que a pulsão organiza o fracasso da satisfação, quais sejam: o recalcamento, a sublimação, a inversão em seu conteúdo, o retorno sobre a própria pessoa e a passagem da atividade para a passividade. Dayrell (2003) lança mão de um sonho de uma paciente para lembrar que a repetição denuncia o que há de mais radical na pulsão. O analista escuta os tropeços do discurso porque ali está um sujeito. O analisando não se reconhece nos seus tropeços, que aparentam ser um saber sem sujeito, mas, à medida que ele fala, vai surgindo um sujeito para essa formação. Féres (2003) faz uma análise do texto de Dayrell (2003) Pulsões, seus destinos e final de análise e grifa a diferença entre escrever e ouvir, a respeito de um fragmento clínico, fazendo sua inscrição no simbólico, inserido no texto da última autora. Propõe-se analisar a frase ética freudiana “Wo es War, soll Ich Werden” (Lá onde o Isso estava, Eu devo advir), presente nos matemas de final de análise e que foi traduzida, trabalhada e repetida exaustivamente por Lacan e que teve novas leituras ao longo de sua obra (FÉRES, 2003). Resgata os três momentos lógicos no conceito de pulsão em Freud (p.92): 1. Dualismo entre pulsões do eu ou de autopreservação e pulsões sexuais, até 1914. 2. Com o texto Sobre o narcisismo: uma introdução postula uma única energia, a Libido, circulando entre o EU e o objeto. 3. Volta ao dualismo entre pulsão de vida e pulsão de morte, a partir do texto Além do princípio do prazer. A unificação das duas pulsões é o que Lacan chama o gozo, que é a satisfação também com o desprazer, a dor e que corresponderia ao que Freud chamou de contradição interna da vida pulsional. Freud coloca que o que há de mais variável na pulsão é seu objeto; já Lacan, em contrapartida, diz que a verdadeira finalidade da pulsão é a satisfação, sendo a insatisfação seu objeto. A isso Lacan deu o nome de objeto “a”, que é a satisfação da pulsão concebida como objeto. Objeto que é um dejeto, um resto, o que sobrou da operação simbólica e que, para Lacan, estará sempre conectado com a castração (FÉRES, 2003). A proposta da Psicanálise chega como uma possibilidade de remanejar o destino pulsional dando a essa pulsão chances de escoamentos mais livres até ali impedidas pelo nó do sintoma (CORDEIRO, 2006). Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 57 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura Lacan dizia que o texto de 1937, Análise terminável e interminável, era o testamento de Freud e que foi ali que o fundador da Psicanálise expôs suas ideias sobre o desenlace do tratamento, destino da pulsão e suas vicissitudes. Para Freud, o destino da cura depende do destino da pulsão. Cordeiro (2006) lembra que é no eixo entre o eu e a pulsão que se articula a duração de uma análise e reafirma que no final há um resto que resiste, um pouco de sofrimento que insiste. Rochedo da castração e travessia do fantasma Cordeiro (2006) aborda a impossibilidade de sustentar a ilusão de uma cura total em Psicanálise e apresenta a perspectiva de que a análise não está necessariamente voltada para a cura, mas para uma abordagem do inconsciente através da transferência. Reforça a ideia de que a elaboração desses restos transferenciais entre analisando e psicanalista é responsável pela criatividade, saída possível da análise, apontando para o relançamento infinito da pulsão diante do rochedo da castração aliado ao conceito freudiano de 1937 de feminilidade. Freud, em 1937, quando traz o conceito de feminilidade no texto Análise terminável e interminável, o faz associado ao impasse do rochedo da castração com que se esbarra o sujeito no final da análise. Para Cordeiro (2006), à medida que o analisando elabora a rivalidade fálica com o seu analista, estaria postulando a feminilidade como constructo que sustenta essa incessante busca, uma obra sempre passível de aperfeiçoamento diante da elaboração dos restos de uma análise em uma eterna abertura com o novo e para aceitação das diferenças. Considerando a necessidade advogada por Freud de o analista retomar seu processo analítico com intervalos de cinco anos, a tarefa de analisar-se torna-se interminável para um terapeuta. Um processo de 58 análise não se esgota, na medida em que há um ponto estrutural, sem retorno de onde a análise prossegue. Tanto o homem como a mulher mantêm a referência fálica, e o repúdio à feminilidade se constitui no obstáculo intransponível universal. Lacan se opõe a essa lógica e remete a um outro saber, onde o elemento que falta é justamente aquele que permite dizer algo sobre um elemento não mais universal, mas particular: “só se pode saber um a um, pois falta o elemento, em relação ao qual se pode fazer referência” (CHAGAS, 1992, p. 56). Segundo o mesmo autor, enquanto Freud diz que o fantasma subsiste à parte do resto do conteúdo de uma neurose, para Lacan, o final de análise é a travessia desse fantasma e Jacques Alain Miller afirma que isso não significa que o sujeito não o tenha mais, pois o fantasma é inacessível na sua dimensão real, com significação de verdade, pois é nele que o sujeito tem, ao fazer uma articulação simbólica, uma resposta ao desejo do Outro, por uma falta no campo do significante do Outro, e que leva a uma estrutura do inconsciente. Daí os axiomas centrais do pensamento lacaniano: não existe metalinguagem, nada é todo, nenhuma linguagem esgota a totalidade do ser. “A satisfação buscada não coincide com a satisfação obtida, a representação consciente não coincide com a representação inconsciente, a palavra não coincide com a coisa” (p. 57). É com essa estrutura de inadequação e falta que o analista tem que lidar. O saber que o fantasma garante é o saber fálico, no qual o sujeito também se garante a partir de referentes (CHAGAS, 1992). No fim de uma análise, o sujeito terá que se haver com o real, com o impossível de dizer, ou seja, confrontar-se com a impossibilidade que o recalque primário instaura, que é aquilo que nunca teve ou terá acesso ao simbólico (DAYRELL,2003). Porto (1994) descreve o processo de análise de uma criança de nove anos. De início, esclarece que a Psicanálise é uma só, Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura estando interessada no sujeito dividido estruturalmente, de modo que o analista deve dirigir a cura nesse sentido, isto é, o da estrutura. No discorrer do seu relato, mostra como esse objetivo é perseguido durante a experiência analítica. Sobre o final da análise, apresenta o momento em que aparece o furo no suposto saber do analista, o momento em que este cai e como o pequeno paciente se dispõe a caminhar sozinho. Mostra como ele suporta a castração, a sua dor, o seu buraco, valendo-se de algo da ordem do pai. A autora finaliza dizendo que “trabalha-se com os restos. Não se pode jogar fora. Algumas coisas podem se enterrar, recalcar mesmo, mas justamente por isso algo sobra e retorna e repete de ‘novo’, ‘ainda’”( p.62). A travessia do fantasma não é a cura, mas o momento especial do se haver com o gozo. Para que haja sintoma, é necessário um conflito prévio e uma erotização desse sintoma ligada a uma posição masoquista do Eu, ou seja, há um gozo relacionado a esse sintoma. O que fixa esse sintoma tem a ver com a função do supereu, numa dimensão do pai, por um lado e por outro, um supereu materno que empurra o sujeito para o gozo, numa dimensão narcísica de entrega como objeto à falta materna (DAYRELL,2003). Dayrell (2003) conclui que o fim de uma análise é a liquidação de ambos os supereus e com a consequente deserotização do sintoma, pois só quando o sintoma é deserotizado é que se pode fazer algo por ele. A autora lembra que a proposição não é dissolver o sintoma, mas fazer a passagem do sintoma para sinthoma – aquilo que não cai, mas modifica-se, transforma-se para que continue sendo possível o gozo e o desejo. A teoria lacaniana acerca de final de análise vai além do rochedo da castração proposto por Freud. Féres (2003, p. 92-93) aponta as três posições postuladas por Lacan sobre o final de análise, seguindo o movimento dos três registros, imaginário, simbólico e real (ISR): 1. Tudo é significante e o final de análise dissolve o sintoma. Nesse momento privilegia o aspecto significante do sintoma, reduzindo-o ao simbólico, dizendo que seria toda significação, verdade. O final da análise seria o desaparecimento do sintoma, surgindo a fala verdadeira. 2. Nem tudo é significante, algo fica fora do sintoma, o indizível. Construção do objeto “a”. Há um deslocamento do simbólico para o real, nem tudo é significante, em toda operação fica um resto que jamais será dito. O ponto de partida seria o sintoma, há a travessia da fantasia e o sujeito não tem mais vontade, no seu final, de confirmar a opção, isto é, o resto que como determinante de sua divisão, o faz decair de sua fantasia e o destitui como sujeito. Travessia do fantasma e destituição subjetiva. 3. Saber haver-se com seu Sinthoma. No final de análise, após o atravessamento do fantasma, haverá uma mudança da posição do sujeito perante o gozo e sua redistribuição com um trabalho que vai além do fantasma, e o cliente já não mais demanda principalmente porque também já não existe mais esse Outro que foi destituído (FÉRES, 2003). A tarefa do analista tem um fim, mas o que não tem um fim é o desejo. Para comprovar sua tese, Moreira (1992, p.93) discorre sobre as articulações entre desejo e fantasia, a formação da estruturação do desejo inicial que precisa de um outro desejante, desejo narcísico, fundado na falta. A esse desejo a autora nomeia de desejo caroneiro. O outro desejo, que denomina desejo pós-edípico, fundado no Édipo, se mostra como a porta “[...] pela qual o sujeito caminha ao encontro da cultura, do seu destino como homem, baseado na identificação estruturante com a imagem do pai, portador da lei e agente da castração”. Para a autora, é a conquista do desejo pós-edípico que irá apontar para o Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 59 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura final da tarefa do analista (MOREIRA, 1992). Permanecer no desejo caroneiro “é cair no Pântano da Tristeza, é deixar o nada tomar conta, é destruir o Reino da Fantasia, é entrar no espelho, ser engolido por ele e desaparecer...”(MOREIRA, 1992, p. 94). Acrescenta que é preciso acreditar na estória de cada cliente e na magia, para que esses “encontrem um lugar, onde desejar é possível... e a história de cada um será uma História sem Fim...” (MOREIRA, 1992, p.94-5). Transferência, amor de transferência e ética do desejo Se, para Lacan, em dado momento, o término da análise remete ao passe, em outro, remete-o à idéia de felicidade, esclarecendo que essa é da ordem do desejo e, portanto, da ética da Psicanálise (LACAN, 1960, apud GORENDER, 1999). Furtado (1994) traz o filme inglês de 1986, do diretor Stephen Frears, Prick up your ears, aqui traduzido como O amor não tem sexo, no qual se revela a evolução do encontro amoroso ao ódio até o clímax do sexo na sua violência de assassinato e suicídio final. Dentro desse contexto, a autora trabalha, entre outros aspectos, a questão do amor de transferência na direção da cura e os impasses de sua operação naquilo que ela resiste à interpretação. A direção da cura exige precisão acerca do amor e seu objeto, que não pode confundirse com a dimensão do objeto da pulsão, nem com o objeto em relação ao desejo, se se considera que a cura pelo amor foi sempre, para Freud, uma via fechada à psicanálise (FURTADO, 1994, p.7). Freud (apud FURTADO, 1994) observa que quando o analisando silencia é porque ele pensa no analista que lhe obstrui o inconsciente, e isso é amor de transferência, 60 que aparece como resistência à cura. Resistência, segundo Furtado (1994), é entendida como aquilo que é impossível dizer, núcleo esvaziado de representações que o designem e que, se não há palavras, pode-se dizer que é justamente aí onde está a pulsão. Quando Furtado (1994, p.8) toma emprestado do filme a frase “O amor não tem sexo” e com Lacan diz ‘quando se ama, não se trata de sexo’ pretende apontar dois campos distintos, o amor e o sexo, e dizer que no conceito de objeto, que ele é assexuado e que não há representação possível, no inconsciente, da relação sexual. Furtado (1994) conclui que o amor sempre diz não à sexualidade, enquanto determinada pelo sentido sexual inconsciente e seguindo Freud, que supondo a resolução e liquidação da resistência, tenta reduzir o amor de transferência, pela interpretação, à sua expressão do desejo sexual recalcado e com ele sintetiza que o amor não é redutível à interpretação. Lacan, em 1985, diz que a zona da experiência da análise, em um trocadilho que remete ao amor e à ação, é da enamoração e que o gozo é um limite, pois ele só se evoca a partir de um semblante e ainda que, mesmo o amor se dirige à aparência de ser, agarrada ao objeto “a” que causa o desejo, pela interposição da fantasia (apud FURTADO, 1994). “O analista não é de modo algum o semblante. Pode ser o que ocasionalmente ocupa o lugar do semblante e vem fazer reinar o objeto ‘a’”(LACAN, 1985, apud FURTADO, 1994, p.11). A análise se constitui interminável se o analista se imbui do papel daquele que ocupa o lugar da verdade e a questão da análise só se resolve se se considerar, em um mais além do amor e das identificações, a face real do objeto, no fracasso de “a” como sustentação dessa aparência de ser, quando, desse lugar, o analista está melhor posicionado para interrogar a verdade sem distanciar-se de que sempre se estará privados do todo da verdade (FURTADO, 1994). Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura Freud jamais negou, nem subtraiu à crítica, o fenômeno da sugestão, os obstáculos oferecidos à psicanálise pelo amor de transferência, o risco do brilho narcísico da idealização e de mágica das palavras, nem a tentação da ambição terapêutica como o desejo de curar (FURTADO, 1993, p. 39). Pommier, apud Furtado (1993, p.41), em O desenlace de uma análise, em 1990, diz: Uma psicanálise leva aquele que se entrega a ela até um ponto em que pode reconhecer um impasse essencial de seu desejo. Este impasse permanece irredutível; é ele que condicionava a captura do sintoma e é ainda dele que se trata no momento de concluir, quando nada mais no passado, do presente ou do futuro pode servir de álibi e quando o analisando reconhece em suas desordens o que sempre o assegurou de sua existência. Discernir este impasse por outras vias que as do sintoma, defrontar-se com o paradoxo do desejo, depende de uma ética particular, porque todos os atos que ela comanda permanecem pela contradição que a revela. Rodrigues (1990), em Amor de Transferência, escreve que Freud explicitou um fundamento ético, quando diz que o trabalho, mais do que o amor, deve ser estimado pelo analista. Ao não responder às demandas de amor do paciente, permite que as portas do seu desejo se abram. Isso só é possível por meio da abstinência, que, não sendo absoluta, exige um manejo na transferência. Para o autor, “o trabalho analítico propicia o advir do sujeito, lá onde o isso era. Wo es war, soll ich werden” (RODRIGUES, 1990, p. 44). Lacan, em 1989, afirmou que o suicídio é o único ato bem sucedido uma vez que ele vem adequar o vazio do Outro ao seu ser, ou seja, no instante em que aquele que age se iguala à falta, ele tem sucesso. Furtado (1993) vai além e diz que há outros atos bem sucedidos, e em que as suas consequências transcenderiam o sujeito e permaneceriam nos efeitos de sua obra, quais sejam: a sublimação, a arte e o ato analítico. É comum comparar o final de análise e a sua finalidade com a sublimação, que é um dos destinos que Freud confere à pulsão. O final de análise diz respeito à construção da fantasia fundamental. Pode-se dizer também que um final de análise conduz à renúncia do gozo (FURTADO, 1993). Por outro lado, também, implica uma operação ética em que, ao término de uma análise, um analista não poderá desejar imortalizar-se pelas vias da idealização, da identificação, ou do reconhecimento. Ter sucesso como analista é oferecer-se ao sacrifício de desaparecer na e da sua obra, a incapacidade de assiná-la, diferentemente do que ainda seria possível aos artistas, com relação à sua criação (FURTADO, 1993). “O psicanalista não pode ter a pretensão da cura ou de ser eternamente o Outro do analisando” (ARAÚJO, 1995, p.104) e tem como propósito ajudar seu paciente a aceitar a castração, eliminar a neurose de transferência e trazer o apaziguamento das pulsões. A autora resgata Freud, de 1937, para lembrar que o analista retoma a sua análise a cada novo processo terapêutico que venha a testemunhar, única possibilidade de levar seus clientes a um final de análise (ARAÚJO, 1995). Para Chagas (1992) final de análise não é nem identificação com o analista, nem resolução de sintomas, nem tampouco resolução de conflitos através de referentes garantidores de uma posterior normalidade psíquica. No final de uma análise, o analisando se sabe pura falta (CARDOSO, 2004). Através da transferência, o analista será descoberto como ilusão, por não corresponder aos anseios reais do analisando. “Escuta e resposta do analista possibilitarão ao paciente instituir um fantasma, construído segundo suas necessidades” (CORRÊA, 1989, p. 41). Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 61 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura Corrêa (1989) retoma Caruso, que por muitas vezes denunciou a formulação de uma ideologia psicanalítica e a tentativa de criar uma utopia como meta para o processo psicanalítico e revelou que o trabalho de depuração do homem resultava em uma nova alienação ainda mais perigosa que a própria neurose. “Desmitificada a pureza absoluta do inconsciente analisado ou da neutralidade ética desejável, o analista, além de suas questões inconscientes, traz para o seu trabalho os vícios determinados por um conhecimento teórico que é sempre parcial” e mais, “ a parcialização do conhecimento psicanalítico está expressa nas divergências teóricas, que por sua vez se tornam responsáveis pelo desejo do psicanalista” (CORRÊA, 1989, p. 44). Uma análise termina para um psicanalista quando a sua capacidade de escutar aquele cliente esgotou-se e quando o cliente, desmitificando o saber do outro sobre si mesmo, entende que não tem mais o que ouvir tampouco, ou ainda, que ele aprendeu a ouvir seu interior sem precisar de um retransmissor (CORRÊA, 1989) “O ato analítico deve implicar o cliente nas próprias coisas de suas queixas” (MILLER apud CORRÊA, 1989, p.45). O ato analítico precisa ser o reintegrador do sujeito. Lacan ensina que é um equívoco pensar, em análise, que o inconsciente é responsável por aquilo que faz sofrer, pois, assim sendo, haveria destruição da responsabilidade do sujeito por si mesmo e pelo que lhe acontece. Outrossim, a autorresponsabilidade implica uma recusa de compromissos e ideologias aceitas ou alienações praticadas com a constatação da impossibilidade final de abarcar a totalidade do existir (apud CORRÊA, 1989). No final de uma análise, espera-se que o sujeito do desejo advenha, incurável e destituído, onde não é a posse do objeto o que conta, mas a própria realidade do desejo (CHAGAS, 1992). É pela via do discurso que o desejo advém e é, no dizer de Lacan, que a experiên62 cia analítica é uma experiência de discurso, lembrando que, quando se fala em discurso, não se pode ignorar o papel das relações e posições dos elementos que o compõem, em função dos quais um sentido se produz (SIQUEIRA; FONTE, 1993). Uma leitura comporta infinitas possibilidades de interpretação, e a clínica lacaniana privilegia unicamente o texto produzido pelo sujeito pelo viés da insistência do significante (SIQUEIRA; FONTE, 1993). Lacan, em um texto de 1954, As relações de objeto e estruturas freudianas, apontava desvios na direção da cura e em texto de 1958, A direção da cura e os princípios do seu poder, traz a afirmação de que sob o nome da psicanálise muita coisa é feita em uma mera reeducação emocional do paciente (SIQUEIRA; FONTE, 1993). Ainda conforme as autoras, Lacan em Os escritos, de 1985, comunica os princípios que definem a direção da cura e a questão da ética, que integra as conquistas freudianas tendo como ápice o estatuto do desejo: “não se põe nenhum obstáculo à confissão do desejo, é para isso, para onde o sujeito é dirigido e inclusive canalizado” (p.21). E Lacan continua dizendo, conforme citam as mesmas autoras que “o desejo, se Freud disse a verdade do inconsciente, não se capta senão na interpretação”, pois ele é a “metonímia da falta a ser” (SIQUEIRA; FONTE, 1993, p.21-22). O desejo é o âmago do empreendimento analítico, perpassando-o ao longo do seu trajeto, uma vez que o trajeto é o espaço que se tem a percorrer para se passar de um lugar a outro. Passagem da impotência/onipotência imaginária ao impossível do Real, condição de sujeito barrado (SIQUEIRA; FONTE, 1993, p.22). As autoras questionam qual é o discurso que possibilita o advento do desejo senão o discurso do analista que permite a colocação em cena do desejo e do sujeito Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura do inconsciente distanciando a psicanálise das práticas de reeducação emocional que se apresentam em nome da psicanálise (SIQUEIRA; FONTE, 1993). “O discurso do analista tem como agente não um objeto capaz de preencher a demanda, mas um objeto causa do desejo, objeto “a”, por que o desejo é sempre desejo de outra coisa”. Para Lacan, em 1985, o desejo, por mais transparente que seja diante da demanda, estará sempre mais além dela e mais aquém de uma nova demanda, uma vez que ele nada mais é senão a impossibilidade de uma palavra, que, ao tentar responder a uma demanda, revela mais uma vez a divisão do sujeito, que só tem este estatuto de sujeito enquanto fala (SIQUEIRA; FONTE, 1993, p.22). É a posição de semblante do analista no discurso que assegura a primazia do desejo na clínica. O analista, fazendo-se causa do desejo para o analisando, desencadeia o movimento de investimento do sujeito suposto saber, causa estrutural da transferência, o que eleva seu dizer à condição de interpretação, posição do saber no lugar da verdade (SIQUEIRA; FONTE, 1993). Se a estrutura da verdade é o semidito e ela é perseguida na análise, eis aí a estrutura da palavra do analista, que é palavra enigmática que reenvia o analisante à citação colhida do seu dito como um dizer enigmático que intriga e o instiga a produzir significantes (SIQUEIRA; FONTE, 1993). O analista é um trabalhador que trabalha sem pretender ter a verdade do saber e nem tampouco o saber da verdade. Ele não se toma como medida do Outro. O analista, produto de sua própria análise, se sabe um sujeito advertido de sua cisão e que está radicalmente distante da ilusão de completude por estar implicado no Real (SIQUEIRA; FONTE, 1993). A direção da cura, a qual conduz sustentada pelo matema do Discurso do Analista, não é direção enquanto ato de dirigir exercendo autoridade, mas uma direção equivalente à rota apontada pelo dedo de São João Batista, de Leonardo da Vinci: o horizonte desabitado do ser – impossível do Real (SIQUEIRA; FONTE, 1993). O saber que aparece do lado do analista no lugar da verdade aparece como barrado. Isso significa que não há saber totalizante ou préconcebido do qual possa fazer uso. O único saber pré-adquirido, localizável, que pode levar para o espaço da análise é um savoirfaire produto de uma análise anterior, onde experimentou que se há algum elemento que pode ocupar o lugar da verdade, na análise é o significante. O saber analítico é um saber que se produz exclusivamente no ato, a partir da escuta de seu analisante. O analista semblante do objeto “a” produz em ato o relançamento do discurso (...). Seu saber é um saber executante, porque é incapaz de prever todos os efeitos possíveis de produzir, mas mesmo assim é responsável pelos efeitos que produz (SIQUEIRA; FONTE, 1993, p.22-23). Para Conrad Stein (apud CORDEIRO, 2006), no seu texto Fim de uma análise, finalidade da psicanálise, o sujeito, para chegar a bom termo em sua análise, talvez precise ser criativo, lançando mão da sublimação, um dos destinos da pulsão e fazer algo qualitativamente novo em sua vida, tornando-se artista e construtor do seu destino, aceitando a condição de desamparo fundamental. Essas ideias são ratificadas por Maria Rita Kehl (apud CORDEIRO, 2006, p. 70) em Sobre Ética e psicanálise: “o artista não se torna pleno de ser ao afirmar-se como autor de suas obras. Mas a função autor, como uma das funções do sujeito, segundo a definição de Foucault, intensifica a relação do artista com o Nome do Pai, que ele transforma em nome seu ao imprimi-lo junto à obra que nomeia seu desejo”. Final de análise: a criação, o cômico e a arte Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 63 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura A dimensão trágica tem a ver com o fracasso da relação do desejo com a ação diante da impossibilidade de se dizer tudo, em uma recusa de síntese e cuja saída, para Lacan, é a dimensão cômica: “o herói cômico tropeça, cai no melaço, mas o sujeitinho continua vivo “ (LACAN, 1960, apud GORENDER, 1999, p. 53). Corrêa (1999) aponta os diferentes caminhos da criação estudando artistas como Van Gogh, Bosch, Dali, Picasso, Kafka e ainda recorre a Lacan, que fala sobre suplência na obra literária de Joyce, com o objetivo de confrontar questões importantes entre criação artística e a saúde mental e de trazer a questão do final de análise e a direção da cura como outra forma de criação. Tomemos o músico instrumentista que tem, na posição de intérprete, uma relação com um duplo Outro. De um lado, necessita atender ao compositor e, de outro, ao ouvinte. Basculando entre as duas posições deve fazer uma escolha de fidelidade. Ou se rende ao espírito da partitura ou ao prazer da plateia. A sujeição é insustentável. Sabemos que este sujeito pode ser tomado como metonímia do desejo e, como tal, reviver na sua criação os paradoxos dos encontros com o desejo do Outro. Mas como intermediário não pode abdicar de si, do ser sujeito da recriação interpretativa. É por esta via que surge a improvisação, na qual o intérprete se liberta em parte de um outro (autor) que apenas fornece um tema para sua recriação espontânea. Esta experiência vai levá-lo ao desejo de libertar-se do olho de seu ouvinte. Neste caso rompe-se a suplência e abre-se um espaço para um desempenho supostamente autônomo (CORRÊA, 1999, p.108-109). Freud e a eficácia da psicanálise Na Conferência XXXIV (1933-1932), Freud se revela mais pessimista acerca da eficácia da Psicanálise e do poder de cura do 64 método por ele criado, recomendando o retorno à análise, alguns anos depois (ARAÚJO, 1995). Alguns anos depois, no texto Análise terminável e interminável, de 1937, segundo James Strachey, seu editor, Freud novamente se mantém pessimista quanto à eficácia da Psicanálise, por tratar das limitações do processo. Soller, em 1995, citada por Gorender (1999), lembra que, quando Freud o escreveu, estava velho, doente e sabia que ia morrer; e ali, naquele texto testamento, ele alertou aos seus discípulos, para as expectativas e verdadeiras perspectivas dos resultados de um tratamento psicanalítico. No início, os analistas tinham perspectivas apenas da supressão dos sintomas e, portanto, estavam mais próximos do ideal de cura e à medida que se elasteceu a compreensão sobre o inconsciente, a cura não mais se viabiliza como algo possível. O final de análise saiu de um modelo romântico e, portanto, é pensado em termos de aptidão do sujeito de levar uma vida mais satisfatória depois de alguns anos de análise sem garantias quanto ao reaparecimento de novos sintomas (GORENDER, 1999). Para Corrêa (1996 apud GORENDER, 1999), desde a colocação de Freud, terminável ou interminável, passando pela de Lacan, finita ou infinita, as análises, por mais que se estendam, jamais levarão à morte um dos participantes da trama, que é a transferência. Corrêa escreve que Freud, ao romper com o modelo médico e com a norma, impede que se fale de cura. Não se pode dar nenhuma garantia de que o sintoma desapareceu por completo ou que novos apareçam. O término admissível se faz pela via da autoavaliação do cliente quanto ao reconhecimento de seu inconsciente e do valor da análise, e isso implica em “algum tipo de solução para a relação transferencial: nem Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura o idealizado nem o rebotalho (CORRÊA, 1996, apud GORENDER, 1999). Para Freud, existem três variáveis importantes para levar uma análise a bom termo, quais sejam: a influência dos traumas; as alterações do ego e, como elemento principal, a força constitucional das pulsões, sabendo que a pulsão de morte e a luta com Eros é o que sustenta uma análise como interminável. Para Freud, “a missão da análise é garantir as melhores condições psicológicas possíveis para as funções do ego; com isso ela se desincumbiu de sua tarefa” (FREUD,1937 apud ARAÚJO, 1995, p.101). Freud, em 1937, ao falar de término de análise, talvez estivesse se referindo a que a análise didática, mais do que as análises ditas terapêuticas, era inacabada, advogando ao analista a necessidade de sucessivas reanálises (GORENDER, 1999). Gorender (1999), a despeito da evolução teórica da Psicanálise e de algumas idealizações feitas com a proposição do passe, interroga se seria possível fazer desaparecer a “expectativa de cura pela análise” e mais: “o que quer o analista do seu cliente? A essa pergunta responde com Leguil: “se a psicanálise “não propusesse um alívio, não haveria interesse algum em se fazer psicanálise” (LEGUIL, 1993, apud GORENDER, 1999). Pacientes graves e a psicanálise Gallego (1971) propõe algumas orientações quanto ao trabalho psicanalítico com pacientes gravemente enfermos. Considera que suas dificuldades de estabelecer relações com a realidade, de ter insights e fazer elaborações, exigem ações terapêuticas que vão além do trabalho meramente interpretativo. Para tanto, sustenta a necessidade de o paciente desenvolver uma “esperança de cura”, que o fará permanecer no tratamento, a despeito da frustração da situação atual. Ao entender a Psicanálise como método de tratamento, aponta a necessidade de avaliação correta dos fatores curativos implícitos na situação terapêutica (GALLEGO, 1971). Em seguida, desenvolve aspectos teóricos referentes ao narcisismo com base em Kohut (1969) e Grumberger (1957) para mostrar como esses pacientes se encontram aprisionados numa relação narcísica e de como, na clínica, sua relação com a realidade é precária e deformada, como resultado de contínua identificação projetiva (GALLEGO, 1971). Traz, para sedimentar sua proposta, estudo de Alexander com o qual concorda ao afirmar que “a recuperação das lembranças não é a causa, senão a consequência da análise” (ALEXANDER apud GALLEGO, 1971, p.94). De May, em 1967, segundo Gallego (1971), incorpora a noção de poder, no sentido de que só quando o paciente pode conceber o “Eu-posso”, ele pode experimentar o “Eu-quero” e o “Eu-sou” (p. 94-95). Gallego (1971) ainda esclarece que a passagem de uma situação de narcisismo para uma relação de objeto se opera nos seguintes níveis: 1. Bom investimento pré-perceptivo (união anaclítica satisfatória com a mãe) 2. Segurança de não abandono (suficiente tolerância à frustração) 3. Possibilidade de espera (sentimento de “esperança de cura”) 4. Percepção da realidade e aprendizagem (experiência corretora das vivências internas (p. 96). Em seguida, apresenta os fatores que, em sua opinião, podem influenciar terapeuticamente nessa sucessão, “para conseguir que o paciente abandone o mundo da fantasia, e se mantenha em contato com a experiência retificadora da realidade”. Isso só é Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 65 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura possível, acrescenta, se o paciente conseguir desenvolver uma possibilidade de espera, ou seja, de tolerância em relação ao estado atual de frustração, o que só será possível se coexistir “com a esperança de que essa demora tem um limite e uma compensação” (GALLEGO, 1971, p. 96). Conclui que a “esperança de cura” resulta de uma aproximação entre analista e paciente, desenvolvida na relação terapêutica. Tal proximidade irá permitir que o paciente se sinta seguro para estabelecer uma relação pessoal e fazer identificações adequadas, de modo que seja capaz de esperar e de ter uma experiência própria. Para que essa situação seja alcançada, alguns fatores precisam estar presentes no processo terapêutico: 1. Resolução no terapeuta de sua própria situação narcisista, o que fará com que não tema estabelecer a distância adequada às necessidades de dependência do paciente. Considera importante, também, que o terapeuta tenha alcançado o estágio genital do desenvolvimento; 2. Semelhança de personalidade entre o terapeuta e o paciente, que facilitará os processos de identificação e não simplesmente uma imitação; 3. O próprio processo de análise, que envolve não só o conhecimento das fantasias inconscientes, mas a capacidade de empatia, assim como o grau de esperança de cura que o terapeuta abriga a respeito do seu paciente. A esperança de cura nutrida pelo terapeuta de alguma forma é comunicada ao paciente (GALLEGO, 1971). Finaliza afirmando que “se o terapeuta é capaz de sentir sua identidade sem medo, o paciente poderá correr o risco de desejá66 la e, em último caso, de tê-la (GALLEGO, 1971, p. 103). Um analista ao final de uma análise e o passe Cardoso (2004) aborda o tema da transmissão da Psicanálise e a formação do psicanalista. Trata da questão do passe e da lógica do surgimento de um analista ao final de uma análise, a partir do texto de Lacan Proposição de 9 de outubro de 1967. Lacan se refere ao final de análise como a travessia da fantasia e a destituição subjetiva do sujeito suposto saber, ou seja, momento em que o analista não se encontra mais no lugar do Outro. A tese fundamental de Lacan é que o final de análise produz um analista (ARAÚJO, 1995). O final de análise é marcado por essa passagem de analisando a analista, uma vez que, para Lacan, em 1967, toda análise é didática. “O analista advindo desta passagem é a queda, o dejeto, mas não qualquer um. Daí ser somente o analista, não qualquer um, que se autoriza por si mesmo” (CARDOSO, 2004, p.96). Quanto aos candidatos a psicanalistas, Lacan trouxe, a princípio, na obra A ética da psicanálise, a proposta do passe que supõe uma liquidação da transferência e a obtenção do agalma. O dispositivo do passe levanta a questão de quem poderia ser o fiador desse desenlace, aventando duas possibilidades: a instituição poderia dar uma sustentação a esse sujeito, ou a ideia do impossível que é a cura. Mais adiante, ao se referir à ética da psicanálise, diz que a demanda de felicidade está comprometida com a questão do desejo e a dimensão trágica do sujeito (GORENDER, 1999). Sabe-se que a verdade é não toda, restando sempre algo a ser dito por não se poder dizer. É com esse indizível que se trabalha Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura no final de análise sob pena de transformála em interminável (CARDOSO, 2004). O final de análise e a demanda da felicidade Toda análise, no seu bojo, traz uma demanda de resgate de felicidade perdida em algum momento, como se o sujeito tivesse perdido o prazer nas atividades rotineiras mais simples, graças aos limites impostos pelo sintoma, que gera gozo e dor; e que ele conquiste ou reconquiste a autonomia para administrar a própria vida (CORDEIRO, 2006). Para Balint, apud Corrêa (1989), o término de uma análise está na superação daquilo que não se pode superar. Um final de análise surge “quando o paciente é capaz de sentir prazer, liberdade de realizar suas inclinações e de reaprender a se entregar ao amor, ao gozo, sem medo, inocentemente, como na sua tenra infância” (BALINT, 1932, apud ARAÚJO, 1995, p.103). Para Lacan, em 1975, na conferência feita em Yale, uma análise “não é para ser estendida indefinidamente. Quando o analisando acha que está feliz na vida, é o suficiente” (CHAGAS, 1992, p. 58). Corrêa (1989) teme que o psicanalista, ao compartilhar do devaneio sobre a mudança de vida ou a felicidade pretendida por alguns clientes que por sua vez passam a ser devotados à análise, favorece a que estes possam fazer do processo analítico um sintoma de uma nova doença crônica e incurável, alimentada por uma análise interminável. Terminar uma análise é um processo tão absurdo como começá-la, pois ela termina porque chegou ao fim e não por ter curado ou por ter o paciente atingido a tal felicidade. Para Corrêa (1989), portanto, chegar ao fim não significa concluir, mas apenas não dá mais para continuar. O fim da análise é uma consequência do amadurecimento das diversas etapas do processo da análise que levaram à construção no analisando de uma capacidade de suportar a frustração e a perda de uma ilusão transferencial (SIQUEIRA, 1997). E mais: “O tratamento analítico acaba quando o analisando tiver condições de estabelecer consigo uma análise sem fim, tornando-se sempre disponível ao surgimento de novos enigmas, que propiciarão novas indagações” (SIQUEIRA, 1997, p.97). Para a autora, talvez esse objetivo se constitua numa idealização, pois em uma análise, por mais bem sucedida que possa ter sido, esse nem sempre é alcançado. Para Chagas (1992), concordando com Lacan, uma análise tem seu ponto de basta e esse ponto é inadiável. No Seminário VII: a ética da psicanálise, de 1960, Lacan fala que, o que nos demandam é a felicidade, entretanto não se trata de uma felicidade sem sombras. “A felicidade com a qual o analista se compromete não está a serviço dos bens, sejam pessoais, profissionais, econômicos, sociais” mas a serviço da lei do desejo (CHAGAS, 1992, p. 59). CONSIDERAÇÕES FINAIS Depreende-se que todos os autores citados são unânimes nos principais conceitos abaixo enumerados acerca do final de análise: 1. A Psicanálise não faz falsas promessas, não visa à busca da felicidade, ainda que a felicidade seja aquilo que os analisandos demandam, mas que seria a obtenção de um impossível. Se a felicidade chega, se é que chega, ela vem por acréscimo. Esta, sem dúvida, é uma perspectiva ética, que permite ao sujeito uma escolha. 2. A ética psicanalítica surge no cerne da relação entre psicanalista e analisando. É no ato psicanalítico que o sujeito é questio- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 67 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura nado sobre o seu desejo e da sua responsabilidade acerca dos seus sintomas e do gozo ali contido, ou seja, acerca de sua posição subjetiva que traduz uma escolha, escolha inconsciente, uma eleição. Só confrontando o sujeito com sua eleição, o ato psicanalítico pode levá-lo a uma nova posição, uma retificação subjetiva. 3. É o sujeito suposto saber que permeia as possibilidades de resoluções do enigma do sintoma, posição imputada ao analista transferencialmente pelo analisando. Essa transferência é que cria uma promessa de cura e define os próprios critérios de analisabilidade e de resistências. Não se pode perder de vista que a transferência é uma incalculável fonte de resistência ao tratamento. 4. A destituição subjetiva vivida no término de sua própria análise é o que possibilita ao analista abrir mão de sua condição de sujeito no percurso analítico de seu analisando. A destituição subjetiva é o advir do sujeito que se confronta com a castração, com a falta-a-ser. 5. Para o analisando, a destituição subjetiva implica também desalojar o analista do lugar de sujeito suposto saber e o deixar reduzido à condição de resto do processo analítico, quando nenhum significante vem a representá-lo (des-ser do analista). 6. No final de análise, espera-se que o analisando saiba haver-se com seu sintoma, tal qual propôs Lacan a propósito do caráter irredutível da neurose. 7. Ao final de uma análise, subentende-se a destituição subjetiva e a travessia da fantasia correspondente, que a despeito da liberdade da escolha em relação ao gozo que ela favorece ao sujeito, encontra seu limite no rochedo da castração. 8. O rochedo da castração diz da falha de um saber inconsciente, uma vez que nenhuma elaboração de saber é suficiente. 68 9. Atravessar a fantasia é confrontar-se com a castração escondida lá. É confrontarse com a revelação de que não existe um significante sexual para um outro significante sexual: não há relação sexual. 10. No final de uma análise, o sujeito se defronta com o irremediável, o incurável, que equivale à falta do Outro e à própria divisão subjetiva. O sujeito não se cura de sua divisão. No final da análise, pode-se falar de uma ética da sublimação, que é aquela que se opõe às éticas do gozo. Esse movimento só é possível se o analisando renunciar ao que ele supunha em sua fantasia ser complemento, renunciar ao gozo e se permitir satisfações substitutivas. Conclui-se, conclamando Gorender (1999) e a metáfora por ela realizada entre o final de análise e uma viagem que só se completa quando ela chega ao fim, por mais que haja um valor inequívoco na própria travessia. Importante é que não se transforme essa viagem em algo interminável, como a maldição que faz recordar o Holandês voador, capitão condenado a vagar pelos mares sem possibilidade de parada, até que alguém se disponha a segui-lo, por amor, uma vez que este é o melhor porto e que oferece ancoragem, sob pena de errância e perda de esperança. Ou se enfrenta o abismo da falta e o rochedo da castração, tal qual o artista que se confronta com a insuficiência de uma obra sempre por ser concluída, ou a nau vai a pique. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 Final de análise: uma revisão sistemática da literatura Keywords End of analysis; curing; psychoanalysis; psychoanalysts. Abstract The goal of the study was to identify the ideas of psychoanalysts of Círculo Brasileiro de Psicanálise – CBP on the subject final analysis. The method used was systematic review of literature, having as database the Revista Estudos de Psicanálise, official publication of the CBP, indexed in Indexpsi Periódicos Biblioteca Virtual em Saúde –Psicologia (BVS- Psi). The articles selection was made through 12 keywords: analysis with end / endless analysis, curing, subjective destitution, direction of cure, upshot, therapeutic effects outcome, curing hope, end of analysis, the final analysis, the purpose of psychoanalysis, output and crossing the fantasy. That was found 25 articles, of which 07 was repeating the descriptors, and 1, which after reading a summary, was discarded because it wasn´t identified by the subject in question, remained only 17. As results authors found question if there is a final analysis, the effectiveness of psychoanalysis, they talk about drive targets, about the castration rock and crossing of fantasy, the desire ethics, and the demands of happiness. Referências ARAÚJO, M. do C. M. F. O final de análise. Estudos de Psicanálise. Belo Horizonte, v. 18, p. 98-106, nov. 1995. BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa : Edição Setenta, 2006. CARDOSO, V. G. Os im-passes na instituição psicanalítica. Estudos de Psicanálise. Belo Horizonte, v. 27, p. 95-97, ag. 2004. CHAGAS, N. F. Final de análise: uma questão ética. Estudos de Psicanálise. São Paulo, v. 14, p. 5361,1992. CLARKE, M; OXMAN, A.D, editors. Cochrane Reiewers’ Handook 4.1. In: Rewiew Manager (RevMan) [Computer program]. 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Belo Horizonte, v. 16, p. 20-24, out. 1993. 70 Tramitação Recebido : 24/09/2009 Aprovado : 19/10//2009 Nome do autor principal: Déborah Pimentel Endereço : Praça Tobias Barreto, 510-1212 Bairro São José CEP : 49015 – 130, Aracaju/Se Fone : (79) 3214 1948 E-mail : [email protected] Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.51-70 – Novembro. 2009 Mães e crianças vivendo com hiv/aids: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade 1 HIV – Positive mothers and children: fear, anguish and silence making childhood invisible Juliana Marques Caldeira Borges2 Jorge Andrade Pinto3 Janete Ricas4 Palavras-chave HIV/Aids, Transmissão materno-infantil, Subjetividade, Criança, Relação mãe-filho. Resumo A partir do discurso de mães que transmitiram a infecção pelo HIV ao filho via transmissão maternoinfantil (vertical), os autores investigaram as implicações que a subjetividade materna traz para a vida dessas crianças. Analisou-se como a infância pode ser atingida pelo vírus HIV para além das dimensões relativas à infecção, enfocando principalmente as questões psíquicas presentes neste contexto. Porque o sangue que herdamos não é somente o que trazemos ao chegar ao mundo. O sangue que herdamos está feito das coisas que comemos quando crianças, das palavras que nos cantaram ainda no berço, dos braços que cuidaram de nós, da roupa que nos agasalhou e das tempestades que outros venceram para nos dar a vida. Mas, sobretudo, o sangue se tece com as histórias e os sonhos de quem nos faz crescer. Ángeles Mastretta Inicialmente a Aids foi relatada como uma doença específica de certos grupos de pessoas com comportamentos denominados de risco, como os homossexuais, os usuários de droga, as profissionais do sexo, dificultando-se, assim, a previsão e prevenção de contaminação das pessoas heterossexuais(LENT, 2005). Esses conceitos iniciais ainda persistem, levando parte da população a se colocar numa posição “acima de qualquer suspeita”, a se negar a pensar sobre a Aids e, consequentemente, a não assumir condutas de prevenção da contaminação, o que levou a um avanço considerável da epidemia entre os heterossexuais. Sendo assim, foi difícil admitir que uma doença conhecida inicialmente como sendo do grupo dos excluídos da sociedade, marginalizados e discriminados, viesse a atingir a infância, concebida por todos Este artigo é parte da dissertação de mestrado “Infância Atingida: os efeitos do diagnóstico de HIV na subjetividade materna e suas implicações para a criança vivendo com HIV/Aids”, apresentada ao Programa de PósGraduação em Ciências da Saúde/ Saúde da Criança e do Adolescente, da Faculdade de Medicina/UFMG. 2 Psicóloga. Psicanalista. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Membro do Setor de Psicologia do Hospital Infantil João Paulo II/FHEMIG. Mestre em Ciências da Saúde/UFMG. 3 Pediatra. Doutor em Ciências da Saúde/UFMG. Professor do Departamento de Pediatria e da Pós-Graduação em Ciências da Saúde da UFMG. Membro da Comissão Nacional de DST/AIDS do Ministério da Saúde. Membro do Grupo de Referência Técnica em AIDS Pediátrica da Organização Mundial da Saúde. 4 Pediatra. Doutora em Saúde da Criança e do Adolescente/ USP. Coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisas Qualitativas em Saúde da UFMG: aspectos psicossociais da infância e da adolescência. Professora convidada da Pós-Graduação em Ciências da Saúde da UFMG. 1 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009 71 Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade como a fase da inocência e, por isso, livre de muitos perigos que a vida adulta oferece. A contaminação da criança pelo vírus HIV passou a representar um drama tanto para a família quanto para a relação mãe/filho, uma vez que esta se dá, na grande maioria dos casos, pela transmissão materno-infantil (transmissão vertical). Ao analisarmos a transmissão vertical do HIV sob o ponto de vista psíquico, não podemos deixar de assinalar o fato de que as crianças nascidas de mães que contraíram a infecção pelo HIV adquirem o vírus na gestação, durante o parto ou através da amamentação. Para a mulher, estes três momentos costumam ser profundamente significativos em suas vidas uma vez que possibilitam a vivência da maternidade no plano não só da realidade, mas fundamentalmente no plano simbólico. A ideia de que um vírus potencialmente letal possa ser transmitido exatamente no momento em que o que se apresenta no imaginário materno diz respeito à vida do filho, torna-se inadmissível para qualquer mãe. Percebe-se nisso uma complementar contradição, vida e morte convivendo juntas. A morte, na presença do HIV e a vida, na capacidade de procriar e cuidar, aparecendo como a prova de que se pode viver e dar a vida, mesmo com a sombra da morte (VERAS;PETRACCO, 2004, p.139). A angústia, decorrente da vivência do paradoxo vida e morte, passa a fazer parte da vida das mulheres HIV+, assim como de representações contraditórias de mãe-mulher: “a representação da mãe, enquanto mulher que dá a vida, opõe-se àquela de mulher perigosa” (COTOVIO apud VERAS;PETRACCO, 2004, p.139). No inconsciente, essas duas representações vão coabitar, fazendo com 72 que a imagem da doadora de vida possa se transformar em imagem de doadora de morte (VERAS; PETRACCO, 2004). Estas representações contraditórias de mãe-mulher, vida-morte, gestação-contaminação nos apontam uma questão complexa em relação à transmissão vertical do vírus HIV. Além dos aspectos objetivos importantes aqui presentes, como os cuidados durante a gestação, pré e pós-parto, para se evitar a transmissão, temos que lidar com aqueles subjetivos que dizem respeito à maneira com a qual a mãe vai elaborar psiquicamente a sua contaminação e a da criança e reagir em relação aos cuidados necessários, adotando-os ou não. Se tomarmos a proibição da amamentação nesses casos, o que interfere profundamente no vínculo mãe-criança em um momento de extrema fragilidade, teremos a dimensão de uma das questões subjetivas presentes na transmissão vertical (PADOIN; SOUZA, 2006). Para analisarmos melhor essas questões, desenvolvemos um estudo que teve como objetivo geral investigar os efeitos do diagnóstico da infecção pelo HIV na subjetividade materna e das implicações desta para a criança que vive com HIV/Aids. Como objetivos específicos, analisamos a forma como ocorreu o diagnóstico da criança, a percepção das mães sobre sua comunicação, as reações familiares a ele, as mudanças ocorridas após o diagnóstico, as estratégias utilizadas para lidar com este, os sentimentos e reações maternas ao longo do tempo, as principais preocupações com a criança, a subjetividade materna e suas implicações na vida da criança, a relação mãe-filho e a dificuldade do diálogo com a criança sobre o HIV. Utilizando a metodologia qualitativa, abordamos, através de entrevista semiestruturada, 14 mães de crianças portadoras do vírus HIV por transmissão materno-infantil Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009 Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade em atendimento em um centro de referência para tratamento de crianças com HIV/Aids em Belo Horizonte. As mães desconheciam ser portadoras do vírus HIV durante a gestação da criança. Para a análise dos resultados, foram utilizadas a Análise de Discurso e a Psicanálise. Os relatos das mães foram extremamente significativos e evidenciaram com muita propriedade questões relacionadas aos objetivos do estudo. Selecionamos alguns a serem apresentados durante nossa discussão, em que os nomes das mães e das crianças foram substituídos para que se preservasse sua identidade. O diagnóstico da infecção pelo HIV, que na maioria dos casos estudados ocorreu a partir do adoecimento da criança sem que a família soubesse de sua existência, revelou-se um acontecimento dramático. Um diagnóstico inesperado pelas mães, no qual encontramos relatos de choque, susto, revolta, desespero, raiva do companheiro, culpa, agonia, incredulidade, angústia e, em alguns casos, desejo de morrer. [...] Eu chorava, “O meu sangue que passou pra ela, infectado!”, é horrível. Horrível mesmo. Aí eu tinha vontade de morrer, mas eu pensava assim: “Se eu morrer, e ela?” [...] Eu senti a pior mãe do mundo. Falei: “Eu peguei Aids na Gisele! A pior mãe do mundo!”, [...] E olhava pra ela, assim, e falava: “Gisele, eu tô te matando, meu sangue que passou pro seu é que tá te matando”, e via ela só grave, terrível, né? Eu olhava lá no fundo do olho dela, aquele olhinho fraquinho, querendo viver... (Guiomar/mãe de Gisele, 9 anos). O sentimento de culpa das mães em relação à transmissão do vírus HIV ao filho, além da intensa angústia desencadeada, parece provocar comportamentos diversos, desde atitudes de superproteção a certo distanciamento da criança. Vemos a seguir a dedicação ao filho, cuidados às vezes excessivos e atitudes de superproteção. [...] a culpa que eu carregava era assim, eu protegia ela demais, mas protegia pela minha culpa, sabe, de não deixar ela fazer nada de culpa minha. [...] eu acho que foi mais por causa de ser soropositivo, mas não é, a cabeça da gente, não é que eu ache que ela não possa andar sozinha porque ela é soropositivo, mas aquele medo que eu tinha, da Aids, eu acho que eu passei isso pro medo deles andar, de que, vinha na minha cabeça [...] a Luísa, se ela tá no ônibus e se alguém tá do lado dela, e vai fazer alguma coisa [...] a preocupação não era HIV [...], eu acho que era do HIV que veio esse medo. As loucura, né, que vai passando na cabeça da gente, que, em função do HIV (Lívia/ mãe de Luísa, 13 anos). Guiomar nos conta que tem um comportamento às vezes oscilante com a filha Gisele. Apesar de viver fazendo “tudo” por ela, até em excesso, em alguns momentos a trata com grosseria, negando-lhe ajuda em tarefas simples, mandando-a “se virar”. Ela explica que faz isso conscientemente para ensinar Gisele a reagir às frustrações futuras que possa vir a sofrer por viver com HIV/Aids. Percebemos em sua entrevista que ela sofre enormemente com a culpa e, como consequência, quase não descola de Gisele, protegendo-a o tempo todo. Embora ela tente, racionalmente, preparar a criança, percebemos que não consegue deixar espaço para a filha desenvolver sua autonomia, como diz querer fazer. Ela nos conta um fato significativo, de que, quando neném ainda, a criança teve algumas crises de cianose que a família acreditou persistir, apesar dos médicos terem dito que Gisele não Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009 73 Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade sofria de nenhum distúrbio que pudesse provocar esse sintoma. [...] eu acho que ela pegou psicologicamente esse roxo também que ela sabia que me deixava doida esse roxo, e todo mundo. [...] Aí, na hora do banho, ela falava: “Ô mãe, pega esses pano tudo que eu vou ficar roxa”. Era cobertor, era até umas toalhas. [...] Mas eu dava banho nela e deixava pelo menos duas toalhas e uma meia que se ela ficasse roxa eu tava lá pra acudir. [...] Aí até que teve um dia que ela incomodou e não falou comigo não, falou com a psicóloga. ... Que eu tava dando banho nela até hoje. Com sete anos, tava com sete ou oito. Eu tava dando banho nela até hoje. Aí a psicóloga falou com ela pra ela me falar. Ela falou: “Ô mãe, eu falei com a psicóloga, dando banho ne mim até hoje, eu tô com oito anos! Eu não vou ficar roxa mais não”. Aí eu passei a deixar ela tomar banho sozinha, falei: “resolve lá.”. Mas de vez em quando, ela queixa. Hoje mesmo: ela tomou banho pra ir pra aula, era meio-dia. Ela falou: “Ô mãe, vem cá me enxugar, mãe, que eu tô ficando roxa” “Tá ficando roxa nada não” (Guiomar). A cianose, o “roxo” como significante de uma fragilidade que demanda sempre a presença materna, tornou-se a justificativa para que a mãe nunca se ausentasse. [...] antes dela nascer, a obstetra falou que poderia nem sobreviver por causa do meu estado que tava muito debilitado (Guiomar). Percebemos aqui como uma questão que inicialmente surgiu para esta mãe antes mesmo do nascimento da filha – o medo de ela não resistir – tornouse fonte de angústia para a criança que, mesmo querendo uma separação, ainda 74 teme algo fantasmático em torno de sua existência, “carrega” o temor da mãe que se presentifica no significante “roxo”. A fala da médica fez surgir uma questão fantasmática para a mãe antes mesmo do diagnóstico de HIV, o que, acentuada por este, provocou como resposta materna uma posição de extremo zelo perante a criança. Deu positivo? E ela vai viver? Ela tem chance de sair daqui?” Aí a médica falou: “Tem, nós vamos investir tudo nela” [...] Me colocou a par, de coisa que eu já sabia também, que ela tava debilitada, ela tava grave, que ia ser diferente de muitos outros, né? Aí eu falei: “Então tá. Se depender de mim, a minha filha não vai morrer disso não (Guiomar). Podemos notar que a promessa feita por Guiomar está presente o tempo todo na relação com Gisele, estabelecida nos cuidados e no sintoma como o “roxo”, por exemplo. Fazendo uma inversão em sua frase, podemos encontrar o sentido da relação mãe e filha. Se a minha filha depender de mim não vai morrer disso não. O lugar da criança aqui acaba sendo o de dependência, uma vez que, na fantasia materna, é o que lhe garante a vida. Essa construção fantasmática transmitida à criança vai determinando sua posição na relação com a mãe. Segundo Mannoni (1983, p. 6465), A atitude da mãe pelo fato mesmo da deficiência física ou psíquica da criança induz nessa última certo tipo de respostas: o estudo mais aprofundado dessa questão permitiria explicar a escolha privilegiada feita pela criança entre diferentes tipos possíveis de resposta. Quando um fator Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009 Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade orgânico está em jogo, tal criança não tem só que fazer frente a uma dificuldade constitucional, mas ainda à maneira pela qual a mãe utiliza esse defeito num mundo fantasmático que acaba por ser comum a ambos. O medo que essas mães relatam ter de a criança adoecer interfere muito em seu cotidiano, fazendo com que elas passem a conduzir a vida do filho e imponham a ele várias limitações, muitas vezes desnecessárias, tais como: não poder entrar na piscina, não tomar gelado, não poder brincar livremente como uma criança saudável, mesmo quando não existe nenhum sinal de doenças como gripe ou alguma infecção de garganta, por exemplo. Clarissa nos aponta como o filho internalizou o que ela sempre lhe dizia e hoje, aos 12 anos, mantém os mesmos limites de antes. Eu ficava com medo que ele adoecesse, que aquilo virasse uma pneumonia, porque realmente a resistência abaixa muito, muito rápido. E ele foi crescendo assim: até hoje ele não põe o pé no chão, só mesmo calçado, não gosta de tomar gelado porque ele sabe que corre o risco de infeccionar a garganta. [...] Eu falava com ele: “não põe o pé no chão, que se você ficar doente, nós vamos voltar pro hospital”. O medo era esse: ter que ficar internado, né? Aí hoje eu falo com ele: “Carlos, tira a camisa, tá fazendo calor”, ele não gosta [de tirar a camisa] [...] o irmão já é totalmente ao contrário: gosta de andar pelado, com pé no chão, gosta de beber gelado... E o Carlos mesmo falava com ele: “Eu não vou ficar doente, você vai.” (Clarissa/mãe de Carlos, 12 anos). Vemos aqui que a preocupação da mãe passa a ser também a do filho. Con- sideramos importante destacar a fala de Carlos para o irmão como exemplo de como uma criança pode se angustiar em decorrência das preocupações da mãe com sua saúde. Se estas forem muito intensas, poderão transmitir à criança os receios e fantasmas maternos ligados à Aids. O relato a seguir, de Guiomar, demonstra como a filha expressa o medo da morte. A mistura de papéis mãe-filha no que diz respeito aos cuidados e receios com o presente e o futuro mostra a identificação da criança com uma mãe assustada pela possibilidade da morte: [...] Que elas ficam assim: “Mãe, dá um tempo. Mamãe, não morre não, mãe. Toma o remédio, mãe, não morre não.” [...] A Gisele fala: “Não. Se ocê morrendo ou não, cê vai morrer só quando tiver bem velhinha”. Agora ela fica com medo de morrer, mas eu não fico com medo de nada. E ela vem, tadinha, me acha só pra tomar o remédio certo (Guiomar). A fala da criança é também uma maneira que ela encontra para dizer de seu medo em relação à incerteza da vida e do futuro – “ocê morrendo ou não” – mesmo que faça uma aposta ao revelar a esperança de uma possível velhice para a mãe e, consequentemente, para ela. A superproteção relatada por várias mães é comum nos casos em que a criança é portadora de uma doença crônica e pode levar à sua infantilização, como vemos na fala de Eunice. [...] acho que eu, é, trato ele muito, muito criança, entendeu? [...] Demais. Ele faz acompanhamento por isso, porque ele é uma criança imatura [...] o neném de carregar no colo [...] Até hoje, eu tento mudar, eu tenho que mudar porque eu tenho que deixar ele crescer... Ernani vai fazer 10 anos... ele é um menino inteligente? Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009 75 Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade Mas ele é muito imaturo, ele é muito dependente, ele é muito grudado comigo, entendeu? É mais do que os outros [...] não adianta eu querer que ele cresça e eu não deixar ele crescer, né? Porque na verdade quem pôs ele assim fui eu. Eu e o pai, logicamente (Eunice/mãe de Ernani, 9 anos). Ela traz o filho numa redoma, conforme suas palavras nos apontaram. Apesar de saber disso, age inconscientemente de modo a mantê-lo na mesma posição, como vemos em seu relato: Eunice: [...] eu sou muito protetora com ele, na escola quando os meninos brigam, bate nele, eu vou e reclamo, e falo com ele, “não quero que você bata nele” [...] igual a psicóloga falou pra eu deixar o Ernani se defender um pouco, né, é, só em último caso, mas eu falo, “se bater em você sua mãe vai gostar? Sua mãe não vai, então eu também não gosto...então não bata nele que eu não quero, e você não é pai dele e você não tem que bater nele. Se ele te fizer alguma coisa, ele tem mãe, cê chega pra mim e me fala que eu vou corrigir, mas não quero que ninguém...”, e vou na sala, e peço licença à professora dele e falo: “Não quero que ninguém bata nele, ele tem mãe, sou eu, se ele fizer alguma coisa com vocês, fala pra mim!” Entrevistadora: E como é que o Ernani se sentiu nessa ocasião, assim, que você foi lá, defendê-lo e tudo... Eunice: Ah, ele fica quieto. Ernani, com dez anos de idade, não consegue reagir à cena constrangedora da mãe invadindo a sala de aula para defendê-lo. A fala de Eunice aponta o lugar em que ele ainda permanece, “quieto”. Castro e Piccinini (2004) investigaram, em um estudo qualitativo, os 76 sentimentos das mães de crianças com e sem doença crônica relativos à sua experiência de maternidade. O estudo revelou que esta experiência foi afetada pela presença de doença crônica na criança. Isto apareceu especialmente no sofrimento vivido pelas mães com sentimentos ambivalentes em relação às crianças, culpa, ansiedade, superproteção, ansiedade de separação e sentimentos de pouca ajuda de outras pessoas, vindo ao encontro do que temos percebido no contexto da Aids. O fato de a mãe ter possibilitado a transmissão vertical do vírus HIV, conforme temos assinalado, acentua a angústia ligada aos sentimentos descritos pelos autores em seu estudo e, consequentemente, as intervenções destes na relação estabelecida com a criança. Mannoni assinala a importância de os analistas se interrogarem, na clínica, sobre o lugar da palavra da mãe no mundo fantasmático da criança e o lugar do pai na palavra da mãe. Como analistas, nós nos encontramos em face de uma história familiar. A evolução da cura é, em parte, função da maneira pela qual certa situação é apreendida por nós. A criança, que se nos traz, não está só, ocupa no fantasma de cada um dos pais um lugar determinado. Enquanto indivíduo é muitas vezes alienado no desejo do Outro (MANNONI, 1983, p. 64). Em relação ao desejo da mãe pelo pai, fundamental para que ela não tome a criança como um objeto que virá preencher sua falta, este pode ficar comprometido em função da contaminação pelo HIV. A dúvida de uma traição, a mágoa e muitas vezes a revolta sentida pela mãe, provocando seu afastamento do pai da criança, além de outros sentimentos importantes desencadeados pelo diagnóstico, parecem causar conflitos Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009 Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade importantes na vida conjugal, mesmo que o casal continue vivendo junto. Vejamos a fala de Anita: Não tenho vontade de sexo, não tenho vontade de nada. [...] Mas ele vive fora. [...] Quando ele fala assim que vem pra casa, eu acho ruim. Me bate um nojo [...] eu visto cada roupa, ele fica bravo comigo. Umas saiona feia. Pra ele não me querer, caçar sarna pro meu lado. Ele fala assim “Eu não acredito que ocê não gosta mais” [...] de sexo. Nem com ele e nem com ninguém (Anita/mãe de Amine, 12 anos). Ela nos revela que, para não ser desejada pelo marido, já que estar com ele após a contaminação causa-lhe tanta aversão, busca se descaracterizar como mulher, apagando os vestígios de uma feminilidade que ela recusa compartilhar com um homem em consequência dos sentimentos ligados ao diagnóstico de HIV. Vejamos como ela tenta repetir com a filha o mesmo apagamento ao imaginar que um remédio para acabar com seu desejo sexual resolveria as questões ligadas à adolescência neste campo: Anita: E eu já até pedi um remédio pra ela tomar pra ela não ter vontade. Não ter vontade de outras coisas... dessas coisas. Entrevistadora: Você diz assim: que sua vontade era pedir um remédio pra barrar a sexualidade dela? Anita: Isso. Pensei. Aí eles falaram comigo que eu era boba, que é só cuidar. Mas ai ai, eu não sei, não. (Anita/ mãe de Amine, 12 anos) Como será que tem sido para Amine a passagem de menina a mulher, se a imagem do espelho está tão comprometida com as questões apontadas? Ela vê uma mãe apagada, distante do marido, enfeando-se, sem desejo como mulher. Assim como Anita, Olívia também aponta as dificuldades em ser mulher de um homem que supostamente a contaminou na gravidez. Diz viver bem com ele, mas como mulher se encontra completamente distanciada de tal posição. A gente vive feliz, tirando isso, vive feliz demais. Igual, foi ontem ou hoje eu tava pensando: “Nó, se não tivesse que fazer esse negócio, ia viver feliz pro resto da vida”. [...] Porque eu acho que a doença veio por causa do sexo, então... Pra mim, dentro de mim, acabou, não precisa, já estragou tudo. Se eu pudesse ficar sem pra sempre, morando só assim, sendo marido e mulher, mas não tendo relação. Acho que seria a melhor coisa (Olívia/ mãe de Odila, 6 anos). Neste estudo percebemos que as mães que conseguiram manter uma relação com o parceiro como mulher, ainda que este não seja o pai da criança, parecem estar menos angustiadas, estabelecendo relações mais saudáveis com os filhos. O amor materno não pode se constituir um obstáculo ao desejo da mulher, o que Naveau aponta como uma questão a ser sempre verificada. Segundo o autor, [...] se a criança não satisfaz completamente o desejo da mãe, então a mãe é uma mulher. Dizendo de outro modo, a mãe é uma mulher se sua criança não é tudo para ela, se seu desejo se divide entre a criança e o homem (NAVEAU, 2001, p.139). Vimos, porém, em vários casos, que o diagnóstico de HIV da criança parece convocar a mãe ao lugar só materno, já que ela se torna, na maioria das vezes, a principal cuidadora do filho em seu tratamento. Estar sempre no lugar Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009 77 Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade de uma mãe zelosa parece afastá-la do lugar de mulher, uma vez que o desejo e a sexualidade são perturbados pelo fantasma de uma doença estigmatizada como promíscua e pela culpa de ter transmitido o vírus à criança. Soler (2005, p. 103) nos aponta que: [...] para a criança, a dedicação materna tem um valor tanto maior quanto mais a mãe não é toda sua, e quanto mais não está toda num alhures insondável: mas é preciso que seu amor de mulher esteja referido a um nome. Só há amor por um nome, dizia Lacan: no caso, o nome de um homem, que pode ser qualquer um, mas que, pelo simples fato de ser nomeável, cria um limite para a metonímia do falo, assim como para a opacidade do Outro absoluto. Só mediante essa condição é que a criança poderá ser inscrita num desejo particularizado. Percebemos que a relação mãefilho sofreu consequências do diagnóstico da infecção pelo HIV que, de certo modo, conduziram a criança a um lugar marcado por questões fantasmáticas maternas em relação à doença. Concluímos que o medo e a angústia relacionados à morte e ao preconceito com a Aids estão presentes de maneira intensa na vida dessas mães, confirmando estudos anteriores a esse respeito em relação às pessoas que vivem com HIV/Aids em geral. Porém, a implicação dessa angústia na infância marcada pelo HIV, que se constitui uma questão perturbadora ao psiquismo materno, podendo se tornar uma questão também da criança, foi o que mais nos preocupou como resultado deste estudo. Consideramos essencial apontar que a subjetividade materna vai sempre afetar a vida de um filho, mas, no caso de mães com HIV/Aids, esses efeitos po78 dem marcar profundamente a criança na relação que ela vai estabelecer com sua condição de portadora do HIV. Para além da questão da transmissão biológica, as questões subjetivas vinculadas a essa forma de transmissão podem ser, de fato, perturbadoras para a criança, uma vez que sua infância passa a ser atingida pela angústia, medo, culpa, entre outros sentimentos. O fantasma da mãe em torno da Aids faz com que ela estabeleça com a criança uma relação particularizada na qual muitas vezes impera o segredo e a falta de uma palavra apaziguadora que lhe traga entendimento, já que nesse contexto essa palavra se torna proibida. Consideramos a imposição do silêncio às crianças um dos aspectos mais impressionantes do diagnóstico da infecção pelo HIV e tememos por seus efeitos, que podem ser devastadores, uma vez que muitas delas parecem compactuar com suas mães ao se calarem, aceitarem a condição de ignorância em que são colocadas e se esconderem sem ao menos entender o que fizeram para merecer a invisibilidade. Em nossa opinião, a mentira e o segredo passam a ser um comportamento adotado pelas crianças, mesmo quando desconhecem a verdade. A maioria delas parece internalizar o modo silencioso usado pela mãe para lidar com a medicação e com as idas ao médico, já que muitas mães nos relataram não explicar nada aos filhos e que eles não lhes perguntam nada, o que nos é surpreendente em se tratando de crianças. Geralmente elas se expressam com espontaneidade quando querem saber algo desconhecido e costumam ser curiosas, normalmente com poucos impedimentos para perguntas. Atribuímos esse fato à percepção da criança de que existe um assunto intocável para a família ao qual ela não pode Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009 Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade se referir, perguntar, saber ou buscar explicações. Parece não lhe haver outra escolha a não ser optar pela ignorância, ainda que pense solitariamente sobre o que possa estar acontecendo com ela e com os pais, mas nem sempre rompe o pacto de silêncio imposto. O ato falho cometido por Sofia ao nos relatar a pergunta do filho sobre o motivo de ter que tomar o remédio escondido de seus primos e tios revela a existência de um conflito inconsciente e pode apontar o desejo de esconder não só a doença, mas também a criança do olhar do outro. [...] agora ele me perguntou: “Uai Mãe, por que que a senhora tem que ficar me escondendo?” [O que ela corrige logo a seguir]: “escondendo de todo mundo na hora de tomar remédio [...]?” (Sofia/ mãe de Sílvio, 10 anos) Observamos que a dificuldade da mãe em conversar com a criança está presente mesmo nos casos em que esta sabe de seu diagnóstico. É, eu falo “o problema”, “aquilo”. Eu não comento o nome. Aí eu falo com o Carlos: “Carlos, sabe aquilo?” Aí, assim, eu não falo HIV. [...] Nem com ele. Dentro de casa, quando tá só nós dois, a gente fala: “sabe aquele negócio?” “Sei” (Clarissa/mãe de Carlos, 12 anos). A indagação de Cruz a este respeito traduz também nossa inquietação quanto à vida dessas crianças: Mas se o sujeito portador de HIV está reduzido à própria AIDS e se a AIDS é o indizível – é “aquela doença”, aquilo que se deve confessar, mas aquilo que não se pode pronunciar–, o que estamos transmitindo às crianças e adolescentes? Qual a herança que a cultura lhes dá? Se o que existe, existe com um nome, qual será a experiência de si para quem carrega o nome que não se pode dizer? Não somente a AIDS é indizível, mas ele próprio, como sujeito reduzido à AIDS, passou a ser indizível. (CRUZ, 2007, p. 381) Na função de analista, é preciso apontar a necessidade de um olhar mais cuidadoso às questões que aqui acabamos de expor, principalmente por entendermos que a angústia faz com que sofram a mãe e a criança. A angústia se apresenta para a criança de maneira muito mais complexa pela sua dificuldade em compreender o que se passa ao seu redor e que geralmente permanece oculto pela culpa e pelo medo materno. Mannoni indica-nos a importância das palavras para assegurar à criança uma vivência psíquica em relação a seu adoecer de uma maneira menos sofrida: A realidade da doença não é em nenhum momento subestimada numa psicanálise, mas o que se procura evidenciar é como a situação real é vivida pela criança e por sua família. O que adquire então um sentido é o valor simbólico que o sujeito atribui a essa situação como ressonância a certa história familiar. Para a criança, são as palavras pronunciadas pelo seu grupo a respeito da doença que vão adquirir importância. São essas palavras ou a ausência delas que vão criar nela a dimensão da experiência vivida. É também a verbalização duma situação dolorosa que pode permitir-lhe dar um sentido ao que vive. Qualquer que seja o estado real de deficiência ou de perturbação da criança, o psicanalista procura entender a palavra que permanece condensada numa angústia ou cercada numa enfermidade corporal (MANNONI, 1983, p. 65). Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009 79 Mães e crianças vivendo com HIV-AIDS: medo, angústia e silêncio levando a infância à invisibilidade Nossa aposta é em uma escuta que contemple também questões subjetivas no tratamento dessas mães, o que poderá ajudá-las a trazer outras palavras a seus filhos. Nosso desejo é que as crianças portadoras de HIV/Aids possam ter um rosto e uma infância à luz do dia para que saiam da invisibilidade a que parecem estar destinadas. Keywords HIV/Aids; mother-to-child transmission (MTCT); subjectivity; child; mother-child relation. Abstract Based on the discourse of HIV-positive mothers who transmitted the infection to their infants via mother-to-child transmission (vertical), the authors looked into the implications brought into the children’s lives by maternal subjectivity. They analized how childhood can be affected by the HIV virus, which goes far beyond the biological questions related to infection, and focuses mainly on the psychological implications presented in this context. Referências CASTRO, E. K.; PICCININI, C. A. A experiência de maternidade de mães de crianças com e sem doença crônica no segundo ano de vida. Estudos de Psicologia (Natal), Natal, v.9, n.1, Abr.2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S1413294X2004000100011&lng=en&nrm =iso>. Acesso em: 19 fev.2009. doi: 10.1590/S1413-294X2004000100011. CRUZ, E. F. Infâncias, adolescências e AIDS. Educação em Revista, Belo Horizonte, n. 46, p.363-384, dez. 2007. 80 LENT, C. F. Epidemia e subjetividade. 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Tramitação Recebido : 24/06/2009 Aprovado : 27/08/2009 Nome do autor principal: Juliana Marques Caldeira Borges Endereço : R. Padre Rolim, 815/307 – São Lucas CEP :30130 – 090, Belo Horizonte/MG Fone : (31) 3274 0443 E-mail : [email protected] Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.71-80 – Novembro. 2009 Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise? Transgression, crime, neurosciences: impasses to the knowledge of psychoanalysis? Julio Cesar Diniz Hoenisch1 Pedro José Pacheco2 Carlos da Silva Cirino3 Palavras-chave Transgressão, crime e neurociências. Resumo O presente artigo trata de algumas questões despertadas pelo florescimento das neurociências, de um suposto desgaste da psicanálise diante dessa revolução, articulando as posições epistemológicas tanto de um quanto outro campo de saber sobre o sujeito, a sociedade contemporânea e a criminalidade. Problematiza também a construção de diagnósticos “criminais” precoces e fartamente divulgados pela mídia sem fundamentos empíricos para tanto, o que resulta em uma mistificação do criminoso e constrói uma representação “mágica” da área psi sobre seu modo de trabalho. Por fim, aponta os impasses da psicanálise diante das demandas contemporâneas e dos discursos totalitários, tanto místico/religiosos quanto neurocientíficos radicais, indicando ser a ética o necessário fio condutor para uma reflexão sobre as políticas de existência e a manutenção da área psi como veiculadora destas práticas de modo implicado. GENEALOGIAS DO SABER PSICANALÍTICO A Psicanálise, desde seu advento, sofreu variações conceituais, estruturais e políticas de saber e verdade consideráveis. A construção dos ensaios clínicos do Dr. Freud escandalizou a Viena da época por evidenciar a sexualidade da criança e por colocar que uma clínica da escuta dos sentidos era possível, ocasionando assim uma reorganização da subjetividade de quem fala. Na primeira assertiva, o escândalo estava na profanação da infância, construída como inocente e pura no século XVIII, e, na segunda, no fato de uma “cura” sem medicamentos e sem invasões corporais mais objetivas e visíveis. Logo, a psicanálise nasce envolta em uma aura transgressora, afastada da moral burguesa. Não se tratava de uma escuta fácil de ser construída, visto que a empreitada freudiana custaria muito caro a seu inventor. É interessante utilizar o termo “invenção” e não “descoberta” para não alimentar a ideia de tratar-se de um fato natural, que já estaria lá, e a neutra e imparcial tarefa do pesquisador/analista seria desvendar sua verdade implícita. Não se trata disso aqui, em que pese o desejo inicial de Freud de que a psicanálise fosse uma ciência natural (PALOMBINI, 1995). Tomamos o inconsciente como produção discursiva que instaura o laço social sempre cambiante e produto/produtor do sujeito do desejo, tendo o pesquisador/ analista a implicada e complicada tarefa de questionar as certezas e problematizar verda- 1 Psicólogo, especialista em saúde pública/Fiocruz, Mestre em Psicologia/PUC/RS, Professor da Universidade Tiradentes/SE. 2 Psicólogo, especialista em Psicologia Jurídica (CFP), Mestre em Psicologia Social e Institucional (UFRGS), doutorando em Psicologia (PUCRS) e Professor do Curso de Psicologia da Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões – URI Santiago – RS. 3 Psicólogo, mestre em Psicologia Social (UFPB), Professor da Universidade Tiradentes. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009 81 Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise? des e saberes totalitários. Ou seja, nessa perspectiva, “o inconsciente não é uma realidade psíquica que cada um carrega, como se fosse uma propriedade da alma, oculta, ignorada, que se desvela, revela, descobre” (BUENO, 2002, p.30), porém se faz a partir da lógica do discurso, “uma lógica necessariamente paradoxal, já que é o sujeito mesmo que produz a verdade que acredita descobrir” (JERUSALINSK, 2007, p.136), pois é ele quem a inventa na relação com o outro. Decorridos mais de um século da construção de sua clínica e dedicados estudos epistemológicos (JAPIASSU, 1998), o estatuto científico da psicanálise não se atém ao modelo das ciências naturais, nem das ciências humanas, divisão clássica das ciências factuais. Seu estatuto epistemológico se alinha à ciência, como coloca Lacan em “A ciência e a verdade” (LACAN, 1998), pois ao lado da religião ou da magia não pode estar, tendo em vista os dogmatismos e profissão de fé inerente a esses saberes. Assim, a invenção da psicanálise: (...) teve duas grandes consequências no campo do saber. A primeira foi o reconhecimento de que o corpo real dos humanos é regido por uma ordem simbólica que desdobra sobre este corpo efeitos imaginários; uma ordem que prevalece sobre os automatismos neurovegetativos. Na medida em que se verifica que a condição humana desse corpo depende de que os enunciados que o simbolizam mantenham sua eficácia, a anatomia e a fisiologia perdem sua exclusividade no reino do patológico. Isto muda a leitura dos sofrimentos e estabelece os princípios de uma nova clínica. A segunda, é que, embora não constitua uma nova epistemologia (faltaria para isso ter a fé que, no método, a ciência contemporânea tem), certamente produz uma nova episteme, ou seja, um novo ponto de partida para 82 a abertura de caminhos do saber (JERUSALINSK; MEZAN, 2007 p. 136). Esse preâmbulo é ilustrativo das questões da transgressão em Psicanálise e das nuances que esse campo de saber assume na era pós-Freud. Pode-se considerar que o campo psicanalítico contemporâneo se estabelece em torno de três grandes “escolas”: inglesa, francesa e americana. Cada uma delas tomou a obra freudiana a partir de uma linha de raciocínio, construindo uma exegese particular, da qual resultam posições teóricas muito diferentes. Ao estudarmos a história da difusão da Psicanálise, inclusive as infelizes posições da Psicanálise na Alemanha nazista ou na presença de torturadores em entidades de formação, como foi o caso no Brasil (VALE, 2003), vemos que há uma tendência de buscar manter a “doutrina” viva a qualquer custo. De maneira geral, há uma presença de um discurso voltado para a manutenção do saber psicanalítico como legítimo ou puro indelevelmente. Essa posição, além de muitas vezes ferir os estatutos das prerrogativas dos Direitos Humanos, põe a nu que a Psicanálise não é um saber doutrinal advindo da esfera celeste, mas justamente o contrário, vindo dos e indo para os seres humanos, advindo o tempo todo dos confrontos de idéias e discussões ético-políticas entre eles. Dizer isso não se refere às críticas que se faz da posição do analista como sujeito político na prática clínica. Na lógica psicanalítica, o analista somente existe enquanto sujeito na suposição de um saber que faz semblante, que empresta seu corpo, sua imagem e seu inconsciente para que complexas operações entrem em movimento e “abram o jogo de xadrez”. Certamente não é possível que essa operação de espelho seja absoluta e justamente por isso temos a Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009 Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise? supervisão, a análise pessoal e a compreensão da “transferência recíproca” como instrumento de compreensão dos afetos que se acionam no analista e o fazem sentir ou “atuar” esses afetos. Logo, não se trata aqui de colocar que o analista é isento, mas lembrar que o analista não se coloca como sujeito em virtude de a prática da clínica psicanalítica não ser um laço social qualquer, mas justamente um laço social inventado, nunca antes visto na história humana. Note-se que também essa posição é relativa ao marco epistemológico ao qual nos alinhamos, tendo em vista que, na contemporaneidade, alguns segmentos da Psicanálise advogam a ideia de que o analista deve ser reconhecido como pessoa. Não parece possível concordar com essa premissa, haja vista que o papel do analista é o do espelho, tanto na situação da análise quanto da sociedade que se propõe pôr em análise: refletir a própria imagem do recalcado e observar o que resultará disso, podendo resultar em nada, inclusive. É relevante destacar que existem situações em que a psicanálise se cala ou casos nos quais ela simplesmente não ocorre, e não há nada de errado com a teoria. Se a Psicanálise está para a ciência, a ciência está para as verdades provisórias, para as dúvidas e para a falibilidade. Infalível e não criticável são dois termos que excluem do campo de conhecimento científico qualquer assertiva de saber. Diante dessas considerações, já podemos então presumir que a Psicanálise não é uma, que não é tão simples nomear-se psicanalista e mais complexa ainda se torna a questão quando pensamos na psicanálise a “serviço” de outros campos de conhecimento, a saber: a justiça e a psiquiatria (ou neurociências). Do ponto de vista da sua difusão no Brasil, desde seu início a Psicanálise esteve intimamente relacionada ao saber médico. Assim como a Psicologia chegou ao país antes do psicólogo (a profissão de psicólogo só passará a existir em 1962, a partir da lei N.° 4.119, de 27 de agosto de 1962, que dispõe sobre os cursos de formação em Psicologia e regulamenta a profissão), as ideias psicanalíticas chegaram antes do psicanalista. Na Bahia, no Rio de Janeiro e em São Paulo, alguns médicos traduzem algumas ideias freudianas e as colocam na nascente prática acadêmica do ensino da psiquiatria (VALE, 2003). Em que pese uma inicial rejeição das ideias freudianas, rejeição que, aliás, parece nascer e acompanhar a Psicanálise em todo seu percurso e existência, logo a Psiquiatria toma a psicanálise como um campo de saber que pode legitimar sua prática, até o momento considerada uma construção marginal na medicina, posto que não apresentava um substrato anatômico para suas assertivas. Desde Morel e outros grandes expoentes da psiquiatria, sobretudo na França, encontramos o debate entre os organicistas e os psiquiatras que defendem o chamado “tratamento moral” (BIRMAN, 1978). De qualquer maneira, no caso brasileiro e de outros países, a psiquiatria vê rapidamente na Psicanálise uma possibilidade de legitimação de sua razão de ser, isso até o advento das correntes neurocientíficas radicais. Nesses segmentos, é preciso livrar-se da Psicanálise, considerada agora um punhado de ideias românticas ilegítimas e descartáveis. A PSICANÁLISE: MUITO ALÉM DA “NORMALIDADE” Na mesma velocidade, começa a difusão das ideias psicanalíticas entre os meios intelectuais e a população em geral. A perspectiva psicanalítica, para ser absorvida pela comunidade local, necessitaria de alguns ajustes, tais como Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009 83 Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise? condicionar sua formação à colonização pelo formato de um freudismo norteamericano: o pragmatismo e a ênfase no eu e nas fases do desenvolvimento da libido. Além desse destaque da perspectiva “evolucionista” do pensamento freudiano, a Psicanálise nos Estados Unidos também precisava de ajustes ao modelo hipotético dedutivo, típico das ciências naturais e muito forte na cultura americana. Assim, em geral testemunhamos nas construções teóricas deste continente um certo descrédito à pulsão de morte, a tradução dos termos da segunda tópica para o latim, a recusa da primeira tópica, considerada superada, e a ênfase no ego. Como já foi amplamente discutido nos meios psicanalíticos brasileiros, essa tradução dos termos latinos para eu, supra-eu e isso traz diferenças substanciais no entendimento conceitual da Psicanálise, tanto quanto o controverso “instinto”, tradução inadequada para “Trieb” (pulsão). Tal como afirma Roudinesco: De maneira geral, o freudismo norteamericano, em todas as suas tendências, privilegia o eu (ego), o self ou o indivíduo, em detrimento do isso, do inconsciente e do sujeito. Por conseguinte, opõe à pretensa decadência da velha Europa uma ética pragmática do homem, fundamentada na noção de profilaxia social ou de higiene mental. Daí a generalização de uma psicanálise medicalizada e assemelhada à psiquiatria, em oposição à velha psicanálise vienense leiga, atormentada pela morte, pelo autoaniquilamento e pelo niilismo terapêutico (ROUDINESCO, 1998, p. 170).. Por conseguinte, o Freud difundido no Brasil é eminentemente evolucionista e adaptativo. Mas como conciliar a subversão freudiana com a normatividade psiquiátrica da época? Como subsu84 mir a virulência da ideia de inconsciente à normatividade comportamental? Se a Psicanálise prescinde de um conceito de normalidade, sendo esta, aliás, uma de suas maiores qualidades para o acervo das ciências que tratam do homem, como alinhá-la a um campo de conhecimento eminentemente normativo? Um campo com um conceito, para não sermos redundantes, de “normalidade” muito bem constituído? Aqui, leia-se, normalidade estatística. Normal é o comportamento estatisticamente prevalente em um grupo social, sendo o que não se “adapta” considerado “desvio” (DALGALLARRONDO, 2008). Em que pese a sugestão em Três ensaios para uma teoria da sexualidade de que a genitalidade é a finalidade última do desenvolvimento da libido, não encontramos no conjunto da obra freudiana uma normatividade, um conceito sobre “o normal”. Na própria construção dos três ensaios está colocada a não naturalidade do objeto de satisfação da pulsão, bem como a não naturalidade da própria pulsão. Da mesma forma, essa posição teórica ficará ainda mais clara em Pulsões e destinos da pulsão: O objeto da pulsão é aquilo em que, ou por meio de que, a pulsão pode alcançar sua meta. Ele é o elemento mais variável da pulsão e não está originariamente vinculado a ela, sendo-lhe apenas acrescentada em razão de sua aptidão para propiciar a satisfação. Em rigor, não é preciso ser um outro objeto externo, pode muito bem ser uma parte de nosso próprio corpo. Ao longo dos diversos destinos que a pulsão conhecerá, o objeto poderá ser substituído por intermináveis outros objetos, e a esse movimento de deslocamento da pulsão caberão os mais significativos papéis. (FREUD, 1915/1976, p 137). Logo, como ser a genitalidade o fim último da pulsão e sua organização Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009 Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise? final pode ser bastante particular e não prescritiva. Em Três ensaios... há uma tendência a sugerir que a genitalidade é a “última fase”, mas o artigo supracitado desconstrói a ideia de primado genital exclusivo, sendo possível, pois, compreender a pulsão com uma abordagem não desenvolvimentista. Alguns segmentos, como o lacanismo, preferem a trajetória do nascimento do desejo e da falta ao invés da libido e suas fases. Mas, de qualquer maneira, a definição clara a respeito dessa questão ainda não é consenso entre os psicanalistas. Nos casos a que Freud se dedicou, por exemplo, a falar sobre a homossexualidade, não a coloca como um desvio ou problema, mas uma “parada” no desenvolvimento da libido, rejeitando uma possível distância objetiva entre condutas sexuais “normais” ou “anormais”. Segundo Ferraz (2002), Freud declara: “não conhecemos os limites da vida sexual normal e que, portanto, não deveríamos nos referir com indignação às perversões sexuais”. A ao defender o direito dos homossexuais, afirma: “eles são vítimas da moral sexual corrente, que impõe a todos os mesmos padrões, sem considerar as suas diferentes constituições”, que a abordagem freudiana concebe à formação das orientações sexuais e da subjetividade como contingentes e não naturais. Foucault (1984) traz uma visão crítica à histórica vinculação do tema sexualidade com as noções de desvio e anormalidade mental, falando na hipótese repressiva ao afirmar que a discussão sobre sexo desde o século XVIII na verdade serviu para legitimar saberes ainda insipientes e pouco reconhecidos como os da sexologia e da psiquiatria, principalmente comparando-os a outras áreas médicas da época. “No terreno da medicina, foi a psiquiatria que veio a abarcar a ciência do sexual, passando as “aberrações sexuais” a serem vistas como variações da alienação mental” (FERRAZ, 2002, p.12). Com isso, as correntes americanas e inglesas, no intuito de uma legitimação de saberes para um pleno exercício de poderes, incluem as diferenças, aqui primeiramente as sexuais, para depois se estender a inúmeros outros tipos comportamentais, na categoria de desvio, perversão (ROUDINESCO, 2003), alienação e/ou doença mental, reforçando intervenções cada vez mais repressivas e punitivas tomadas agora na sua execução pela esfera estatal e jurídica. TRANSGRESSÃO, CRIME E A VIOLAÇÃO DA NORMA A questão que se trata de refletir aqui é o tema da transgressão em Psicanálise e como esta pode, sob determinados regimes discursivos, se tornar, ao invés de subversiva, um operador conceitual que destrói a possibilidade da transgressão, que não é necessariamente da ordem da violação da lei ou do exercício do mal. Ou seja, a Psicanálise é, em sua gênese, transgressora da norma e não a guardiã asséptica de uma moral vigente ou uma normatividade de qualquer natureza, seja jurídica e/ou científica. Pensemos no caso de alguns crimes, quando frequentemente a Psicanálise é requisitada pelos meios de comunicação de massa a fornecer explicações sobre as motivações desses “desvios” considerados por estes mesmos formadores de opinião como “bárbaros”, “horríveis”, “perversos”, etc., bem como os sujeitos supostamente criminosos categorizados como “monstros”, “psicopatas”, “animais”, “delinquentes”, e mais uma série de adjetivos pejorativos e degradantes usados com o intuito de trazer mais dramaticidade e espetacularização ao cenário teatral apresentado. Nesses Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009 85 Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise? casos, frequentemente observamos já um primeiro equívoco nas concepções teóricas, éticas e políticas do saber psicanalítico, proporcionado por quem se define como seu representante: o de julgar-se capaz de falar (analisar) sobre um discurso que não se escutou, no caso do produzido pelo sujeito “acusado”. Como podemos, na condição de (re)produtores de um conhecimento que se busca legítimo acerca do humano, falar sobre um caso a partir de notas de jornais, ou fragmentos de entrevistas televisivas? Vemos, com algum choque, sem dúvida, considerações minuciosas desses representantes de um saber “inquestionável” (“os especialistas”, como são tratados por esses meios) sobre as estruturas clínicas, levantamentos hipotéticos sobre a infância dos sujeitos em causa, bem como, não raro, inferências deterministas sobre o que levou o sujeito àquele comportamento dito desviante. Nessas organizações discursivas, identificamos um forte predomínio do tratar da questão criminal simplificadamente, reduzindo sua dimensão complexa e social, além de sustentar uma concepção de sujeito totalmente individualista, determinista e egocentrado, tal como o são os fundamentos das ciências naturais modernas. As relações da Psicanálise com a criminologia e a justiça, desde seu início estão colocadas no texto A psicanálise e a determinação dos fatos em processos jurídicos(1906/1976) em que Freud é claro: os alcances da Psicanálise não estão voltados para a constituição de culpa (no sentido jurídico do crime) ou de castigo, este último referido à modalidade de punição, extensão e capacidade de remissão do ato criminal ou criminoso. Logo, fica inerente à leitura dos fatos que se apresentam tão corriqueiramente na mídia, onde psicanalistas, por vezes expoentes de entidades de formação, se apressam em fornecer explicações 86 sobre crimes e, com a mesma rapidez, articular os conceitos de transgressão e crime. Ora, a transgressão, assim como a agressividade, não são atos per se perversos ou criminosos, já que “o perverso não porta uma aberração ausente nos outros seres humanos, mas que ele simplesmente atua aquilo que se encontra, de forma latente e potencial, em todas as pessoas” (FERRAZ, 2002, p.21). Além disso, o próprio conceito de crime é relativo no espaço e no tempo, por ser uma construção cultural e não natural, e a civilização, para a Psicanálise, é constituída sobre o parricídio e o incesto, logo, a criança freudiana, no texto Totem e Tabu (1913/1976), é necessariamente em termos desejantes parricida e incestuosa. Pode-se arguir que essas tendências são recalcadas, não sendo, portanto, muitas vezes levadas ao ato. Porém do ponto de vista da ontologia e da perspectiva da realidade psíquica, construídas por Freud, isso é irrelevante. Outra face da moeda é pensar que, uma vez que a Psicanálise não se propõe a julgar, o que é de fato atribuição do juiz, ela deveria advogar uma perspectiva “abolicionista” da pena ou da responsabilização penal. Ou seja, buscar que o sujeito se responsabilize pelo que ele é, um ser faltante, incompleto, paradoxal, do qual nenhum sistema penal que funcione hierarquicamente de forma rígida a partir de códigos objetiváveis ou tempos cronológicos poderá dar conta, por mais que isso seja constante e ilusoriamente prometido com a corrente e ilusória expressão “Estado Democrático de Direito”. Nas contribuições de alguns pesquisadores de orientação lacaniana, encontramos uma posição bastante interessante sobre esse tema, na qual é colocado que o crime é uma busca de uma obra. Obra leia-se como fundação de uma inscrição social, anseio de todo su- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009 Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise? jeito (MELLO, 1990). Em princípio, todo sujeito no âmbito da neurose, do ponto de vista psicanalítico e, neste caso, a escola teórica é irrelevante, ambiciona ser a partir de sua inscrição subjetiva com o Outro. O ser falante visa a um lugar na pólis, como fica claro na adolescência com a ruptura do laço social com os pais, tribos ou equivalentes, buscandose uma nova modalidade de ser. Logo, não é papel da Psicanálise se colocar como aquele que absolve ou condena o criminoso. Mesmo nos casos de psicose, quando muitas vezes ocorre um crime violento, é necessária a construção de uma responsabilização, mas neste caso a responsabilização criminal pode ser o advir do sujeito do desejo. Se não como o super-herói, como o pior dos criminosos. Essa é a prerrogativa de ser, de se destacar da função materna, do reino da simbiose, que ao mesmo tempo nutre e asfixia, para produzir-se na relação com o Outro constantemente. Há uma imprevisibilidade naquilo que o sujeito humano é capaz de se fazer, seja através de atos, pensamentos, emoções, sentimentos, desejos, fantasias, etc. Isso traz uma inevitável variabilidade entre os atos tipicamente criminais e os modos de ser humano (HOENISCH, 2002). É relevante lembrar que os modos de ser mais tipicamente neuróticos estão tão à mercê do crime ou da violação da lei quanto os tipicamente perversos ou psicóticos, já que não há dispositivo de relação de causa-efeito, muito menos de correlação estatística, entre o crime cometido e a personalidade do sujeito que supostamente o cometeu. Crimes violentos podem ser categorizados como psicóticos, mas o ato psicótico não implica necessariamente o funcionamento psicótico, nem vice-versa. Pensando-se assim, mais complexa ainda se torna a tarefa de construir qualquer diagnóstico, se assim fosse o caso. Dentre as torções teóricas que a Psicanálise, através de seus ditos representantes ou “especialistas”, necessitou para ser aceita no campo da criminologia, as discussões acerca das avaliações, diagnósticos e prognósticos sempre mostram ser as mais obscuras e problemáticas. Alguns profissionais, referindo utilizar-se da psicanálise, afirmam ser capazes de “medir” os impulsos agressivos e prever a reincidência do crime. Não nos parece claro como isso seria possível, tendo em vista que a própria psiquiatria não é uma ciência exata, de certeza estatística. Mesmo que o fosse, as ciências naturais nos falariam de forte tendência, mas nunca de certezas absolutas, até porque, ao tratarmos politicamente das ciências, estamos falando da necessária impossibilidade de existir no seu escopo um saber totalitário e completo, já que se tornaria ditatorial, bárbaro e destruidor da alteridade ao acreditar que ocupa este lugar perante os outros saberes e poderes. Se esta reflexão cabe sobre a perspectiva transgressora da Psicanálise para analisarmos brevemente seu lugar junto ao crime, a mesma posição nos servirá para pensar a posição das psicanálises diante do avanço das neurociências. FREUD ENTRE A BRUXARIA E AS NEUROCIÊNCIAS Diante do debate cada vez mais contemporâneo entre a Psicanálise e as neurociências, que lugar ocupar? Defender a doutrina freudiana como campo independente e ser considerado ortodoxo ou obscurantista? Defender a união da Psicanálise com as neurociências, já que alguns experimentos destas serviriam para evidenciar – novamente o ideal cientificista hipotético-dedutivo – que a Psicanálise “funciona”? Ambas as posições apresentam seus riscos e novamente estamos diante do tema de Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009 87 Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise? como garantir, tanto quanto seja possível, a transmissão da Psicanálise e o seu relevante papel social. Que lugar terá a invenção freudiana num mundo bioquímico, tomado por terapias supostamente mais eficazes, que adicionadas aos psicofármacos seriam pretensamente capazes de abolir o mal-estar da civilização? O que pode a Psicanálise, como invenção humana e com finalidade, grosseiramente falando, de retificação subjetiva, de propor outra forma de gozo, de lidar com o sintoma e com a incompletude? E, por fim, como sustentar suas idéias densas diante de uma sociedade na qual o conhecimento cede lugar à informação instantânea e efêmera? Aqui caberia uma reflexão sobre a diferença entre formação e informação. A formação analítica é feita caso a caso. Trata-se de uma questão altamente afastada do modelo universitário contemporâneo: informar. A sociedade parece atravessar um período de ruptura do conhecimento, sendo este agora trocado pela informação. Não se trata de elementos similares. Parece prudente pensar que não é possível responder a questões tão complexas de maneira rápida. Nosso tempo atual, a chamada “modernidade tardia” ou simplesmente “contemporânea’, apresenta uma nova revolução em andamento que colocam a “velha senhora”, como uma vez denominou Freud a Psicanálise, em xeque. Segundo Rouanet (2002), testemunhamos um re-encantamento do mundo, pois assistimos a paradoxos que geram alta perplexidade: de um lado, o afloramento de seitas fundamentalistas, encontros de bruxas, duendes e fadas, o conceito de “loucura” e doença mental tomados novamente como possessão espiritual, tal como na Idade Média; de outro, a mistificação exagerada de alguns segmentos das neurociências, advogando o fim da Psicanálise, de qualquer psicoterapia não diretiva, pois 88 agora os fármacos e a genética explicarão todos os males. Em outras palavras, de um lado o obscurantismo, do outro uma suposta e um tanto ingênua revolução científica, que ambiciona responder a todas as fendas da condição humana pela via dos neurotransmissores e equilíbrio neuroquímico. Tanto uma quanto outra posição nos parecem cegas à razão, tomada aqui no sentido posto pelo iluminismo: capacidade humana de refletir sobre si mesma de maneira secular (ROUANET, 1993). É verdade que a Psicanálise como campo de conhecimento não é tributária da razão. Sua prática clínica nos revela que o Eu não é senhor em sua própria casa e que não é possível a emancipação através das luzes da razão. A Psicanálise suspeita da razão. Mas nem por isso a pesquisa e a prática psicanalítica são irracionais, caso contrário não necessitaríamos dos critérios que sustentam a doutrina psicanalítica e que diferenciam as práticas equivocadas e abusivas do exercício sério da clínica. Porém, o que é o fio determinante da prática analítica, dada a diversidade de escolas e formas de pensamento no campo deste saber? A ética. A questão da ética em Psicanálise trata-se de uma temática árdua do ponto de vista intelectual. De acordo com Ocariz (2003), sustentada na discussão proposta por Lacan, não se trataria da ética ligada à moral da religião, nem de uma ética relacionada ao que uma sociedade define, a partir de sua maioria, como adequada. Aqui, trata-se de uma ética do sujeito, em que o que estabelece um limite entre as relações é o que se define como uma “ética do privado”, se assim se pode dizer, em que o limite do desejo do sujeito é o desejo do outro. Enfim, tratase de uma leitura não moralista das condutas, mas da proposição de que existe um limite dado ao sujeito e esse limite é da ordem do respeito a uma modalidade Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009 Transgressão, crime, neurociências: impasses aos saberes da psicanálise? de laço social que permita subordinar a pulsão de morte e manter a vida em sociedade com princípios de liberdade de convivência e diferenças. Sendo assim, trata-se de responsabilizar-se a ética pelo desejo e suas consequências, afastando-se, peremptoriamente, de uma posição narcisista primária. Trata-se da ética de um limite, que é a barra do gozo, que no fim das contas é o fundamento da civilização, sem, no entanto, ser tomada como uma moral imposta. Como foi afirmado, a questão concernente à ética e à Psicanálise é complexa, se afasta bastante da ética da filosofia e das discussões que tomam a ética e a moral como equivalentes. O que é interessante destacar é a necessária posição não moralista e universalista por parte de quem exerce o oficio de analista no âmbito penal (somente nele?), tendo em vista que essas posições não só se afastam da Psicanálise, mas também contribuem para a estigmatização do sujeito infrator e contribuem para a fantasia de que o crime, a violência e a criminalidade não são efeitos dos ordenamentos e discursos que regem cada conjunto social. A busca por essa proposta de ética é uma das respostas possíveis tanto para tentar estabelecer o que é legítimo do que não é, como para constituir o aceitável, o humano e razoável no laço social. Nessa perspectiva, ainda não sabemos, como agentes da prática psicanalítica, onde esta deve estar diante destes sintomas contemporâneos. Mas sabemos onde ela não deve estar, sob o risco de perder sua ética que lhe é própria: nem do lado do misticismo, nem dos discursos totalitários. A Psicanálise, como ela mesma uma ética, também tem uma finalidade terapêutica (se assim não for, não há razão para sua existência) e, consequentemente, política. Deverá ela ceder às novas políticas hegemônicas de mercado? Render-se à convocatória de mais eficiência, de mais abrangência, de pressa de “cura”? Ou se colocará como problematizadora da própria cultura que a criou e a convoca, incessantemente, a escutar o que há de selvagem desta própria cultura? Essas respostas devem ser construídas pela própria Psicanálise e seus representantes, dentro de um diálogo interdisciplinar crítico e não dogmático. Keywords Transgression; crime; neuroscience. Abstract This article addresses some issues developed by the flourishing of neuroscience, an assumed consuming of psychoanalysis in face of this revolution, articulating an epistemological position from both fields of knowledge on the subject, contemporary society and criminality. It discusses also the construction an early “criminal” diagnostic and abundantly spread by the media without empirical foundations, resulting in a wrong perception of the criminal and builds a “magical” representation of the psi area and the way it works. Finally, it points to the difficulties of psychoanalysis in the face of contemporary needs and totalitarian speeches, both mystical / religious as radical neuroscience, indicating that ethics is the necessary way for a reflection about the existential polices and maintenance of the psi area as responsible for spreading these practical in an implied way. Referências BIRMAN, J. A Psiquiatria como Discurso da Moralidade. Rio de Janeiro : Graal, 1978. BUENO, C. 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In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro : Imago, 1976. V. XIII. HOENISCH, J. C. D. Divã de Procusto? Critérios para perícia criminal no Rio Grande do Sul. Dissertação de mestrado, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, 2002. JAPIASSU, H. Psicanálise: ciência ou contraciência? 2. ed. Rio de Janeiro : Imago, 1998. JERUSALINSKY, A. N.; MEZAN, R. Que tipo de ciência é a Psicanálise. Longe da ortodoxia e do ecletismo. Revista Percurso, São Paulo, 2007. p. 136 – 137. LACAN, J. A ciência e a verdade (1965). In: Escritos, Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro : Jorge Zahar Editor, 1998. p. 869-892. MELLO, K. Clínica e delinquência: considerações sobre o atendimento a adolescentes infra- 90 tores em instituição. In: Revista Topos, Salvador, 1990. Ano I, V, Il. OCARIZ, M. C. O sintoma e a clínica psicanalítica. O curável e o que não tem cura. 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Udine, ap. 504 - Aracaju/Se Fone : (79) 3217 1381 E-mail : [email protected] Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.81-90 – Novembro. 2009 Mecanismos oníricos e figuras de linguagem Oniric mechanisms and figures of speech Luís Maia1 Palavras-chave Elaboração onírica, condensação, deslocamento, metáfora, metonímia. Resumo A partir do sonho de um paciente, o autor contesta, com base em Laplanche, a assimilação lacaniana dos mecanismos oníricos, condensação e deslocamento, às figuras de linguagem metáfora e metonímia. Em seguida, analisa o estatuto das metáforas do inconsciente enquanto “esquecidas” da tensão semântica que lhes deu origem. Depois de Lacan, pretende-se evidente a assimilação dos mecanismos oníricos, condensação e deslocamento, às figuras de linguagem metáfora e metonímia. A análise de um sonho permite discutir esta suposta evidência. Era o meu terceiro ano de estágio com Paulo Sette, no ambulatório de psiquiatria do velho Pedro II, no Recife. O diretor de uma escola agrícola do interior encaminhou para atendimento um estudante com um quadro depressivo-ansioso, no qual se destacava uma dor de cabeça tão forte, que o impedia de estudar. Discutido o caso e descartada a possibilidade de um problema neurológico, ele me foi encaminhado para que o atendesse em psicoterapia. Num tom de voz lacrimoso, de quem implorava por ajuda, começou por me pedir desculpas porque ainda não tinha lido Freud. Para o jovem intelectual que ele era, submeter-se a uma psicoterapia sem essa leitura prévia parecia indesculpável. Não queria, certamente, que o tomasse por um adolescente igual aos outros, igual aos colegas que desprezava, porque “só pensavam em futebol e mulher”. Esses colegas a quem jamais ocorreria a preocupação de me fazer saber, através de uma confissão de ignorância, que não ignoravam o que era psicanálise e quem era Freud. Era um rapaz complicado! Vinha de uma família muito pobre, não conhecia o pai. A mãe era lavadeira, a irmã prostituía-se. O diretor, tendo descoberto seu potencial, protegia-o na escola agrícola, pedindo-lhe em troca uma espécie de reforço junto aos colegas, esses colegas que, “por só pensarem em futebol e mulher”, fraquejavam nos estudos. Ora, a dor de cabeça impedia-o de exercer a função que lhe tinha sido confiada e que lhe dava inegável prestígio. Estava numa situação difícil. Morando na escola, distante do Recife, só podia vir ao ambulatório uma vez por semana. E, uma sessão atrás da outra, era sempre a mesma queixa: as dores de cabeça persistiam, não conseguia sequer estudar, quanto mais ajudar os colegas. O diretor era compreensivo, não lhe exigia o que ele não podia, mas, para além do sofrimento físico, atormentava-o, dizia-me em tom lamuriento, a impossibilidade de cumprir suas funções. As queixas em torno do sintoma ocupavam boa parte da sessão e clamavam pela urgência de uma ajuda que eu, partilhando da sua ansiedade, sentia-me incapaz de dar. Foi então que me trouxe este sonho. Viajava à Lua num foguete. Lá chegado, saiu a passear com uma moça. E davam grandes pulos porque não tinha gravidade. Depois voltou à Terra, mas a Terra estava deserta. Só havia um russo, mas ele não falava russo. 1 Psicólogo formado pela Universidade Católica de Pernambuco. Mestre pela Université Catholique de Louvain, sócio fundador e atual presidente da Sociedade Psicanalítica da Paraíba. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.91-94– Novembro. 2009 91 Mecanismos oníricos e figuras de linguagem Os americanos, que tinham partido atrasados na corrida espacial, acabavam de realizar o grande feito de colocar dois homens na Lua. O mundo inteiro vira, pela televisão, a imagem trêmula desses primeiros passos. O contexto remetia, portanto, à “guerra fria”, à disputa entre americanos e russos. Uma marchinha de Carnaval contestava, porém, a pretensão dessa disputa, afirmando que “todos eles estão errados / a lua é dos namorados”. Como todo o estudante de Física aprende, sendo menor a gravidade na Lua, um mesmo impulso permite pular mais alto que na Terra. Apoiando-se na contestação da marchinha e aproveitando o duplo sentido do termo, lá se foi o rapaz dar “grandes pulos” com uma moça na Lua, já que não precisava sentir-se culpado nem se censurar por “pensar em mulher”: isso “não tinha gravidade”. Depois voltou à Terra, mas a Terra estava deserta. Só havia um russo, mas ele não falava russo. Essa Terra deserta remetia à sua solidão e ao seu desalento. Um único homem, a esperança de um encontro e a frustrante impossibilidade de se comunicar. Seu terapeuta, que tinha um sotaque característico, quando ia à praia e se expunha ao sol, ficava alourado, ficava ruço. Com esse ruço, tentara partilhar o desejo de pular com uma moça, pular, talvez, uma marchinha de Carnaval, enfim, “pular a cerca” do que se proibia. Desejo que, por demais terreno, só podia ser encenado “no mundo da Lua”. Mas – decepção! – não falava a língua do ruço. Bem que ele avisara que ainda não tinha lido Freud! O sonho foi construído em cima de algumas figuras de linguagem. As metáforas da “guerra fria” entre americanos e russos para representar a relação transferencial; da terra deserta para representar a solidão; do pular, no sentido 92 físico, para representar a superação de obstáculos morais. O passear com uma moça como metonímia da realização sexual. A comunicação humana como capacidade de falar uma língua e a Lua como espaço da realização das fantasias (por oposição à Terra, lugar da realidade – “pés na terra”), ao mesmo tempo, metáforas e metonímias. Finalmente, a polissemia do termo “gravidade” e a homofonia entre “ russo” e “ruço”. Freud denominou este processo de “processo primário” e caracterizou-o metapsicologicamente, de um ponto de vista tópico, como característico do inconsciente; do ponto de vista econômico, como um processo pelo qual a energia se desloca livremente de uma representação a outra, segundo os mecanismos de condensação e de deslocamento; do ponto de vista dinâmico, como processo de reinvestimento de representações ligadas às experiências de satisfação, constitutivas do desejo (LAPLANCHE; PONTALIS, 1976). No entanto, para Freud, o sonho não se reduz ao inconsciente. O sonho, o sintoma, a fantasia, o ato falho e o chiste são, para ele, não “formações do inconsciente”, como pretende Lacan, mas “formações de compromisso” entre o desejo inconsciente e as exigências defensivas. Desde o início, Freud vê no sintoma esse caráter bifronte: a histérica, que se rasga, realiza o desejo de se desnudar para seduzir; mas, ao se rasgar, se descompõe, faz-se feia e, dessa maneira, punese pela realização do desejo proibido. Se o sonho, a “formação de compromisso” que aqui analisamos, fosse simplesmente uma “formação do inconsciente”, não precisaria ser interpretado, seria transparente como os sonhos das crianças. O processo primário limitado, neste caso, à realização alucinatória do desejo, os morangos negados durante o dia seriam saboreados, à noite, em sonho. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.91-94 – Novembro. 2009 Mecanismos oníricos e figuras de linguagem Qual, então, o sentido de representar o comércio sexual por um inocente passeio na Lua e a rivalidade transferencial pela guerra fria entre americanos e russos? Aqui, é preciso fazer intervir a censura onírica, consequência do conflito inconsciente entre dois desejos: o desejo proibido e o desejo narcísico, metaforizado, no sonho, pelo desejo de dormir. É a serviço desta censura onírica que entram em ação os mecanismos de condensação e de deslocamento. Condensação e deslocamento que não devem ser assimilados à metáfora e à metonímia, posto que não se configuram como figuras de linguagem. Tratando desta diferença, Laplanche (2007) começa por situar o problema no contexto das cadeias associativas formadas por representações (de palavra ou de coisa) ligadas ora por analogia ora por contiguidade. Numa relação de analogia, o vinho, por exemplo, pode ser associado ao sol, porque ambos esquentam. O calor é o elemento comum que liga as duas representações. Uma relação de contiguidade, por sua vez, comporta modalidades tão diversas quanto continente-conteúdo, parte-todo, causa-efeito etc. Neste caso, o vinho, por exemplo, pode ser associado ao copo – beber um copo – como relação conteúdo-continente. Deslocamento e condensação caracterizam, para Freud, o processo primário. O deslocamento acontece quando uma representação recebe todo o investimento devido a uma outra, de modo que a segunda acaba por substituir completamente a primeira. Ora, a ligação entre as duas representações tanto pode ser por contiguidade quanto por analogia. É deslocamento tanto a substituição do vinho pelo copo, numa relação de contiguidade, quanto a substituição do vinho pelo sol, numa relação de analogia. No sonho analisado, o duplo sentido da palavra “gravidade” e a homofonia entre “russo” e “ruço” são representaçõesencruzilhada que permitem apagar da cena manifesta – uma viagem à Lua – qualquer vestígio do conteúdo latente: a realização do desejo proibido e do desejo transferencial a que o sonho se referia. Em vez disso, confunde-se o deslocamento, mecanismo onírico, com a metonímia, figura de linguagem, ao pretender que o deslocamento se caracterize exclusivamente pela ligação de contiguidade. A condensação acontece quando o elemento comum a duas cadeias associativas, recebendo o investimento devido às duas, condensando todo esse investimento, vai ser encarregado de representá-las. Por exemplo, uma pessoa, no sonho, pode ser identificada como A, mas ter as características de B. Neste caso, haverá que procurar o que é comum às duas. Também aqui, na condensação, a relação entre as representações pode ser por contiguidade e não apenas por analogia. Condensação e deslocamento, mecanismos do processo primário, não correspondem, portanto, à metáfora e à metonímia. Mas o fato dos tipos de ligação que caracterizam estas figuras de linguagem – analogia e contiguidade – se verificarem no sonho e nas demais formações de compromisso, não autoriza o uso dos termos metáfora e metonímia para caracterizar o funcionamento de um inconsciente estruturado como uma linguagem? Para ficar no exemplo da metáfora, uma relação transferencial pode ser, metaforicamente, uma guerra fria, mas, literalmente, não o é. É nesta tensão semântica entre o sentido literal e o sentido metafórico, entre o ser e o não ser da metáfora, que reside a sua força. Ora, as metáforas do sonho e do inconsciente Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.91-94– Novembro. 2009 93 Mecanismos oníricos e figuras de linguagem em geral são metáforas que esqueceram a tensão semântica que lhes deu origem. Esquecidas do sentido literal, elas ainda são metáforas? Dois exemplos permitem esclarecer essa questão. Trata-se daquilo que o primeiro Freud denominou simbolização histérica: o soldado luta pela bandeira porque ela representa a pátria; o cavaleiro bate-se pela luva porque ela representa a dama. A bandeira é e não é a pátria; a luva é e não é a dama. Histérico seria o soldado que se batesse por uma bandeira que não representasse mais nada, fosse apenas um pedaço de pano. Histérico, o cavaleiro que lutasse por uma luva, inteiramente esquecido de sua dama. Essa bandeira ainda seria uma metáfora da pátria? Essa luva permaneceria uma metonímia da dama? Em favor da sua caracterização como figuras de linguagem, no entanto, há que considerar que o processo analítico permite reconstituir a relação de significação entre o sentido literal e o sentido metafórico (ou metonímico), restabelecendo aquilo que o processo primário apagou. Esta possibilidade de reconstituição do sentido, que se verifica na neurose, parece, porém, irrevogavelmente perdida na psicose. 94 Keywords Oniric elaboration; condensation; displacement; metaphor; metonymy. Abstract Based on a patient’s dream and taking the Laplanche theoretical perspective, the author questions the lacanian assimilation of oniric mechanisms – condensation and displacement – by the figures of speech known as metaphor and metonymy. This is followed by an analysis of the statute of metaphors of the unconscious as “forgotten” links in the semantic tension, which originated them. Referências LAPLANCHE, J. Déplacement et condensation chez Freud. In: COSTES, A. Lacan: Le fourvoiement linguistique. Paris : PUF, 2003. (republicado In: LAPLANCHE, J. Sexual – La sexulité élargie au sens freudien. Paris : PUF, 2007, pp. 127-131). LAPLANCHE, J. ; PONTALIS, J. B. Vocabulaire de la psychanalyse. Paris : PUF, 1976. Tramitação Recebido : 20/07/2009 Aprovado :27/08/2009 Nome : Luís Martinho Ferreira Maia Endereço : Centro Jean Laplanche – Psicanálise Rua : Prof. Álvaro Carvalho, 320 – Tambaúzinho CEP : 58042 – 010, João Pessoa/Pb Fone : (83) 3224 2504 E-mail : [email protected] Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.91-94 – Novembro. 2009 Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista Psychoanalytical formation challengers: reflexions about the analyst’s psychoanalysis Marcelo Wanderley Bouwman1 Palavras-chave Formação psicanalítica; análise do analista; técnica; transferência; desamparo; ética. Resumo O texto aborda a questão da formação psicanalítica a partir das ideias de Freud e Ferenczi sobre a transferência e o trabalho do analista na situação analítica. Busca-se apreender a especificidade da experiência psicanalítica e refletir sobre os destinos da transferência na análise do analista. Esse processo, uma vez iniciado, segue seu próprio caminho e não admite que lhe prescrevam nem sua direção nem a sequência dos pontos que percorrerá. Freud A formação do analista pode ser entendida como um processo permanente, envolvendo a relação dialética entre experiência e elaboração, nas esferas da autoanálise, da análise pessoal, da clínica, das supervisões, dos intercontroles, dos estudos teóricos e das produções escritas do analista. No decorrer dessa trajetória, espera-se que ocorram transformações na subjetividade do analista no sentido da construção de um estilo de existência (BIRMAN,1996) e, mais especificamente, da constituição de um novo lugar para ele na situação analítica. O analista implicado em sua formação procura desenvolver uma visão pessoal da clínica e da apropriação teórica e técnica em questão, busca forjar para si uma linguagem para comunicar-se com seus pacientes, para transmitir suas experiências e para articular os conceitos fundamentais da psicanálise. A construção de um estilo é um trabalho contínuo realizado pela mediação de sublimações que o sujeito vai podendo regular de maneira singularizada pelos registros ético e estético. A análise pessoal é, sem dúvida, a condição privilegiada e indispensável para o analista sofrer essas transformações. Tornar-se analista é ocupar um novo lugar na situação analítica. Trata-se, porém, de um lugar fugidio, fugaz e transitório. “Um lugar virtual, constantemente evanescente e renascente, pleno de mobilidade através da psique”. “Lugar neutro”, “isento de paixões”, “livre de fascinação”, “capaz de hospedar toda e qualquer transferência sem que nada se fixe” e “capaz de produzir linguagem” (MAGALHÃES, 1995, p.121). Em outro sentido, “tornar-se analista é, como Freud, descobrir a psicanálise por conta própria” (ANZIEU, 2006, p.293), refazendo seu percurso, identificando-se com ele e assimilando sua teoria e sua técnica. Ao mesmo tempo, aceitando-o como origem, mas recusando-o como mestre, trata-se de procurar o que falta descobrir no campo dos processos inconscientes. Freud, ao longo de sua autoanálise, através do trabalho do sonho e do luto, vai criar o modelo para o tratamento dos sinto- Psicanalista. Formado em Medicina pela Universidade Federal de Pernambuco, com título de especialista em Clínica Médica. Membro do Círculo Psicanalítico de Pernambuco. Médico da Unidade de Saúde Mental do Hospital Barão de Lucena / SUS-Pe 1 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.95-102 – Novembro. 2009 95 Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista mas neuróticos. A autoanálise será o caminho recomendado para o analista obter uma “comunicação mais livre com o próprio inconsciente”. Como diz Freud, em 1910: Nenhum psicanalista pode ir mais longe do que aquilo que lhe permitem os seus próprios complexos e as suas resistências interiores. Por isso exigimos que ele comece a sua atividade por uma autoanálise e que continue a aprofundá-la enquanto aprende pela prática com os seus pacientes (LAPLANCHE, 1992, p.46) Depois, em 1917, Freud vai redirecionar a questão: Começamos por aprender a psicanálise em nós mesmos, pelo estudo da nossa própria personalidade [...] Os progressos neste caminho esbarram em limites definidos. Avançamos muito mais submetendo-nos à análise com um psicanalista competente (LAPLANCHE, 1992, p.46) Foi Ferenczi quem mais contribuiu para salientar a função da análise na formação do analista, chegando a designá-la como a segunda regra fundamental da psicanálise. Enquanto a regra fundamental (o uso da associação livre pelo paciente e da atenção flutuante pelo analista) é uma recomendação técnica que visa à instauração da situação analítica, a segunda regra é, em especial, uma exigência ética, ressaltando a responsabilidade do analista na condução do processo de seus pacientes. Ferenczi, ao longo de sua trajetória clínica, esboçará uma “metapsicologia dos processos psíquicos do analista durante a análise”, revelando a complexidade do trabalho do analista. Em A técnica psicanalítica (1919), ele descreveu as diferentes tarefas do analista durante cada sessão - atenção flutuante, controle da 96 contratransferência e atividade intelectual - e comentou: Essa oscilação permanente entre o livre jogo da imaginação e o exame crítico exige do psicanalista o que não é exigido em nenhum outro domínio da terapêutica: uma liberdade e uma mobilidade dos investimentos psíquicos, isentos de toda inibição (p.367). Em O problema do fim da análise (1927), Ferenczi insistiu em que, para exercer a sua função, é indispensável para o analista uma análise plenamente concluída, destacando o difícil lugar do analista como objeto da transferência. Ele falou “de uma tentativa inconsciente do paciente de testar a solidez da paciência do analista a seu respeito, de maneira metódica e variada ao extremo, e isso não uma, mas inúmeras vezes” (p.20), submetendo o modo de reação do analista a uma observação extremamente perspicaz e exigindo dele “uma perfomance quase sobre-humana” (p.21). Em Elasticidade da técnica psicanalítica (1928), Ferenczi expressou a sua preocupação com a saúde do analista diante de seu ofício: No decorrer de sua longa jornada de trabalho, [o analista] jamais pode abandonar-se ao prazer de dar livre curso ao seu narcisismo e ao seu egoísmo, na realidade; e somente na fantasia, por breves momentos. Não duvido de que tal sobrecarga - que, por outra parte, quase nunca se encontra na vida - exigirá cedo ou tarde a elaboração de uma higiene particular do analista (p.35). Ele designou como tato do analista a faculdade de “sentir com” o paciente, orientando o analista nas decisões singulares da clínica: quando e como deve fazer uma comunicação, como lidar com uma reação inesperada do pa- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.95-102 – Novembro. 2009 Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista ciente, como discernir se o seu silêncio favorece o livre curso das associações ou se está sendo “uma tortura inútil” para o seu parceiro de análise. A elasticidade da técnica preconizada neste texto diz respeito à atitude do analista de procurar colocar-se no diapasão afetivo do paciente, sentir com ele todos os seus caprichos, todos os seus humores, mas também ater-se com firmeza, até o fim, à posição analítica ditada pela experiência. Em uma carta a Ferenczi, de 1928, Freud utilizou os termos “tato” e “elasticidade”, demonstrando tratar-se não somente de elementos da clínica ferencziana: Recomendações sobre a técnica, que escrevi há muito tempo, era essencialmente de natureza negativa [...] Tudo aquilo de positivo que alguém deveria fazer deixei ao tato [...] o resultado foi que os analistas obedientes não perceberam a elasticidade das regras que propus e se submeteram a elas como se fossem tabus (FIGUEIREDO, 2000, p.12-15). O resultado ideal de uma análise terminada seria precisamente essa elasticidade que a técnica exige do analista. Portanto, a análise do analista, além de responder a uma exigência ética, é condição necessária para uma boa técnica analítica. Promove autoconhecimento e autocontrole, como também desperta e desenvolve qualidades analíticas no sujeito, tais como o tato e a elasticidade. O aspecto do autoconhecimento é bem evidenciado na metáfora da escultura utilizada por Freud (1905), inspirando-se em afirmações de Leonardo da Vinci sobre as artes. Freud coloca que as técnicas sugestivas atuam, como na pintura, per via di porre, depositando tintas na tela psíquica do paciente, enquanto a psicanálise não pretende acrescentar nem introduzir nada de novo, mas antes esculpir, per via di levare, o ser do sujeito, eliminando os seus sintomas e promovendo o acesso às suas verdades. Já a formulação lacaniana de criar um analista a partir do analisante privilegia o aspecto das qualidades analíticas desenvolvidas durante a travessia de uma análise. Para que isso aconteça, o sujeito se identificaria, ao longo da análise, não com o analista, mas com o seu trabalho de investigação. Ferenczi, em 1928, antes de Lacan, comentando a respeito da metapsicologia da técnica, acrescentou: Uma verdadeira análise de caráter deve pôr de lado, pelo menos passageiramente, toda espécie de superego, inclusive o do analista [...] Somente essa espécie de desconstrução do superego pode levar a uma cura radical; os resultados que consistirem apenas na substituição de um superego por outro devem ainda ser designados como transferenciais; não correspondem certamente a um objetivo final de tratamento: desembaraçar-se igualmente da transferência (p.34). Kehl (2002) admite que, “num determinado ponto do percurso, possa ser inevitável que o analista tente substituir de um modo mais benigno a severidade do supereu do paciente”, mas ressalta que “esse lugar, de uma autoridade superegoica mais complacente, não é um lugar onde o analista possa se instalar” (p.147). O que está em questão no ato de criar um analista, como destino de uma análise, é a relação que o sujeito passa a estabelecer com o seu desejo, uma relação de saber e de insuficiência: [O analisante] deve deixar de indagar a um Outro sobre quem ele é, ou sobre o que ele deve fazer da vida [...] e tornar-se autor de seu próprio destino [...] um au- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.95-102 – Novembro. 2009 97 Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista tor bizarro, cuja obra é feita em parceria com um desconhecido – a dimensão da determinação inconsciente, que nenhuma análise tem o poder de desfazer. [O sujeito torna-se mais inventivo] à medida que aceita a condição de seu desamparo fundamental: não existe saber prévio, nem plano pré-traçado do qual ele possa se valer para orientar sua vida. Nem mesmo o desejo de seus pais, a que o sujeito não tem acesso. Nem mesmo os ideais que os pais lhe legaram, pela via do supereu (KEHL, 2002, p.153). Green (1988) afirma que “o objetivo da análise é preparar o paciente para a autoanálise” e, baseando-se em Winnicott, diz que o sujeito deve ser capaz de usar o analista e suas interpretações como objetos que servirão para estabelecer a capacidade de estar só (sem o analista); primeiro, na presença do analista e, depois, sem ele, como se ele estivesse potencialmente presente, quando não está (p.302). Diante dessa dialética entre ausência e presença, no confronto com o desamparo fundamental, o sujeito conquista uma solidão que nos faz pensar na Ausência de Carlos Drummond de Andrade (2007, p.31): Por muito tempo achei que a ausência é falta. E lastimava, ignorante, a falta. Hoje não a lastimo. Não há falta na ausência. A ausência é um estar em mim. E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços, que rio e danço e invento exclamações alegres, porque a ausência, essa ausência assimilada, ninguém a rouba mais de mim. 98 Na vigésima oitava conferência introdutória sobre psicanálise, intitulada Terapia analítica, considerada uma das mais completas exposições de Freud (1917) sobre a teoria dos efeitos terapêuticos da psicanálise, outra vez, ele se utiliza de uma analogia para diferenciar o procedimento analítico de outros métodos terapêuticos. O tratamento hipnótico age como cosmético, procurando encobrir e dissimular algo existente na vida mental, enquanto a psicanálise busca expor e eliminar algo como na cirurgia. Um aspecto fundamental é salientado: enquanto, em qualquer outro tipo de tratamento sugestivo, a transferência é cuidadosamente preservada e mantida intocada, na análise, a própria transferência é sujeita a tratamento e é dissecada em todas as formas sob as quais aparece. No final, abordando os preconceitos contra a terapia analítica, Freud (1917) não esconde a sua posição crítica e cautelosa: Os senhores ouviram uma exposição daquilo que realizamos com nossos pacientes, e podem formar seu próprio juízo quanto a saber se nossos esforços são destinados a produzir qualquer prejuízo duradouro. O mau uso da análise é possível, em diversos sentidos; em especial, a transferência é um instrumento perigoso nas mãos de um médico inescrupuloso. Não há instrumento ou método médico que esteja garantido contra mau uso; se um bisturi não corta, tampouco pode ser usado para curar (p.539). Como escreveu Freud ao pastor Pfister (BOKANOWSKI, 2002, p.44), a transferência é uma cruz para o trabalho analítico, mas ao mesmo tempo é uma bênção, na medida em que permite a descoberta, bem como a compreensão, das fantasias inconscientes do indivíduo. Ela é uma cruz a suportar, enquanto so- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.95-102 – Novembro. 2009 Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista mente seu desdobramento e sua intensidade, quer a tenhamos por uma resistência ou por uma alavanca, fazem que haja ou não análise efetiva. Pela transferência sobre o analista, os movimentos psíquicos do paciente, os mais diversos, os mais opostos, encontram uma saída, atualizam-se. Como diz Pontalis (1998): “Nossas memórias para serem vivas, nossa psique, para ser animada, devem se encarnar”(p.274). A questão do amor de transferência considerada por Freud (1915) traz a compreensão de que é absolutamente proibido ao analista passar ao ato sexual. É certo que, na fantasia ou no pensamento, o paciente nutre a esperança de uma relação mais próxima com o analista, como a única pessoa com quem ele pode se entender. No entanto, o analista deve sempre garantir a análise, não pode dar respostas às necessidades do paciente. Zygouris (1999) enfatiza que Freud inventou uma relação totalmente inédita, fundada sobre um interdito de relação sexual entre dois estrangeiros. O interdito que marca as relações não só sexuais como as de uma maior proximidade entre analista e paciente é muito mais radical que a reserva exigida em outros campos, como a Medicina ou a Educação. A transferência de interdito evoca, quando não suscita, a situação edípica: a criança no adulto irrompe e entra em cena, frequentemente sem sabê-lo. Cabe ao analista a tarefa de percebêlo e não se enganar de interlocutor em suas intervenções. Ora, quando um analista, suposto adulto para seu paciente, responde à demanda de amor de uma “criança”, mesmo em se tratando de uma pessoa adulta, através de uma passagem ao ato, faz o que Ferenczi (1933) chamava de “confusão de línguas”. A verdade é que não podemos subestimar a potência das pulsões: o desejo é contagioso, e o analista nem sempre é o adulto que imaginamos. O amor que nasce na situação analítica é, desde o início, paradoxal: “Você pode me amar, pode contar comigo, mas te prometo que iremos nos separar um dia”. O analista promete presença e permanência, mas na sua promessa se insinua, de modo latente, a certeza de uma separação. A promessa de separação tem a ver não apenas com as capacidades terapêuticas do analista, mas é o seu próprio eixo ético. Outro aspecto importante colocado por Freud é a questão do múltiplo no interior do amor. No amor há pulsões parciais, há sempre o amor mais a morte, o amor mais o ódio, há sempre o amor mais o negativo. Na posição analítica, a síntese não é possível. Análise é estar sempre em contato com o negativo e o analista é aquele que ocupa a posição da insistência do negativo (FÉDIDA,1988). O trabalho do analista sobre a transferência não é fácil, as dificuldades são diversas, os obstáculos no caminho da cura são imprevisíveis. A transferência pode ser vista como uma encruzilhada trágica (BIRMAN,2003, p.103), em que o analista assume a função de coautor nos possíveis destinos do sujeito, e o ato analítico reveste-se de uma dimensão vital de responsabilidade. Essa tragicidade assume maiores proporções quando se trata da análise do analista. É justamente aí que se dá a experiência de transmissão do saber psicanalítico. O saber ensinado, os estudos teóricos, a experiência das supervisões, passam necessariamente pela filtragem, libidinal e mortífera, da transferência. Nesse contexto, os problemas não são apenas de ordem teórica e ética, mas também de ordem política. Para Laplanche (1998), a análise didática é uma das formas mais perniciosas de “psicanálise por encomenda”, em que a instituição Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.95-102 – Novembro. 2009 99 Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista formula uma solicitação: a de que se fabrique, por meio da análise, uma personalidade de acordo com seus desejos. Ele oferece uma interessante analogia: enquanto, na análise de crianças, a mãe algumas vezes fica na sala de espera e uma análise de verdade só se instaura quando -simbolicamente e mesmo realmente- lhe fechamos a porta, na situação didática, a mãe-instituição fica presente, simbolicamente, com todo o seu peso, na sala de espera e não há negação capaz de fazer com que não seja assim. Laplanche defende que a análise do analista não pode ser senão um processo extraterritorial, fora de todo controle institucional e livre de todo fim profissional e ideológico. Na verdade, toda análise é “formação” se for um movimento pelo qual a pessoa, através das peripécias mais estranhas da viagem ao “estrangeiro”, encontra-se com o que lhe é mais “próprio”. Com relação à transferência na análise do analista, Birman (2003) descreve duas posições subjetivas opostas delineando diferentes destinos para o sujeito em sua relação com o analista, com seu sistema de filiação e com a psicanálise. Pela servidão transferencial, o sujeito se submete aos percalços e desejos do analista, identificando-se com a sua figura e com seu sistema de filiação. Inscreve-se numa posição masoquista, perdendo, com isso, a liberdade de dizer e de pensar. O que ocorre aqui é a confluência da demanda de proteção do analisante com a demanda de imortalização do analista. Em contrapartida, na fidelidade transferencial, o sujeito pode desferir fortes golpes na figura do analista, afrontando a angústia e o desamparo que se coloca na cena da análise. Com isso, existe a possibilidade de invenção e de ruptura com as cadeias mortíferas da repetição. Aulagnier (1985) considera o papel do analista como possível indutor de 100 um estado passional no analisante, favorecendo uma deformação da transferência. A paixão de transferência resultante é contraditória ao projeto analítico e é caracterizada por uma atenuação máxima de todo sentimento de insatisfação e de conflito na situação analítica. O estado de sofrimento só aparece em raros e breves momentos. O estabelecimento de uma relação aconflitual leva a uma exclusão da cena da análise de toda mobilização da agressividade do analisante e de toda fantasmatização e interpretação que possam servir a uma desidealização do analista e da análise. Essa situação é preservada graças a um constante trabalho de negação e de exclusão de qualquer pensamento que poderia explicitar a patologia da relação e da paixão. É evidente que a estrutura psíquica e o desejo inconsciente do analista não são onipotentes com relação ao destino do seu parceiro de análise. Não basta que as suas aspirações visem suscitar no sujeito um estado passional para que este surja. Contudo, existindo tal desejo no analista – desejo de alienar –, as chances de sua realização são muito grandes, porque, nesse caso, o analista encontra, paradoxalmente, seu melhor aliado no amor de transferência. Se o analista, ao concluir sua própria análise, preserva um investimento passional em seu próprio analista, esta vivência transferencial tem grandes chances de se repetir naqueles que analisará. A presença de resíduos transferenciais é uma consequência natural da relação analítica. O problema surge quando há preservação em bloco da paixão transferencial, manifestando-se pela idealização de um pensamento, de uma teoria ou de um poder. O campo da formação do analista é marcado por inegável mal-estar. As figuras da submissão, do domínio, da alienação e da paixão pertencem a essa Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.95-102 – Novembro. 2009 Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista estranha paisagem. A técnica criativa promove espaço para a vida se instalar e crescer. A ética do analista é a de Freud (1919) quando ele diz: Keywords Psychoanalytical formation; analyst’s psychoanalysis; technique; transference; helplessness; ethics. Recusamo-nos decididamente a transformar em propriedade nossa o paciente que se entrega a nossas mãos em busca de auxílio, a conformar o seu destino, impor-lhe nossos ideais e, com a soberba de um Criador, modelá-lo à nossa imagem, nisso encontrando prazer (p.424). Abstract The text approachs the question of psychoanalytical formation coming from Freud’s and Ferenczi’s ideas about transference and the analyst work in analytical situation. The author tries to understand analytical experience’s specificity and to reflect about the aims of transference in the analyst’s psychoanalysis. A psicanálise não promete a cura, não propõe modelos de conduta, nem veicula certezas, apenas possibilita ao sujeito conviver com seu intransponível desamparo, favorecendo a invenção de um estilo de vida condizente com a singularidade do seu desejo. De outra parte, os impasses entre o desejo e a lei, entre as pulsões e as exigências da cultura, são estruturais e fonte permanente de mal-estar para os indivíduos. Diante dessa situação, Freud se recusou a apontar saídas: cada um terá que encontrar seu próprio caminho para enfrentar a dureza da vida. Como um autêntico pensador, Freud (...) nos força a pensar e, quem sabe, a não perder a esperança no deus Logos, ou no divino Eros, ou qualquer outro nome com o qual se queira caracterizar o esforço sobre-humano de construir e reconstruir um mundo ético (DI MATTEO, 2006, p.65). 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Obras Completas – IV. São Paulo : Martins Fontes, 1992. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.95-102 – Novembro. 2009 101 Desafios da formação psicanalítica: reflexões em torno da análise do analista FERENCZI, S. Confusão de línguas entre os adultos e a criança [1933]. In: _____. Obras Completas – IV. São Paulo : Martins Fontes, 1992. FIGUEIREDO, L C. Ética e técnica em psicanálise. São Paulo : Escuta, 2000. FREUD, S. Sobre a psicoterapia [1905]. In:_____. Edição standart brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro : Imago, 1989. v.VII. _____. Observações sobre o amor de transferência [1915]. In: Jornal de Psicanálise, São Paulo, 32 (58/59): 437-447, nov.1999. _____. Terapia analítica [1917]. In: _____. Edição standart brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro : Imago, 1989. v.XVI. _____. Caminhos da terapia psicanalítica [1919]. In: Jornal de Psicanálise, São Paulo, 32 (58/59): 419-426, nov.1999. 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São Paulo : Escuta,1999. 102 Tramitação Recebido : 20/06/2009 Aprovado : 25/08/2009 Nome : Marcelo Wanderley Bouwman Endereço : Praça Fleming, 117 / 1801, Jaqueira CEP : 52050 - 180, Recife/Pe Fone : (81) 9975 8028 E-mail : [email protected] Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.95-102 – Novembro. 2009 A interpretação nos estudos psicanalíticos The interpretation in psychoanalytic studies Maria Beatriz Jacques Ramos1 Palavras-chave Escuta analítica, interpretação, narcisismo, perversão. Resumo O tratamento psicanalítico é uma história de encontros. O analisando fala, oferece um tema; o analista começa a escutar. A assimetria nem sempre é duradoura, pois a transferência traz histórias e significações imaginárias. O processo analítico é complexo, é um emaranhado de ações, interações e retroações. O analista pontua o discurso com interpretações, liga espaço e tempo, procura trabalhar com a pulsão de morte. Para ilustrar essas reflexões, apresentamos uma história entre tantas outras, que inquietam e possibilitam mudanças de vértice, de olhar, sobre a constituição e estruturação psíquica como no caso do Guardião de Memórias. Ao considerar a configuração do campo analítico, alguns fatores se destacam: o discurso explícito do paciente; a configuração da percepção de si mesmo e das defesas; a fantasia inconsciente, que inclui a transferência e a contratransferência; e a atenção à narrativa do paciente, na qual aparecem elementos que podem suscitar uma interpretação. Nesse paradigma, a escuta analítica descentra o discurso do paciente para procurar um novo centro, que não está no conteúdo latente atrás do manifesto, mas em outro lugar. O trabalho analítico caracteriza-se por examinar as modalidades de relação do paciente, que se repetem e são causadoras de sofrimento, e por seguir o curso da associação livre. O foco de atenção do analista pode concentrar-se na relação transferencial e contratransferencial ou nos percursos do inconsciente e do consciente, pois o analista deve colocar-se como um copensador. Escutando e falando com o paciente, surgem as fantasias inconscientes, pensamentos, intuições que apontam a natureza da situação e da emoção correspondente. Sabemos que o paciente tem dificuldade de falar de si mesmo e de vivências, por isso é melhor “lavar os pratos em água fria no lugar de água quente, contrariamente ao que habitualmente se acredita”. (FABOZZI, 2006, p. 239) Outro aspecto a ser considerado na escuta analítica é a capacidade de deixar fluir o desejo, o pensamento e as associações do próprio analista. Na situação de análise, a autenticidade passa por um contato afetivo e um conhecimento, já que, “antes de curar a ferida é necessário cuidar da faca”, da verdade desvelada que pode apresentar-se como expressão de autoridade ou superioridade moral. A noção de campo analítico tenciona a relação que se estabelece no aqui e agora, pois essa apresenta desafios teóricos e clínicos, exigindo do analista um trabalho psíquico contínuo, uma auto-observação mais detida e sua inclusão mental na trama das emoções e pensamentos que o paciente traz. O trabalho consiste na escuta de narrativas que encontram um aparato no setting e no analista, predisposto à transformação das mesmas. Se as coisas funcionam bem, 1 Psicanalista do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Doutora em Psicologia pela Faculdade de Psicologia da PUCRS. Professora da Faculdade de Educação da PUCRS. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009 103 A interpretação nos estudos psicanalíticos as turbulências emocionais e sensoriais são transformadas em imagens oníricas, em pensamentos oníricos e, especialmente, inicia-se o processo que permite a introjeção no paciente do método para digerir e modificar suas narrações. Spillius (2002) acredita que só pode haver mudança psíquica se a interpretação se dirigir para a experiência emocional do paciente no setting. Assim, ele obterá insight, caso contrário será construído um conhecimento teórico, mas o paciente não mostrará nenhuma transformação. Para Fabozzi (2006), a transferência do paciente evolui independente da contratransferência do analista, está relacionada com a personalidade do analista e com a atmosfera que introduz na forma de trabalhar. As funções da interpretação são múltiplas, como comunicar informações ao paciente para compreendê-lo e para que se sinta compreendido; transmitir indiretamente, por meio de hipóteses, as funções da identificação, contenção, tolerância, atribuir um significado ao que ocorre em cada sessão; captar e modificar as angústias, as fantasias inconscientes para assim favorecer a integração psíquica, a visão da realidade interna e externa. Passado e presente precisam voltar a dialogar, assim como a realidade emocional e a simbólica. Cada história clínica reflete a vivência do analista, um modo de estar consigo mesmo para estar com o paciente. Na clínica, nascem a teoria e o analista, o reflects back, o que reflete a espinha dorsal na comunicação do paciente. A transferência, ou a interpretação da transferência, é o caminho da mudança psíquica. A transferência do mundo interno para a situação analítica é o que McDougall (1991) denominou Teatros do Corpo, expressando tudo o que o paciente diz, mostra e age. O paciente não transfere sempre o mesmo, por isso não cabem conceitos como transferências paternas e maternas. 104 O analista deve examinar o que é transferido; muitas vezes o que se transfere são uma função mental ou um papel no sistema de defesas do paciente, mantendo a patologia inalterada. Além disso, o analista precisa acompanhar a posição psíquica do paciente, pois isso definirá o conteúdo da transferência e seu contexto intrapsíquico. A linguagem do paciente e do analista representa mais do que uma forma de comunicação, é uma forma de agir um sobre o outro. A situação analítica e a regra fundamental – a livre associação e a atenção flutuante – produzem desfraldar da palavra. Na associação livre, produz-se um descolamento da imagem, da fala, incluindo diversas imagens caleidoscópicas, cujas combinações possíveis se multiplicam em ritmo, cadência e intensidade. A excitação explícita no gaguejar de uma palavra ou um sentido duvidoso de uma frase mal construída, dá mostra de tonalidades diferentes às figuras que passam na escuta da atenção flutuante. O paciente, ao ser escutado pelo analista, também se escuta. A imagem retorna. Uma imagem que pode desconstruir o discurso e adquirir nitidez no momento da interpretação. É na palavra que a pulsão insiste. Pode ser a palavra não falada, mas que é evocada na compulsão à repetição. Ao seguir as repetições, acompanhamos as vicissitudes da pulsão para rastrear as pegadas das identificações. DE QUE LUGAR O ANALISTA ESCUTA? Do inesperado, do surpreendente e da transferência. O inconsciente está no analista e no analisando como um depósito ou uma panela de pulsões. Na transferência, há um rompimento da objetivação, pois inclui uma montagem entre analisando e analista. Um lugar onde os dois estão incluídos no mesmo campo, sem simetria ou igualdade de funções. O analisando se dirige ao ana- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009 A interpretação nos estudos psicanalíticos lista como sendo o único destinatário de sua palavra, numa tentativa de articular seu desejo a uma presença concreta. O analista mantém a transferência sem confundir-se com ela, remetendo o sujeito aos fundamentos infantis do amor. Isso é possível com a renúncia narcísica do analista, pois não pode ocupar o lugar de amo do desejo, nem converter a análise em sugestão; nem se oferecer como ideal a ser imitado, acreditando numa neutralidade absoluta, desconhecendo os obstáculos da escuta. Para Stein (1971), “As sessões do paciente têm mais possibilidades de converter-se na sua psicanálise, se são para o seu analista, o lugar privilegiado de continuação da sua análise” (p.364). Por isso, a análise pessoal do analista é fundamental. Reconhecer a possibilidade de escuta representa renunciar ao desejo pessoal. A escuta do analisando traz à cena uma história. Mas qual história? Possivelmente não é a história factual, mas a história constituída em suas fantasias. Fantasias que surgem na análise do sintoma e do seu deciframento, já que a causa do sintoma nem sempre está no passado. A causa do sintoma pode estar no presente, na inscrição do presente, que na análise atua como transferência. A construção de fantasias é uma teoria que, tal como um mito, tende a responder aos enigmas que o sujeito se coloca. Por isso, tudo pode se complicar, pois o analista também tem suas fantasias, sua teoria, sua história, assim como a história e o presente do movimento psicanalítico, mas, também, pode oferecer possibilidades ao analista em relação à escuta ou pode limitá-la. Suas fantasias podem limitar a escuta, pois têm pontos cegos. As teorias que entram na sessão, para serem aplicadas ou confirmadas, obstaculizando as possibilidades do analisando de construir uma teoria pessoal, uma teoria sobre sua história. A seguir, apresentamos uma digressão literária, ilustrando com um caso clínico. O GUARDIÃO DE MEMÓRIAS Este é o título do livro escrito por Kim Edwards, em 2007, que descreve uma passagem das vidas de alguns personagens. Na introdução ele situa o leitor com o enredo da história fictícia: Casados há poucos anos, Norah e David esperavam felizes a chegada de seu primeiro filho. Mas a alegria duraria pouco. O que deveria ser uma boa notícia transforma-se num terrível pesadelo. Norah dá à luz duas crianças: Paul, um menino saudável, e Phoebes, portadora da síndrome de Down. David lembra-se da complicada infância ao lado de uma irmã com a mesma doença. Desejando ardentemente poupar a esposa e a si mesmo desse sofrimento, ele decide expulsar a filha de suas vidas. Mas o preço dessa decisão acaba sendo alto demais. Pouco a pouco a culpa corrói o núcleo da família, e durante os 25 anos seguintes cada um vai lentamente se fechando em torno de suas próprias angústias. Atormentado pelo arrependimento, David fica obcecado por fotografar imagens de crianças. Norah, cada vez mais afastada da vida do marido, entrega-se ao álcool e a pequenas infidelidades, buscando em vão distrair-se da avassaladora dor da perda. Enquanto isso, Paul sente na pele a rejeição dos pais, que parecem mais envolvidos na suposta morte da irmã do que na sua vida. Em outra cidade, porém Phoebes cresce feliz e cercada de cuidados pela mãe adotiva, que luta para dar à menina uma vida digna e livre de preconceitos. O enredo dessa história é a rejeição, a solidão, a dor e o luto. Recebi esse livro de um paciente, como forma de pagamento das sessões (além desse, foram mais três), depois de recombinações do contrato de trabalho, porque ficou desempregado durante um mês e passou a vender livros de ficção. Ele deu as obras de que dispunha e percebo que essa foi endereçada a mim. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009 105 A interpretação nos estudos psicanalíticos Assim transcorre uma análise! De Narciso a Édipo, da transferência a contratransferência. Pablo, nome fictício, é solteiro, tem vinte e cinco anos, mora com o pai desde os três. É filho do segundo casamento da mãe, o filho caçula. Quando os pais moravam juntos, ele acompanhava o pai no trabalho. Não se lembra da mãe como uma pessoa sustentadora e confiável. Depois de alguns anos, os pais se separaram. O pai desconfiava da fidelidade da mulher, tinham brigas e discussões. A mãe ficou com os dois filhos do primeiro casamento. Pablo foi embora com o pai, sem oposição materna. Independente da decisão do pai salienta que jamais ficaria com ela, uma mulher fria, desligada e distante. Apresenta-se como heterossexual, teve duas namoradas. Elas tinham problemas familiares, com carências que ele não conseguia tolerar. Ficou com Andréa três anos e terminou o namoro quando percebeu que não sentia saudades dela. Lembrava-se de encontrá-la nos fins de semana para um contato sexual. Nas lembranças infantis, conta que ficava na casa de famílias para que o pai pudesse trabalhar e dos jogos sexuais com crianças, que traziam alívio e satisfação. Sua primeira paixão, com cinco anos, foi por uma menina da mesma idade. Dos cinco aos vinte anos até sentiu algo com a mesma intensidade, mas depois isso não mais aconteceu. Na adolescência, assistia a filmes pornográficos, masturbava-se até ficar esgotado e pensava em relações homossexuais. Achava-se feio, tímido e inseguro. Apanhava dos colegas da escola. No início do tratamento, frequentava parques e banheiros públicos para encontros com homens desconhecidos. Seguia a vida acompanhado de Hades com a sensação de estar só, perdido, caminhando para o fundo do poço. Na mitologia grega, Hades é o deus do submundo e das riquezas dos mortos e governa os subterrâneos da Terra. 106 O desejo e a exposição pública eram esporádicos, provocados pelo vazio, pela constatação de não contar com ninguém, não ter garantias. Comenta que gosta de olhar mulheres na rua e quer uma mulher que possa compreendê-lo sem exigências. Depois de dois anos de tratamento, não se expõe sexualmente, mas a masturbação é uma compulsão que aparece de tempos em tempos. Às vezes, quando vê uma mulher bonita, imagina histórias, conversas, encontros, que nunca acontecerão. Atualmente está ficando com uma colega, inclusive nos fins de semana. Não se acha incapaz, mas lhe faltam palavras quando está perto de alguém que admira, principalmente se a pessoa é bonita, vivaz, inteligente. O vínculo com o pai é escasso. Ele é muito brigão, autoritário, reclama de tudo, um ressentido. Desde os dezesseis anos não passam juntos as comemorações no final do ano, brigam constantemente. Ele é um homem queixoso e irritadiço, tem problemas na próstata e faz tratamento. Lembra que chorou uma vez quando o viu deitado na maca de um hospital, gritando de dor, sem atendimento médico, porque não tem plano de saúde. Quando adoecem, recorrem a postos de saúde ou ao Pronto Socorro Municipal. O guardião de memórias, expressão que uso quando penso nesse paciente, tem alguns amigos na vizinhança, colegas de faculdade, com quem sai algumas vezes. Frequenta um grupo de jovens, trabalha num projeto de ensino não formal, acompanhando mães e crianças com vulnerabilidade social. Foi diagnosticado com déficit de atenção e depressão por um psiquiatra, toma medicações. A mãe mora no interior. Pablo vai visitá-la uma vez por ano, em seu aniversário, por pressão dos amigos. Ela conta intimidades com seus namorados, o modo como os homens a querem e a chamam de gostosa. É diabética, mas adora fazer doces para os namorados. Doces que ele tem que experimentar. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009 A interpretação nos estudos psicanalíticos A aparência de Pablo é frágil. Percebemos sua idealização e ironia quando diz que gostaria que seu quarto fosse como nossa sala de trabalho, arrumada e organizada, já que não consegue se livrar dos papéis, livros e roupas espalhados no chão. Às vezes, chama-me de Dom Quixote e denomina-se de Sancho Pança. Quem é Dom Quixote, Sancho Pança e onde fica a Dulcineia? Inveja e projeção numa aparente passividade e polidez. Fixação, frustração, carência e privação. Como ressignificar sua história? Uma história com desconhecidos, com momentos de medo, de rompimento e perdas, de choros incontroláveis, pois não sabia se o pai voltaria para buscá-lo nas casas em que ficava quando ele saía para trabalhar. Hornstein (2008) comenta que a história pessoal não é linear. Supõe limites entre a história recente e a história infantil. “Ela conhece turbulências, bifurcações, fases móveis, estágios. São um conjunto de devires confrontado com risco, incertezas que envolvem evoluções, progressões, regressões e rupturas.” (p.53). A compulsão à repetição é uma simbolização de que se está no meio do caminho entre o repetido e a criação. Criação de um Eu, de um projeto futuro que não se dobre pela nostalgia do que foi perdido. Para Ferro (2008), as homossexualidades são campos que precisam ser arados. Há uma forma de manifestação que serve para aplacar uma parte de si mesmo, temida e violenta, impossível de ser contida, que é sedada com a masturbação, ou com a sodomização, por isso é projetada no outro. Há um funcionamento masculino no mundo interno que necessita ser aplacado, cindido, como meio de lidar com as defesas primitivas e administrá-las. Também há outra forma que remete a um aconchego defensivo, desde um autoerotismo, que nega a ausência e a alteridade, até modalidades muito excitadas, acompanhadas por um cortejo de angústia, culpa e recriminação, que funcionam como uma droga, um antidepressivo, uma forma de eliminar a angústia. Outra classe se refere à homossexualidade do tipo feminino que comporta uma harmonia indiferenciada, funcionando como uma barreira em relação às emoções primitivas, protoemoções, temidas e violentas, que precisam ser amortecidas. Em termos de funcionamento mental, Ferro (2008) salienta que pode haver uma homossexualidade masculina e uma homossexualidade feminina, tanto em homens como em mulheres. Nesse caso, é preciso administrar os hiperconteúdos mentais, em relação aos quais nunca houve suficiente continência. O que falta para o guardador de memórias? Alguém que faça um papel perdido, que exerça uma função deteriorada. Alguém que sinta o que sente e transforme em linguagem o que precisa, em palavra o que não foi nomeado. Penso que esse é o lugar do analista, o lugar em que sou colocada como analista em fantasia. Na situação transferencial, percebemos a parte primitiva e cindida, temida e difícil de ser contida, que depois é encenada fora da sessão. Numa das sessões, apontamos para a situação de adoção, a partir do livro que nos ofereceu. A maneira como queria ser adotado por nós para suprir as demandas insatisfeitas na relação com seus pais. Ele silencia e depois comenta que nada escapa dos psicanalistas. As relações parentais são frágeis, não consegue conviver com eles, os pais, nem exprimir sua raiva. Vive ruminando um bico molhado na pimenta e compulsivamente experimenta vivências catastróficas. Busca aconchego no próprio corpo ou no corpo do outro, atua para fugir da depressão. A parte narcisista assume o controle da parte saudável da personalidade e promove vínculos perversos, como um escape da angústia depressiva. Os atos perversos ilustram o discurso de um sujeito dividi- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009 107 A interpretação nos estudos psicanalíticos do no apego com o outro; conectado com o objeto da pulsão, causa do desejo (objeto a), representante do significante mestre, a metáfora paterna. Nesse caso, a análise parece constituir-se numa experiência de significação desvelando os sintomas trocadilhos, que estão na base do jogo de significantes. O inconsciente aponta os significantes, segundo as leis da linguagem, que deslizam sem cessar, que não se detém em significados. O significante como causa de gozo nos mostra que a linguagem traça as vias do gozo, promove seus caminhos, suas ruas e avenidas, seus compartimentos e comportas favorecendo umas, dificultando outras e impossibilitando ainda outras (QUINET, 2003, p. 143). Atualmente, sua atividade masturbatória diminuiu. Já não representa uma posição excitante e antidepressiva, uma espécie de caleidocóspio de possibilidades com um divisor comum, uma mania para afastar o medo, o colapso. Aí reside o trabalho analítico: captar a função da homossexualidade no funcionamento mental do paciente para que pense nos enganos construídos para suprimir o impacto dos sofrimentos emocionais. Assim como há muitas homossexualidades, há diversas manifestações das depressões. Em algumas, a perda do outro ritualiza o desamparo infantil. Um desamparo ameaçador, pois o outro não está à disposição do sujeito, mas permanece como uma ausência onipresente. Na depressão, o amor por si mesmo é empobrecido, esvaziado de sentido e de metas futuras. A perda não elaborada mobiliza a agressividade contra o objeto e contra si mesmo. As marcas afetivas preservam a memória do outro no psiquismo, movimentam as pulsões, a representação e a palavra (HORNSTEIN, 2008). A história desse rapaz configura-se em diferentes lugares com perdas e separações. 108 Suas vivências de satisfação e de dor apontam uma forma de organização psíquica na qual a fantasia insiste, a palavra é um interdito como o gozo tecido numa linguagem na qual o desejo busca formas para se encarnar num corpo que precisa permanecer infantil. A falta de investimento parental, o amor não correspondido, reduziu seu amor próprio. O que predominou foi a ferida narcísica, a agressividade contra o objeto e contra si mesmo. O guardião de memórias evidencia a dor da sobrevivência não assegurada. Clama pelo direito de existir, porque os outros não ofereceram um espaço e tempo regados na ilusão, criatividade e simbolização. Sua vida é árida com alterações de humor, atuação e impulsividade. Por vezes, as escolhas amorosas representam uma repetição das ligações infantis, uma manutenção do superego severo e punitivo, não permitindo o investimento afetivo de cuidar de si mesmo sem atacar o presente e o futuro numa constante agressão e busca de punição. O superego denota uma realidade complexa, distingue o bem e o mau, culpabiliza. O superego é um cortejo de autoacusações e o ideal do ego fica perdido, abalando o narcisismo. Para se defender da cólera do superego, recorre à transgressão, mostra o desejo extraviado, desorientado, a fraqueza e a perda de si mesmo. Isso o leva à transgressão, ao desafio, à indiferenciação, pois a discriminação entre a fantasia e a realidade implica reconhecimento do sujeito como ator de sua ação. Na capacidade de reconhecimento, de ver o que o outro não vê, o trabalho analítico precisa ser retomado, o inconsciente, como uma verdadeira essência, precisa ser reunido e separado, vivenciado nas narrativas que aludem a uma parte de si mesmo, uma parte que Pablo coloca em contato comigo. Nessa perspectiva, sua fala é o dito e o mal-dito, racionalização e negação, um cenário do mundo interno. Desse modo, a interpretação pode assegurar percurso da Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009 A interpretação nos estudos psicanalíticos simbolização num movimento constante para produzir pensamentos. Na linguagem saturada de subentendidos e de tropeços nos atos e nas palavras, nas rupturas da ordem do recalcado, procuramos questões do presente para apontar seu estilo de vida e o futuro. Acreditamos que, para interpretar o material do paciente, é necessário descobrir seu significado e, principalmente, o significado que tem para ele, pois assim poderá sentir-se sustentado afetiva e emocionalmente. A realidade psíquica não pode ser confundida com a realidade material. Tem a ver com o inconsciente, com a realidade interna subjetiva. É na capacidade de identificação, de adaptação do analista às necessidades do paciente, que pode ser resumida a idéia de colocar-se no lugar do outro, de construir a confiabilidade no objeto. O resultado do tratamento analítico consiste em criar no interior da comunicação um espaço potencial, para que a análise tenha lugar. As manifestações narcísicas podem ser consideradas a partir do modelo continenteconteúdo de Bion (GRINBERG, 1991). A definição do narcisismo é inseparável de uma definição do Eu, uma dificuldade específica de elaboração edipiana, que se contrapõe à modalidade de relação dual e fusional de ideias de um fora. Entendemos que o processo de crescimento e de sentimento de apropriação do mundo suscita as angústias e as imagens espaçotemporais-distorcidas. Assim como a existência do eu requer o outro, pois ambos se constituem numa interação, num vínculo influenciado por um mundo interno e um mundo externo a imagem interna é apreendida nas identificações com os outros, na progressiva internalização dos relacionamentos objetais, traduzidos em diferentes linguagens, infligindo uma marca no narcisismo. É preciso fazer-se amar pelos outros, agradá-los, para conquistar seu amor. Assim começa a incompletude, o desejo de recupe- rar a perfeição narcísica, o desejo insatisfeito, o desejo incestuoso (NASIO, 1999). Green (1988) usa a expressão Narcisismo de vida, narcisismo de morte, título de uma das suas obras, para ilustrar o que denomina de processos de ligação e desligamento psíquico. O principal objetivo da pulsão de vida é a função objetalizante, criar uma relação com o objeto, mas também transformar estruturas em objetos, mesmo quando esses não estão mais em questão. A pulsão de morte tem como objetivo exercer uma função desobjetalizante com o desligamento. O ataque aos vínculos não ocorre apenas contra a relação com o outro, mas contra o ego, contra a capacidade de buscar ligações. O discurso do narcisista é recitativo e narrativo, como se a simples desconexão da linguagem tivesse o poder de destruir a imagem do self, perseguida pelo despedaçamento. A frieza e a indiferença tornam-se escudos para proteger o self do narcisista e afastá-lo da angústia de intrusão. Diria inclusive que o que caracteriza a estrutura narcisista é este ponto fraco na armadura ou no brasão. Ponto rapidamente percebido pelo objeto, que sofre por se ver mantido assim à distância, excluído da relação de proximidade, congelado pelo sujeito narcisista (GREEN, 1988, p. 178). A imagem narcísica é uma das condições do aparecimento do desejo e do reconhecimento. Compõe-se de um conjunto de representações que circulam em torno de uma falta. Uma falta que permanentemente busca a satisfação, o prazer. É na manifestação do narcisismo que emerge a identidade inscrita ou marcada pelo conhecimento construído com o outro, na clínica. O narcisismo altera a capacidade de pensar sobre as experiências, pois está relacionado com um ideal de bem-estar e de autoestima. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.103-110 – Novembro. 2009 109 A interpretação nos estudos psicanalíticos Pensamos que Pablo está entre o vivido e a reconstrução. Entre o reencontro com o objeto fantasiado e o objeto real. Para Hornstein (2008), no narcisista há um longo caminho até a aceitação de si mesmo e de um vínculo com o outro. Assim como um compromisso entre o que permanece e o que muda, a compulsão à repetição é uma simbolização que se repete. O inconsciente não é só o reprimido, também é o repressor ao desvelar as pulsões e seus derivados. Ao aceitar uma pessoa como paciente não se faz apenas uma escolha. Na clínica a escuta põe em suspensão os interesses teóricos em prol da singularidade e do tratamento, em benefício da construção de pensamentos. Por isso, pensamos que permanecer ensimesmado, com um sistema defensivo enraizado em si mesmo, é o patrimônio das memórias herdadas desse jovem guardião, que tem muito para sentir e tecer internamente. Analisar é uma árdua tarefa. Nesse caso, requer a elucidação da função teórica em relação à escuta e ao poder da agressividade no movimento associativo do paciente. O trabalho analítico nos confronta com a violência secundária quando não percebemos a capacidade de transformação do paciente, quando desconhecemos os enigmas que temos para elucidar: os retalhos de uma história lembrada. Keywords Analytical listening; interpretation; narcissism; perversion. Abstract The psychoanalytic treatment is a history of meetings. Analysing speech, it offers a subject; the analyst begins to listen. The asymmetry not always is lasting, so the transfer brings histories and imaginary significations. The analytical process is complex, it is a tangle of actions, interactions and 110 reciprocal actions. The analyst punctuates the speech with interpretations, tie space and time, it tries to cancel the work of the impulse death. To illustrate these reflections I present a history between so many people others, which worry and make possible changes of apex, of looking, on the constitution and psychological structuring I eat in case of the Guardian of Memories. Referências EDWARDS, K. O guardião de memórias. Rio de Janeiro : Ed. Sextante, 2007. FABOZZI, P. Formas del interpretar: nuevas perspectivas en la teoria y en la clinica. Buenos Aires : Lúmen, 2006. FERRO, A. Técnica e criatividade. Rio de Janeiro : Imago, 2008. GREEN, A. 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Palavras-chave Transexualismo; travestismo; homossexualismo; Nome-do-Pai; pênis; castração; falo. Resumo O conflito que envolve a decisão de um transexual entre realizar a cirurgia para mudar de sexo ou cuidar de um filho recém-descoberto é o ponto principal do trabalho. O diagnóstico diferencial e os problemas do transexualismo são abordados nos aspectos psicanalíticos tomando como pano de fundo o filme Transamérica. A condição para que alguma coisa seja considerada cômica é que haja duas pessoas envolvidas – uma, a que constata o cômico, e a outra, na qual o cômico é constatado. Há formas variadas do cômico desde o ingênuo, que é quase natural porque há uma inibição inexistente no indivíduo no qual é constatado, o non sense, o absurdo e nas relações humanas nos movimentos, gestos, modos, atitudes e traços de caráter. Por isso é possível tornar a si próprio cômico em relação a outras pessoas, para diverti-las e divertir-se, em situações como disfarces, caricaturas, desmascaramentos, paródias, imitações e o travestismo. Mas pode-se utilizar também o cômico para tornar uma pessoa ou situação desprezível, privá-la de reivindicações e autoridade. No entanto a própria comicidade tem sempre seu aspecto trágico como bem assinalou o compositor Billy Blanco quando disse em uma de suas canções: “O que dá pra rir dá pra chorar, questão só de pesos e medidas...” Acho que com este prólogo já vai justificada a escolha do filme Transamérica, sua ligação com esta jornada e, de quebra, um sinal de que a nossa música pode ser veículo para estudar psicanálise. 1 O filme surgiu no mesmo período em que outros filmes com temas bem próximos começaram a ser explorados como O segredo de Brokeback Mountain e Capote. Duncan Tucker (2005), diretor e roteirista estreante foi instigado a fazer o filme após uma conversa com a atriz transexual, Katherine Cornella com a qual dividiu uma casa durante quatro meses sem perceber que se tratava de um transexual. Aparece a película como despretensiosa comédia que, no entanto, revelou Felicity Huffman como uma grande estrela, que convence no papel e foi indicada ao prêmio máximo de Hollywood. Aliás, outra indicação para o Oscar tornou o filme famoso, a de melhor música. Bree (Sabrine Bree Osbourne) seria uma pálida caricatura não fosse a excelente performance de Felicity. Dado curioso dos bastidores é que Huffman apelidou de “Andy” a prótese peniana que usou durantes as filmagens. O transexualismo, tema principal do filme, foi assim designado por um americano chamado Harry Benjamin nos anos 50, mas suas origens remontam tempos mais antigos. Antes do Império Romano, não há referências registradas sobre homens que Médica graduada pela Escola Bahiana de Medicina e Saúde Pública. Pós- graduada em Tradução pela UFBA. Membro efetivo do Círculo Psicanalítico da Bahia. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.111-116 – Novembro. 2009 111 Transamérica: na encruzilhada da sexuação viviam como mulheres ou vice-versa. O filósofo judeu, Filo, morador de Alexandria no século I d.C. é o primeiro a destacar homens travestidos e vivendo como mulheres, os quais eram emasculados, tiravam-lhes o pênis. Esses homens eram escravos e depois utilizados como guardiões dos leitos de seus senhores – eram os famosos eunucos. O mesmo procedimento foi também usado, anos mais tarde, para que se produzissem cantores líricos a exemplo do famigerado Farinelli, que foi por sua vez tema de um filme. Muitos imperadores romanos tinham características efeminadas e se travestiam. O mais célebre caso dentre eles é o de Nero, que, após chutar a esposa, Pompéia, que estava grávida, acabou matando-a e depois, movido pelos remorsos, resolveu procurar alguém igual a ela para redimir-se. Encontrou a semelhança num escravo, Sporus e contratou seus cirurgiões para transformálo em mulher e casou-se com ele vestido de noiva e com direito a enxoval. Um outro imperador romano, Heliogábalo, casou-se formalmente com um escravo de avantajado físico e adotou perante ele o papel de esposa, oferecendo grandes somas em dinheiro ao cirurgião que o equipasse com uma genitália feminina. Há histórias, não confirmadas, de que o papa João VIII, nomeado em 885, era mulher travestida de homem e que seu nome de origem era Giliberta que depois mudou para “John Anglicus” e foi papa por dois anos. Existem também referências (Vieira 2000) de que, no meio médico medieval, havia uma mulher formada na Escola de Medicina de Salerno, chamada Trotula, que teria escrito tratados 112 de cosmetologia. Cogita-se que Trotula era homem e se travestia para poder tratar das mulheres, ofício proibido aos homens de então. Em épocas posteriores, encontramos o célebre caso de Chevalier d`Eon, que vivia na França e ninguém sabia se era homem ou mulher; considerado rival de Madame Pompadour, acabou como espião de Luis XV na corte da Rússia. Em alguns períodos parecia mulher em outros era homem e só no dia de sua morte descobriu-se que era um homem. No século XV, num povoado de Champignon, surgiu uma mulher que se apresentou como homem, chegando a casar-se duas vezes porque sua primeira mulher morrera. O estranho é que nenhuma das duas esposas jamais se queixou do seu desempenho sexual. Ela possuía um pênis artificial que ela mesma fabricara e com o qual praticava o coito com as mulheres. Millot (1988) chama a atenção para a importância do diagnóstico diferencial. O diagnóstico diferencial do transexualismo é com o travestismo e o homossexualismo. O travestismo constitui o uso de roupas do sexo contrário. O travesti, porém, experimenta prazer erótico ao vestir-se dessa forma enquanto o transexual sente-se como se fosse de um sexo diferente anatomicamente do seu. Não há nenhum prazer erótico nisso. O homossexual tampouco se confunde com o transexual porque a questão para o homossexual é a atração por pessoas do seu mesmo sexo – existe um componente erótico aí também. Mas o transexual sente-se mulher num corpo de homem. Para um homem transexual vestir-se de mulher é vestir-se conforme sua identidade, nada tem de prazer eró- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.111-116 – Novembro. 2009 Transamérica: na encruzilhada da sexuação tico ou sexual. O transexual revela seu desinteresse pela coisa sexual e pela relação com o órgão macho. O órgão sexual é desinvestido sexualmente e não tem significação psíquica. Para o travesti o pênis é o representante do falo materno e adota valor de fetiche. Para Stoller apud Millot(1998), que é um dos maiores estudiosos do assunto, a questão do transexual é de identidade de gênero e não de identidade sexual. De acordo com esse autor, há, para os dois sexos, uma “camada primária fundamental” que corresponde à identificação com a mãe originária. Para ele, os dois sexos se identificam primeiro com a mãe. Para Freud originalmente os dois sexos estão do lado macho, a questão é saber como a menina depois se torna mulher. Para Stoller apud Millot(1988), é o contrário, o problema é definir como um ser no início feminino torna-se homem. Em seguida a esta camada primordial, há uma outra, a de “impregnação do meio” quando há a designação simbólica – você é menino ou menina. Além disso, há um “care taking” especial para cada um dos sexos. É isto que vai dar a identidade de gênero. O terceiro nível de identificação é o Édipo que só vem confirmar a posição anterior. Para Stoller apud Millot(1988), é a relação com a mãe que define o transexual. As mães de transexuais são mulheres vazias, habitadas pela ausência de desejo e com acentuados traços depressivos. Na adolescência, teriam desejado ser meninos, fizeram casamentos de conveniência e acomodaram-se. A criança transexual é produto de um nascimento esperado por muito tempo e desejado como menino, recebe nome de menino e, até de herói, muitas vezes, e representa o que preenche a mãe (o falo) e geralmente são crianças belas. Para Stoller apud Millot(1988), é comum a presença de doenças precoces nessas crianças, o que facilita um tempo demorado de contato corpo a corpo com a mãe, como se fosse seu prolongamento. Às vezes se desenha como prolongamento do braço da mãe, o pai não tem lugar neste relacionamento – forclusão do Nome-do-Pai – o que impede a significação fálica do pênis. O que continua intrigando os pesquisadores é por que querer livrar-se do pênis.A operação é para eles questão de vida ou morte, e a decisão ocorre às vezes após uma situação de luto. Mas há um aspecto curioso que é o desejo de perfeição embutido na perspectiva desta cirurgia – com a ablação do pênis, o transexual quer ser uma mulher perfeita. Um transexual inglês chegou mesmo a dizer que queria ser uma mulher na menopausa. Outros dizem que querem ser “deliciosamente limpos”, “purificados” da protuberância e tornar-se normais. É a fantasia do gozo absoluto. O transexual precisa extirpar o órgão sexual macho para se realizar como falo da mãe – o pedacinho de carne a mais sobra em relação à identificação fálica. O falo não é de um sexo nem de outro, é a massa da sexuação, e a marca é excessiva para a identificação fálica. Segundo Lacan apud Dör (1991), o transexual confunde o órgão com o significante, ou seja, confunde o pênis com o falo, com a idealização imaginária. Assim, de um lado, o transexual tenta livrar-se da sexuação, mas, de outro, realiza o ser fálico (aquele que pode ter o falo) – o Outro completo, não bar- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.111-116 – Novembro. 2009 113 Transamérica: na encruzilhada da sexuação rado. É como se tentassem fazer existir A Mulher inteira, escapando à posição fálica, mortífera. Desejam na verdade um mais além do sexo. Situação com características próprias é a do transexualismo feminino. Para Stoller apud Dör(1991), sendo a primeira identificação materna para ambos os sexos, é preciso que haja uma influência paterna preponderante para neutralizar precocemente a feminilidade primordial. Stoller apud Dör(1991) considera que os transexuais femininos não tiveram existência simbólica satisfatória, pois foi muito cedo neutralizada. As transexuais femininas inserem-se mais facilmente em comunidades masculinas quando procuram vestir-se e comportarse como homens, casam-se com mulheres e têm filhos por inseminação artificial. Há prevalência da simbiose com o pai e efeitos de condicionamento que encorajam a criança precocemente na via das estereotipias da masculinidade. O curioso é que com as mulheres acontece uma situação diferente da dos homens – mulheres travestidas de homens quer sejam travestis quer homossexuais não referem ter prazer erótico com isso. Seriam então todas transexuais? Conforme Dör (1991), a cirurgia apenas dissipa o temor de serem desmascarados como mulheres, mas às vezes catalisa a descompensação do sujeito. A intervenção cirúrgica é a realização de uma ideia delirante. A maioria declara, depois, viver uma existência infernal marcada pela insatisfação, as drogas, culminando com o suicídio. A situação jurídica é ambígua. Seria desejável uma medida consistente que pudesse conter a atividade descontrolada dos cirurgiões. A questão tem caracterís114 ticas mais complexas para decidir se deveria ser autorizada ou não a troca de sexo por via jurídica. Os juristas respaldam-se na apreciação dos terapeutas e tentam avaliar os efeitos a longa distância, procurando informações de como ficam os pacientes operados e os outros. A cirurgia aparece como medida paliativa, não curativa para um problema que é de origem psicopatológica, conclui Dör (1991). . No Brasil existe uma Resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) de no. 1.481, datada de 1997, autorizando, em caráter experimental, em hospitais universitários e públicos, a cirurgia de transgenitalização. Posteriormente, em 2002, uma nova resolução, de no. 1.652, autorizou a neocolpovulvoplastia – a construção da vagina, no caso dos homens, reconhecendo o bom resultado cirúrgico para a transformação do fenótipo masculino para o feminino e as dificuldades técnicas das neofaloplastias – a construção de um pênis, no caso da transformação do fenótipo feminino para o masculino. A seleção de pacientes deve ser feita por uma equipe multidisciplinar; o paciente deve ter: a) mais de 21 anos b) desconforto com o sexo anatômico atual c) desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo d) permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente, por no mínimo, dois anos e) ausência de características físicas inapropriadas para a cirurgia Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.111-116 – Novembro. 2009 Transamérica: na encruzilhada da sexuação f) ausência de outros transtornos mentais. É exigido também o consentimento livre e esclarecido (documentado). Os aspectos legais, como a necessidade de alteração do Registro Civil com mudança de prenome e sexo, ainda são aspectos controversos. Em São Paulo, um juiz permitiu a um transexual operado, chamar-se João e colocar adiante da designação de sexo – transexual. Fatos como esses são questionados pelos transexuais como discriminatórios. Além disso, o paciente adaptado ao novo sexo tem o direito de contrair matrimônio por ter adquirido os direitos do novo sexo. Por envolver problemática sociofamiliar, no Brasil, pelo menos até agora, só se tem permitido cirurgia de solteiros e viúvos. Também não fica o transexual isento de prover pensão alimentar. Como vimos no início, o cômico encerra um aspecto trágico (FREUD, 1905) e a tragicidade no filme está expressa pela convocação do lugar de pai no mesmo momento em que outra convocação poderosa surge claramente – a mudança de sexo. Todos nós, acostumados ao estilo americano de fazer filmes, não nos surpreendemos com a maneira superficial e quase inconsequente de tratar de tão grave questão. Se, por um lado, como vimos, é possível a um transexual psicotizar após a cirurgia ao tentar colocar-se fora da sexuação – condição precípua para o ingresso na comunidade dos neuróticos, de outro, há a injunção. Assim, podemos falar aos psicanalistas: essa demanda decisiva para a função paterna, por si só, já poderia determinar o ingresso no surto psicótico. Incapaz de assumir a função pa- terna, Bree tenta atribuí-la aos próprios pais, tarefa na qual fracassa como já era previsto, pois não é de um pai real que se trata no caso, mas de um pai simbólico, aquele que se reconhecendo faltante (um ser incompleto), portanto, castrado, pode simbolicamente representar a lei e apresentar-se como guardião do falo, mas não seu possuidor. No entanto, sendo ele mesmo o próprio falo, não há como prover o filho dessa dádiva imaginária ocupando o lugar da metáfora paterna, do Nome-do-Pai, enfim. Este realmente é o grande drama de Bree, que provavelmente não se concluiria com a solução de realização de um delírio. Keywords Transsexualism; travestism; homosexualism; name-of-the-father; penis; castration; phallus. Abstract The conflicts involved in the decision of a transexual between his decision to submit to a surgery to change sex or taking care of a son is focused in this work. The differential diagnosis and the problems concerning the surgery are considered on a psychoanalitic point of view with the background of the film Transamerica. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.111-116 – Novembro. 2009 115 Transamérica: na encruzilhada da sexuação ReferênciaS DÖR, J. Estrutura e Perversão. Porto Alegre :Artes Médicas,1991. FREUD, S. Os chistes e sua relação com o Inconsciente (1905). ESB Vol. VIII. Rio de Janeiro: Imago, 1977. MILLOT, C; POMMMIER, G. Transexualismo/ Identidade Feminina. Transcrição 1. Salvador : Tramitação Recebido : 04/06/2009 Aprovado : 29/08/2009 Nome : Marli Piva Monteiro Endereço : Av. ACM 1034 sl 121c, Itaigara CEP : 41825 – 000, Salvador/Ba Fones : (71) 3248 8541 / 3359 2555 E-mail : [email protected] Fator. 1988. VIEIRA, R. T. Aspectos psicológicos, médicos e jurídicos do Transexualismo. Psicologia InFormação. Ano 4 No. 4. jan/dez 2000. TUCKER, D. Transamérica. Filme americano. Duração: 103m. 2005. CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. RESOLUÇÃO CFM nº 1.652/2002. Dispõe sobre a cirurgia de transgenitalismo e revoga a Resolução CFM nº 1.482/97. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/ cfm/2002/1652_2002.htm. Acessado em 21 de agosto de 2009. 116 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.111-116 – Novembro. 2009 As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam The differences which constitute us and the perversions which differentiate us Mercês Muribeca1 Palavras-chave Psicanálise, Perversões Sexuais, Parafilias, Normalidade x Anormalidade. Resumo Este artigo percorre o conceito de perversão através de diversos textos freudianos. Dando especial atenção aos Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade (1905), em que Freud tenta desenvolver uma compreensão da etiologia das perversões, opondo-se à opinião popular acerca da sexualidade em três pontos básicos: a época do surgimento da pulsão sexual; a natureza necessariamente heterossexual do objeto e a limitação do objeto sexual à cópula. Nesse momento, Freud trata de definir a perversão em referência a um processo de negatividade, baseia-se no axioma da neurose como o negativo da perversão. Posteriormente, insere as perversões, a exemplo das neuroses, como núcleo do complexo de Édipo para, em 1927, no artigo O Fetichismo, definir a recusa da castração como mecanismo essencial da perversão; a noção de clivagem do ego é percebida como processo de defesa e a construção do fetiche como substituto do pênis materno. Por fim, a perversão é uma circunstância da espécie humana e o arranjo que foi possível ao sujeito em sua luta pela sobrevivência psíquica. São indeléveis as páginas que o amor ou a dor escrevem no livro do coração. S. Albuquerque INTRODUÇÃO Antes de Freud defender a tese da existência de uma sexualidade infantil possuidora de seus próprios regulamentos e características, acreditava-se que as crianças eram desprovidas de sexualidade, vivendo inocentemente, distanciadas de toda ideia, sentimento ou afeto que implicasse cunho sexual. Ao mundo infantil era interditado qualquer tipo de fantasia ou prazer sexual. É, portanto, nesse cenário de incredulidade que Freud, no ano de 1905, publica os Três Ensaios Sobre a Teoria da Sexualidade, que, certamente, revoluciona a compreensão dos fenômenos sexuais, pro- duzindo mudanças radicais na concepção da sexualidade humana. Este artigo está dividido em três partes. Na primeira, discorre sobre as aberrações sexuais, introduzindo pela primeira vez a palavra pulsão a fim de diferenciar a sexualidade humana – pulsional – da sexualidade dos animais (instintual), pois, ao contrário da fixidez do instinto, a pulsão admite variações em relação ao objeto e ao objetivo sexual. Na segunda, expõe as mais variadas formas da sexualidade infantil, apresentando a matriz da teoria da libido. E, na terceira, estuda a puberdade, numa passagem da sexualidade infantil à sexualidade adulta. É importante destacar que, ao longo dos anos, os Três Ensaios são submetidos a 1 Doutora em Psicologia (Fundamentos y Desarrollos Psicoanalíticos) – Universidad Autónoma de Madrid – Espanha. Psicanalista da Sociedade Psicanalítica da Paraíba (SPP). Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009 117 As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam várias revisões, pois, na medida em que Freud evoluía em seus conceitos teóricos, acrescentava novas ideias, modificando sensivelmente o conteúdo existente em sua edição original. Freud abre o primeiro capítulo descrevendo os processos psicológicos das chamadas aberrações sexuais, através dos diversos desvios existentes quanto ao objeto sexual e quanto à finalidade sexual. Assim, introduz os termos: objeto sexual (pessoa de quem procede a atração sexual) e alvo sexual (ato a que a pulsão conduz) aludindo a que frequentemente ocorrem desvios em relação tanto ao objeto quanto ao objetivo sexual. Vamos nos deter a estudar a primeira parte desses Ensaios, nos quais Freud classifica as perversões em fenômenos de duas ordens: (a) transgressões anatômicas quanto às regiões do corpo destinadas à união sexual; (b) retardamento nas relações intermediárias com o objeto sexual. Nesse sentido, poderíamos dizer que as perversões sexuais seriam transgressões da função sexual tanto na esfera do corpo quanto na do objeto sexual. Porém, talvez fosse importante ressaltar que não se trata propriamente de uma transgressão da função sexual, que é a de promover o prazer, mas sim de uma transgressão da lei, convencionada pela civilização, que elegeu a procriação como função sublime da sexualidade. Pois sabemos que, quando as pessoas fazem sexo, não estão preocupadas com a perpetuação da espécie, mas estão buscando o prazer. Nesse primeiro capítulo dos Três Ensaios, Freud vai dizer que todas essas aberrações ou desvios destroem no adulto a ideia de uma pré-formação, de uma finalidade, porque o objetivo atribuível a esses atos sexuais não visa a um fim biológico de procriar, mas sim ao prazer. Nos Três Ensaios, é possível considerar que a pulsão sexual se manifesta na busca da satisfação em diversos objetos 118 parciais. Esta ideia está presente no modelo da progressão da libido. E é com o objetivo de proporcionar uma compreensão dos destinos das pulsões sexuais que Freud formula a noção de zonas erógenas, sempre relacionadas com o prazer que podem suscitar em determinados órgãos do corpo. Assim, ao referir-se à pulsão sexual, ele adverte que ela está formada por inumeráveis componentes, as pulsões parciais, ligadas a diferentes partes do corpo, as zonas erógenas. Portanto, as excitações sexuais estão localizadas em regiões do corpo, zonas erógenas, com pulsões parciais que funcionam num estado anárquico, desorganizado, que caracteriza o autoerotismo. O indivíduo encontra prazer no próprio corpo – nos primeiros tempos de vida, a função sexual está intimamente ligada à sobrevivência. O autoerotismo é “o estrato sexual mais primitivo”, age por conta própria e exige apenas sensações locais de satisfação. Dessa forma, a sexualidade infantil é tida como polimorfa, porque se manifesta em diversos órgãos do corpo sem que isso implique uma manifestação patológica. Portanto, a sexualidade na infância é prazerosa, sob a forma de estímulos, em diversos pontos do corpo, ou seja, a sexualidade infantil apresenta uma tendência perverso-polimorfa que é autoerótica, mas que não pode ser considerada como uma perversão sexual propriamente dita. Para Freud, a disposição perversa é parte da constituição normal de todas as pessoas. Nesse sentido, não é uma transgressão: passa a ser transgressão na medida em que se preconiza que o sexo deve estar inscrito em rituais (casamento) e deve ter como objetivo a procriação (moral judaico-cristã), e, nesse sentido, a perversão passa a ser transgressão porque vai contra a lei, a regra estabelecida como normalidade. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009 As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam ENTENDENDO O CONCEITO DE PERVERSÃO Em Fragmentos da análise de um caso de histeria (1905[1974], p. 53), Freud pôde dizer que: “Na vida sexual de cada um de nós, ora aqui, ora ali, todos transgredimos um pouquinho os estreitos limites do que se considera normal”. Assim, originalmente, a perversão está relacionada à sexualidade, pois diz respeito a práticas sexuais que extrapolam o objetivo do coito. Nesses casos, o orgasmo é obtido através de práticas ou objetos desviantes do normal, sendo as perversões o resultado do desenvolvimento da pulsão sexual em zonas erógenas distintas dos genitais. Em Vocabulário da Psicanálise, Laplanche e Pontalis (1992, p. 341) definem perversão como sendo o: Desvio em relação ao ato sexual normal, definido este como coito que visa a obtenção do orgasmo por penetração genital, com uma pessoa do sexo oposto. Diz-se haver perversão: onde o orgasmo é alcançado com outros objetos sexuais ou através de outras regiões do corpo onde o orgasmo acha-se totalmente subordinado a certas condições extrínsecas, que podem mesmo ser suficientes, em si mesmas, para ocasionar prazer sexual. Num sentido mais abrangente, perversão tem a conotação da totalidade do comportamento psicossexual que acompanha tais meios atípicos de obter-se prazer sexual. Corroborando o pensamento freudiano, os autores do Vocabulário (p. 342) afirmam que, em psicanálise, só se deve falar de perversão a respeito da sexualidade quando definem: [...] a sexualidade humana como sendo, no fundo, perversa, na medida em que nunca se desliga inteiramente de suas origens, que a fazem procurar sua satisfação não numa atividade especifica, mas no ganho de prazer ligado a funções ou atividades que dependem de outras pulsões. Em Vida e Morte em Psicanálise, Laplanche (1985) lembra que Freud, nos Três Ensaios, descreve a pulsão por excelência, que é a pulsão sexual. É a sexualidade que representa o modelo de toda pulsão e é, provavelmente, a única pulsão propriamente dita. É bom ressaltar que a sexualidade humana é sempre uma psicossexualidade. Ou seja, o ser humano, como ser desejante, atribui sentido ao sexo e subverte a natureza, que impõe padrões fixos para o sexo dos animais, possibilitando vários destinos para a pulsão e tornando a sua satisfação uma escolha tanto em relação ao objeto, quanto ao próprio objetivo pulsional. Freud, em sua 21ª conferência, O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais (1933[1974], p. 376), enfatiza que: O que torna a atividade dos pervertidos tão inconfundivelmente sexual, por mais estranhos que sejam seus objetos e fins, é o fato de, via de regra, um ato de satisfação pervertida ainda assim terminar em orgasmo completo e emissão de produtos genitais. Em uma passagem dos Três Ensaios (1905[1974], p. 151), Freud confessa que, às vezes, nas mais variáveis formas de perversões, a qualidade do novo alvo sexual é de tal ordem que requer uma apreciação especial. Vejamos o que ele disse a esse respeito: Algumas delas afastam-se tanto do normal em seu conteúdo que não podemos deixar de declará-las “patológicas”, sobretudo nos casos em que a pulsão sexual realiza obras assombrosas (lamber excrementos, abusar de cadáveres) na superação das resistências Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009 119 As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam (vergonha, asco, horror ou dor). Nem mesmo nesses casos, porém, pode-se ter uma expectativa certeira de que em seus autores se revelem regularmente pessoas com outras anormalidades graves ou doentes mentais. Tampouco nesses casos pode-se passar por cima do fato de que pessoas cuja conduta é normal em outros aspectos colocam-se como doentes apenas no campo da vida sexual, sob o domínio da mais irrefreável de todas as pulsões. Por outro lado, a anormalidade manifesta nas outras relações da vida costuma mostrar invariavelmente um fundo de conduta sexual anormal. Ainda nos Três Ensaios de 1905, ele usa o termo inversão sexual para falar a respeito dos homossexuais, incluindo-os dentro do quadro das perversões. Assim, quando fala dos invertidos, classifica-os como: absolutos (quando o objeto sexual é do mesmo sexo); anfígenos ou hermafroditas sexuais (quando o objeto sexual pertence a ambos os sexos). Explica que alguns invertidos convivem pacificamente com a inversão, enquanto outros a sentem como uma compulsão patológica, havendo casos em que a libido se altera no sentido da inversão após haver sido submetida a uma experiência dolorosa com o objeto sexual normal. A expressão homossexualidade só será utilizada por Freud em seus acréscimos a partir de 1910. Roudinesco e Plon, em Dicionário de Psicanálise (1998), comentam que no século XIX a homossexualidade havia sido classificada como uma degenerescência pelo saber psiquiátrico, mas acabou sendo reconhecida, em 1974, como uma forma de sexualidade entre outras. Neste ano, a American Psychiatric Association (APA) risca a homossexualidade da lista de doenças mentais. Ainda nessa mesma época, o termo homossexualidade também é retirado da Classificação Internacional de Doenças (CID), livro elaborado pela Organização Mundial 120 da Saúde (OMS) e em 1987 o termo perversão desaparece da terminologia psiquiátrica mundial e é substituído pelo termo parafilia, que não inclui mais a homossexualidade. De sorte que o termo parafilia substitui a idéia de perversão sexual na literatura médico – psiquiátrica na década de 80. Em 23 de março de 1999, o Conselho Federal de Psicologia (CEF) edita a resolução de número 1/99, a qual declara no Art. 3º que: “Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas, nem adotarão ação coercitiva tendente a orientar homossexuais para tratamentos não solicitados”, reconsiderando que “a homossexualidade não constitui doença, nem distúrbio e nem perversão e que os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades”. Em consulta ao Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM IV), encontramos que as parafilias (gosto pelo acessório) são caracterizadas por anseios, fantasias ou comportamentos sexuais recorrentes e intensos que envolvem objetos, atividades ou situações incomuns e causam sofrimento ou prejuízo na vida do indivíduo. Certas fantasias e comportamentos associados com parafilias podem iniciar na infância ou nos primeiros anos da adolescência, mas tornam-se mais definidos e elaborados durante a adolescência e início da idade adulta. Os transtornos tendem a ser crônicos e vitalícios, mas tanto as fantasias quanto os comportamentos frequentemente diminuem com o avanço da idade em adultos. VISITANDO ALGUMAS PARAFILIAS As principais parafilias, segundo o DSM-IV, são: exibicionismo (exposição dos genitais), fetichismo (uso de objetos inanimados), frotteurismo (tocar e es- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009 As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam fregar-se em uma pessoa sem o seu consentimento), pedofilia (foco em crianças pré-púberes), masoquismo sexual (ser humilhado ou sofrer), sadismo sexual (infligir humilhação ou sofrimento), fetichismo transvéstico (vestir-se com roupas do sexo oposto) e voyeurismo (observar atividades sexuais). Entre as parafilias sem outra especificação, localizamos: zoofilia (ato sexual com animais); necrofilia (cadáveres); escatologia telefônica (telefonemas obscenos); parcialismo (foco exclusivo em uma parte do corpo); coprofilia ou excrementofília (obtenção de prazer durante a evacuação das fezes ou com a sua manipulação); clismafília (prazer obtido com a aplicação de líquidos dentro do reto, através do ânus ou introdução de objetos estranhos); urofilia (prazer e excitação sexual obtido com o contato pelo corpo ou ingestão de urina); cunilíngua (ato de praticar sexo oral aplicando a língua na vúlva e/ou clitóris); felação (sexo oral feito no genital masculino); anilíngua ou anilingus (significa literalmente o intercurso da língua de alguém com o ânus de outrem); dendrofília (relação sexual com plantas ou frutas); acrotomofilia (preferência sexual por pessoas que tenham alguma parte de seus corpos amputada); erotofonofilia (a excitação ocorre com a possibilidade de matar o companheiro, coincidindo essa morte com o próprio orgasmo); gerontofília (atração sexual por pessoas idosas) entre muitos outros. Procuraremos analisar alguns desses focos parafílicos. A pedofilia, por exemplo, é caracterizada por um forte desejo alimentado por fantasias e práticas sexuais com crianças pré-púberes. Alguns pedófilos limitam suas atividades a despir e observar a criança exibir-se, masturbar-se ou tocá-la. Outros realizam felação, penetração da vagina, boca ou ânus da criança com seus dedos, objetos estranhos ou pênis. Essas atividades são explicadas com racionalizações de que possuem “valor educativo” para a criança, ou de que esta obtém “prazer sexual” com os atos praticados. Enquanto a pedofilia envolve atividades sexuais com crianças prépúberes de ambos os sexos, a pederastia é o contato sexual entre um homem de idade e um rapaz bem jovem (adolescentes masculinos). O exibicionismo é uma forma de excitação erótica que envolve a exposição dos próprios genitais a um estranho a fim de excitar-se sexualmente. Às vezes, o indivíduo pode se masturbar durante a exposição para, casualmente, atingir o orgasmo. Geralmente, não existe qualquer tentativa de atividade sexual com o estranho. A excitação provém da exposição do corpo, ou parte dele, para um outro. O voyeurismo envolve o ato de olhar indivíduos, comumente estranhos, sem suspeitar que estejam sendo observados, que estão nus, a se despirem ou em atividade sexual. O ato de observar serve à finalidade de obter excitação sexual, e habitualmente não é tentada qualquer atividade sexual com a pessoa observada. Freud, nos Três Ensaios (19051974], p. 147), comenta que: (...) o prazer de ver (escopofilia) transforma-se em perversão: (a) quando se restringe exclusivamente à genitália; (b) quando se liga à superação do asco (o voyeur – espectador das funções excretórias); ou (c) quando suplanta o alvo sexual normal, em vez de ser preparatório a ele. Assim, tanto na escopofilia quanto no exibicionismo, o olho corresponde a uma zona erógena; no caso da dor e da crueldade como componentes da pulsão sexual, é a pele que assume esse mesmo papel. A pele, que em determinadas partes do corpo se diferenciou nos órgãos sensoriais e se transmudou em mucosa, é assim a zona erógena por excelência. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009 121 As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam UM DESTAQUE AO SADISMO E AO MASOQUISMO No masoquismo sexual, encontramos o ato de ser humilhado, espancado, atado ou submetido a qualquer tipo de sofrimento. O transvestismo forçado pode ser buscado por sua associação com a humilhação. É a humilhação de ser forçado a vestir roupas do sexo oposto, não as roupas em si, o foco da excitação sexual. O indivíduo pode ter um desejo de ser tratado como um bebê indefeso e de usar fraldas (infantilismo). Uma forma particularmente perigosa de masoquismo é a asfixiofilia ou hipoxifilia, na qual a pessoa tenta intensificar o estímulo sexual pela privação de oxigênio. Essa excitação sexual pela privação de oxigênio pode ser obtida por meio de compressão torácica, garrotes, ataduras, sufocação com saco plástico, máscara ou substância química, podendo ocorrer mortes acidentais. Já o sadismo sexual consiste em praticar atos nos quais o indivíduo deriva excitação sexual do sofrimento psicológico ou físico da vítima. Atua segundo seus anseios sexuais sádicos com um parceiro que consente ou não em sofrer dor ou humilhação. As fantasias ou atos sádicos podem envolver atividades como: atar, espancar, chicotear, queimar, administrar choques elétricos, estuprar, esfaquear, estrangular, torturar, mutilar ou mesmo matar suas vítimas. Sadismo e masoquismo ocupam entre as perversões um lugar especial, já que o contraste entre atividade e passividade que jaz em sua base pertence às características universais da vida sexual. E, portanto, da subjetividade de qualquer sujeito, pois a pulsão de morte refere-se fundamentalmente à morte do próprio sujeito, da sua própria matéria e apenas indiretamente se expressa em agressão ao outro. 122 Freud, nos Três Ensaios (1905-1974], p. 148), define o masoquismo como aquilo que: [...] abrange todas as atitudes passivas perante a vida sexual e o objeto sexual, a mais extrema das quais parece ser o condicionamento da satisfação ao padecimento de dor física ou anímica advinda do objeto sexual. [...] É freqüente poder-se reconhecer que o masoquismo não é outra coisa senão uma continuação do sadismo que se volta contra a própria pessoa.... Mais adiante, depois da formulação da pulsão de morte em Além do principio do prazer (1920), Freud reformula essa ideia e postula um masoquismo original, anterior ao sadismo. Já em Uma Criança é Espancada (1919 a), ele conclui, por uma operação lógica, que há uma fantasia original, ou fundamental, e recalcada, que é masoquista e que serve de base para as outras duas etapas de desenvolvimento da fantasia de espancamento. Percebe o estreito vínculo entre as tendências masoquistas e a sexualidade, tomando em conta os efeitos erógenos da dor. Nesse sentido, Freud faz do par sadismo/masoquismo a expressão mais eloquente da erotização da pulsão de morte, ou seja, a fusão das duas pulsões. A erotização da dor entra nessa fusão e muito provavelmente o perverso, atento a um prazer determinado, pode confundir o desejo com a dor. Em Uma Criança é Espancada, Freud descreve que as fantasias de espancamento surgem nas causas acidentais da primitiva infância e permanecem intencionalmente retidas com o propósito de obter uma satisfação autoerótica, podendo ser considerada como um traço primário de perversão. Assim, a perversão não é um fato isolado na vida sexual da criança, senão todo o contrário, ela encontra lugar entre os processos típicos de desenvolvimento, Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009 As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam para não dizer normais. A perversão infantil pode ainda vir a tornar-se base para a elaboração de uma perversão que tenha um sentido similar e que persista por toda a vida e consuma toda a sexualidade do indivíduo. Essa fantasia de espancamento, como fantasia fundamental de todo indivíduo, que pode estar colocado na posição passiva, masoquista, ou ativa, sádica (na posição de sujeito ou de objeto) seria considerada o alicerce de toda fantasia subjetiva, e não apenas dos perversos. Na origem, somos perversos, e o complexo de Édipo é que vai, em sua função de normatização, de introdução da norma, da lei, fazer recalcar ou não essas pulsões, tornando o indivíduo neurótico, ou não, dependendo da eficácia da incidência da norma imposta pela triangulação edípica. Neste artigo, a transformação do sadismo em masoquismo se dá através da influência do sentimento de culpa que participa do ato do recalque. Este sentimento de culpa se relaciona com a masturbação da primitiva infância e tem sua raiz calcada no Complexo de Édipo. De tal maneira que a origem das perversões infantis, de uma forma geral, seria provinda do complexo de Édipo. A esse respeito, Freud (1905[1974], p. 149) sustenta que: A particularidade mais notável dessa perversão reside (...) em que suas formas ativa e passiva costumam encontrar-se juntas numa mesma pessoa. Quem sente prazer em provocar dor no outro na relação sexual é também capaz de gozar, com prazer, de qualquer dor que possa extrair das relações sexuais. O sádico é sempre e ao mesmo tempo um masoquista, ainda que o aspecto ativo ou passivo da perversão possa ter-se desenvolvido nele com maior intensidade e represente sua atividade sexual predominante. Lembramos que Laplanche, em Vida e Morte em Psicanálise (1985), analisando a questão da agressividade e do sadomasoquismo, revela que antes de 1920 a pulsão de agressão não aparecia nos textos de Freud, assim como o termo agressividade estava marcadamente ausente. Explica que agressividade não é o mesmo que sadismo, portanto pesa a diferença de que na agressividade não há componentes sexuais, enquanto no sadismo e no masoquismo existem claramente componentes sexuais. Um filme coreano que relata bem essa relação amorosa patológica de sadomasoquismo é Mentiras (LIES, 1999), do diretor Jang Sun Woo, vetado na Coreia por ser considerado um filme de alto teor pornográfico. Laplanche (1985) esclarece que a questão do sadismo e do masoquismo, assim como das pulsões que os movem, inquieta o pensamento de Freud de tal maneira, que, em 1920, em Além do principio do prazer, propõe a existência de um masoquismo primário, com a intenção de introduzir a pulsão de morte. Esta nova tese é confirmada em 1924 com O problema econômico do masoquismo, quando a existência desse masoquismo primário é tida como certa. Assim, antes de 1920, o sadismo engendra o masoquismo, para só depois de 1920, o sadismo ser engendrado pelo masoquismo primário. Portanto, em Uma Criança é Espancada (1919) e em Além do princÍpio do prazer (1920), surgem duas ideias que são desenvolvidas de forma mais completa em O problema econômico do masoquismo (1924), que são: as enigmáticas tendências masoquistas do ego e a ideia de que poderia existir um masoquismo primário. Então, a questão do sadismo para Freud é posterior ao masoquismo primário. Ele pensa que, provavelmente, o prazer desta perversão sexual está em castigar um desejo edípico. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009 123 As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam OUTRO FOCO PARAFILICO: O FETICHISMO Transportando-nos ao foco parafílico do fetichismo, encontramos o uso de objetos fetiches, tais como: calcinhas, meias, sapatos ou outras peças do vestuário feminino. O fetichista frequentemente se masturba, enquanto segura, esfrega ou cheira o objeto do fetiche, ou pede que seu parceiro use-o durante seus encontros sexuais. Freud, em seu artigo O Estranho (1919 b) e em A cabeça de Medusa, escrito em 1922 e publicado em 1940, observa que a cabeça decapitada de Medusa simboliza o efeito aterrorizante dos genitais castrados da mulher, tendo o cuidado de explicar que isso não ocorre com qualquer mulher, mas tão somente com os genitais da mãe. É, precisamente, com o objeto fetiche que o perverso obtura a noção da falta de pênis na mulher. O que caracteriza a perversão para Freud é a presença de uma organização psíquica baseada na recusa (Verleugnung). Em 1927, com Fetichismo, ele defende a tese de que o fetiche é o substituto do pênis da mãe, ligando-o à recusa da castração, isso porque o fetichista é aquele que nada quer saber daquilo que vê. Tornamse, tanto a renegação como a afirmação da castração, elementos chave na constituição do fetiche. Portanto, o perverso reconhece a castração, mas não a aceita. A respeito dessa renegação, Hugo Bleichmar (1984, p. 77), em Introdução ao Estudo das Perversões, enfatiza: O fetiche, que, para a consciência, é um objeto de prazer, de amor – sem que se saiba por quê – para o inconsciente representa o falo; ou seja, no inconsciente a equação fetiche-falo permite manter a crença de que a mãe tem falo e renegar, assim, a castração; no inconsciente, a castração, simultaneamente, existe e não existe. [...] 124 Na consciência, o sujeito reconhece que a mulher não tem pênis e, no entanto, não tem angústia de castração consciente, não pensa conscientemente na castração; no inconsciente, em troca, crê na castração e, ao mesmo tempo, a renega mediante a equação fetiche-falo. Roudinesco e Plom (1998) destacam que, de 1905 a 1927, Freud passou de uma descrição das perversões sexuais para uma teorização do mecanismo geral da perversão que já não era apenas o resultado de uma predisposição polimorfa da sexualidade infantil, mas a consequência de uma atitude do sujeito humano confrontado com a diferença sexual. Também apontam a relevância do papel de Lacan em retirar a perversão do registro das aberrações sexuais para apresentá-la como uma estrutura. Nesse sentido, Lacan entendia a perversão como um componente do funcionamento psíquico do homem, sendo que a estrutura perversa “se caracterizaria pelo anseio do sujeito de transformar-se em objeto de gozo”. Assim, do ponto de vista estrutural, na perversão existe um mecanismo de renegação, recusa, desmentido (Verleugnung). O conflito se dá na cisão interna do ego, que em parte recusa e em parte reconhece a realidade. Na neurose, prevalecerá o recalque (Verdrängung). O conflito é entre o Ego e o Id. Os sintomas são: histeria, neurose obsessiva, fobias. Na psicose, o mecanismo é o da forclusão (Verwerfung), ou seja, há uma rejeição (Verwergung) da percepção da realidade. O conflito se dá entre o Ego e o mundo externo. Nesse aspecto, de acordo com Ferraz (2000), na psicose, a maior parte do ego desliga-se da realidade, mesmo que, em um canto recôndito, ele mantenha o vínculo com ela. Já no perverso, a coexistência de duas atitudes opostas em relação à castração, durante toda a sua existência, seria a característica marcante. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009 As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam Ainda segundo Ferraz (2000), o sintoma perverso, como todo e qualquer outro sintoma – neurótico, psicótico, psicossomático ou psicopático –, por mais que nos impressione ou até mesmo cause incômodo, constitui sempre o arranjo que foi possível ao sujeito em sua luta pela sobrevivência psíquica. O fetichismo transvéstico envolve o ato de vestir-se com roupas do sexo oposto, mantendo uma coleção de roupas femininas, que usa intermitentemente. Em geral se masturba, imaginando-se tanto como o sujeito masculino quanto como o objeto feminino de sua fantasia sexual. Nos Três Ensaios (1905), quando Freud aborda a doutrina da bissexualidade, menciona que ela foi expressa em sua forma mais crua por um porta-voz dos invertidos masculinos quando confidenciou ter um cérebro feminino num corpo masculino. Certamente, esse é um dos maiores dramas vividos por aqueles que sofrem de transtorno de identidade de gênero. O transexual é uma pessoa que repudia seu sexo anatômico e está decidido a mudá-lo. É um homem que se sente mulher, injustamente envolto em um corpo de homem e deseja eliminar seus órgãos genitais para converter-se em mulher; ou é uma mulher que deseja adquirir genitais masculinos e viver como homem. Ambos solicitam mudar sua identidade sexual mediante intervenção cirúrgica. Repugnam-lhes seus próprios órgãos sexuais, preferem vestir e portar-se como o outro sexo e não se consideram homossexuais. Colette Chiland (1999, p. 220), que desenvolve um rico trabalho sobre o transexualismo em seu livro Cambiar de sexo, coloca que: “o transexual nega que padece um transtorno psíquico, somente sofre de um erro da natureza que não lhe deu o corpo apropriado ao que se sente ser”. A respeito de como se sente o transexual, vale a pena assistir Meninos não choram, (Boys Don’t Cry, 1999) do diretor Kimberly Peirce, um filme que, seguindo as ideias expostas no livro Cambiar de sexo, expõe a vida de um transexual feminino-masculino. Confrontando a homossexualidade com o transexualismo, Bonnet (1992) reforça que na homossexualidade há uma repugnância pelo sexo oposto, que conduz a uma rejeição definitiva e radical; enquanto no transexualismo há uma repugnância por seu próprio sexo, que conduz a uma mutilação irreversível. Freud, em sua 21ª conferência, O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais (1933[1974], p. 375), assegura que se as perversões forem descritas como: [...] indicações de degeneração, ou o que quer que seja ninguém ainda teve a coragem de classificá-las como algo que não sejam fenômenos da vida sexual. Apenas em virtude delas justifica-se afirmarmos que sexualidade e reprodução não coincidem, pois é óbvio que todas as perversões negam o objetivo da reprodução. Freud trata, então, de definir a perversão em referência a um processo de negatividade e numa relação dialética com a neurose. Em 24 de janeiro de 1897, numa carta a Fliess, em Fragmentos da análise de um caso de histeria (1905[1901]) e, em seguida, nos Três Ensaios (1905[1974], p. 155), ele faz da neurose o negativo da perversão quando afirma que: “os sintomas se formam, em parte, às expensas da sexualidade anormal; a neurose é, por assim dizer, o negativo da perversão”. Com isso sublinha o caráter selvagem, polimorfo e pulsional da sexualidade perversa: uma sexualidade infantil em estado bruto, cuja libido se restringe à pulsão parcial. De forma que a célebre frase de Freud quer dizer que, mesmo que existam muitos componentes parciais da pulsão sexual, eles não podem ser consi- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009 125 As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam derados como perversões da sexualidade. A tendência neurótica é a manutenção de alguns desses componentes, substituindo, assim, uma possível fixação numa única prática sexual. Considerando estes fatores, se pode dizer que as fantasias inconscientes dos neuróticos se assemelham às atitudes conscientes das pessoas perversas, ou seja, uma é o negativo da outra. Portanto, o neurótico fantasia aquilo que o perverso pratica. Em Fragmentos da análise de um caso de histeria (1905[1974], p. 54), defende que: Todos os psiconeuróticos são pessoas de inclinações perversas fortemente acentuadas, mas recalcadas e tornadas inconscientes no curso de seu desenvolvimento. Por isso suas fantasias inconscientes exibem um conteúdo idêntico ao das ações documentadas nos perversos. Em Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908), explica que define as neuroses como o negativo das perversões porque nas neuroses os impulsos pervertidos, após terem sido reprimidos, manifestam-se a partir da parte inconsciente da mente, e mais, porque as neuroses contêm as mesmas tendências, ainda que em estado de repressão, das perversões positivas. Em Cinco lições de psicanálise (1910 [1974], p. 43), mais especificamente na quarta lição, Freud assevera que: As neuroses são para as perversões o que o negativo é para o positivo. Como nas perversões, evidenciam-se nelas os mesmos componentes instintivos que mantêm os complexos e são os formadores de sintomas. E ao falar da semelhança entre atividade sexual infantil e perversões sexuais, em sua 20ª conferência, A vida sexual dos 126 seres humanos (1917[1974], p. 369), verifica que: Esta semelhança, contudo, é evidente: se de fato uma criança tem vida sexual, esta não pode ser senão uma vida sexual de tipo pervertido; pois, exceto quanto a alguns detalhes obscuros, as crianças são desprovidas daquilo que transforma a sexualidade em função reprodutiva. Por outro lado, o abandono da função reprodutiva é o aspecto comum de todas as perversões. Realmente consideramos pervertida uma atividade sexual, quando foi abandonando o objetivo da reprodução e permanece a obtenção de prazer, como objetivo independente. ELUCUBRAÇÕES FINAIS O perverso, então, seria aquele que se empenha em destruir a lei, para depois reconhecer dolorosamente que ela é permanente? Poderíamos pensar que o perverso seria alguém empenhado em distorcer, mesclar, triturar, liquefazer, metamorfosear, de tal maneira a origem das coisas, que, ao final desse processo caótico, nada mais pudesse ser distinguido? Seria, então, o perverso uma espécie de feiticeiro da realidade? Realidade que ele não tolera e, por carregar consigo o germe da onipotência infantil, tenta alterá-la construindo um mundo indiferenciado, onde ele e a mãe são unos, todos os poderes emanam dele e a realidade é aquilo que ele fabrica? Pois bem, não é qualquer realidade que o perverso não tolera, ele distorce tudo aquilo que pode confrontá-lo com a castração, por causa da própria angústia de castração. Se a perversão está claramente delineada como uma condição intrínseca à sexualidade humana, existiria perversão em termos de patologia? O que Freud ressalta como patológico e aberração incon- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009 As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam testável no que se refere à sexualidade, é a utilização de pessoas sexualmente imaturas (crianças) e criaturas indefesas (animais), como objetos sexuais. Os desvios perversos, típicos da sexualidade humana, poderiam ser considerados como sintoma patológico a partir do momento em que se configurassem como fixação, ou seja, o indivíduo passa a apresentar uma limitação do prazer à determinada prática perversa, ocorrendo a substituição das práticas normais. Joyce McDougall (1997) corrobora este pensamento de Freud e designa o rótulo de perverso para aquele indivíduo totalmente indiferente às necessidades e desejos do outro. As perversões, como sintomas psicológicos, devem possuir um sentido, um significado para o indivíduo. Para ela, a prática sexual considerada patológica representa não somente uma solução a fim de evitar sofrimentos psíquicos insuportáveis – uma forma de sobrevivência psíquica –, mas constituem também uma tentativa de construir um sentimento de identidade sexual. Poderíamos pensar que a identidade sexual de cada ser humano é construída na história de suas relações objetais, por meio de um processo eminentemente psíquico. Por fim, McDougall utiliza a expressão neossexualidade, em vez de perversão, para explicar essas novas formas de organizações psíquicas inovadoras, resultantes de intensos investimentos libidinais. Recentemente, Roudinesco (2008, p. 13) afirmou que “os perversos são uma parte de nós mesmos, uma parte de nossa humanidade, pois exibem o que não cessamos de dissimular: nossa própria negatividade, a parte obscura de nós mesmos”. Muitas coisas ainda devem ser ditas sobre o funcionamento do psiquismo humano. Freud, em suas elaborações teóricas, sustentava que o psiquismo era o palco, por excelência, onde se encenavam os dramas e as tragédias da angústia humana. Seu pensamento irrequieto se reflete em seus escritos deixando sempre um movimento interno de inquietude em quem acompanha a leitura de sua construção teórica. Nesse sentido, almejamos que nossos estudos nos impulsionem sempre a seguir buscando esse saber que não se esgota nunca. Keywords Psychoanalysis; sexual perversions; paraphilia; normality versus abnormality. Abstract This article covers the concept of perversion through various Freudian texts. It pays particular attention to the Three Essays on the Theory of Sexuality (1905) where Freud tries to develop an understanding of the etiology of the perversions, as opposed to popular opinion about sexuality, in three basic points: the time of onset of sexual drive, the necessarily heterosexual nature of the object, and the limitation of the sexual object to copulate. At this point Freud tries to define the perversion in reference to a negativity process, based on the axiom of the neurosis as the negative of the perversion. Thereafter he inserts the perversions, such as the neuroses, as the core of the Oedipus complex. In 1927 he defines, in the article The Fetishism, the refusal of castration as a key mechanism of perversion, the concept of cleavage of the ego in a process of defense, and the construction of the fetish as a substitute for the maternal penis. Finally, the perversion is a circumstance of the human species, and the arrangement that was possible to the subject, and his struggle for mental survival. Referências ASSOCIAÇÃO AMERICANA DE PSIQUIATRIA. Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM IV. São Paulo : Ed. Artes Médicas, 1996. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.117-128 – Novembro. 2009 127 As diferenças que nos constituem e as perversões que nos diferenciam BLEICHMAR, H. 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Confrontar a orientação diagnóstica passível de depreender-se da clínica psicanalítica freudiana e da clínica de Lacan é, portanto, o que nos levou a avaliar, a partir dos diagnósticos, o alcance da teoria clínica da psicanálise praticada em nossos dias. Nesse confronto, privilegiaremos as referências que possam articular-se ao que tradicionalmente se diagnosticava como “neurose” ou como “psicose”, a problematizar e questionar essa divisão tradicional. A clínica psicanalítica de nossos dias depara-se com uma dificuldade a mais em seu manejo: a palavra perdeu o seu poder, o simbólico encolheu ou se modificou. Algumas pessoas que temos recebido parecem ignorar solenemente o que seu sintoma quer lhes dizer ou pouco se queixam dele. Apesar de todo trabalho feito pelo analista tendo como visada a retificação subjetiva, na esperança de que se instaure um sintoma analítico e a análise se inicie, e debalde todo o esforço, o sujeito do inconsciente continua adormecido, o que leva a indagar se os mitos ou as narrativas em torno do sintoma estão realmente escasseando ou estamos nos deparando com uma nova clínica que atesta a falência de nossas ferramentas edipianas. Embora haja diferença na apreensão do sintoma, entre a psicanálise e a medicina, em seus primórdios, era o olhar da medicina que o nomeava, e as histéricas respondiam com suas conversões a esse Outro do saber médico. A medicina e a psiquiatria entendiam e entendem o sintoma como um distúrbio indicativo de um estado mórbido que 1 tem uma função de signo. O cliente se queixa, o médico faz um levantamento do sintoma através das evidências clínicas, enquadra num diagnóstico a doença e utiliza a propedêutica adequada. O grande achado freudiano foi justamente o de subverter a noção de sintoma como signo, que leva à sua leitura causal, portanto exclui toda a sua significação subjetiva e o separa da noção de corpo como organismo, demonstrado de forma exemplar pelas histéricas. No entanto, a via trilhada por Freud na apreensão do sintoma parece estar em desacordo com o que estamos vivenciando em nossos consultórios. O sintoma elevado à categoria de enigma, portador de uma mensagem cifrada do inconsciente, está cada vez menos frequente de ser encontrado. O caso clínico Maria das Dores, que norteou esse artigo, chega ao consultório da analista com relatos de somatizações constantes, que tem seu clímax em um “aperto” no peito da cliente que a leva a ter a sensação de sufocamento. Maria encarna a figura da poliqueixosa médica. Ela frequenta os seus Psicóloga. Psicanalista. Mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Membro do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais. Membro do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Membro da International Federation of Psychoanalytic Societies. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009 129 Um caso clínico em questão: neurose ou psicose? consultórios sempre que um novo achaque a acomete, pois o seu corpo produz dores diversificadas. Seu quadro clínico se caracteriza pelos seguintes aspectos: enorme dificuldade em falar, convívio social restrito, fala colada no significante, simbólico muito pobre atestado por não sonhar, não cometer atos falhos, recordações sempre ligadas aos fatos do presente e uma reclusão ao leito, que ela mesma se impôs, diagnosticada pelos médicos como depressão. As lembranças do passado aparecem em alguns momentos pontuais e encontram-se ligadas a fatos traumáticos. Sua fala refere-se quase sempre aos acontecimentos do seu cotidiano, mas isenta de qualquer crítica que a fizesse implicar-se em algo. Falar para ela é um problema, pois “falar dói” e a faz ter sintomas que variam de dor na garganta, a rouquidão, dor de cabeça, potencializada por uma dor no peito que a leva a pensar, algumas vezes, em se esfaquear para ver se melhora. Das Dores formou-se no segundo grau, tendo cursado magistério. Exerceu, primeiramente, a profissão de vendedora em uma loja de departamento, depois, com o seu fechamento, vai trabalhar como ajudante de professora numa escolinha infantil. Ela percebe, então, sua dificuldade tanto motora (eu era muito lenta para recortar, fazer os cartazes para sala), quanto sua falta de jeito para lidar com os pais dos alunos (detestava ter que conversar com eles, sou muito tímida, me sentia toda enrolada). Pouco tempo depois é despedida e vai conseguir um novo emprego em uma empresa de transporte de sua cidade, onde trabalha desde 2000. Maria fala muito pouco, e conseguir dados mínimos para começar a fazer um diagnóstico ou mesmo a montagem de um pensamento clínico demandou um esforço extra por parte de sua analista, que ficou desde o primeiro 130 momento intrigada com os dados esparsos, pobres e desconexos e, sobretudo, a ausência de sexualidade e alheamento social de sua cliente. Trabalhar com ela é um constante desafio. A sensação que se tem é de que ela suga as energias do analista, testa a sua paciência e, além de tudo, põe à prova o seu saber, porque chegar a um diagnóstico estrutural é complicadíssimo. Ora pode-se considerá-la psicótica por sua fala colada no significante, pobreza de simbolização e uma transferência erotizada, ora uma histérica decidida que demanda uma suplência de mãe, por tê-la perdido ainda muito pequena, alguém que dê fim à sucessão de abandonos ocorridos ao longo de sua vida. Como sua questão corporal é hipertrofiada, trabalhar a palavra e seus significados não surte efeito. Ela não se escuta e também não escuta as intervenções do analista. Das Dores foi criada pela tia paterna, que se muda para sua casa após a morte de sua mãe enquanto ela era ainda bem pequena. Sua tia assume o lugar da mãe, mas é descrita como uma pessoa cruel, que lhe batia com varinha de cipó por qualquer motivo, deixando marcas para que ela se lembrasse. Enquanto apanhava, Maria não podia chorar nem fazer escândalo, tinha que apanhar calada. O pai de Maria é um pai temível, que batia por qualquer motivo nos filhos, mas, inexplicavelmente, nunca encostou um dedo em Maria. Seu universo familiar lhe parece hostil e propiciador de conflitos. Sua história de vida consiste em uma sucessão de abandonos e perdas ocorridos, em sua maioria, durante a sua infância. Ela não conversa com a tia, nem com o pai, nem com os irmãos. Das Dores é a caçula de uma prole de sete filhos, sendo dois irmãos e cinco irmãs. Todos são casados, exceto Maria e um irmão que é toxicômano. Constan- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009 Um caso clínico em questão: neurose ou psicose? temente, ela briga com a tia e com o pai por motivos banais. Diz não gostar deles, nem eles dela. Após a leitura de um livro no qual a protagonista tem problemas psicológicos devido a um estupro feito pelo pai, Maria traz um sonho no qual uma criança é estuprada. A cena consiste num quarto meio escuro, no qual alguém segura seus braços, um outro força as pernas para que se abram e a criança sente dor e sangra muito. Enquanto fala, Maria cruza as pernas com força e seu rosto reflete desespero. Essa cena, logo após o relato, é suprimida das sessões, mas meses depois volta a ser relatada com frequência. A partir daí, seu quadro clínico se desestabiliza, passa ao ato ingerindo grande quantidade de medicação psiquiátrica, é submetida a uma cirurgia ginecológica (retirada de miomas) e o comportamento de automachucar acontece com mais frequência – retira a pele do dedo mínimo do pé com alicate para ver sangue. O sonho vira obsessão. As dores no corpo recrudescem, seu relato volta a ser monossilábico, seu mundo se resume a permanecer na cama até a hora do trabalho, ir às sessões de análise com o pedido de “me faz esquecer”, “me deixa morrer”, “me diz uma palavra de morte.” Atualmente, Maria apresenta um quadro de anorexia. Enfim, Das Dores pôs o analista à procura de teorizações que possam fazer entender a profusão de sintomas apresentados e delimitar dessa forma a sua estrutura, propiciando assim um melhor manejo clínico. Os casos de Freud em Estudos sobre a histeria (FREUD [1893-1895],1989), Miss Lucy e Frau Cäcilie, possuem duas explicações diferentes para as crises conversivas de suas clientes. No caso Lucy, a questão da simbolização é predominante. Ao tornar consciente através da fala o que ela não queria saber, o recalcado se reintegra na consciência e deixa de ser motivo de conflito. A conversão se deve ao recalque da ideia incompatível com o inconsciente e um órgão do corpo, no caso, o nariz é superinvestido no momento da ocorrência da cena traumática. A dor psíquica é convertida em dor somática, ou seja, ela faz uma conversão. A questão simbólica fica bem evidenciada, assim como o sintoma como uma formação de compromisso. Exemplo típico de uma formação substitutiva cheia de indícios do inconsciente, esperando por uma escuta atenta que possibilitaria seu deciframento. No entanto, Frau Cäcilie é muito mais um exemplo de fenômenos histéricos que não passavam pela via da simbolização e que apareciam como uma dor corporal, devido a que a descarga da angústia acontece de forma direta no corpo da paciente, sem ter se ligado previamente ao simbólico. Se Freud, em seus primórdios, descreve o sintoma como uma reminiscência de um trauma efetivamente ocorrido, logo a seguir, vai se perguntar sobre a facticidade do trauma, e o sintoma, apesar de continuar a ser um monumento ligado a um evento traumático, não necessariamente verdadeiro, demonstra a força latente que impulsiona o psiquismo humano. O sintoma, por ser sobredeterminado, ilustra o conflito entre as instâncias psíquicas e é passível de desvelamento através de uma cuidadosa análise simbólica. Todo sintoma possui um sentido latente à espera de decifração, é como os sonhos e os atos falhos à espera de uma interpretação. No entanto, o que se encontra no caso clínico de Maria das Dores é justamente essa precariedade simbólica, muito mais compatível com uma descarga direta da angústia do que com um processo de simbolização. Suas dores são dores que a atormentam e não possuem nenhuma significação. O sentido do sintoma, Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009 131 Um caso clínico em questão: neurose ou psicose? numa perspectiva freudiana, não consegue explicar o seu padecer. O sintoma não faz enigma para ela. O real do corpo é muito mais avassalador do que qualquer tentativa de simbolização. Mesmo dentro da perspectiva da segunda tópica, com a descoberta da pulsão de morte, da compulsão à repetição, do masoquismo primordial e da reação terapêutica negativa, o sintoma freudiano encerra em seu bojo um sentido recalcado, que inevitavelmente esbarra no complexo de castração. Podemos concluir, então, que até o final de sua vida, Freud manteve a posição do sintoma como um enigma a ser descoberto e decifrado, e teve como objetivo de uma análise a possibilidade de tornar consciente parte do inconsciente que estava recalcado. Ele não explica a inércia provocada pelo sintoma, por se tratar de uma satisfação proveniente da vertente pulsional, dificilmente redutível através da fala; o lado de gozo do sintoma, embora sinalizado por ele, resta intocado. Mas, seria Maria das Dores neurótica ou psicótica, se pensarmos com Freud? A neurose e a psicose se originam de um conflito entre o ego e o mundo externo. Na neurose há um recalcamento das representações incompatíveis com a realidade, o trabalho psíquico é para manter essa representação recalcada fora dos limites da consciência. O retorno do recalcado, as formações do inconsciente, são um material precioso para trabalhar as questões emergentes em um caso de neurose; o significante se apresenta como um tesouro que sinaliza o mapa da mina que leva ao inconsciente. Na psicose, o ego se afasta de um fragmento da realidade e tenta reconstruir uma nova realidade via delírio ou alucinação. O mecanismo de defesa utiliza a regressão narcísica, que desinveste o mundo externo e introjeta no ego uma parte da realidade que foi abandonada, e 132 cujo retorno acontece no real. A nova realidade se adapta aos desejos do Id, mas o preço pago pelo ego é a perda da realidade atestada de maneira exemplar nos fenômenos delirantes e alucinatórios. No entanto, Maria das Dores não se enquadra na neurose, nem na psicose. Seu simbólico, pobre e inexpressivo, possui pouca representatividade em seu quadro clínico. Aliás, é um dado que não permite que ela seja entendida como neurótica devido a uma vida fantasmática precária, uma ausência de sonhos e apego ao significado literal das palavras. Seu mundo interno parece estar desinvestido, as lembranças do passado são escassas e sua fala está ligada a dados concretos do seu cotidiano. Sua pouca sociabilidade e atual confinamento ao leito podem ser indicativos de uma fuga da realidade, mas ela é desprovida de nenhuma crítica ou tentativa de mudança. Por outro lado, o diagnóstico de psicose não acena no horizonte como uma possibilidade. Ela não alucina, não delira, não possui nenhum distúrbio que se coadune com o que chamamos de psicose. Ela é apenas uma pessoa estranha, introspectiva, solitária e infeliz, ou esses adjetivos indicam uma classe de casos cuja simples pronúncia arrepia os analistas mais ortodoxos, como borderline, casos de difícil acesso, inclassificáveis. Diante de tal impasse, recorremos à literatura psicanalítica e encontramos Joyce McDougall e a figura de seu analisando robô ou antianalisando. Em seu livro, Em defesa de uma certa anormalidade (MCDOUGALL, 1983), ela nos pareceu muito investida na busca de entendimento e melhoria de seu fazer psicanalítico, além de se mostrar profundamente impressionada com as questões contratransferenciais suscitadas por tais clientes. A descrição que ela faz do antianalisando revela-se animadoramente parecida com o que tínhamos encon- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009 Um caso clínico em questão: neurose ou psicose? trado em Maria das Dores. São clientes que não entram em análise, provocam sono, fazem o analista sofrer devido às suas intermináveis repetições e explicações, que os levam a parar de escutá-los, pois toda intervenção é sentida como fora de sentido e, obviamente, eles são refratários a qualquer mudança possibilitadora do novo. Possuem um sistema de crenças imutável, a organização de seu mundo é fixada pela inalterabilidade das regras, criam conceitos e explicações para si, como uma maneira de forjar sua identidade própria, e nunca faltam às sessões. Apesar da similaridade da sintomatologia e dos percalços relatados por ela, e sentidos também por nós, não há uma definição quanto ao seu diagnóstico. Eles parecem não ter tido um recalcamento, mas também não apresentam nenhum fenômeno psicótico. O antianalisando continua no limbo fronteiriço entre a neurose grave e a psicose. Porém, se Freud não explica, McDougall descreve, mas não decifra, e o primeiro Lacan mostra-se insuficiente para se entender o quadro clínico Maria das Dores. É necessário, mais uma vez, buscar novos paradigmas. O grande debate ocorrido durante as Conversações de Arcachon e de Antibes se configurou como um momento fecundo de troca de experiências, que culminou no desenvolvimento de uma teorização clínica, que ainda está sendo estudada e demonstra todo frescor e força de uma teoria, atenta às mudanças do seu tempo. Não se acovardou frente ao desafio e produziu, estando em plena efervescência, uma reorientação teórica essencial para que possamos esclarecer os casos tidos antes como inclassificáveis e hoje, sob nova ótica, como uma psicose ordinária. O diagnóstico estrutural na primeira clínica baseia-se na presença ou na ausência do Nome-do-Pai. Nome- do-Pai sim é uma neurose. Nome-doPai não é uma psicose. Por muitas décadas, a questão diagnóstica baseou-se neste conceito, que se mostrava como um balizador seguro. Até hoje, ele permanece como um conceito axial, mas as novas leituras dos últimos seminários de Lacan descortinaram um novo campo conceitual rico e fecundo. Porém, sabemos da dificuldade encontrada no caso Maria das Dores diante da questão diagnóstica. A primeira clínica e a sua conceituação de psicose é centrada na problemática da castração e de diversas manifestações clínicas devido à ausência do significante Nome-do-Pai e sua consequente falta de significação fálica: P0 e Φ0. Essa ausência de significante pode ser detectada clinicamente pelo aparecimento de fenômenos alucinatórios e distúrbios de linguagem indicativos de P0. Assim como também Φ0 pode ser sinalizado pela presença de ideias delirantes ligadas à sexualidade e ao corpo, algumas passagens ao ato do tipo automutilação, suicídio e a mortificação do gozo e algumas disfunções corporais. Lacan, ao descrever a psicose de Schreber, determina passos vitais que, de um modo geral, caracterizam os desencadeamentos nas psicoses extraordinárias: 1. Apelo ao significante foracluído do Nome-do-Pai. 2. Formação de P0. 3. Formação de Φ0. Maria das Dores não apresenta um momento de encontro com Um pai, nenhum indício de P0, no entanto, apresenta sinais de Φ0. Se Φ0 está na dependência de P0, como tal fato é possível? De novo, a primeira clínica não consegue responder com o seu arsenal teórico conceitual a questão diagnóstica de nossa cliente. Frequentando o núcleo de psicose da Escola Brasileira de Psicanálise, seção Minas Gerais, de Raul Soares, tivemos Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009 133 Um caso clínico em questão: neurose ou psicose? contato com o conceito de psicose ordinária ou psicose não desencadeada. Alguns dos internos que eram entrevistados nas apresentações de paciente também não apresentavam fenômenos delirantes ou alucinatórios e, no entanto, o seu diagnóstico clínico era o de psicose. Revelou-se importante perceber que, quando o sujeito não apresenta sintomas de uma psicose clínica e chega até nós com uma inconstância nas identificações, uma desorientação quanto a sua existência, estes são indícios que podem nos ajudar a diagnosticar uma psicose ordinária. Com o conceito de psicose não desencadeada ou psicose ordinária, pretende-se definir um funcionamento psicótico do sujeito, sem que se possa localizar um momento efetivo do desencadeamento da psicose. De fato, o desencadeamento revela, sem nenhuma dúvida diagnóstica, a existência de uma estrutura psicótica do sujeito. Quando ocorre o desencadeamento, esse produz efeitos clínicos (delírios e alucinações) inerentes ao que Freud nomeou como um “inconsciente a céu aberto”, e Lacan explicou como sendo o retorno no real daquilo que não foi simbolizado devido à ausência de significação fálica. Massimo Recalcati, em seu texto Psicose não desencadeada (Recalcati, 2003), teoriza sobre desencadeamento afirmando que a ausência de transtornos de linguagem não deve ser considerada como um fator conclusivo para que se descarte o diagnóstico de psicose. Se o desencadeamento com seus fenômenos elementares não se acha presente na história de vida do sujeito, uma maneira segura de se chegar até o diagnóstico de psicose é procurar o modo particular com que o sujeito estrutura sua relação com o Outro e com o gozo, ou, ainda, se o sujeito apresenta fenômenos que afetam o corpo. Ele lista cinco índices que 134 podem referendar uma posição psicótica do sujeito: 1. Uma mortificação real e não simbólica do sujeito, que se apresenta clinicamente como uma deserotização e desvitalização do corpo O corpo na neurose é um corpo colonizado pelo significante do Outro, que transforma o corpo biológico em corpo pulsional mediante o tratamento significante que esvazia o gozo do corpo, o mortifica, desloca-se e se condensa em suas zonas erógenas. A não incorporação significante implica um defeito de erotização do corpo presentificada pela agressividade, auto e heterodestrutividade, passagens ao ato e operações de anulação da vitalidade do corpo, e são exemplos da desfusão pulsional descritos por Freud em O problema econômico do masoquismo. A pulsão de morte aparece no aparelho psíquico sob a forma de agressividade, que é desviada para fora devido à ação da pulsão de vida. Como a pulsão de morte e a pulsão de vida não aparecem sozinhas, por se misturarem em graus variáveis, a sua fusão designaria um grau elevado de mistura entre as duas, e a desfusão indicaria um funcionamento quase que separado das duas espécies de pulsão, mostrando a face mais pronunciada da pulsão de morte – a agressividade. Recalcati nomeia essa desfusão pulsional como mortificação real do corpo que, segundo ele, “demonstra uma espécie de abolição total do desejo ditado pelo predomínio – fora do discurso – da pulsão de morte”. No caso clínico Maria das Dores, a questão da mortificação real do corpo aparece como um exemplo digno de nota. O seu corpo parece ser muito mais um corpo deserdado pelo significante, devido à ausência de erotização pelo Outro materno, do que um corpo Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009 Um caso clínico em questão: neurose ou psicose? pulsional que demandaria a nomeação do Outro. As dores no corpo, os vômitos constantes e o emagrecimento acentuado de Maria das Dores são exemplos indicativos de uma desvitalização do corpo, assim como também demonstrativo de uma deserotização. A sua depressão com traços melancólicos, o seu desinvestimento libidinal nos laços sociais vêm confirmar essa hipótese. 2. Transformação da falta em orifício do corpo percebido como real por parte do sujeito Devido à ausência de significação fálica, as zonas erógenas podem ser sentidas pelo sujeito como orifícios que se impõem em sua dimensão de real. Recalcati afirma que se trata de um indicador preciso da não localização do gozo nas zonas erógenas, posto que a significação fálica não ordena simbolicamente os objetos pulsionais (oral, anal, invocante, escópico). Assim, no caso Maria das Dores, não foi observada a ocorrência desse fenômeno, embora tendamos a localizar o seu problema na ausência de significação fálica. 3. Uso de apoio (Anlehnung) da imagem do outro exemplificado pelas aderências identificatórias a pares imaginários que funcionam como suporte narcísico Indicativo de uma ausência do Nome-do-Pai e de um suporte simbólico, evidencia a posição dual do sujeito que pode chegar até a representação mimética do outro. Se há uma ruptura desse par imaginário, a psicose que estava sustentada por esta identificação se desestabiliza e ocorre o surto psicótico. Tal fato também é observado por McDougall em sujeitos normopatas. O par imaginário é formado a partir de uma identificação do sujeito com figuras de autoridade: com o pai, com um significante que venha nomear a lei, com o outro especular ou mesmo com algum ideal imposto pela cultura. Esta aderência imaginária remete ainda ao conceito de compensação imaginária, descrito por Lacan em seu Seminário 3, As psicoses (LACAN [19551956],1988). Igualmente, a pessoa se utiliza de próteses imaginárias para compensar a ausência de simbolização. A relação especular é que possibilita o não-desencadeamento do sujeito. A seção clínica de Aix-MarseilleNice, na Convenção de Antibes (DEFFIEUX; SAGNA, 1999), também teoriza essa questão nomeando-a como sobreidentificação. Ela pode ser observada em sujeitos pré-melancólicos que apresentam toda uma série de traços muito mais normativos do que vinculados a questões do ideal do eu. Uma contradição entre dois traços frequentemente leva ao desencadeamento. São traços indicativos de uma identificação literal ao traço significante e não com a sua função de representação. Esses traços são tomados do Outro, traduzem uma cópia de um tipo de ideal, não advindo do eu (moi), mas da norma social. Trata-se de uma efetividade imaginária que leva a uma articulação da identidade do sujeito e se produz pela equivalência do sujeito a cada um dos seus traços, sendo, portanto, compatível com o registro do imaginário e a adequação biunívoca entre o sujeito e sua imagem. A suplência ocorre na articulação do imaginário e do real, possibilita a sua montagem e desmontagem e explica a estabilidade desse tipo de suplência. Apesar disso, o desencadeamento (sempre latente) pode ocorrer por um motivo corriqueiro, situado, às vezes, mais no imaginário do que no simbólico, sua Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009 135 Um caso clínico em questão: neurose ou psicose? ocorrência se deve à perda da cobertura imaginária que desestabiliza o sujeito e provoca a eclosão do desencadeamento. A cura se dá pela nova aderência imaginária que irá reconstruir suas identificações. Parece-nos que a descrição feita acima reafirma e corrobora a tendência, detectada não só por Lacan e Recalcati, mas também por McDougall, de sujeitos que, por aderirem a ideais impostos pela cultura, conseguem de alguma maneira, apesar da ausência da metáfora paterna, se manter instáveis apropriando-se das insígnias dos Outros e fabricando para si vestimentas feitas com remendos imaginários, que intermedeiam sua relação com o mundo. Quanto à cliente Maria das Dores, essa identificação aparece muito mais na transferência com a analista do que com pessoas de seu convívio cotidiano. Sua transferência é eivada de erotismo, o que se demonstra por sua piora todas as vezes que sua analista tira férias ou por sua raiva quando ocorre algum atraso em seu horário. Também é digno de nota o fato de Maria jamais ter faltado às sessões durante esses anos todos. 4. Presença de práticas ou de alterações no corpo com a finalidade de introduzir no real a função de castração As mutilações, as inscrições sobre o corpo e as práticas anoréxicas ou bulímicas são tentativas de inscrever no real do corpo a castração que não ocorreu no simbólico. Se por um lado ocorre, na neurose, uma falha na inscrição da significação fálica ao se formar a imagem do corpo próprio, de tal sorte que uma espécie de S1 vem preencher essa falha da imagem fazendo as vezes do falo; por outro, na psicose, as marcas no corpo têm a função de borda como contenção 136 de um gozo sem limites. As marcas no corpo produzem um efeito de armadura que detém o gozo, impedindo-o de ir ao encontro de sua infinitização. Mas, se o gozo infinito na psicose rompe os diques que o contêm, ele pode acarretar toda sorte de mutilações no corpo. Pode-se aventar que a condição do não-todo na psicose não garante as bordas necessárias para conter o gozo infinito, de sorte que ela lança mão da mutilação e de outras formas de inscrição no corpo para delimitá-lo, assim como também pode ser um recurso de extrair o gozo não regrado da psicose. Recalcati descreve a anorexia como uma tentativa de separar o significante do corpo que leva a uma desvitalização, entendida como uma “castração atuada do gozo excessivo”. Segundo ele, essa prática é frequente em sujeitos psicóticos que não desencadearam suas psicoses. No nosso entender, o quadro de anorexia apresentado por Maria das Dores nos últimos meses evidencia de maneira surpreendente essa tentativa de separação ou expulsão do mal-estar inominável que a acomete. Não podemos deixar de rememorar a sua atuação de retirar a pele do dedo do pé, após alguma sessão em que ela se sentia particularmente angustiada, como uma extração do mal-estar inominável que a acometia e hoje é deslocado para o sintoma anorético. 5. Dificuldade de se inscrever em um vínculo social estável Há um desligamento gradual do sujeito com o Outro até chegar ao isolamento ou à errância. Na Conversação de Arcachon (SAGNA; DEFFIEUX, 1998), Hervé Castanet apresenta um quadro clínico em que o sujeito vai se desligando aos poucos das coisas do cotidiano, Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009 Um caso clínico em questão: neurose ou psicose? até chegar à errância e sumir no anonimato da multidão. Ele faz pequenas rupturas, configurando um processo lento e gradativo em que ele vai se desconectando do trabalho, da família, até chegar ao abandono de seu analista. Sua queixa recorrente é “Vivo no nevoeiro”. Finalmente, ele desaparece engolido pelo nevoeiro. Quanto a Maria, esse movimento de desligamento gradativo do Outro vem se apresentando sob a forma de depressão. Tudo se configura a partir de seu término com o namorado e da primeira experiência sexual adulta. Só depois ela apresenta o quadro de depressão, que ao longo dos anos vai impedi-la de ir a barzinhos, dançar, namorar ou mesmo ir à igreja. Se ela ainda está trabalhando, deve-se ao fato de estar indo ao analista, que tenta impedir que mais esse laço se desfaça. A possibilidade de haver um quadro de psicose sem o aparecimento de um desencadeamento abre uma nova perspectiva no estudo das psicoses: as psicoses ordinárias. A questão concernente às psicoses ordinárias é justamente desvelar novos meios de abordar uma clínica que não responde mais a uma abordagem típica, centrada no mito edípico e no Nomedo-Pai. Desse modo, articular Nomedo-Pai e sintoma mostrou-se mais do que necessário para entender o percurso de Lacan até a segunda clínica. O deslocamento da primeira clínica começa paulatinamente com os conceitos de Nome-do-Pai e sintoma. A pluralização dos Nomes-do-Pai se faz em paralelo com a passagem do sintoma prenhe de sentido, passível de deciframento, lugar-tenente de um inconsciente estruturado como uma linguagem, para o sinthoma que está fora do inconsciente, que usa o nó borromeano para enodar o simbólico, o imaginário e o real. No final, o Nome-do-Pai não vai passar de um sinthoma, ao localizar o gozo do sujeito e articular sujeito e linguagem. Do mesmo modo, uma amarração sintomática pode enlaçar os registros sem a presença do Nome-do-Pai, o que nos leva a concluir que o ponto de amarração pode ser tanto o Nome-doPai quanto o sintoma. Vamos dizer que essa concepção da clínica do sintoma surge como uma contraposição à primeira formalização dos tipos de sintomas denominada descontinuísta, porque exatamente a clínica descontinuísta se baseia no fator ordenador do Nome-do-Pai. O Nome-doPai é tido como um elemento que faz parte do sistema; ao mesmo tempo em que está fora, ele está dentro, mas está dentro de maneira a ordenar os elementos do sistema. Já na clínica do sintoma, na clínica da aparelhagem do sintoma, na clínica borromeana, vamos encontrar uma perspectiva continuísta que enfatiza não as oposições, mas as gradações. O que interessa não é o fator diferencial, não é o elemento do sistema, mas sim o fato de que há diversas formas de aparelhamento do gozo. O que diferencia, portanto, não são mais as oposições, mas as distintas espécies, formas, meios de aparelhamento, as formas de enlaçamento dos diferentes registros. A grande inovação de Lacan na segunda clínica foi tratar a variabilidade e as gradações dos tipos de sintoma e recorrer ao uso das topologias dos nós. Com relação à variabilidade do sentido, não é mais o elemento ordenador que interessa, mas o próprio sistema, a própria configuração, a própria maneira em que se dá, em que ocorre o chamado ponto de capitonê. As formas de sentido, a variabilidade de sentido do sintoma continua existindo, a varité (Neologismo criado por Lacan com a junção das Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009 137 Um caso clínico em questão: neurose ou psicose? palavras francesas variété e vérité. Varité = vari(é)té + vérité) do sintoma continua existindo, mas ela não decorre mais da presença desse efeito organizador do Nome-do-Pai, decorre sim das distintas formas de amarração e de grampeamento dadas pelo aparelho do sintoma. A varité do sintoma já não tem relação com o sentido, mas sim com a verdade do sujeito. Uma verdade que é variável, que retorna das falhas do saber, que denota a variedade de verdades que estão envolvidas no sintoma. Sob esta ótica, o elemento só interessa quando levado em consideração o sistema. Então, os diversos elementos presentes não interessam mais. Eles não devem ser considerados como na sua própria lógica interna, mas devem ser considerados na medida em que fazem parte de um sistema de organização, de articulação. Então o Nome-do-Pai vale menos pelo fato de constituir-se como o elemento crucial para produzir uma ordenação do que pela sua equivalência aos sintomas. Se o fator crucial do Nome-do-Pai com relação aos outros elementos era preservar o seu valor transcendente do sistema, agora ele vale como sendo um equivalente à própria aparelhagem do sintoma. Ele assume um valor inerente, intrínseco ao próprio sintoma. O modo de enodamento particular à estrutura de Joyce, que prescinde do Nome-do-Pai, torna-se o paradigma do sintoma lacaniano. O enodamento não-borromeano do imaginário, real, com um simbólico operado por um ego costurado por um sintoma de escritura, é entendido por Lacan como um desabonamento do inconsciente, porque a articulação de sua cadeia significante S1 – S2 não remete a nenhuma significação dada pelo Outro, é letra sem Outro, que localiza e fixa um gozo opaco. O sinthoma torna-se o quarto termo, que na topologia aparece como o quarto nó, que 138 pode ser ou não borromeano. O sintoma passa a ser definido como a maneira pela qual cada um goza do inconsciente, enquanto o inconsciente o determina, e se antes a questão da metáfora abordava o processo de fala, agora o que se busca é o processo de escrita do gozo. Para Lacan, o sinthoma tem como função reparar a falha estrutural do enlaçamento. Ele é o quarto elemento, suplência à função do pai, considerado como um dos Nomes-do-Pai, porque, além de fixar o gozo na letra, ele é um elemento que prescinde da cadeia de significantes e que tem como função a nominação ao enlaçar os outros três registros: o real, o simbólico e o imaginário. Lacan, tendo em mãos o conceito de sinthoma, constrói um novo avatar para a psicanálise, a clínica das suplências, que é também chamada de foraclusão generalizada ou a clínica do real; quer dizer, a lei do sujeito se encontra em seu sintoma, é o que ele tem de mais particular, une em um traço o significante e o gozo. No nosso entender, a grande virada lacaniana concernente ao sintoma é a possibilidade de o sintoma existir sem ser necessário um conflito. Miller acredita que a segunda clínica, ao privilegiar o sintoma sem o conflito, desarticula a questão do sofrimento e delimita a questão do gozo. Ele diz: “A dificuldade é retirar a perspectiva de conflito apesar do sofrimento e privilegiar o real da satisfação. A clínica dos nós é uma clínica sem conflito (MILLER, 1997, p.52)”. Miller diz que se trata de uma clínica de enodamento e não de oposição, por se caracterizar muito mais como uma clínica de arranjos, que permite a satisfação, do que uma clínica cuja questão é o sofrimento. Essa afirmação parece vir a calhar com o que se encontra hoje na clínica psicanalítica. Os pacientes que procuram os analistas não possuem Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009 Um caso clínico em questão: neurose ou psicose? uma pergunta sobre o seu ser e, além do mais, não querem se fazer perguntas que os levem a uma busca interior. O que os incomoda é uma inadequação ao status quo vigente, que desestabiliza a rotina de suas vidas enquadradas num consumismo alienante, possibilitador de um arremedo de ser. O processo apresentado por Maria das Dores coloca em evidência uma estrutura original do sintoma encontrado em alguns casos de psicose ordinária. Na ausência de qualquer tipo de desencadeamento, o seu sintoma pode ser atribuído a Φ0. Nos embasamos no fato de que o falo é o significante do sexo, intermedeia as questões do amor e das relações sexuais, localiza o sujeito do lado homem ou mulher na sexuação e ainda significantiza o ser do sujeito; por isto, no nosso entendimento, os problemas de Maria das Dores são da ordem de Φ0. Ela constrói uma representação de seu ser que ajuste o trauma ocorrido em sua infância, encarnado em seu corpo por uma dor que o contorna e o sustenta. O gozo de seu sintoma se inscreve em seu corpo como dor, “um aperto” que se desloca a seu belprazer e a torna prisioneira de um gozo cuja significação lhe escapa totalmente. A significação sexual lhe escapa por completo; ela quer transar porque todas as moças fazem e gostam, uma tentativa especular para ser normal, igual a elas. No entanto, à menor possibilidade de realização do ato, ela entra em angústia e se afasta o mais rápido possível da cena. A segunda clínica privilegia muito mais flexibilidade nas amarrações e enlaçamentos que cada sujeito faz com seu sintoma e as soluções encontradas por ele para se estabilizar. Além do mais, mesmo a noção tão estranha a princípio de Φ0 sem a ocorrência de P01 pode ser entendida se pensarmos que a maneira singular que Das Dores arrumou para si foi a de ter um aperto, um sintoma que faz grampo, dá um significado a sua existência e que a acompanha desde sua infância, que a faz viver um pouco diferentemente dos outros, mas inserida num laço social mínimo. O que importa na clínica borromeana é a varité do sintoma, as diversas formas de enlaçamento, o aparelhamento de gozo que cada sujeito engendra para si. É o saber fazer com o sintoma, servindo-se dele. Para finalizar, gostaríamos de marcar um fato curioso. Por ser uma teoria que ainda está em elaboração, ela se apropria de significantes de uso cotidiano como grampo, laço, enodamento, enlaçamento, ligar ou desligar, assim como de muitos termos referentes à primeira clínica, que são empregados para explicar os fenômenos específicos da segunda clínica. As operações para um tratamento nãoedípico do gozo, como a compensação imaginária, a metáfora delirante e a suplência frequentemente são citadas nas Conversações de Arcachon (SAGNA; DEFFIEUX, 1998) e em Antibes (DEFFIEUX; SAGNA, 1999), embora com conotações diferentes de seu emprego anterior. Enquanto na primeira clínica o sentido era dado pela articulação fornecida a posteriori, hoje o que encontramos é o termo grampo para exemplificar a amarração dos quatro registros, mas ainda assim utilizando-se do ponto de capitonê como referência. Temos a impressão de que a variedade, as gradações e os diversos enodamentos, que demonstram a fluidez da segunda clínica, aparecem também na flexibilidade de se nomear seus instrumentos. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009 139 Um caso clínico em questão: neurose ou psicose? Keywords Neurosis; psychosis; ordinary psychosis; structure; sinthome. Abstract This article is based on a clinic case that led the analyst into a theorical dilemma. It reflects a gap between neurosis and psychosis, the classical psychoanalytic division. It seems that the Freudian or the structuralist perspectives are uncapable of answering what we currently see in some of our clients. This article looks for new approaches that may help to deal with these issues Referências DEFFIEUX, J. P.; SAGNA, C. D. La psychose ordinaire: La convention D’Antibes. Paris : Agalma, 1999. _____. Branchements, Débranchements, Rebranchements. In: La psychose ordinaire: la convention D’Antibes. 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Francisco Salles, 1614 / 604 – Santa Efigênia CEP : 30150 – 221, Belo Horizonte/MG Fone : (31) 3281-9689 / Fax: (31) 32871170 E-mail : [email protected] Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.129-140 – Novembro. 2009 A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: o registro identificatório e os recursos no processo de simbolização The adopted child and the psychoanalysis: the identificatory register and the sources in the symbolization process Noeli Reck Maggi1 Palavras-chave Adoção, registro identificatório, processo de simbolização. Resumo O trabalho aborda as marcas originárias, desde a constituição, do psiquismo humano em crianças que são adotadas e faz referência a casos clínicos em que as associações transferenciais revelam a possibilidade de retranscrição da história do paciente. O texto traz elementos sobre a formação psíquica e as manifestações sintomáticas que podem se manifestar a partir da perda do objeto originário materno. A análise teórica e a ilustração com os casos da clínica psicanalítica fundamentam-se especialmente na perspectiva de Piera Aulagnier, Françoise Dolto, Donald Winnicott e Silvia Bleichmar. A ADOÇÃO E A CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE O tema da adoção e a análise de casos clínicos acompanhados de reflexão teórica constituem o presente estudo. As vivências traumáticas de crianças que são expostas a experiências de abandono e de desamparo desde o estabelecimento dos primeiros vínculos produzem um efeito que se traduz em reflexão e possibilidade de novas perspectivas de trabalho, tanto para gestores institucionais quanto para profissionais na área da saúde. A literatura referente a este tema remete às experiências dos vínculos iniciais entre a criança e os pais, sejam os adotivos, sejam os biológicos. A criança, por encontrar-se em momento de extrema fragilidade, expressa-se pela necessidade de sobrevivência; o adulto, por desejar a adoção, expressa-se pela ansie- dade e expectativa de que seus objetivos sejam atendidos. Se, por um lado, a criança que vive o caos desintegrador do pós-nascimento experimenta a necessidade de um ambiente acolhedor, por outro lado, o adulto, ao iniciar com a criança a formação dos primeiros vínculos, pode estar confuso por reviver a sua experiência primitiva das relações de objeto. Há que se ter entendimento sobre quanto a criança e o adulto encontram-se em situação caótica, embora se suponha que seja o adulto, como portador do objeto contensor, que possibilite à criança dar sentido ao que está experimentando. Esses estudos não preenchem as lacunas a respeito deste tema, embora procurem clarear cada vez mais nosso atendimento, seja como gestores de instituições dedicadas ao cuidado da infância, como pais, educadores ou psicanalistas. O trabalho aqui desenvolvido fundamenta-se na teoria 1 Psicóloga. Psicanalista, membro efetivo do Círculo Psicanalítico do Rio Grande do Sul. Doutora em Educação pela UFRGS. Professora do Centro Universitário Ritter dos Reis – UniRitter. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.141-146 – Novembro. 2009 141 A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: o registro identificatório... psicanalítica, especialmente em autores que dedicaram estudo às primeiras inscrições psíquicas na constituição do sujeito humano: Aulagnier (1979), Winnicott (1975, 1993), Dolto (2006), Bleichmar (1994). Silvia Bleichmar (1994) afirma que, no psiquismo de crianças adotadas ou que sofreram algum tipo de negligência, há uma interrupção no encadeamento entre o que o sujeito viveu num momento prévio da vida e o momento atual. A fratura é uma representação mal localizada, refere-se a algo que ficou nas margens do sujeito, significando um rompimento. O sujeito ficou aprisionado numa posição imaginária, sem condições de reordenar o desejo na ordem simbólica. As primeiras inscrições maternas parecem definir as possibilidades do metabolismo das referidas marcas por parte da criança. O suporte do acolhimento materno tem de estar presente desde os primeiros tempos de instalação do processo arcaico e originário, mas também terá de ceder lugar ao pai (função paterna) para poder enfrentar as rupturas subsequentes. Ao separarse do objeto originário, a criança necessita transcrever a sua história para não revelar através do ato alguns nexos que não permitem a interpretação da sua experiência. A análise pode tecer o entramado do que não foi falado, mas reendereça a uma representação mal localizada. Quando se fala dos primeiros tempos da constituição psíquica, abre-se a possibilidade de pensar os movimentos e as falhas no ordenamento do desejo e no processo de subjetivação. A atividade clínica pode facilitar a nomeação dos elementos que tecem a trama inicial da vida do sujeito, até então impedida de se tornar consciente. Os movimentos do paciente e do psicanalista se superpõem e podem transcrever, através das associações transferenciais, o que está à margem de ser instaurado como experiência psíquica própria. Vera tem oito anos e vem ao consultório acompanhada de uma tia paterna. O motivo da consulta é, segundo os familiares, o excesso de retraimento e a falta de diálogo, especialmente com a mãe. A menina revela 142 dificuldade de relacionamento com as irmãs e resistência para se identificar com as normas e rotinas estabelecidas pela família. Expressa-se de modo mais espontâneo na escola, quando está entre colegas de aula. Nas festas, prefere ficar próxima de pessoas com maior idade; sente-se, dessa forma, mais descontraída. Durante o trabalho clínico, vai aos poucos falando das suas dificuldades. É filha adotiva e diz não saber quem são os seus pais biológicos. Expressa dúvidas sobre as razões da sua adoção e justifica esse sentimento porque nunca lhe foram confirmados os verdadeiros motivos por que os pais biológicos a abandonaram. Através do contato que estabelece com as pessoas, necessita confirmar que é amada, reconhecida e verbaliza seu desafeto frente aos maus tratos, molestamento ou exclusão que observa no seu contato social. Expressa, através do trabalho clínico, sofrimento e angústia quando fala da infância inicial. Vive em uma família que diz tê-la adotado como filha, embora os registros de identificação tragam o nome dos avós paternos. No atendimento clínico, Vera manuseia e observa atentamente os detalhes dos braços e pernas de uma boneca retirada dentre jogos e demais brinquedos. Tece comentário sobre as lesões no corpo da boneca e levanta como possibilidade a agressão física de um adulto. Nesse momento, Vera desfaz-se da boneca e lembra a fala de sua avó quando ainda pequena, em um tempo da sua infância durante o qual não gostava de se alimentar. Vera parece viver em busca de uma filiação. Seu nome, os documentos legais, os espaços por ela ocupados não dão sentido à sua existência; necessita a cada dia reeditar a sua história. Compartilho dos seus momentos de dor durante a análise, especialmente ao sentir a paciente buscar sentido no que faz, falar de seus desejos e vivenciar o caos interno para reconhecer-se como pessoa diferenciada. Por vezes elege uma pessoa a quem idealiza e com a qual se identifica maciçamente como uma forma de recuperar a sua subjetividade. A tia e madrinha que a acompanha desde os primeiros tempos da adoção e que ainda faz o papel de mãe totalmente boa é a pessoa a quem Vera dedica seus afetos mais genuínos. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.141-146 – Novembro. 2009 A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: o registro identificatório... Medo, ódio e idealização são revividos com frequência pela paciente, que parece não conter a angústia de fragmentação experimentada quando bebê. Na mesma intensidade em que manifesta seu apreço e apego ao trabalho desenvolvido nas sessões clínicas, expressa rechaço diante das intervenções, conferindo, de modo persistente, a presença de um adulto que possa suportar e conter a sua ansiedade. O abandono aos três meses de idade, a fragilidade nas relações objetais dos primeiros tempos de vida, a ausência da palavra que dá nome à sua pessoa através da função materna e paterna necessitam de uma reconstituição. Aos poucos Vera se autoriza a falar e reconstituir imagens dos objetos internos a partir das pessoas, espaços e objetos de suas relações. Sua persistência e assiduidade às sessões clínicas, as manifestações espontâneas enquanto joga, e as associações com situações do cotidiano parecem permitir à criança abandonada a reescritura da sua história. Para falar do psiquismo em crianças adotadas, Bleichmar (1994) busca na atividade clínica as marcas identificatórias da mãe sobre o filho. Segundo a autora, o elemento que aparece através do ato não foi transcrito. Seu estatuto não é interpretável, apenas possível de ser ligado, e isto coloca o analista na posição de estabelecer nexos, nos quais a ponte deve ser construída, já que as vias estão rompidas. Nesses casos, produziu-se uma fratura na simbolização. O narcisismo derivado da função materna exerce função na constituição do psiquismo, nos modos de inscrição e de ligação do que a autora denomina o entramado de base, de modo a impedir que a identificação caia no vazio. A passagem do autoerotismo ao narcisismo é propiciada nos cuidados precoces da mãe, nas ligações que ela proporciona a partir da diferenciação instaurada pela própria sexualidade. No relato de um caso clínico, Bleichmar (1994) apresenta as condições em que João, um menino com sete anos e que foi adotado aos quatro meses, desenvolve um jogo no qual se organizam e se desarticulam situações de conflito no decorrer de sua infância. O me- nino separa animais hostis dos que não o são, através de cercas de plástico que caem a cada momento. Ao perceber a inércia do fazendeiro, que no jogo também está caído, o menino reconcilia-se e sorri com a intervenção da terapeuta de que esse homem inerte do jogo poderia ser útil. Na sequência, o paciente, que parece estar em estado de devaneio, se aninha ao lado da terapeuta e, com a mão, contorna o sofá onde está sentada e a saia que veste. As questões levantadas pela autora sugerem a necessidade de que a criança transcreva na sua história as marcas dos primeiros meses de vida em que, separada do objeto originário, foi atendida por enfermeiras na sala onde permaneceu até que se concretizou a adoção. Os signos de percepção decorrentes das primeiras experiências com o objeto constituem o aparelho psíquico. Em crianças com experiência de adoção, quando o objeto originário se perdeu, a recaptura das inscrições primordiais, como cheiro, voz e acolhimento podem potencializar os seus recursos para o processo de simbolização. As formas de relação do sujeito com o Outro e a contenção da angústia e da dor são observadas na sua experiência vivencial, reafirmando a concepção inicial de que algumas marcas poderão ou não ser transcritas. Piera Aulagnier (1979) refere-se ao movimento da cura na criança adotada e que foi afastada dos pais quando ela transforma os fragmentos mnêmicos dos primeiros tempos de vida em uma construção histórica. Através do pictograma e das identificações primárias, um tempo não falado pode ser recapturado pelo simbólico. A ruptura existe quando os elementos se perderam, quando não houve inscrição, ou, ainda, quando houve uma interrupção no processo de identificação da criança com um terceiro na relação mãe-filho. Piera Aulagnier reconhece a antecipação da palavra da mãe para que a criança possa situar-se num registro de existência de um corpo e, portanto, de uma subjetividade. Para ela os enunciados que vêm do exterior e de que a criança se apropria inicialmente através da repetição, constituem o Eu do Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.141-146 – Novembro. 2009 143 A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: o registro identificatório... sujeito. O Eu investido passa a apropriar-se do que lhe foi designado, transformando-o em projeto pessoal. Nesse momento, cujo tempo não é o cronológico, mas um tempo de separação e diferenciação, o Eu transforma os elementos da construção pictográfica em atividade de prazer e de pensar. O risco para a constituição psíquica é que o destino do investimento libidinal tenha como único objetivo o prazer, ao invés de ser transformado em atividade de pensar. O que Aulagnier propõe em seu estudo sobre constituição psíquica do sujeito é ver como se dão as atividades de representação. A autora entende por representação o equivalente psíquico do trabalho de metabolização própria do organismo. Na atividade psíquica, o corpo recebe as informações e as metaboliza. Existem três processos que se sucedem temporalmente na atividade psíquica, sendo que a emergência de cada um resulta da necessidade que se impõe à psique de tomar conhecimento de propriedades do objeto. São eles os processos originário, primário e secundário e se expressam em função de atividades que lhes são próprias. Esses registros se constituem em período muito precoce do desenvolvimento da criança – nos primórdios da relação com a mãe – e a sucessão desses registros no tempo não é mensurável. Na instância do processo originário prevalece o autoengendramento, em que não se evidenciam os segmentos da relação e em que ainda não estão situados os sujeitos implicados nela. Porque prevalece a unidade EuOutro, só pode haver registro no processo de memória do bebê quando o corpo materno inscreve suas marcas sobre o filho. A indiferenciação é prioritária nessa cena em que a mãe abastece o filho de interpretações a respeito do que emerge para ela na situação, e é esse tempo histórico-vivencial do psiquismo que a criança adotada necessita recapturar. No desenvolvimento inicial, a mãe, olhando para o filho, empresta a sua voz, o seu sorriso, todos os sentimentos e expectativas que possam conferir algum significado para a criança. Não é dessa criança que ela 144 fala, mas de si mesma, num desejo de atribuir uma certa continuidade de existência. O que marca no corpo do bebê é denominado pictograma. O toque, o olhar, o encontro com a voz da mãe são representações pictográficas. Fome, dor, desejo de proteção são anunciados na fala mãe-bebê. Não é somente a mãe que fala, mas também um bebê que ela traz dentro de si. As interpretações feitas por essa mãe trazem as representações que foram inscritas na sua história pessoal. A mãe atribui um nome a partir de sua história, do seu discurso, que é subjetivado, das marcas historicamente constituídas. O registro do originário se dá através de um corpo falado a partir das funções sensoriais – um canal por onde escoam as experiências de revitalização para a sobrevivência, tanto de um corpo somático quanto psíquico. Esses registros constituem o pictograma. O analista pode intervir nas associações do paciente para atribuir sentido à experiência vivida, de modo a tornar cognoscíveis para o Eu os elementos do pictograma inacessíveis ao conhecimento. A partir daí, surge o chamado processo primário, que é regido pela onipotência do desejo do outro. O discurso da mãe é prevalente sobre a imagem que a criança terá de si mesma. Nesse processo de identificação primária, aos poucos a criança vai se apropriando do discurso materno e vai, ao mesmo tempo, se alienando nele. A mãe interpreta e deseja o bebê com alguns códigos e qualificativos, e o bebê se reconhece nos mesmos, passando a aspirá-los como se fossem originalmente seus. É sobre esse processo de identificação primária que Aulagnier (1979) anuncia a formação do Eu e a necessidade da presença do terceiro, como uma referência demarcando a incompletude do discurso manifestado pela mãe. A autora explica que a criança ocupa uma função simbólica a partir do discurso que lhe é dirigido, e um lugar nas relações de parentesco. Os termos pai, filho, mãe, antepassados designam uma função que é independente do sujeito que a encarna durante a sua existência. Nesse sentido, prevalece a mobilida- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.141-146 – Novembro. 2009 A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: o registro identificatório... de dos ocupantes no registro identificatório, em oposição à fixidez da função relacionada ao símbolo. Assim, na adoção, o sujeito busca um lugar no registro identificatório entre os atores que passam a fazer parte de sua vida. Vera idealiza a madrinha como a mãe completa e boa e elege a mãe adotiva como objeto persecutório. Nas sessões de análise, a relação de transferência que dissocia a mãe-analista como boa ou má, aos poucos dá lugar à percepção de um mesmo objeto, capaz de ser amado e odiado. Aulagnier também faz uma destacada referência à angústia de castração como um tributo que todo sujeito tem de pagar como uma condição para ser sujeito de seu discurso. Mesmo com sete anos, o menino adotado busca na terapeuta resposta para a negligência sofrida em função de os pais biológicos o terem abandonado. João reedita a sua história para encontrar sentido nas lacunas e fraturas no curso do desenvolvimento e que provocam fracasso na simbolização. Dolto, ao se referir à adoção, diz que o ser humano não é redutível a seus vínculos biológicos. Para a autora, é na cultura e na linguagem que as relações se tornam estruturantes. O encontro entre a mãe e um casal que procura adotar uma criança teria como resultado uma mãe tranquilizada pela doação de seu bebê a um casal feliz, e uma criança saudável. O ato simbólico de fala e registro da doação “eu te confio a este senhor e a esta senhora, que serão teu pai e tua mãe”, segundo Dolto (2006, p.87), torna-se um registro compartilhado entre mãe biológica, pais adotivos e a criança. Nesse sentido, a adoção deveria ser feita o mais cedo possível, com o cuidado de que essa decisão não se transforme em posse dos pais sobre o filho. É isso que torna uma criança psicótica: ser o centro do amor dos pais adotivos, ser o substituto do filho, e não o filho deles. Para encaixar no molde do filho imaginário dos pais, ele é obrigado a se identificar com eles, o que um filho genético não precisa fazer, já que é a continuação deles. O filho adotivo é a continuação deles imaginariamente, antes de o ser simbolicamente. Aliás, ele pode se tornar simbolicamente sua continuação, o que nunca poderá acontecer se for reduzido ao estado de fetiche dos pais, em vez de ser seu descendente (DOLTO, 2006, p.93). Essas considerações nos fazem pensar que a adoção pode favorecer um suporte familiar de referência para que a criança possa se identificar, constituir a sua subjetividade e ter acesso a uma rede social. As inscrições que uma criança adotada traz no seu psiquismo podem favorecer os recursos para um processo de simbolização operante, desde que a separação do objeto originário materno seja nomeado e ressignificado no sentido dinâmico das fantasias, de modo a libertá-la da angústia em relação ao que viveu. As possibilidades de ruptura, trauma e quebra de fé no desenvolvimento inicial da criança podem ser originadas pelo rompimento no processo desadaptativo da mãe em relação ao bebê, no dizer de Winnicott (1993). Na linguagem psicanalítica, o ser humano se desenvolve a partir de uma realidade psíquica externa, em que é possível descrever os objetos, lugares e pessoas com as quais se compartilha a experiência. Há também, nessa experiência psíquica, a realidade interna, onde o sujeito se percebe e sente, tanto a riqueza quanto a pobreza pessoal, herança própria da organização da personalidade. Entre a experiência cotidiana diretamente observada através dos condicionantes sociais e a realidade interna subjetiva, movida pelo inconsciente, há uma terceira área a que Winnicott (1975) designou de espaço potencial. Nas crianças em situação de adoção, o exercício do que Winnicott (1993) denomina de mãe suficientemente boa exige do cuidador atenção permanente às possibilidades de enfrentar frustrações e perdas, uma vez que o sujeito sofreu ruptura do vínculo básico com o gestor. Essas crianças podem apresentar dificuldades iniciais para conceber a incompletude da condição humana a partir da renúncia da idealização ou do próprio processo de ilusão. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.141-146 – Novembro. 2009 145 A criança em situações de adoção e a clínica psicanalítica: o registro identificatório... Nestes casos, no momento em que a função paterna começa a se instalar, há uma ruptura no vínculo, uma vez que o fracasso ambiental se situa além dos limites da capacidade do sujeito para lidar com a frustração. Para Winnicott (1975), as perdas precoces na infância, como a morte ou o afastamento prolongado dos pais, podem significar o risco de perder a espontaneidade e a capacidade de brincar. Para o psicanalista e precursor dos estudos sobre a origem da criatividade e da capacidade de brincar, a criança privada é notoriamente inquieta e apresenta um empobrecimento da capacidade de experiência no campo cultural. Os efeitos da perda em qualquer estádio primitivo remetem a um exame do espaço potencial, área que, segundo Winnicott (1975), se situa entre sujeito e objeto. O fracasso da fidedignidade ou perda do objeto podem significar, para a criança, perda da área da brincadeira e perda de um símbolo significativo. Ao analisar os efeitos da depressão dos pais sobre o estado emocional das crianças que se encontram em fase inicial do desenvolvimento, o autor expressa sua preocupação sobre os prováveis riscos de uma perturbação profunda no psiquismo infantil. No início, o filho necessita de uma adaptação materna quase completa às suas necessidades, para que mais tarde possa suportar o fracasso provocado pela mãe na continuidade dos cuidados. Os aportes teóricos e clínicos de Piera Aulagnier (1979) alertam sobre as possibilidades de restituir e reconstituir a história do sujeito que vive a busca de sentido para a sua existência. Embora o tema da adoção seja o objeto central dessa reflexão, não podemos supor que, se os bebês forem bem cuidados, especialmente pelos pais biológicos, os problemas sejam minimizados. Na constituição do psiquismo, enquanto crianças recebem o acolhimento que lhes é oferecido e expressam os recursos da simbolização através da criatividade espontânea, outras podem revelar mecanismos de resistência à independência pessoal, fazendo os pais sentir-se responsáveis por tais manifestações. 146 Keywords Adoption; identificatory register; symbolization process. Abstract The present paper approaches the early marks since the constitution of the human psyche in children who are adopted and makes reference to clinical cases in which the transferential associations disclose the possibility of a retranscription of the patient’s personal history. The paper elicits elements of the psyche formation and symptomatic manifestations that can be revealed upon the loss of the early maternal object. The theoretical analysis and the illustration through clinical cases are based on the psychoanalysis, especially in the perspective of Piera Aulagnier, Françoise Dolto, Donald Winnicott and Silvia Bleichmar. Referências AULAGNIER, P. A violência da interpretação. Trad. M. C. Pellegrino. Rio de Janeiro : Imago, 1979. BLEICHMAR, S. A fundação do inconsciente: desejos de pulsão, desejos do sujeito. Trad. K. B. Behr. Porto Alegre : Artes Médicas Sul, 1994. DOLTO, F. Destinos de Crianças: adoção, famílias de acolhimento, trabalho social. Trad. E. Brandão. São Paulo : Martins Fontes, 2006. WINNICOTT, D. A família e o desenvolvimento individual. Trad. M. B. Cipolla. São Paulo : Martins Fontes, 1993. _____. O Brincar e a Realidade. Trad. J. O. A. Abreu e V. Nobre. Rio de Janeiro : Imago, 1975. Tramitação Recebido : 17/08/2009 Aprovado : 08/09/2008 Nome : Noeli Reck Maggi Endereço : Rua Santo Antônio , 500/501 CEP : 90220 – 010, Porto Alegre/RS Fones : (51) 3335 3069 / 3311 2481 E-mail : [email protected] Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.141-146 – Novembro. 2009 Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente Psychoanalysis and Dentistry in the unconscious rebellion Ricardo Azevedo Barreto1 Marlene Guirado2 Palavras-chave Psicanálise; análise de discurso; odontologia. Resumo Este trabalho faz um balizamento de considerações acerca da noção psicanalítica de inconsciente, ressignificando-a sob o crivo de uma análise de discurso assentada no pensamento de Marlene Guirado. Tal percurso possibilita, em um duplo movimento, acompanhar a rebeldia inconsciente e de seu conceito, ilustrando-a por meio de cenas na Odontologia. Quer dizer que eu me contradigo? Pois bem, então me contradigo [...] INTRODUÇÃO Sucção do polegar, bruxismo, fobia ou trauma do atendimento odontológico, vivências emocionais dos pacientes com lábio leporino e de seus familiares, relação entre dentista e paciente são apenas algumas das situações que contornam a importância da Psicanálise para a Odontologia. À guisa de ilustração das intensas experiências emocionais no contexto de atenção odontológica, mencionemos a cena de uma criança que pediu à mãe uma sopa de pizza, deixando escapar seu desejo por iguarias italianas, após fazer uma cirurgia de palato, já que só podia se alimentar restritivamente com líquidos ou comida pastosa. Walt Whitman Neste texto, de modo delimitado, vamos trilhar algumas considerações sobre uma noção de inconsciente depreendida da perspectiva psicanalítica já no termo da Análise Institucional do Discurso proposta por Guirado ([1995] 2006, 2000, 2007), exemplificada por nós em cenas contempladas da Odontologia. O INCONSCIENTE É inquestionável a centralidade da noção de inconsciente no âmbito da(s) teorias(s) da Psicanálise e na constituição do(s) método(s) de trabalho dos psicanalistas. O inconsciente, cujos efeitos são reconhecidos no ofício psicanalítico em esque- Psicólogo, mestre e doutorando em Psicologia pela USP. Psicanalista, membro do Círculo Psicanalítico de Sergipe e do Círculo Brasileiro de Psicanálise. Especialista em Psicologia Hospitalar pelo CEPSIC da divisão de Psicologia da FMUSP e professor da Universidade Tiradentes. Editor da Revista. 2 Psicóloga, psicanalista, analista institucional e professora doutora livre-docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Autora de livros que articulam Psicanálise e Análise do Discurso. Criadora do método da análise institucional do discurso. Orientadora do autor supracitado em seu doutorado. 1 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.147-152 – Novembro. 2009 147 Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente cimentos, lapsos ao falar, equívocos no agir, sonhos, chistes, sintomas, entre outros exemplos, é vetor que atravessa toda a obra freudiana e conceito polissêmico, com várias nuanças, nos desdobramentos da instituição criada por Freud: a Psicanálise. Zimerman (1999) comenta a respeito do inconsciente como o que há de mais arcaico no aparelho psíquico, relacionando-o, por meio da genética, às pulsões com suas energias e protofantasias (fantasias primitivas). Também o associa às representações de coisa e ao processo primário. Diz nosso interlocutor (1999, p.83): [...] uma função que opera no sistema Inconsciente e que representa uma importante repercussão na prática clínica é que ela contém as “representações de coisa”, as quais consistem em uma sucessão de inscrições de primitivas experiências e sensações provindas de todos os órgãos dos sentidos, como o da visão, audição, tato, etc., e que ficaram impressas na mente da criança numa época em que ainda não havia palavras para nomeá-las. Funcionalmente, o Inconsciente opera segundo as leis do “processo primário” [...]. Kusnetzoff (1982) fala da metapsicologia freudiana fundamentada nos modelos tópico, dinâmico e econômico. No primeiro tópico, o aparelho psíquico é concebido por inconsciente, pré-consciente e consciente; no segundo, por id, ego e superego. O novo Tópico inaugura uma nova linguagem prática. No Primeiro Tópico, 148 a linguagem é predominantemente fisicalista: catéxias, representações, forças, recalques, etc. No Segundo Tópico, o modelo é antropomórfico, e parece então que as instâncias “falam”. O Superego, por exemplo, será “sádico”, uma parte do Ego “luta” contra outra parte, e assim por diante. Desta forma, existe uma aproximação analógica entre a teoria do aparelho psíquico e a vida fantasmática que “habita” dentro do sujeito (KUSNETZOFF, 1982, p. 127-129). Poderíamos reconhecer, na segunda tópica freudiana, três personagens na cena intrapsíquica do sujeito: de modo bastante simplificado, o id como polo do desejo, o superego como juiz interno gerador de culpas e o ego no agenciamento das defesas; o inconsciente está presente nas três instâncias em maior ou menor grau, distintamente da primeira tópica em que ele era visto como exclusividade de um sistema. Além disso, problematizaríamos a dinâmica dessa cenografia intrapessoal tripartite, levando em conta o peso que Freud confere ao recalque e ao modelo da neurose nas teorizações que tecem relações entre inconsciente e recalcado. Remontagens da cena, por exemplo, de “um inconsciente a céu aberto”, como costumeiramente falamos de pacientes com estrutura psicótica, ou, até, peculiaridades em casos de estrutura perversa em que há dimensões particulares no desenvolvimento moral. Os fenômenos psicossomáticos nos exigiriam outras considerações. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.147-152 – Novembro. 2009 Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente De acordo com Laplanche e Pontalis (1994), o inconsciente, como adjetivo, é referido por vezes como conjunto de conteúdos não existentes no campo da consciência. Na primeira tópica do aparelho psíquico, é um dos sistemas, cujos conteúdos são delineados como representantes pulsionais, regidos por meio de mecanismos como o deslocamento e a condensação. Eles buscariam retorno ao campo da consciência e ação, todavia seu acesso ao pré-consciente/consciente ocorreria por meio de formações de compromisso e distorções da censura. Nossos interlocutores chamam atenção ainda para a implicação entre inconsciente e desejos infantis. Dizem também que, na segunda tópica, o inconsciente é posicionado qualificando o id, mas também, parcialmente, o ego e o superego. Comentam que muitas características atribuídas ao inconsciente na primeira perspectiva se manteriam no id na segunda tópica freudiana. No panorama do avanço das duas tópicas de Freud, enfatizamos giros epistemológicos na estratégia de pensamento. Ressaltamos, por outro lado, embora não entremos muito nesses meandros, que existem particularidades entre os diversos autores da Psicanálise quanto à noção de inconsciente. Podemos falar, por exemplo, de Melanie Klein e da importância que configura às ansiedades nas posições esquizoparanoide e depressiva. Com Lacan e a escola francesa de Psicanálise, falaríamos, entre outros aspectos, de “um inconsciente estruturado como linguagem” e da cadeia de significantes. O INCONSCIENTE NAS INTERFACES DA PSICANÁLISE COM A ANÁLISE DO DISCURSO Guirado (2000), aproximando a Psicanálise da Análise do Discurso francesa de Dominique Maingueneau, faz articulações entre inconsciente e a noção de polifonia: várias vozes constitutivas do discurso, o que multiplica os sentidos em um mesmo dito. Propõe, então, uma escuta psicanalítica dos indicadores de polifonia, de divisão que se opera no discurso: Pensar a polifonia como condição de divisão no discurso e como abertura à possibilidade de escutar o modo de organização da fala, na clínica psicanalítica, é poder prescindir de uma imagem tão poderosa como a dessa divisão de três em um, já quase um mito religioso (GUIRADO, 2000, p. 66). Sobre a polifonia, Guirado ([1995] 2006, p. 50) salienta: [...] Muito embora não seja o único a tratar do assunto, é Ducrot quem mais sistematicamente o faz, sendo difícil não ser referido por todos os analistas do discurso quando afirmam que se torna necessário ir além do sujeito e do conteúdo do enunciado [...] usa, ele, a imagem de “vozes” (tomada de empréstimo a Bakhtine) para configurar este argumento que implode a tendência de unidade e homogeneidade nas falas. A autora (2000, p. 75) ainda delineia algumas dimensões do trabalho analítico: Ironias, equívocos, denegações, pressupostos, discursos relatados, meta-dis- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.147-152 – Novembro. 2009 149 Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente cursos, polifonias, enfim um festival de tonalidades discursivas à escuta clínica, uma orquestração de estranhamentos sucessivos. Boas condições de análise, no horizonte. Desse modo, reconhece Guirado (2000, p. 69): “resgata a significação no contexto, no dizer, no mostrar e não no dito, num inconsciente pessoal [...]” Essa visão de Psicanálise na perspectiva de Guirado (2000) se contrapõe a uma substancialização do inconsciente ao construir outros modos de operar com a clínica psicanalítica ou com a Psicanálise em outros contextos, pensando, entre diversos aspectos, com base em suas fontes teóricas, em indicadores de heterogeneidade no discurso. Como desenhou a autora, uma clínica psicanalítica na sombra do discurso. Em tal posicionamento, não nos referimos a personagens ou vozes dentro do sujeito numa tripartição, pois a subjetividade é pensada em sua constituição-efeito no discurso, visto como polifônico e não tripartite na perspectiva guiradiana. Em vez da obrigatoriedade de aproximações de noções como as de pulsão e recalque, entre outras clássicas à obra freudiana, aportes epistemológicos externos ao campo psi mobilizam o lugar psicanalítico com matrizes conceituais da Análise do Discurso francesa de Maingueneau, como, por exemplo, a de gênero discursivo, em seus diferentes níveis de abrangência. Localizemos: rebeldia na e da Psicanálise reconhecida com força instituinte. Não foi essa uma das grandes lições de Freud ao revisar tantas e tantas vezes seus conceitos?! 150 EXEMPLIFICANDO COM CENAS ODONTOLÓGICAS Barreto (1999), em seu trabalho na área da Odontologia, comenta a interlocução de uma dentista com uma paciente de nove anos: “se tiver vontade de vomitar, levanta a mão! [...] agora, por favor, solta a mão, a perna. Fica calma. Coitado do algodão! Quem vê, pensa que a tia [...] tá judiando de você [...]” (p. 43) (primeiro exemplo). Em um momento seguinte, a mesma dentista, com um paciente de três anos, diz: “oi, tudo bem? Como está bonito [...] Mas não estou chorando?! [...]” (p. 45) (segundo exemplo). Outra odontóloga fala para uma criança também de três anos: “vamos abrir a boca que a gente precisa limpar o dente” (p.46) (terceiro exemplo). Tais situações supramencionadas e similares são nomeadas por Barreto, em sua dissertação de mestrado e na síntese desta (1999 e 2003), como uma indiferenciação, uma espécie de troca ou sobreposição de lugares no discurso de profissionais. Sobre o primeiro exemplo, não é o algodão que é coitado, com certeza! Por uma determinada concepção de inconsciente, poder-se-ia perguntar: quem o será? O coitado do algodão é algum tipo de efeito inconsciente da dinâmica pressão/repressão? É o retorno do recalcado, evidenciando as posições do id, ego, superego e as vicissitudes da pulsão? Mas pensemos na cena, não para além dela. O lugar da paciente é associado à possibilidade do adverso, vontade de vomitar, ao que o acordo é poder levantar a mão. Por outro lado, Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.147-152 – Novembro. 2009 Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente a dentista, no antagonismo da relação, solicita que a criança solte a mão, e não apenas, mas a perna, por favor (ou por fervor?). O pedido é que fique calma ou coopere. No tensionamento dos lugares, da paciente e da dentista, o vocábulo coitado é abruptamente associado ao algodão, que parece pular para fora da boca nos movimentos da paciente, obstaculizando o trabalho da profissional. Ao outro, a tia, dentista, pode ser vista, ou não vista, judiando da criança. A cena da rebeldia inconsciente na Odontologia está desenhada. São múltiplas as possibilidades de significação do termo (deslocado?) algodão. Nas posições discursivas da cena, são encontradas pistas ao sofrimento da dentista e também da paciente durante o atendimento odontológico. No segundo exemplo, as imagens deslizam do “[...] tudo bem? Como está bonito [...]”, endereçadas ao paciente, para uma posição discursiva à dentista que causa estranhamento. “[...] Não estou chorando?! [...]” deixa ambíguo, na identificação, quem chora. No terceiro exemplo: “vamos abrir a boca [...]” e “[...] a gente precisa limpar o dente” mostram que o sujeito singular se perde. De quais lugares de enunciação emergem tais falas? Quanto tais acontecimentos discursivos dizem da cena odontológica? Destaquemos, aliás, que temos reconhecido tal mecanismo de indiferenciação nas relações humanas com bebês, crianças, idosos e pessoas em adoecimento de modo geral. Muitas vezes, seus cuidadores falam por eles ou até assumem dois lugares no discurso: de si próprios e do outro. Na abordagem psicanalítica localizada, pensar em tais cenas como indicadores de divisão no dizer, polifonia, é não marcá-las, necessariamente, ou inicialmente, como reedição de imagos infantis ou provas incontestáveis de uma mente tripartite. Nas múltiplas (e não indubitavelmente triádicas) facetas no e do dizer, é que emergem, nessa perspectiva teórico-metodológica, os efeitos de subjetivação/singularidade. Aos psicanalistas, há, portanto, um desafio enorme no terreno da Psicanálise/Odontologia por existirem situações notáveis em que a expressividade do humano se apresenta não apenas no corpo anátomo-fisiológico, mas, sobretudo, na rebeldia inconsciente ou de seu(s) conceito(s). Keywords Psychoanalysis; discourse analysis; dentistry. Abstract This paper considers about the unconsciousness psychoanalytic notion to renew it under the screen of a discourse analysis seated by Marlene Guirado’s thought. In a double movement this way allows to follow the unconscious and its concept rebellion through Dentistry scenes. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.147-152 – Novembro. 2009 151 Psicanálise e Odontologia na rebeldia inconsciente Referências BARRETO, R.A. 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Mediante a articulação com a obra filosófica de Michel Foucault, a hipótese deste artigo aponta para a possibilidade de pensar a resistência em si implicada na mudança subjetiva, ou seja, na produção do novo e da diferença no processo de subjetivação. 2 Não se sabe do que o homem é capaz ‘enquanto ser vivo’, como conjunto de forças que resistem. Michel Foucault INTRODUÇÃO É sempre em torno de alguma forma de mudança e transformação subjetiva que gira a experiência psicanalítica. Em outras palavras, é apostando no surgimento do novo e da diferença diante das fixações e inércias da psique humana que a psicanálise se afirma como uma terapêutica da alma. Longe de um ideal de cura, a prática analítica está implicada na constituição de formas de subjetividade ou modos de existência que sejam capazes de lidar com os conflitos de força insuperáveis e inerentes à vida. Em oposição à normalização e à submissão da subjetividade na atualidade, a psicanálise está irremediavelmente comprometida com o vir a ser das subjetividades, ou seja, com a produção do novo e da diferença no processo de subjetivação. Entretanto, em oposição à produção do novo e da diferença, o conceito de resistência foi caracterizado ao longo de toda a obra freudiana como uma força que se manifesta como obstáculo à análise e, principalmente, contra toda e qualquer mudança ou transformação subjetiva decorrente do tratamento analítico. Mesmo que, paradoxalmente, o trabalho de combate e superação da resistência do paciente seja fundamental para que qualquer mudança se torne possível, na leitura predominante da teoria psicanalítica, a resistência em si sempre apontou para a conservação do mesmo e para a evitação de qualquer tipo de mudança. Nesse contexto, o principal objetivo deste trabalho é problematizar o conceito de resistência na obra freudiana, na tentativa de revelar outros paradoxos e outras vias de interpretação do mesmo. Mediante a arti- Psicanalista e membro efetivo do Circulo Brasileiro de Psicanálise – Seção Rio de Janeiro; engenheiro graduado pela PUC-Rio; pós-graduado em Filosofia pela PUC-Rio. Mestre em Teoria Psicanalítica pela UFRJ. 2 Este artigo é resultado do trabalho de pesquisa realizado no Mestrado de Teoria Psicanalítica da UFRJ orientado por Joel Birman. 1 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009 153 Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença culação com o pensamento filosófico de Michel Focault, que define a resistência como uma força inventiva, móvel e produtiva na luta contra a submissão das subjetividades, tentaremos ler de maneira diferente essa noção em Freud. É importante frisar que problematizar a resistência nos âmbitos da psicanálise não representa desconsiderar sua pertinência e importância teórica e clínica, mas sim apostar na capacidade de lançar luz sobre outros aspectos desse termo. Na contramão da leitura tradicional da psicanálise e com a ajuda das lentes foucaultianas, a nossa hipótese de pesquisa consiste na possibilidade de pensar a resistência em si implicada na mudança subjetiva, ou seja, na produção do novo e da diferença no processo de subjetivação. Pretendemos indicar que, no próprio discurso freudiano, a resistência é mais paradoxal do que parece, visto que mais do que meio de mudança, esta também pode ser força de mudança em si. O ENCONTRO DE FREUD COM A RESISTÊNCIA No texto Os Estudos sobre a Histeria (1893-1895), é possível perceber Freud às voltas com uma de suas maiores realizações: a invenção de um instrumento teórico-clínico para análise da psique humana. No entanto, o que vale ser ressaltado nesse texto, em que é possível identificar os primeiros passos dessa invenção, não é simplesmente a história da superação de uma série de obstáculos que se colocaram em seu caminho, mas justamente a história da descoberta desses obstáculos. Segundo Birman (1981, p. 171): “um dos traços geniais de Freud é o de ter tido a coragem de transformar os obstáculos com que se defrontava em questões a serem resolvidas”. Assim 154 como a hipnose, Freud também observou que a técnica da pressão podia falhar na tarefa de suscitar as lembranças esquecidas, apesar de toda a insistência empregada junto ao paciente. Quando isso acontecia, Freud percebia que havia encontrado uma oposição para penetrar em uma camada mais profunda da cadeia de representações. Portanto, as dificuldades em utilizar a hipnose, bem como a técnica da pressão, revelaram a presença de um importante obstáculo à terapia analítica: a resistência dos pacientes, quando se tentava acessar as suas representações inconscientes. A primeira vez que o termo resistência aparece na teoria freudiana é no relato do caso clínico da Srta. Elizabeth Von R: “No curso desse difícil trabalho, comecei a atribuir maior importância à resistência oferecida pela paciente na reprodução de suas lembranças” (FREUD, 1893-1895, p. 178). A resistência aparece na clínica como força contrária a qualquer tentativa de rompimento do isolamento estabelecido pelo recalque a um conjunto de representações. Ou seja, sempre que o trabalho de análise se aproxima de uma representação recalcada, a resistência se manifesta, tentando impedir esse trabalho, como obstáculo à rememoração. Nesse contexto, Freud reconhece que qualquer mudança no estado de seus pacientes exigiria um percurso muito mais laborioso do tratamento, haja vista o tempo e o esforço empregados no processo de superação do obstáculo imposto pela resistência ao trabalho de associação livre. Por meio de meu trabalho psíquico, eu tinha de superar uma força psíquica nos pacientes que se opunha a que as representações patogênicas se tornassem conscientes. [...] A tarefa do terapeuta, Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009 Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença portanto, está em superar, através de seu trabalho psíquico, essa resistência à associação (FREUD, 1893-1895, p. 283/284). Diante do fenômeno clínico da resistência, Freud foi abandonando de vez a sugestão deliberada existente nas técnicas da hipnose e da pressão, passando a apostar no fluxo de associações livres do paciente, sem constrangimento, sem crítica e guiada pelo acaso. E ao perceber e conceituar teoricamente o fenômeno clínico da resistência, Freud abandonou as técnicas utilizadas até então em sua terapêutica e começou a trilhar um caminho singular rumo à criação da própria psicanálise. Também nesse momento da obra freudiana, é possível observar a relação direta do conceito nascente de resistência com outros importantes elementos do edifício teórico da psicanálise, tais como: o recalque, a interpretação dos sonhos e, principalmente, a transferência. Com relação ao recalque, a resistência pode ser considerada a manifestação exterior desse mecanismo de defesa, cuja função é manter fora da consciência uma representação ameaçadora. Quanto mais o trabalho analítico se aproxima de uma representação recalcada, maior e mais intensa é a resistência contra esse trabalho. Com relação aos sonhos, a resistência atua tanto no processo de formação do sonho, impondo a censura como agente deformador dele, como também dificultando, seja pelas dúvidas ou esquecimentos, o trabalho de interpretação deste sonho. Já em relação à transferência, é precisamente o silêncio que acomete o paciente, interrompendo o processo de associação livre, que faz Freud considerar a transferência como o pior obstáculo à análise, servindo inteiramente aos propósitos da resistência. Desde essa época, Freud não tinha dúvidas em afirmar que tudo o que interrompe, atrapalha ou impede o trabalho analítico deveria ser considerado uma forma de resistência. Portanto, a resistência surge como obstáculo e força contrária diante de qualquer tentativa de tornar consciente algum conteúdo inconsciente e recalcado do paciente. NA TRILHA DA RESISTÊNCIA Seguindo a trilha da resistência até os últimos trabalhos de Freud, deparamo-nos inicialmente com o caso Dora, no qual Freud, em sua análise posterior do suposto fracasso desse caso clínico, começou a perceber a importância da transferência para o êxito terapêutico. Fui obrigado a falar da transferência porque somente através desse fator pude esclarecer as particularidades da análise de Dora. O que constitui o seu grande mérito e que a fez parecer adequada para uma primeira publicação introdutória, a saber, sua transparência incomum, está ligado a seu grande defeito, que levou a sua interrupção prematura. Não consegui dominar a tempo a transferência... (FREUD, 1905, p. 113). Se esse fenômeno é incontornável, visto que se produz em qualquer relação entre médico e paciente, ao mesmo tempo é indispensável para a condução de uma análise, já que sua escuta e interpretação são essenciais para o processo de cura. A transferência, a partir desse caso, estabelece-se, então, como principal resistência e principal aliada do tratamento psicanalítico: “A transferência, destinada a constituir o maior obstáculo à psicanálise, converte-se em sua mais poderosa aliada quando se consegue detectá-la e traduzi-la para o paciente” (FREUD, 1905, p. 112). Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009 155 Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença Entretanto, apenas nos artigos sobre a técnica, publicados entre 1911 e 1916, é que Freud definitivamente alça a transferência como conceito estratégico e aprofunda os diversos desdobramentos da relação entre a transferência e a resistência. Nesses artigos, é possível identificar a entrada em cena da repetição, que passou a ocupar um lugar importante na relação entre a resistência e a transferência, já que muitos pacientes, resistindo à regra fundamental da psicanálise, repetiam em ato uma recordação recalcada. Diante da compulsão à repetição, o analista tem que travar uma luta contínua, no campo da transferência, para tentar transformar a repetição em recordação. O que nos interessa, acima de tudo, é, naturalmente, a relação desta compulsão a repetição com a transferência e com a resistência. Logo percebemos que a transferência é, ela própria, apenas um fragmento da repetição e que a repetição é uma transferência do passado esquecido, não apenas para o médico, mas também para todos os outros aspectos da situação atual. [...] Quanto maior a resistência, mais extensivamente a atuação (acting out) (repetição) substituirá o recordar (FREUD, 1914a, p. 166). Continuando o nosso percurso, nos deparamos com a perda da hegemonia do ego como pólo exclusivo de resistência nos contornos finais do conceito de resistência na obra freudiana. No texto Inibição, sintoma e angústia (1926), Freud postula a existência de cinco formas de resistência espalhadas por todo aparelho psíquico, a saber: três formas de resistência ligadas ao ego (a resistência do recalque, a resistência de transferência e o ganho secundário da doença), a resistência do id (compulsão à repetição) e a resistência do superego (reação terapêutica negativa). 156 Por fim, analisando seus últimos trabalhos, especialmente o texto Análise terminável e interminável (1937), é possível observar que o tom pessimista de Freud se acentua quanto à eficácia da técnica psicanalítica e sua possibilidade de promover a cura. Nesse momento, percebemos Freud dando o testemunho de que a tarefa de superação das resistências é muito mais árdua e complexa do que ele próprio imaginava. A partir dessa análise histórica, conseguimos perceber a centralidade do trabalho de combate e superação das resistências, ao longo de todo o desenvolvimento da obra freudiana. Se, no início, Freud afirma que: “A tarefa do terapeuta, portanto, está em superar, através de seu trabalho psíquico, essa resistência à associação” (FREUD, 1893-1895, p. 283/284), mais de vinte anos depois, essa posição é visivelmente acentuada: “Na verdade, chegamos a compreender, finalmente, que a superação dessas resistências constitui função essencial da análise. [...] A luta contra esta resistência faz parte de toda análise” (FREUD, 1916-1917, p. 298). Tendo em vista que qualquer mudança no paciente teria que passar obrigatoriamente por esse combate incessante contra as suas resistências, identificamos que o aspecto fundamental desse conceito reside na luta contrária a qualquer mudança ou transformação subjetiva. Em outras palavras, as resistências de um paciente apontam primordialmente para a manutenção do status quo e conservação do mesmo, pois são “forças poderosas que se opõem a qualquer modificação na condição do paciente” (FREUD, 1916-1917, p. 300). Mais uma vez, Freud radicaliza sua posição no final de sua obra, sentenciando que “a coisa decisiva permanece sendo que a resistência impede a ocorrência de qualquer mudança – tudo fica como era” (FREUD, 1937a, p. 270). Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009 Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença Independentemente de qual instância psíquica resiste ou qual momento do desenvolvimento da obra freudiana seja considerado, a leitura predominante da teoria psicanalítica aponta para a resistência como luta pela conservação do mesmo e evitação do novo e da diferença na vida dos pacientes. Nesse ponto, revela-se a característica paradoxal da noção de resistência. Ao mesmo tempo em que é obstáculo contra qualquer tipo de mudança psíquica, a resistência, desde que interpretada e elaborada, também é meio através do qual uma transformação subjetiva poderia acontecer. A resistência como meio de mudança, mas não como mudança em si. Superar, lutar e combater são os verbos mais comumente utilizados por Freud para se referir ao trabalho do analista com as resistências do paciente, evidenciando o campo de batalha em que se transforma a prática analítica. É justamente este trabalho de superação das resistências do paciente que traz à tona as relações de poder que existem entre analista e paciente. Desde os primórdios da clínica psicanalítica, quando ainda utilizava as técnicas da hipnose e da pressão, passando pela sugestão que se manifestava também no plano da transferência, até o conceito de construção, observamos Freud tendo que lidar com a questão do poder em sua clínica. RESISTÊNCIA E PODER: A POSSIBILIDADE DE MUDANÇA A partir do momento em que são evidenciadas as relações de poder na clínica psicanalítica, que transformou o setting analítico em um campo de batalha, é possível tentar estabelecer uma ponte entre a teoria freudiana e o pensamento de Foucault, mais especificamen- te o momento de sua obra denominado genealogia do poder. Aqui, é importante esclarecer que o interesse nessa ponte reside na ressonância do discurso de Foucault sobre a teoria psicanalítica ou, em outras palavras, em como utilizar a obra de Foucault como chave para pensar de maneira diferente o conceito de resistência nos âmbitos teóricos da própria psicanálise. Não se trata de tentar encontrar Freud defendendo literalmente a hipótese desta pesquisa, mas de ler em Freud essa mesma hipótese, com a ajuda das lentes poderosas da filosofia foucaultiana. De acordo com Foucault, o poder não possui uma essência ou uma natureza universal; o que existe são formas e relações localizadas e espalhadas de poder em um nível molecular da sociedade. Todos estariam imersos nas relações de poder, não sendo o poder algo que se possui, mas algo que se exerce em relações de várias naturezas, inclusive nas relações que se estabelecem na experiência psicanalítica. Na visão foucaultiana, não haveria exterioridade entre as relações de poder e de resistência. Ambos frequentariam o mesmo campo de batalha. Não se trata de um contrapoder organizado em uma “grande recusa”, mas de resistências plurais e locais. Onde existisse poder, existiriam resistência e possibilidade de luta. Esta resistência de que falo não é uma substância. Ela não é anterior ao poder que ela enfrenta. Ela é coextensiva a ele e absolutamente contemporânea [...] Para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele (FOUCAULT, 1979, p. 241). No entanto, a resistência é luta aqui e agora e não mera promessa de um futuro melhor. Segundo Foucault, histo- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009 157 Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença ricamente, as várias formas de resistência articulam-se em três principais tipos de luta: i) contra as formas de dominação (étnica, social e religiosa); ii) contra as formas de exploração que separam os indivíduos daquilo que eles produzem; e iii) contra as formas de sujeição, ou seja, contra a submissão da subjetividade, sendo esta última a mais importante para ele na atualidade, tendo em vista que: São lutas que questionam o estatuto do indivíduo: por um lado, afirmam o direito de ser diferente e enfatizam tudo aquilo que torna os indivíduos verdadeiramente individuais. Por outro lado, atacam tudo aquilo que [...] força o indivíduo a se voltar para si mesmo e o liga à sua própria identidade de um modo coercitivo (FOUCAULT, 1995, p. 235). De acordo com Foucault, essas lutas não são nem a favor nem contra o indivíduo, mas sim batalhas contra os dispositivos de poder que confinam e fixam o indivíduo à sua própria identidade, subjugando-o e tornando-o “sujeito a”. Dessa forma, a resistência caracteriza-se essencialmente pela luta que é capaz de produzir novas formas de subjetividade através da recusa das individualidades que foram impostas historicamente. “A ideia não é descobrir quem somos, mas recusar quem somos e transformarmonos” (FOUCAULT, 1995, p. 235). Resistir é lutar contra duas formas principais de sujeição: Uma que consiste em nos individualizar de acordo com as exigências de poder, outra que consiste em ligar cada indivíduo a uma identidade sabida e conhecida, bem determinada de uma vez por todas. A luta pela subjetividade se apresenta então como direito à diferença e direito à variação, à metamorfose (DELEUZE, 1998, p. 113). 158 Dessa maneira, é possível observar que o conceito de resistência na obra de Foucault mostra-se diretamente ligado ao processo de subjetivação, ou seja, à produção de formas de subjetividade ou modos de existência (modos de agir, sentir e dizer o mundo). Para esse filósofo, não se sujeitar é resistir e se abrir para outros e novos modos de ser sujeito e de estar no mundo. OUTROS PARADOXOS DA RESISTÊNCIA A partir desse momento, tentaremos estabelecer as condições de possibilidade para defender a nossa hipótese de pesquisa que, influenciada diretamente por Foucault, pretende apontar outros paradoxos da resistência na obra freudiana. Porém, logo de início, aparece a seguinte e espinhosa questão: Como é possível estabelecer uma articulação entre o conceito de resistência na obra freudiana, que aponta primordialmente para a conservação do mesmo, com o conceito de resistência na obra foucaultiana, que se apresenta como luta pela transformação da subjetividade? Ao longo deste trabalho, ficou claro que as relações de poder se exercem nas dimensões mais capilares, cotidianas e ordinárias das relações humanas, estando presente inclusive e principalmente na experiência analítica. Considerando que, na visão foucaultiana, onde há poder, há resistência e é justamente isso que se observa na obra freudiana, ou seja, a resistência se manifestando perante o poder do analista, é possível perceber um solo comum entre os conceitos de resistência das obras de Freud e Foucault. Esse solo comum, longe de tentar igualar ou submeter um conceito ao outro, estabelece as bases para arriscarmos defender a nossa hipótese de pesquisa. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009 Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença Resta agora, sem desconsiderar a forma como a noção de resistência foi construída ao longo da obra freudiana, tentar encontrar, no próprio Freud, outras vias de leituras dessa noção. E para tal, decidimos ancorar a nossa hipótese de pesquisa no segundo dualismo pulsional da teoria psicanalítica: pulsão de vida (Eros) x pulsão de morte, evidenciando a relação entre esse dualismo e a resistência como compulsão à repetição. Estando sempre mescladas em maior ou menor intensidade, Eros une e liga, enquanto a pulsão de morte desune e fragmenta. O processo de simbolização, que implicaria dar um sentido à força pulsional, estabelecendo circuitos para a pulsão mediante a sua inscrição no mundo em objetos de satisfação, está a serviço de Eros. Já a pulsão de morte trabalha para a fragmentação e a separação das sínteses instituídas por Eros. Os dois princípios fundamentais de Empédocles – amor e discórdia – são, tanto em nome quanto em função, os mesmos que nossos dois instintos primevos – Eros e destrutividade, dos quais o primeiro se esforça para combinar o que existe em unidades cada vez maiores, ao passo que o segundo se esforça por dissolver e destruir as estruturas a que elas deram origem (FREUD, 1937a, p. 263). A pulsão de morte não pode nunca ser erradicada, já que a pulsão por excelência, antes de ser capturada pelo psiquismo em suas cadeias de representações, é pulsão de morte. A única forma de se contrapor à pulsão de morte é a partir de Eros como princípio de afirmação da vida. Não é à toa que, em sua carta ao cientista Albert Einstein, discutindo os motivos pelos quais o homem faz a guerra, Freud afirma que: Não há maneira de eliminar totalmente os impulsos agressivos do homem; pode-se desviá-los num grau tal que não necessitem encontrar expressão na guerra. Nossa teoria mitológica dos instintos facilita-nos encontrar a fórmula para métodos indiretos de combater a guerra. Se o desejo de aderir à guerra é um efeito do instinto destrutivo, a recomendação mais evidente será contrapor-lhe o seu antagonista, Eros. (...) A psicanálise não tem motivo para se envergonhar se nesse ponto fala de amor (FREUD, 1933a, p. 205, grifo nosso). Dessa forma, a vida teria sempre, como condição de possibilidade, a marca de Eros a se afirmar contra a morte iminente, anunciada pela força constante, insistente e repetitiva da pulsão de morte (BIRMAN, 2003). Porém, a pulsão de morte seria a condição de possibilidade para que Eros pudesse realizar seu trabalho, ou seja, para que Eros pudesse unir, seria necessária a fragmentação causada pela pulsão de morte. Sem o poder disruptivo e libertário da pulsão de morte, capaz de fragmentar as ordens e organizações instituídas por Eros, não é possível que outras e novas ligações possam ser constituídas. Assim sendo, não se trata de eleger uma das pulsões como fonte da diferença, mas de valorizar a mescla e o conflito pulsional como responsáveis pelo movimento de desunião e união, de fragmentação e ligação. É exatamente esse movimento característico da dinâmica agonística das pulsões, ou seja, o dualismo pulsional, que é capaz de produzir o novo e a diferença no processo de subjetivação. O conceito resistência, como compulsão à repetição, está diretamente relacionado ao dualismo pulsional, tanto como expressão da pulsão de morte, já que o que não está inscrito na cadeia Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009 159 Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença de representações se repete indefinidamente e compulsivamente, quanto como expressão de Eros, em sua tentativa de ligação da energia livre e sem representação. Vale lembrar que Freud não deduziu a pulsão de morte da agressividade, mas sim da compulsão à repetição. Segundo Freud, foi a “[...] compulsão à repetição que primeiramente nos colocou na trilha da pulsão de morte” (FREUD, 1920, p. 66). A compulsão à repetição, como dupla face de Eros e Tânatos, ao mesmo tempo em que é uma tentativa de ligação, de encontrar destinos para o excesso de excitação do trauma e da pulsão de morte, também encarna a face demoníaca e os próprios limites dessa tarefa. Levar a pessoa a experimentar infinitamente de novo o rol de desgraças do trauma não garante a interrupção desse ciclo repetitivo, já que a inscrição do traumático no campo das representações não é garantida. Tendo em vista que é na tentativa de ligação psíquica que um símbolo antes inexistente pode emergir, podemos afirmar que a repetição diferencial, ou seja, o surgimento do novo, em meio à repetição sempre da mesma coisa, acontece a partir do trabalho de Eros. Porém, esse trabalho só é possível em decorrência da pulsão de morte que, como pura força ainda não ligada a nenhuma representação, incita à repetição compulsivamente. Conclusão Inspirados diretamente por Foucault, é possível concluir que a resistência em si, como compulsão à repetição, também está implicada diretamente na produção do novo e da diferença no processo de subjetivação. Alargando a interpretação dominante da noção de resistência na obra freudiana, esse paradoxo apontou que, 160 além de ser meio através do qual a mudança é capaz de se processar, a resistência em si pode também ser considerada uma força de mudança subjetiva. Como compulsão à repetição, a resistência não obedece apenas ao aspecto que foi identificado como central na obra freudiana - que a resistência é a luta para conservação do mesmo. Ao contrário, a compulsão à repetição problematiza o conceito de resistência em Freud, deslocando a resistência do mesmo para a diferença. De acordo com o Novíssimo Dicionário Latino Português (1993), etimologicamente o verbo resistir vem do latim resistere, cuja raiz - sistere - também está presente nas palavras: desistência, insistência, persistência e existência. Logo, se resistir pode, de fato, ser desistir, remetendo para o abandono do trabalho analítico, resistir também pode apontar para insistir, persistir e existir. Ao reinventar a própria vida nos arranjos pulsionais inéditos que a compulsão à repetição é capaz de produzir, resistir pode ser re-existir, ou melhor, existir de formas novas e diferentes. Trabalhar na construção de destinos para a pulsão é trabalhar na invenção de novas possibilidades de expressão das excitações no universo psíquico e no campo da alteridade, ou seja, na criação de novas formas de subjetividade que sejam capazes de enfrentar os dispositivos de captura e fixação de identidades individuais. Nesse contexto, Birman (2006, p. 363) afirma que: A invenção e a criação seriam então as resultantes maiores desse processo sempre recomeçado, na medida em que pressupõem, como sua condição concreta de possibilidade, a existência de uma subjetividade que possa ser permanentemente inventada e recriada contra um fundo homogeneizado de fixações estabelecidas Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009 Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença Longe de qualquer ideal de cura, uma prática psicanalítica comprometida com o vir a ser da subjetividade, com a produção de um estilo singular para a existência e com a invenção permanente da vida, deve acolher, no campo da transferência, toda e qualquer forma de resistência, para que os lampejos do novo e da diferença possam emergir no âmago do mesmo. Keywords Resistance; difference; instintual conflict; compulsion to repeat. Abstract The main objective of the present article is to question the resistance concept in Freud’s speech. By the articulation with Michel Foucault’s philosophical work, the hypothesis of this article points to the possibility of thinking the resistance in itself implicated in the subjective change, in other words, in the production of the new and the difference. Referências BIRMAN, J.; NICÉAS, C. A. Transferência e interpretação: Teoria da prática psicanalítica. Rio de Janeiro : Editora Campus, 1981. BIRMAN, J. Estilo e modernidade em psicanálise: Sujeito e estilo em psicanálise. São Paulo : Editora 34, 1997. _____. Entre cuidado e saber de si: sobre Foucault e a psicanálise. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2000. _____. Corpos e formas de subjetivação em psicanálise. In: Estados Gerais da Psicanálise: segundo encontro mundial. Rio de Janeiro: 2003. Disponível em: http://www.estadosgerais.org/ mundial_rj/download/3_Birman_38020903_ port.pdf. Acesso em: mai. 2008 _____. 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Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009 161 Os paradoxos do conceito de resistência: do mesmo à diferença _____. Sobre o início do tratamento [1913]. In: _____. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição standart brasileira. Rio de Janeiro : Imago, 1996. v. XII. _____. Recordar, repetir e elaborar [1914a]. In: _____. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição standart brasileira. Rio de Janeiro : Imago, 1996. v. XII. _____. A História do movimento psicanalítico [1914b]. In: _____. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição standart brasileira. Rio de Janeiro : Imago, 1996. v. XIV. _____. Observações sobre o amor transferencial [1915]. In: _____. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição standart brasileira. Rio de Janeiro : Imago, 1996. v. XII. _____. Conferências introdutórias sobre psicanálise [1916-1917]. In: _____. Obras psicológicas completas de Sigmund Freud: Edição standart brasileira. 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Carlos Peixoto 80, apto. 207, Botafogo CEP : 22290 - 090, Rio de Janeiro/RJ Fone : (21) 2106 8627 E-mail : [email protected] Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.153-162 – Novembro. 2009 Incesto: caminhos e descaminhos frente ao horror Incest: path and deflect front of the horror Stetina Trani de Meneses e Dacorso1 Palavras-chave Incesto; consequências psíquicas; subjetividade dos abusados; reação ao trauma; violência erotizada; grupo incestuoso. Resumo Este texto propõe uma reflexão sobre as vicissitudes da organização psíquica de mulheres adultas que sofreram abusos sexuais na infância. Não há preocupação com a definição de estrutura. Para tal, utiliza-se de teóricos que pensaram sobre o assunto e de vinhetas clínicas para construir questões e hipóteses sobre as consequências na subjetividade dessas mulheres. (...) porque um século de cartas e de experiência lhe ensinara que a história da família era uma engrenagem de repetições irreparáveis, uma roda giratória que continuaria dando voltas até a eternidade, se não fosse pelo desgaste progressivo e irremediável do eixo. Gabriel García Márquez A escolha deste tema se deve a vivências incestuosas que nos últimos anos têm chegado até à clinica. Os que vêm com essa dor são adultos que passaram pela seguinte situação: olhares, relações sexuais, bolinações... Nossa questão, sem preocupação com um diagnóstico de organização psíquica, é: como esses adultos administraram esse trauma? Que consequências provocam em suas relações amorosas? Para pensá-las, privilegiamos a escuta clínica singular: cada uma das situações e pessoas com sua especificidade. O tema é complexo, ficamos tentados a todo instante a analisar a dinâmica familiar, a organização psíquica do pai ou da mãe. Pensamos que, se assim o fizermos, é como se estivéssemos submetendo novamente ao silêncio aquele que foi violentado, 1 em decorrência de sentimentos e dificuldades provocadas em nós pela escuta daqueles que sofreram situações de abuso. Em momentos de discussão do tema, vários colegas contribuíram ajudando-nos a pensar através de sua clínica e nos proporcionando novas articulações. O assunto é amplo e penoso. Algumas questões surgidas na clínica e nas supervisões acadêmicas despertaram a nossa atenção. Foram pontos que requerem uma escuta, um pensar e uma troca maior. São: o traumático do abuso e a administração psíquica desse excesso excitatório e erógeno; a angústia de aniquilamento ou de morte; a manutenção da ternura e identificação com o abusador; relação de cuidado com a mãe que é, na maioria das vezes, uma figura ambígua e percebida como frágil. Psicanalista-CBP-RJ. Professora titular do curso de Psicologia do Centro de Ensino Superior de Juiz de Fora –CES.JF. Mestre em Psicologia AWU-USA. Supervisora e coordenadora de seminários na formação em Psicanálise Sobrap-JF. Mestranda em Letras-Ces.JF. Membro efetivo de Espaço Brasileiro de Estudos Psicanalíticos (EBP –RJ) e da Sociedade de Estudos Psicanalíticos de Juiz de fora – SEP-JF Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.163-170 – Novembro. 2009 163 Incesto: caminhos e descaminhos frente ao horror A situação é angustiante também por aquilo que nos leva a ocupar o lugar de analista, isto é, o oferecimento de uma escuta da qual não se pode escapar. Referindo-se ao trabalho do analista e à transferência, Freud nos diz que chamamos o demônio e depois tememos e queremos que ele recue (1912). Ao ouvir sobre o incesto, nos deparamos com o demônio, mas, ao vê-lo, ficamos de frente ao “horror”. Comecemos pensando o lugar do pai na família, na sua relação com a filiação no grupo. Julien (1997) esclarece que, na Roma Antiga, o pai exercia o poder absoluto em sua família – chefe da casa, se apodera da mulher e a faz conformarse à condição legal de mãe; além disso, possui direito irrestrito sobre os filhos. Nesse período, a paternidade é autorreferencial. O patriarca autoriza-se como pai de uma criança, reconhecendo-o como filho. O que define a paternidade não é a consanguinidade. A paternidade é adotiva e voluntária. Com o advento da tradição judaico-cristã, o pai é aquele que o casamento designa. A criança tem por pai o marido da mãe. O direito de paternidade sobre a criança repousa não mais sobre o poder político ou religioso, mas sobre um laço prévio – a cerimônia de produção dos cônjuges. Sigmund Freud, em Totem e Tabu (1913), relata o constructo mítico da horda primeva, quando se estabelece o tabu do incesto e a exogamia. Princípio das religiões, regras e deuses protetores – totens. Quando o mundo se mostra assustador, faz-se necessário que o ser humano se sinta de alguma forma protegido e com a sensação de que tem para o que, para quem e para onde recorrer na busca de proteção e garantias. 164 Nesse texto, Freud conclui que as duas proibições do totemismo, matar o pai e ter uma mulher do clã como objeto sexual, coincidiam com os dois crimes do Édipo: matou o pai e casou com a mãe. O pai morto é idealizado, garantindo o pacto entre irmãos; há a renúncia ao gozo sem limites, e todos podem exercer a sexualidade respeitando a regra comum. Esse constructo funda a civilização. O pai edipiano substitui o pai gozador, curvando-se ele também à lei que enuncia. A horda primeva é a origem do mito edipiano. A proibição instaura o desejo incestuoso. A tese freudiana é que o desejo de incesto é inerente ao homem e só um interdito, formulado como uma lei, pode afastá-lo dele (ROUDINESCO; PLON, 1998). Existe um funcionamento que se apresenta na maioria dos casos de abuso. As famílias se isolam do social. O “de fora” é o desconhecido que provoca angústia, porque, supomos, denuncia os ritos, leis, funções e papéis sociais. Razon (2007), baseado em pesquisas, também se deparou com essa situação. A autora analisou que o grupo não se submete a nenhuma regra, só àquelas oriundas de um pai totêmico, tirânico, aterrorizador e violento. Todo o grupo sucumbe à violência traumatizante, o grupo é fechado em si mesmo. Nenhum interdito articula as relações entre cada um dos protagonistas. Nesse universo, cada um desliza na pele do outro, nenhum limite psíquico e corporal existe. Meu pai não gostava de ninguém na nossa casa. E nem a gente podia ir à casa das pessoas. Hoje, nós, irmãos, somos iguais. Gostamos de estar juntos e de amizade também. Mas quando começa a querer Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.163-170 – Novembro. 2009 Incesto : caminhos e descaminhos frente ao horror ver toda hora, ficar ligando, a gente logo se afasta (P., 39 anos, molestada pelo pai dos 9 aos 12 anos). Em Totem e Tabu, Freud também aborda a questão da identificação, dos irmãos ao pai da horda, comunhão totêmica (com o pai e entre si pelo traço comum de ideal de ego), articulando aquela ao objeto perdido. Com a identificação, existe uma outra perspectiva para analisar a rivalidade entre irmãos (HERSOG; MOGROBI, 2006) no complexo de Édipo. O ideal da criança será processado a partir de exigências feitas e consequentes demonstrações de afeto dos pais quando a criança cumpre as exigências. Dessa forma, o ideal constitui um modelo a ser seguido e às expensas dos investimentos eróticos dos pais. A atividade erótica cede sua energia para formar o ideal que, por sua vez, censura os impulsos sexuais, mantendoos recalcados O investimento objetal nos pais frustra-se diante da proibição cultural do incesto. Cedendo espaço às identificações, a criança molda-se, desta forma, à imagem dos objetos perdidos. Em Totem e Tabu, o pai é responsável pela coesão do grupo, mas em Psicologia das massas e análise do eu (1921), o representante paterno pode ser um projeto ou um líder, que vão constituir o ideal do grupo. Allouch (2005) diz que o pai sedutor é escandaloso, porque aparece pedindo outra coisa nos circuitos da demanda. Ora, ele não o pode enquanto pai. Enquanto pai, sua demanda está bloqueada, congelada, fixada. O escândalo não se deve tanto a que o pai sedutor seduza, nem tanto ao mal que faz à criança ao erotizá-la: o escândalo se dá em que, ao seduzir, ele se destitui enquanto pai. A questão é que não há pai sedutor. Um pai sedutor se destitui enquanto pai, fica fora de seu si paterno. Pai sedutor=não há mais pai. Isso faz sentido na clínica? Que é o que nos interessa como clínicos? Pensamos que algumas questões de pacientes podem se encaixar nesta análise: “(...) ele era mulherengo, não precisava fazer isto comigo, por que o fez?(...) Eu tive pai até os nove anos, depois é outra pessoa..” Se analisarmos essas questões pelo olhar de Allouch, o pai se afasta de seu lugar de protetor e instala o pai da horda, o que usa de todas as mulheres,instalando o desamparo num período de vida no qual é impossível buscar a sensação ( e sabemos que é assim) de amparo por si mesmo, tendo de lidar com dois registros: pai e homem sedutor. Ferenczi (1988) aborda a situação como linguagem da ternura e da paixão. Analisa que seduções incestuosas se produzem quando um adulto e uma criança se amam; a criança tem fantasmas lúdicos. O jogo toma uma forma erótica, porém permanece na ternura. Os adultos com predisposição psicopatológica vão confundir as brincadeiras das crianças com os desejos de uma pessoa com maturidade sexual. Deixam-se levar pelos atos sexuais sem pensar nas consequências. Primeiro, as crianças odeiam, depois se sentem física e moralmente sem defesa. Sua personalidade fraca não consegue reagir contra a autoridade impositiva dos adultos. O medo excessivo obriga as crianças a obedecer automaticamente, esquecendo-se de si e identificando-se com o agressor. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.163-170 – Novembro. 2009 165 Incesto: caminhos e descaminhos frente ao horror Uma situação emocional que chama a atenção e está presente na maioria dos casos de abuso é a ternura mantida em relação ao abusador. São duas ideias incompatíveis convivendo juntas: a raiva pela violência vivida e a manutenção da ternura. Pensei em algo como fragmentação, cisão. Ferenczi analisa esse estado emocional. Para o autor, ocorre uma introjeção do agressor, que desaparece como realidade externa, e torna-se intrapsíquico. O que é intrapsíquico pode, seguindo o princípio do prazer, ser modelado e transformado de maneira alucinatória positiva ou negativa. Assim, a ternura é mantida: Meu pai era muito homem! Com orgulho, continua: Todos nós parecemos com ele: somos bravos, falamos claro, não mentimos e respondemos na hora (M., 42 anos, molestada pelo pai dos 10 aos 14 anos, família de 5 filhos: 4 mulheres e um rapaz) Nos textos de Freud citados anteriormente, é analisada a submissão decorrente da própria fragilidade do ser humano, que vai amar e ceder àquele que alimenta e protege, amando-o pelo que recebe, procurando cumprir as exigências percebidas oriundas deste. Desamparo que não termina, mas que vai tomando outras feições e defesas ao longo da vida de cada um, utilizando-se dos vários objetos externos que, investidos das representações internas, vão propiciar uma sensação de segurança e proteção. Mas se faz necessário que se tenha podido confiar e acreditar, em algum momento, que alguém podia cumprir esse papel. É isso que nos faz acreditar seja lá no que for, senão o caminho fica muito árduo e solitário, quiçá impossível 166 em algumas situações, na busca e crença de possíveis amparos. Falhando os artifícios usados para possibilitar segurança, o desamparo vai provavelmente surgir, provocando o sentimento de perigo e, consequentemente, angústia. Em Inibição, sintoma e angústia (1926), a angústia é uma resposta à sensação de perigo, assim possui uma representação psíquica. O perigo analisado em nível da realidade num primeiro momento é visto posteriormente como a ameaça sentida por cada sujeito particularmente em sua vida psíquica. Enquanto Freud vai desenvolvendo seu pensamento, a angústia surge vinculada ao temor de castração. Aí a pulsão funciona como perigo para o eu. O aparato psíquico possui uma barreira protetora para o excesso de excitação. Quando a carga excitatória é excessiva, rompendo esse aparato, o resultado é catastrófico para um psiquismo em organização. Aqui podemos levantar a teoria da sedução. Num segundo momento, Freud, em carta a Fliess, diz não acreditar mais em suas neuróticas e se refere à realidade psíquica em prol da realidade concreta, mas também menciona que todas as fantasias e representações psíquicas se apoiam em um dado de realidade. Assim, podemos pensar que o corpo foi violentado, não importando o tipo de violação que ocorreu, no sentido de trauma que nos referimos anteriormente, recebendo uma carga excessiva de erotização. Em psicanálise, vale a construção de cada um, mas nessas situações temos de lidar com uma situação factual. O aparelho perceptual é que permite a apreensão do mundo. Se ele foi invadido por um excesso, como o elabora, já que a partir daí a pulsão exigirá um trabalho à mente, forçando a construção Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.163-170 – Novembro. 2009 Incesto : caminhos e descaminhos frente ao horror de uma representação? Essa abordagem nos auxilia a pensar as representações construídas sobre as relações amorosas, a sexualidade, filiação. Em várias situações de abuso, a consequência desse excesso de erotização não foi o repúdio às relações amorosas, nem à sexualidade, como encontramos em vários teóricos que trabalharam o tema, mas uma sexualidade, talvez um pouco mais exacerbada, sem que possamos nos referir a traços de promiscuidade. O que chama a atenção, nesses casos, é o prazer em dizer que os filhos (homens e mulheres) puxaram ao pai no gostar de sexo. É algo a se analisar com mais profundidade e calma. Se desviarmos o olhar por um momento para a mãe nessa situação, encontramos o trabalho de Mello Neto e Martinez (2002). Eles a analisam como o primeiro aparelho de para-excitação, como objeto de investimento libidinal. Se ela falha, a criança é jogada ao desamparo. Quando a mãe falha como escudo para o excesso de excitação, protegendo a criança desse excesso, deparamo-nos com questões angustiantes das mulheres que vêm à clinica com vivências de incesto e que demoram um tempo para formulá-las: “minha mãe desconfiava, percebia, sabia? Ou não? Como minha mãe não percebeu algo de errado comigo? Como ela não percebeu o que acontecia? Acho que ela não ia acreditar em mim...” Como entender que a mãe saísse e as deixasse a sós com um pai que tudo podia? Quando não havia limites a esse pai da horda! Essas frases são presentes em todos os casos. Pensemos a angústia nesta situação articulada ao desamparo da criança diante de uma situação em que se encontra submetida ao objeto violentador. A angústia, como um sinal, pode ser analisada partindo das colocações clínicas como um estado emocional de alerta e ao mesmo tempo uma apreensão em relação ao contexto em volta: “ minha mãe saía e eu ficava sozinha com ele, não sei porque ela me deixava...aí eu corria para o quintal, para a rua, tinha que ficar me escondendo e ele chamando...e não podia contar para ninguém” (p. 38 anos) . Para pensar as possíveis consequências desse ter que dar conta de si sozinha, recorremos novamente a Ferenczi (1988) em seu texto Confusão de línguas entre adultos e crianças, e encontramos sua análise do estádio da ternura. O autor qualifica esse estádio como o período de amor objetal passivo, que é quando a identificação antecede ao amor objetal. Se nessa fase de ternura se impõe às crianças mais amor ou um amor diferente do que desejam, isso pode proporcionar as mesmas consequências patógenas que a privação do amor. São situações que podemos considerar como traumáticas, já que implicam um excesso excitatório num psiquismo infantil que não possui meios de elaboração. Ferenczi expõe consequências que também percebemos em nossa clínica. A aflição extrema e a angústia de morte parecem ter o poder de despertar e ativar subitamente disposições latentes, ainda não investidas e que esperavam a sua maturação em quietude. Após a agressão sexual, a criança pode desenvolver emoções de um adulto já maduro. Nessa situação, podemos falar de progressão traumática. As pessoas relatam que sentem que algo lhes aconteceu, ficavam mais espertas, perceptivas, entendiam o mundo à sua volta e achavam as pessoas de sua idade muito “tolas e burrinhas”. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.163-170 – Novembro. 2009 167 Incesto: caminhos e descaminhos frente ao horror Ferenczi (1988) articula o abuso sexual com a angústia de morte e o sentimento de aniquilamento. Aqui me lembro de um texto de Costa (1984), em que ele analisa que é violenta toda experiência em que não se consegue prazer; levanta então, a questão do abuso sexual, em que uma situação da ordem da erogeneidade e eroticidade vai provocar uma angústia de morte, porque o sexual é usado para destruir, aniquilar, destituir o outro de sua vontade para submetê-lo.O ”estar paralisado” é uma afirmação constante nas pessoas que passaram por abuso sexual. O fluxo pulsional em si não é angustiante, mas o é se o aparelho psíquico não consegue direcioná-lo, a angústia não é da pulsão, mas do quantum excitatório. No abuso sexual, a vítima tem desenvestido o objeto abusador e realiza movimentos defensivos no seu aparato psíquico que vai se unir ao estado de angústia realístico e ainda administra o quantum excitatório invasivo, oriundo da sexualidade destrutiva adulta. O que corre perigo na violência sexual não é a identidade sexual do sujeito, mas é a desagregação do núcleo da identidade egoica, daí a angústia de morte, o aniquilamento. Lembramos aqui o conceito de a posteriori de Freud, quando o significado de uma vivência vem no “só depois”. Se retomarmos a teoria de sedução de Freud, num segundo momento, vamos trabalhar com a realidade psíquica e não com a realidade concreta. É uma leitura que nos auxilia a pensar a sexualidade aparentemente normal, que encontramos na clínica. Enquanto não é a identidade sexual atingida, mas sim uma desagregação egoica, encontramos em vários casos uma contenção na vida social: trabalho e casa. Existe sempre uma angústia circulando qualquer si168 tuação fora do contexto casa-trabalho, algo da ordem da tragicidade... A angústia de morte provoca o sentimento de aniquilamento. Não existe uma representação que possa acalmar, não há uma descarga possível para a tensão que se estabelece perante a situação de alerta. Poderíamos nos referir a uma angústia realística. Afinal, a situação se repete e todos relatam um estado de expectativa: vai acontecer novamente, mas pode ser em qualquer noite, quando a família assiste à televisão, no momento do banho, quando vão ser colocados na cama para dormir.... Essa angústia pode ser considerada fóbica ou é de morte? Esse estado de alerta ocasiona uma angústia que ninguém consegue explicar. Mas a situação é da ordem do aniquilamento: são ameaçados para não falar, têm de suportar em silêncio os toques abusivos, sem ter para onde ou a quem recorrer. Nos relatos há um cuidado para proteger a mãe, de forma que ela não tome conhecimento da situação porque, senão, “sofreria demais”. Entre a ideia de que quem cuidava sabia e nada fez e o pensamento de alguém que deveria saber cuidar, mas é tão frágil que deve ser cuidado por aquele que realmente é frágil, as pessoas escolhem a última hipótese e fazem de tudo para que a primeira ideia fique distante de si. É interessante ressaltar que a clínica nos mostra que, quando a primeira ideia- da mãe que sabia, mas preferia não saber – começa a se apresentar à consciência, o que primeiro emerge é a raiva, uma raiva surda, constante e não muito intensa. E as filhas não compreendem por que afinal a mãe é frágil, que é a segunda ideia utilizada para explicar a não intervenção da mãe. O mais interessante ou triste, enfim, não sabemos se cabe um adjeti- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.163-170 – Novembro. 2009 Incesto : caminhos e descaminhos frente ao horror vo, é que geralmente as filhas abusadas pegam para si o encargo de cuidar das mães na velhice. Essa raiva as faz sofrer muito. São situações muito angustiantes, porque de qualquer jeito o sofrimento é insuportável. Se a mãe é frágil, ficam sós com sua dor sem os cuidados; na outra situação, se a mãe preferia não saber, continuam com a dor do desamparo aumentado pela confirmação de que alguém não queria cuidar. Em algumas situações, a angústia de morte que provoca um aniquilamento da identidade é resolvida construindo-se uma possibilidade de salvar pessoas que se encontram à sua volta. É uma construção que justifica a escolha de ser o objeto de abuso. Para que outros irmãos não o sofram, para que a violência não recaia sobre a mãe, para que ele fique calmo e não maltrate a família inteira, porque ela era a mais “forte”, portanto capaz de suportar as investidas. Prevalece a ideia da mãe frágil. E podem suportar o que sofreram construindo para si a imagem de fortes, decididas, protetoras. Essas representações parecem provocar uma calma, um estado de sentimento indecifrável, que consideramos pertinente chamar de angústia. Angústia, aqui, como o sentimento indecifrável, sem uma nomeação, sem algo que o possa definir. Sem a representação que possa acalmar o sentimento da razão pela qual se está passando por aquela situação. No fundo, o que fica permeando a mente é como foi que foram escolhidas e por quê? Em algumas situações, a palavra que surgiu foi “eleita”. Na primeira apresentação dessas ideias, houve discussões sobre se tínhamos casos de câncer no aparelho reprodutor em mulheres que sofreram abusos. Esse questionamento abre outra via também exten- sa e complexa! O corpo atuando, como dizia Freud, e não descarregando. O corpo erógeno citado por Costa (1984), quando o sexual é usado de forma destrutiva com desejos de morte num outro violentado. Não temos casos de câncer, mas de fortes dores no baixo ventre, que levaram a exames de todos os tipos ao longo de muitos anos, já que as dores começaram por volta dos quinze anos. Em momentos distintos da análise, foi questionado se as dores, quem sabe, não poderiam ser decorrentes de sofrimento psíquico, e nos dois casos, após uns dois a quatro meses, as dores foram diminuindo até parar. Não consideramos que essas dores estejam sanadas, mas que houve uma reorganização econômica e dinâmica nessa representação corporal, pois é algo que requer mais tempo. Mas uma primeira hipótese possível é que esse corpo erógeno atuava a violência e era punido por sua erogeneidade. Atuando prazer e desprazer! Contudo a delicadeza da situação com suas consequências requer mais aprofundamentos e cuidados para essas afirmações. Como dissemos no inicio, é um tema em elaboração. Esperemos com calma o que a clinica nos apontará a posteriori. Afinal, é um trabalho de ir e vir, teoria e prática, escuta e construção. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.163-170 – Novembro. 2009 169 Incesto: caminhos e descaminhos frente ao horror Keywords Incest; psychic consequences; subjetivity of abused; reaction to trauma; erotized violence; incestuous group. Abstract This text propose a reflection on the vicissitudes of the psychic organization of adult women who support sexual abuse in the infancy. For such, use are the theorists Who reflect of this theme and clinical vignettes and questions assumptions about the subjectivity of this women. Referências ALLOUCH, J. A sombra do teu cão. Discurso psicanalítico, discurso lésbico. Rio de Janeiro : Companhia de Freud, 2005. COSTA, J. F. Violência e Psicanálise. Rio de Janeiro : Graal, 1984. FERENCZI, S. Escritos psicanalíticos 1909-1933. Rio de Janeiro : Taurus, 1988. FREUD, S. Totem e Tabu 1913. In_____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. Jaime Salomão. Rio de Janeiro : Imago, 1979. v. XIII, p.17-193. _____. (1926). Inibição, sintoma e angústia. In:_____. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro : Imago, 1979. v. XX, p.101-210. _____. Psicologia das massas e análise do ego. (1921) In:_____. 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Padre Nóbrega, 35, 201 – Paineiras CEP : 36016 – 140, Juiz de Fora/MG Fone : (32) 3212 5314 E-mail : [email protected] Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.163-170 – Novembro. 2009 Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’ Some evidences of the ethical foundation of psychoanalysis at ‘The Psychotherapy of Histeria’ Vinicius Anciães Darriba1 Anne Marcelle Coelho Bencke2 Erick Bonatelli Cardim2 Paula Beatriz Mitter de Carvalho2 Dirceli Adornes Palma de Lima2 Germano Manoel Pestana2 Diviane Helena de Oliveira3 Palavras-chave Psicanálise; ética, clínica; psicoterapia da histeria; Freud. Resumo No último capítulo dos Estudos sobre a histeria – escrito por Freud e intitulado A psicoterapia da histeria – o autor, ao problematizar os parâmetros da clínica médica, esboçou alternativas a estes que, conforme se busca verificar, instauraram a prática analítica. Sua nova posição – de descontinuidade e de inauguração – instaurou uma posição ética à qual o artigo remete. Desde esta posição, a clínica da histeria aponta para dificuldades e limitações tomadas não como um empecilho à aplicação do método a ensejar seu aprimoramento, mas como o que incita uma decisão ética da ordem do desejo em Freud. INTRODUÇÃO O último capítulo dos Estudos sobre a histeria (BREUER; FREUD, 1987 [1895a]), escrito por Freud e intitulado A psicoterapia da histeria, destaca-se, talvez mesmo em comparação com outros textos produzidos pelo autor, por abordar em conjunto questões estritamente associadas ao trabalho da análise. A partir do testemunho do que se apresentava a ele, ao voltar-se para a clínica problematizando os referenciais usuais da prática médica, Freud penetrou em questões como a direção do tratamento, seus limites, o lugar do médico, o papel do paciente. Ao problematizar todos esses parâmetros para a clínica, já esboçou respostas que, conforme buscaremos verificar neste artigo, antecipam o que viria a constituir enunciados decisivos da psicanálise com relação a tais parâmetros. Podemos dizer, por exemplo, que as observações relativas a médico e paciente já configuram posições mais próximas do que se consagrou como as do analista e do analisante. O que é notável é o fato de que, a rigor, nesse momento, ainda não havia psicanálise, havia Freud. No texto em questão, cujo Professor Adjunto do Departamento de Psicologia da UFPR, vice-coordenador do Laboratório de Psicanálise dessa universidade. Doutor em Teoria Psicanalítica pela UFRJ, Psicanalista. 2 Equipe de pesquisa vinculada ao Laboratório de Psicanálise da UFPR. Graduandos em Psicologia. 3 Equipe de pesquisa vinculada ao Laboratório de Psicanálise da UFPR. Graduada em Psicologia. 1 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009 171 Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’ título introduz o termo “psicoterapia”, o trabalho clínico ainda conserva a designação de “método catártico”, embora seja visível o gradativo distanciamento em relação ao que se propunha originalmente com ele. Igualmente, Freud ainda não consolidara um conjunto de hipóteses e conceitos que pudessem constituir uma teoria psicanalítica. No mesmo ano de 1895, em que redigiu A psicoterapia da histeria, Freud preparou os manuscritos do Projeto para uma psicologia científica, em que tentava estabelecer como base teórica para seu pensamento um aparelho neuronal. A que se deve então a antecipação, neste momento, de considerações muito precisas acerca do que viria a constituir a clínica psicanalítica? Por que se observa, neste texto, um “ultrapassamento” tão claro do lugar de saber a partir do qual o autor ainda tenta referendar seus enunciados? Há um comentário do editor inglês da obra que talvez se dirija ao ponto que aqui abordamos. Ele afirma, em relação a esse volume, que o que Freud “nos relata não é simplesmente a história da superação de uma série de obstáculos; é a história da descoberta de uma série de obstáculos a serem superados” (STRACHEY, 1987 [1966], p.23, grifo do autor). Efetivamente, o texto de Freud é pontuado de referências a obstáculos que ele verificava se imporem ao método. Entendemos, no entanto, que, mais do que a consideração de tais obstáculos, o que coloca Freud na trilha de uma ruptura clínica e teórica é sua resposta não ter sido pautada pelo aprimoramento do método (para que o objeto ceda), e sim pelo ceder ao objeto. Ou seja, afirmamos que a resposta de Freud, nesse momento crucial, não é técnica, mas ética. A passagem do método catártico à psicanálise, da posição de médico à de analista, não é uma necessidade técnica, mas uma decisão ética. Decisão ética pela qual algo 172 da ordem do desejo em Freud mudou o universo da clínica para nós. O desejo em Freud fundou uma ética. Este artigo retoma, então, o texto A psicoterapia da histeria, propondo tal leitura: ser ele representativo, se não paradigmático, de um momento de fundação da psicanálise, no qual se verifica, portanto, uma descontinuidade em termos do pensamento de Freud. Por se tratar de um texto clínico, a descontinuidade se evidencia neste terreno, embora seja determinante do que se seguiu em termos teóricos. Essa descontinuidade será aqui trabalhada a partir de diferentes eixos temáticos que entendemos compor a obra. FREUD E O SABER MÉDICO A formação médica de Freud se faz presente mediante os termos utilizados: ‘doença’, ‘médico’, ‘etiologia’, ‘diagnóstico diferencial’, ‘patogênico’. Trata-se, então, de significantes usuais da clínica médica, que apontam ao longo do texto para seu emprego em um sentido não usual, inédito. Em outros contextos, em que o saber médico comparece no desenvolvimento dos argumentos de modo mais amplo que por um viés nominativo, o tributo pago a ele pelo autor implica certas ressalvas com relação ao que resulta da prática de seu método. Isso fica claro, por exemplo, quando a questão do diagnóstico diferencial da histeria em relação às outras neuroses é anunciada como uma das duas dificuldades de aplicação do método sobre as quais versará a obra. O diagnóstico, ato médico por excelência, deve possibilitar a delimitação dos quadros clínicos aos quais o método se aplica. No caso do método catártico, Freud se depara com alguns problemas de precisão quanto ao diagnóstico, que ensejam preocupação ao médico que ali se encontra. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009 Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’ Ocorreu então algumas vezes que, apesar do diagnóstico de histeria, os resultados terapêuticos se revelaram muito escassos e nem mesmo a análise trazia à luz nada de significativo. Em outras ocasiões ainda, tentei aplicar o método de tratamento de Breuer a casos de neurose que ninguém poderia confundir com histeria, e assim verifiquei que eles podiam ser influenciados e, na verdade, esclarecidos. (FREUD, 1895a, p.254) Não promete boa repercussão um método proposto para o tratamento da histeria que não se mostra efetivo em casos diagnosticados como de histeria e que, ao contrário, se mostra efetivo em casos de neurose, em que o diagnóstico de histeria está descartado. A saída pouco ortodoxa que Freud adota é considerar que o mecanismo psíquico que fundamenta o método não é patogmônico da histeria e deixar, em cada caso, que a decisão quanto ao diagnóstico fique na dependência do resultado da investigação. A inflexão aí efetuada por Freud, com relação à lógica do diagnóstico, introduz um requisito temporal fundamental quanto ao lugar que tal diagnóstico veio a ocupar na experiência da psicanálise. Joël Dor, ao tratar do tema, indica que, na psicanálise, a relação entre o diagnóstico e a indicação de um método de tratamento “não remete a uma relação de implicação lógica como é o caso na clínica médica” (DOR, 1994, p.15). Isso porque seu campo de investigação clínica se delimita pela dimensão do dizer; não qualquer dizer, mas aquele que se estabelece pela relação transferencial. Sendo assim, o que baliza o diagnóstico advém do tratamento em curso, do método em operação, não sendo aplicável a exigência da anterioridade. Outro embaraço de Freud diante da tradição do diagnóstico na clínica médica aparece associado a sua perspectiva etiológica. Embora declare ter sido “obrigado a reconhecer que, na medida em que se possa falar em causas determinantes que levam à aquisição de neuroses, sua etiologia deve ser buscada em fatores sexuais” (FREUD, 1895a, p.255, grifos do autor), ele se preocupa em distinguir sintomas psicogênicos e não psicogênicos. A preocupação em delimitar, no campo da etiologia, o que seria e o que não seria objeto da aplicação de seu método, não o livra da evidência de que “quanto a outros sintomas desses [não psicogênicos], parece que, de alguma forma indireta, eles são eliminados junto com os sintomas psicogênicos, do mesmo modo que, afinal, de alguma forma indireta dependem de uma causação psíquica” (ibidem, p.261). Finalmente, o que nos parece particularmente representativo da relação de Freud com o saber médico é o modo como recorre a analogias com referências deste na tentativa de elucidar o que estaria em jogo em sua clínica. Dentre cerca de uma dezena dessas analogias e comparações, que não valeria a pena reproduzir aqui, destacam-se aquelas que fracassam no objetivo da elucidação, fracasso assinalado pelo próprio autor. Deste modo, ao dizer que o material patogênico com que está lidando se comportaria como um corpo estranho, e que o tratamento atuaria como a remoção desse corpo estranho do tecido vivo, Freud apresenta ressalvas importantes, julgando-se em “condições de ver onde essa comparação fracassa” (ibidem, p.282). Diferente da relação do corpo estranho com as camadas de tecido que o circundam, o grupo psíquico patogênico pertence, nas palavras do autor, tanto ao ‘eu normal’ quanto à organização patogênica. A fronteira entre os dois é fixada de modo convencional, o tratamento não consiste em extirpar Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009 173 Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’ algo, mas em permitir a circulação até então impedida. Mais adiante, em outra comparação, a mesma reserva se repete por parte de Freud. Trata-se agora da descrição de seus tratamentos como operações psicoterapêuticas, da “analogia com a abertura de uma cavidade cheia de pus, a raspagem de uma região cariada, etc” (ibidem, p.293). Como antes, o autor afirma que a analogia se justifica menos pela remoção do que é patológico do que pela criação de condições para que o processo avance no sentido da recuperação. Em última instância, entendemos que essas analogias valem menos pela tradução por parâmetros médicos ou, constatada a insuficiência destes, pela introdução de alguma outra imagem ilustrativa. O apelo a tais analogias acaba tendo a função de apontar para o que escapa neste esforço de transmissão. Se, neste momento, é o saber médico que oferece as imagens e palavras para Freud, o encaminhamento dado por ele indica que sua experiência clínica não é toda representada e dita por ele. Essa limitação em transmitir a psicanálise por meio de representações espaciais é constatada por Freud em outros textos. Um bom exemplo se encontra em O mal-estar na civilização (1930[1929]). A discussão que nos interessa inicia-se no ponto em que Freud, no decurso da obra, se interroga sobre a possibilidade de conviver o que é próprio de um eu primário com o que posteriormente caracterizaria o eu. À pergunta “terei eu o direito de presumir a sobrevivência de algo que já se encontrava originalmente lá, lado a lado com o que posteriormente dele se derivou?” (FREUD, 1930[1929], p.86) ele responde afirmativamente, recorrendo a partir daí a uma série de analogias que poderiam ilustrar a situação. O primeiro exemplo que apresenta – o das espécies animais – é rapidamente 174 abandonado, visto que as espécies inferiores sobreviventes não são, de modo geral, os verdadeiros ancestrais das espécies mais desenvolvidas atuais. Freud ensaia, então, uma outra analogia, em um campo a que recorre com frequência em sua obra. Ele apela a uma imagem arqueológica, à imagem da Roma antiga revivida pelos historiadores. Freud pergunta o que se encontraria, na atualidade, das diferentes fases históricas atribuídas à cidade. Com exceção do pouco que ainda resta intacto, o que se tem são restos escassos, que se confundem seja com restaurações posteriores e suas próprias ruínas, seja com a confusão da metrópole atual. Freud propõe, então, que imaginemos Roma não como uma habitação humana, mas como uma entidade psíquica, “uma entidade onde nada do que outrora surgiu desapareceu e onde todas as fases anteriores de desenvolvimento continuam a existir, paralelamente à última” (ibidem, p.88). Isso definiria um problema para a representação que deveríamos fazer de Roma, pois conteúdos diferentes teriam que estar justapostos no espaço. Concluindo ser inapropriada a comparação, Freud ainda cogita a analogia com o corpo humano – que ele reputa ser um objeto de comparação mais estreitamente relacionado – mas se depara mais uma vez com a impossibilidade de uma representação espacial, já que os órgãos da infância não poderiam se sobrepor ao que compõe o organismo adulto. Tanto no exemplo da cidade de Roma quanto no do corpo humano, o que Freud diz justificar o esforço de estabelecer a analogia é a demonstração do “quão longe estamos de dominar as características da vida mental através de sua representação em termos pictóricos” (ibidem, p.89). A questão da ‘preservação na esfera mental’, que se apresenta para Freud, implica, então, a problema- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009 Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’ tização da lógica de organização espacial a que o pensamento usualmente se submete. Isto é, a representação de dois conteúdos sobrepostos em um único espaço é uma imagem absurda em referência à lógica do espaço que nos é comum. O pensamento que aí se impõe a Freud desafia, portanto, sua representação espacial. Ao retomarmos A Psicoterapia da histeria, podemos dizer que o limite lá verificado, quanto às analogias com o saber médico, já anuncia a irredutibilidade da experiência da psicanálise a esquemas representacionais emprestados de outras disciplinas. A experiência que se estabelece a partir de Freud resiste ao acoplamento ao saber, especificamente ao saber médico no texto de 1895. AS DIFICULDADES DO PROCESSO Imediatamente em seguida à discussão do problema diagnóstico, Freud anuncia que irá enumerar dificuldades de seu processo terapêutico. Em relação às exigências que recaem sobre o médico, ele destaca que, além de ser laborioso e exigir muito tempo, faz-se necessário o interesse pelos acontecimentos psicológicos e, também, pelos pacientes. Quanto a esses acontecimentos, Freud contrapõe não ser necessária uma tal aprovação pessoal para tratar, por exemplo, um paciente reumático ou tabético. Ele localiza aí, então, uma particularidade de seu tratamento no que diz respeito ao modo de o médico se implicar na decisão de tomar alguém sob seus cuidados. Algo em sua experiência inicial já lhe revela, portanto, que essa decisão do analista, com respeito às demandas que lhe são endereçadas, se inclui como um elemento do processo da análise. Do lado do paciente, Freud diz que as exigências não são menores. O fato de que o processo conduz, em suas palavras, ao que é íntimo e secreto, torna-o aplicável apenas acima de um certo nível de inteligência e com uma confiança que faz a relação com o médico avançar para o primeiro plano. Podemos pensar esse nível de inteligência nos termos do ‘não saber’ do paciente neurótico, que Freud adiante diz tratar-se, de fato, de um ‘não querer saber’. Entenderíamos, assim, esse nível em termos da possibilidade de uma análise avançar apesar do ‘não querer saber’.Vemos, ainda, Freud aproximar-se do tema da transferência, o qual se apresenta, nesse texto, como um tema intersticial, remotamente nomeado. Embora inicialmente associada ao que faz obstáculo ao processo, ao que é indevido, Freud acaba por concluir que “esse novo sintoma, produzido com base no modelo antigo, deve ser tratado da mesma forma que os sintomas antigos” (FREUD, 1895a, p.292). Já antecipa, assim, a posição em relação à transferência que pauta seus futuros escritos: não se trata de algo a ser evitado, mas da própria via pela qual o trabalho da análise se dá. O que entendemos ser fundamental sublinhar aqui, no modo como Freud toma o que se apresenta como obstáculo no processo, é o que podemos extrair de seu comentário de que: a razão exige que ressaltemos o fato de que esses obstáculos, embora inseparáveis de nosso método, não podem ser atribuídos unicamente a ele. Pelo contrário, está bastante claro que eles se baseiam nas condições predeterminantes das neuroses a serem curadas [...] (ibidem, p.262). Ou seja, como dissemos na abertura do artigo, Freud não aponta para o aprimoramento do método a fim de que os obstáculos sejam vencidos. Não se trata de fazer o objeto ceder, mas antes de ceder ao que no objeto resiste ao Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009 175 Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’ método. O autor entende, assim, que esse lugar do que não se conforma ao método não deve ser subtraído, na medida em que fala do que é constitutivo na neurose. Se quisermos avançar um pouco mais, fala que o constitutivo na neurose é correlato de certo ponto limite do saber com que é abordado. Como diz Paul-Laurent Assoun, “o neurótico, muito mais que objeto de estudo, é portador de uma exigência simbólica estruturante do próprio saber clínico” (1996, p.35). Freud não impõe ao neurótico, portanto, o saber consagrado; mas, ao contrário, toma o que ali está em jogo não como aquilo a que o saber será aplicado, mas como aquilo de que o saber derivará. Freud entende, por exemplo, que “um médico não pode atribuir-se a tarefa de alterar uma constituição como a histérica” (FREUD, idem, p.259). O que não se conformou ao método não definiu um não lugar, próprio da histeria para seus contemporâneos, mas teve para Freud lugar de causa. Para além da questão de por que o desejo em Freud encontrou justamente o caminho que o levou até a histeria, vale mais destacar a posição inédita que esse encontro fundou. Diante dos obstáculos, que vimos o autor associar não à precariedade do método, mas ao constitutivo da histeria, a resposta não se define por um artifício técnico e sim por uma posição ética. Posição ética que entendemos ter possibilitado, consequentemente, a introdução do inconsciente. Ou seja, essa mudança de posição, que foi ao mesmo tempo uma invenção provida pelo desejo de Freud – não sem importância que tenha se produzido em resposta à histeria – fez, de um mesmo golpe, com que o inconsciente passasse a existir. Afinal, como o próprio autor indica muito tempo depois, a existência do inconsciente só se verifica na análise (FREUD, 1937). O inconsciente de Freud, hipóte176 se não verificável pelo saber no qual foi formado, é efeito do que o desejo fundou em termos éticos. Nos termos conhecidos em que Lacan enuncia, o inconsciente freudiano, frágil em seu estatuto no plano ôntico, é ético (LACAN, 1985). O psicanalista francês ressalta, ainda, que “o importante não é que o inconsciente determina a neurose” (ibidem, p.27). Quanto a isso, diz já ter Freud feito o gesto pilático de lavar as mãos: “mais dia menos dia, vão achar talvez alguma coisa, determinantes humorais, pouco importa – para ele dá na mesma” (idem). O fundamental é que, através do inconsciente, a neurose se conforma ao real da clínica. Real que se apresentou sob a forma dos obstáculos ao método e que só se sustentou na medida em que a posição de Freud localizou neles a função de um sujeito. Podemos dizer, então, com Miller, que: “a primeira incidência clínica da ética da psicanálise é o próprio sujeito” (MILLER, 1997, p.235). A RESISTÊNCIA Freud toma, por tudo que vimos, o obstáculo como resistência. E no modo como apresenta a resistência, remetenos, como dissemos, à função de um sujeito. Função que aparece na medida em que, com a inclusão da resistência como um operador da clínica, a relação do paciente com o médico excede o terreno do atender ou não aos objetivos do tratamento. O impasse de Freud se apresenta, em um primeiro momento, como uma questão de o paciente ser ou não hipnotizado, pré-requisito até então para o sucesso do tratamento. Ao elucidar o impasse introduzindo a noção de resistência, a relação entre o médico e o paciente não se vê mais reduzida à mediação pela aplicação de um método que supõe a técnica da hipnose. A resistência toma o impasse como índice de um ato Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009 Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’ (de defesa), o que por sua vez convoca à suposição de um sujeito, não localizável nem no médico nem no paciente conforme tomados em uma relação dual. Podemos concluir do que dissemos acima que o abandono da hipnose não é uma questão técnica, mas ética. Em termos do que representa a inclusão da resistência, a hipnose pode ser abandonada por se tornar irrelevante. Mais do que isso, se, ao sair do estado hipnótico, como o autor observa, o paciente não tem consciência do que disse, o abandono da hipnose revelaria também o interesse de que o paciente assuma seus ditos, responda por eles. O que, a rigor, não estaria em jogo, ainda, nos artifícios de que Freud inicialmente se valeu para substituir a técnica da hipnose; como, por exemplo, a pressão da mão sobre a testa do paciente. Freud indica, efetivamente, que o tratamento tem de ir além de descobrir e revelar os motivos da resistência: “ainda que pudéssemos adivinhá-lo, o paciente não saberia o que fazer com a explicação a ele oferecida e não seria psicologicamente modificado por ela” (FREUD, 1895a, p.283). Não se está diante, então, de uma questão cognitiva. Mais do que ter consciência desses motivos, o desafio está, diz Freud no texto, em despojá-los de seu valor, substituí-los por outros. É nesse ponto que a pergunta quanto aos meios de que dispomos para tal recebe dele uma resposta de aguda antecipação daquilo que fundamenta o lugar do analista: “É aqui, sem dúvida, que deixa de ser possível enunciar a atividade psicoterapêutica em fórmulas” (ibidem, p.275). Não há uma fórmula para o que Freud designou como o trabalho de superar as resistências do paciente. Vale notar que, no enunciado acima, ele inclui a ausência de dúvida quanto a isso, o que nos leva a pensar que Freud está falando do mais próprio da experiência que fundava. Logo em seguida, assinalada a ausência de fórmulas, Freud nos surpreende com a superposição de uma série de modelos. Trabalha-se com o melhor da própria capacidade, como elucidador (ali onde a ignorância deu origem ao medo), como professor, como representante de uma visão mais livre ou superior do mundo, como um padre confessor que ministra a absolvição, por assim dizer, pela permanência de sua compreensão e de seu respeito depois de feita a confissão (idem). São modelos usuais, familiares, mas que, superpostos, não traduzem, nenhum por si mesmo, o que seja este trabalho. E, o mais importante, indicam que Freud não busca outro modelo, nem mesmo um que fosse a síntese desses modelos. O trabalho do analista, até então não nomeado, não inclui o modelo. Implica mais a inclusão de um furo em cada um desses modelos e nos outros que possam vir a se propor neste lugar. Lugar a não todo ser dito, sustentando o registro do impossível, ao qual tal ofício se dirige, como Freud nos disse mais tarde em ‘Análise terminável e interminável’ (1937). Se não há modelo proposto, não deixa de haver no texto indicações acerca dos limites deste trabalho. Por exemplo, que a tarefa terapêutica consiste unicamente em induzir o paciente a reproduzir as impressões patogênicas, verbalizando-as com uma expressão de afeto, que “uma vez realizada essa tarefa, nada resta ao médico para corrigir ou eliminar” (ibidem, p.276). Adiante, diz ter aprendido com admiração que “não estamos em condições de impor nada ao paciente sobre as coisas que ele aparentemente ignora, nem de influenciar os produtos da análise pela provocação de expectativas” (ibidem, p.286, grifos do autor). Verificamos tratar-se nas duas Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009 177 Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’ observações de uma limitação do trabalho do analista. Ou seja, Freud se destitui gradativamente do lugar de quem trabalha na análise. Trabalhar menos para não fazer impasse ao trabalho do analisante. E, como deduzido mais tarde pelo autor, submeter-se ao processo da análise para suportar não trabalhar pelo analisante. Nos termos do texto de 1895, Freud previne o médico quanto a não interferir no paciente em sua reprodução das ideias. Não estamos aí no terreno do que ele havia identificado como obstáculo, incontornável por remeter ao constitutivo da neurose, mas no do impasse engendrado do lado do analista. Freud previne também, por outro lado, quanto a não superestimar a ‘inteligência’ inconsciente do paciente e deixar a cargo dela a direção de todo o trabalho. Este acréscimo é importante por não permitir tomar a prevenção quanto a não interferir com o paciente no sentido de descaracterizar a presença do analista. A DIREÇÃO DO TRATAMENTO A transferência convoca o analista, e Freud, já nesse texto de 1895, entrevê ser por meio dela que poderá efetivarse “o importante papel desempenhado pela figura do médico na criação de motivos para derrotar a força psíquica da resistência” (ibidem, p.291). Complementa, afirmando que a cooperação do paciente para o tratamento se torna um sacrifício pessoal a ser compensado por algum substituto do amor. Entendemos que ele antecipa aí a noção de um amor transferencial, uma demanda de amor sem o que a trajetória delineada para a cura não se viabilizaria. Quanto à ideia de um sacrifício pessoal, Freud já havia observado antes que “grande número dos pacientes que se adequariam a essa forma de tratamento abandonam o médico tão logo começam a suspeitar da 178 direção para a qual a investigação está conduzindo” (ibidem, p.262). Arrematemos essa associação do sacrifício pessoal e do amor transferencial com uma citação de Ferenczi: No apogeu da transferência, vemos o paciente aceitar sem resistência até o que há de mais desagradável; ele encontra manifestamente no sentimento de prazer que acompanha o amor de transferência um consolo para a dor que, de outro modo, essa aceitação lhe teria valido. (FERENCZI, 1993, p.395). Ao falar do manejo do amor transferencial, em Observações sobre o amor transferencial (1915[1914]), Freud diz não haver para ele um modelo na vida real. A pergunta de “como deve o analista comportar-se, a fim de não fracassar nessa situação, se estiver persuadido de que o tratamento deve ser levado avante, apesar desta transferência erótica” não é respondida pelo autor, que apenas estabelece dois parâmetros éticos fundamentais: nem retribuir, nem buscar a supressão de tal transferência. Entendemos que, no seminário dedicado à transferência (1960-61), Lacan encontrou com que avançar através do discurso de Sócrates em o Banquete de Platão. Mediante essa referência, o modo de o amor operar no processo analítico se desprende do mito da complementaridade, que estaria no horizonte da demanda amorosa; ao contrário, a verdadeira via amorosa seria aquela que se constrói com a inclusão da impossibilidade do encontro sem falta. Sem recusar a esfera do amor, operar-seia desde esse lugar, sem negar o impossível que está em seu cerne, dirigindo-se a ele, para dele fazer alguma coisa. Enunciado semelhante Freud proferiu, no final do texto de 1895, ao se perguntar sobre a finalidade do tratamento. A problematização, nesse caso, Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009 Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’ teve por objeto a noção de felicidade. A questão de que parte é a inevitável objeção de que, relacionando a doença com as circunstâncias e os acontecimentos da vida, e não podendo alterá-los, como se proporia a ajudar o paciente? Freud responde que haverá muito a ganhar transformando o sofrimento histérico em infelicidade comum. É esta última expressão que nos interroga. Em que consiste tal infelicidade comum? De imediato, podemos concluir que não está sendo proposta a troca da histeria, da neurose, pela felicidade. Mas por algo que se apresentaria a partir do impossível da felicidade, nomeado infelicidade comum. Mais de três décadas depois, no já citado O mal-estar na civilização, Freud retomou o tema da felicidade. Essa designou ali o que ele verifica mostrarem os homens como propósito e intenção de suas vidas. Associada ao princípio do prazer, define um programa que se encontra “em desacordo com o mundo inteiro, tanto com o macrocosmo quanto com o microcosmo” (FREUD, 1930 [1929], p.94). É ainda acrescentado que “ficamos inclinados a dizer que a intenção de que o homem seja ‘feliz’ não se acha incluída no plano da ‘Criação’ (ibidem, p.95). Adiante, no entanto, Freud indica que, se o programa de tornar-se feliz não pode ser realizado, “não devemos – na verdade, não podemos – abandonar nossos esforços de aproximá-lo da consecução, de uma maneira ou de outra” (ibidem, p.102). Consideramos que essa discussão, efetuada na última década da obra freudiana, elucida a última passagem de A psicoterapia da histeria, na qual o autor se orienta pelo que chamou de infelicidade comum. Afinal, encontramos explicitado em O mal-estar na civilização o apontamento do impossível da felicidade. Com o acréscimo ali de que este não se traduz pela infelicidade, mas por uma busca que tem por condição a afirmação do impossível. Entendemos encontrar aí, a posteriori, a indicação do que fundamenta a posição de exceção, irredutível, da psicanálise no campo da clínica já em 1895 e a qualquer tempo: a direção ao impossível, ao incurável. Keywords Psychoanalysis; ethics; clinics; psychotherapy of hysteria; Freud. Abstract In the last chapter of Freud’s ‘Studies on Hysteria’, named ‘The Psychotherapy of Hysteria’ – the author, as he problematizes the medical clinical parameters, outlined alternatives, which established analytical practice. His new standing – one of rupture and newness – created a new ethical criterion that is studied at this paper. Since this standing, the clinic of hysteria aims to difficulties and limitations, not as an obstruction to the psychoanalytical method’s application, but as an ethical choice of Freudian desire’s command. Referências ASSOUN, P.-L. Metapsicologia Freudiana: uma introdução. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1996. DOR, J. Estruturas e clínica psicanalítica. Rio de Janeiro : Taurus, 1994. FERENCZI, S. O Problema da afirmação do desprazer. In: Obras Completas: Psicanálise III. São Paulo : Martins Fontes, 1993. FREUD, S. A Psicoterapia da Histeria. In: BREUER, J.; FREUD, S. Estudos sobre a Histeria [1895a]. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro : Imago, 1987. v. II Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009 179 Algumas evidências da fundação ética da psicanálise em ‘A psicoterapia da histeria’ _____. Projeto para uma Psicologia Científica (1950 [1895b]). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro: Imago, 1987. v. I _____. Observações sobre o Amor Transferencial (1915 [1914]). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro : Imago, 1987. v. XII _____. O Mal-Estar na Civilização (1930 [1929]). In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro : Imago, 1987. v. XXI _____. Análise Terminável e Interminável [1937]. In: Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro : Imago, 1987. v. XXIII LACAN, J. O Seminário, Livro 8: A Transferência [1960-61]. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1992. LACAN, J. O Seminário, Livro 11: Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise [196364]. Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 1985. MILLER, J.-A. Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro : Jorge Zahar., 1997. STRACHEY, J. Prefácio geral do editor inglês [1966]. In: FREUD, S. Edição standard brasileira das obras psicológicas completas. Rio de Janeiro : Imago, 1987. v. I 180 Tramitação Recebido : 02/07/2009 Aprovado : 08/09/2009 Nome do autor principal: Vinícius Anciães Darriba Endereço : Universidade Federal do Paraná, Departamento de Psicologia Praça Santos Andrade, s/nº, sl 220, Centro CEP : 80020 – 300, Curitiba/Pr E-mail : [email protected] Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.171-180 – Novembro. 2009 Psicanálise e religião Psychoanalysis and religion Tarcisio Andrade1 Palavras-chaves Psicanálise; clínica psicanalítica; religião; sociologia; sujeito. Resumo Partindo de recortes da história da Psicanálise, da filosofia, da arte e da sociologia, o autor enfatiza o papel da transgressão na constituição do sujeito e, sob essa ótica, analisa o mito de Adão e Eva. Numa aproximação entre religião e psicanálise, a partir de um caso clínico de um paciente com forte vinculação religiosa, são analisados a transferência, as bases da escolha do sacerdócio e sua ancoragem de natureza edipiana, e a religião como sintoma neurótico. Por fim, o autor fala de uma outra religião possível, de crentes não alienados a um Deus todo poderoso, mas protagonistas responsáveis pelos seus próprios atos, sem, contudo, abdicarem da sua proteção. Um dia Freud, dirigindo-se a Breuer, a quem seu pai no leito de morte transmitira a tarefa de cuidar do filho, disse: “Chega um dia que temos de abdicar de todos os pais e se por de pé sobre os próprios pés”. Uma alusão à autonomia, ao sujeito constituído na responsabilidade pelos seus próprios atos. Nessa mesma direção, em seu livro “A negação da morte”, Ernest Becker (1973), pensador e filósofo americano, a propósito da tentativa do também pensador e psicólogo americano William James de conciliar as paixões humanas e a entrega a Deus, menciona um dos seus preceitos favoritos: “Filho do homem, fique de pé sozinho, para que eu possa falar com você.” Sobre isso, diz Becker: “se os homens se apoiarem demais em Deus, não irão conseguir o que precisam fazer neste mundo com as suas próprias forças.” Raul Seixas, em sua canção “Sapato 36”, fala-nos da desobediência, um conceito de conotação negativa porque associado à transgressão. Mas, ao falar de desobediência, ele nos fala da constituição do sujeito na 1 responsabilidade pelos seus atos. Diz Raul: “Eu calço é 37, meu pai me dá 36, dói, mas no dia seguinte aperto meu pé outra vez”. E adiante: “Pai, eu estou indo embora, quero partir sem brigar, já escolhi meus sapatos que não vão mais me apertar”. Trata-se da autonomia, da diferenciação do sujeito na relação com o Outro. Nesse contexto, algumas vezes se inscreve o uso de drogas quando, diante do não lugar de uma existência própria, não subjetivada, o usuário passa a se constituir no real de suas transgressões. O universo do uso de drogas é separado por uma linha imaginária entre usuários e não usuários. Para os não usuários, sobretudo, quando representados pelos jovens, pelas crianças, por nossos filhos, oferecemoslhes toda a proteção, tudo o que for possível para mantê-los distantes do mal, lugar ocupado pelas drogas no imaginário social. Entretanto, quando um integrante desses mesmos grupos, alvo de toda a nossa atenção e cuidado, é descoberto fumando um baseado, já não é mais o mesmo que antes, pulou Médico e psicanalista associado ao Círculo Psicanalítico da Bahia. Doutor em Medicina, pesquisador nas áreas de Psicologia Médica e do abuso de substâncias psicoativas. Professor dos Cursos de Graduação e Pós-graduação da Faculdade de Medicina da Bahia – UFBA, onde é também o coordenador da Aliança de Redução de Danos Fátima Cavalcanti – ARD-FC, Serviço de Extensão Permanente voltado para a atenção às pessoas que usam drogas. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.181-185 – Novembro. 2009 181 Psicanálise e religião o muro, transpôs a linha imaginária e agora – sobretudo se for negro e pobre – passa a ser visto como drogado, viciado, maconheiro, perigoso. Essa situação nos remete ao mito de Adão e Eva, no qual a droga ocupa o lugar do fruto proibido oferecido por Satanás (traficante), cujo consumo leva à expulsão do paraíso. No paraíso, segundo a Bíblia, tudo é suprido sem demandar qualquer esforço; lá Adão e Eva, numa dependência completa de Deus, se constituem – assim podemos admitir – num casal patético de animais diferenciados. Como castigo pela desobediência, Deus sentenciou o homem a comer o pão do suor do seu próprio rosto e a viver as dores de sua existência. Adão e Eva foram, portanto, condenados a uma existência própria, à percepção de si mesmos, de sua finitude. Logo, à luz do mito da gênesis do homem, no âmbito da concepção religiosa de um Deus provedor de todas as coisas, bastando para isso que o homem lhe obedeça sem questionamentos, o que nos possibilitou a passagem do lugar de alienação à assunção da condição de sujeitos, nos tornando seres de falta, castrados, desejantes, enfim, o que nos possibilitou a passagem da natureza à cultura, foi o ato de desobediência, mediado por Satanás. Em conversa pessoal com um aspirante a pastor evangélico, ele me dizia dos princípios de sua Igreja: “o homem continua sendo um ser para receber de Deus toda a provisão de suas necessidades, mas isso não acontece, devido à sua desobediência, pois continua cedendo à tentação do Satanás”. Ainda nessa conversa, ele me falava do paralelo entre o pecado original e a saída dos filhos da casa dos pais, o que se dá em um momento marcado por possibilidades de autonomia daqueles, mas também pela desobediência, alguns deles sendo, literalmente, expulsos de casa. 182 Vejamos um pouco da religião na prática clínica. Um homem jovem, de nível instrucional médio, de classe proletária, evangélico praticante e fervoroso, me foi encaminhado com queixa de ejaculação precoce. Devido a sua pouca condição financeira, eu o tomei em acompanhamento cobrando-lhe um valor simbólico. Ao final de cada sessão, o seu pagamento se acompanhava sempre de agradecimentos, cujo conteúdo denotava reverência. Ao longo de oito meses, pude ver com ele sua forte ligação com a mãe, pessoa que efetivamente lhe proveu os cuidados e os meios necessários ao seu desenvolvimento físico e mental. Embora pouco manifesta, fazia-se evidente a sua rivalidade com o pai; este, autoritário, ausente no cuidado com os filhos, pouco preocupado com a família e muito envolvido com sua atividade profissional. Em relação à namorada, o paciente se colocava no papel de pai bondoso, tolerante, e a protegia afetiva e financeiramente. Em vários momentos, tornou-se evidente que ela ocupava para ele o lugar da mãe, e a ejaculação precoce – que algumas vezes acontecia mesmo antes da penetração – vinha em socorro de uma relação impossível, uma vez que imaginariamente incestuosa. Por algum tempo, o paciente não voltou a se queixar dessa dificuldade, tendo decidido que só voltaria a ter relações sexuais após o casamento conforme preconizava a sua religião. Passo agora a relatar fragmentos das três últimas sessões desse cliente: Um dia, ele pediu que eu terminasse a sessão quinze minutos mais cedo, pois tinha “algo a tratar comigo fora da relação profissional e não queria tomar meu tempo”. Disse-lhe que ali não havia um dentro e um fora da sessão, mas no tempo solicitado eu o avisaria. E o fiz. Ele se levantou e me entregou um presente. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.181-185 – Novembro. 2009 Psicanálise e religião Era uma Bíblia e um livreto dos quais ele passou a me explicar alguns conteúdos. Terminadas as suas colocações, eu lhe disse que havia uma diferença entre querer me fazer ver algo e estar disponível para me ajudar se eu lhe fizesse demanda e que era isto o que acontecia entre ele e a namorada, em que ele se antecipava às supostas necessidades dela. E acrescentei: é diferente ser um facilitador de ser um provedor do que se supõe seja a necessidade do outro; essa última posição está fadada ao fracasso, à desobediência e à ingratidão de quem recebe e, por consequência, à frustração do provedor. Incontinenti dei-me conta de que esta minha colocação guardava relação com as queixas dele de que sua namorada não reconhecia a sua dedicação e que as mulheres pareciam gostar mais de homens que as maltratavam. Na sessão seguinte, após um período de quase dois meses que incluíram minhas férias, ele disse que havia terminado o namoro e justificava o término da relação racionalmente, mas parecia sofrer com a situação. Quando ele se referiu à data do término do namoro, eu lhe disse que o que parecia ter uma data definida, na verdade era uma construção – numa alusão à sua análise. Na última sessão, vinte dias após, ele me disse que foi a uma clínica para tratamento de disfunção sexual e teve o diagnóstico de hipersensibilidade da glande, tendo lhe sido prescrita uma medicação sublingual spray ao custo de R$2.200,00 e que, devido a esse compromisso financeiro, não daria continuidade ao tratamento comigo. Eu tive a sensação de que ele havia sido enganado ao buscar de forma imediata a solução que eu não havia lhe oferecido e, ainda, que aquele ato era dirigido a mim. Em uma outra sessão, que antecedeu as três últimas relatadas acima, ele me dissera que teve um pensamento absurdo: se juntar com uns amigos e dar uns murros em um colega de trabalho. Achei que o murro estava dirigido a mim, mas por alguma razão não lhe disse nada. Ao final da sessão, ele confirmou a minha percepção ao me comunicar que talvez não viesse mais às sessões. Ele mantinha comigo uma relação de ambivalência, cuja matriz era a relação com o pai. Freud chamava a atenção para, de um lado, a posição passiva feminina diante do pai e a fé, e do outro a posição ativa masculina e a descrença. Em seu livro “Crer depois de Freud”, Carlo Eduardo Morano, psicanalista, teólogo e filósofo espanhol, fala-nos, mencionando inclusive diversos estudos realizados entre religiosos, que, embora a apresentação seja a da figura do pai/padre, é a relação com a mãe que está por trás da escolha religiosa. Diz ele “Essa escolha desempenha muitas vezes a função psicológica de excluir qualquer tipo de compromisso sexual, de modo a manter o sujeito apegado, infantil e inconscientemente, à sua mãe. Uma situação edipiana não resolvida é patente como pano de fundo dessa exclusividade amorosa”. Trata-se de mães presentes, cuidadosas e pais distantes e omissos que são posteriormente internalizados pelo superego – em dissonância com o pai real – com as características de perfeição e onipotência que lhes foram atribuídas na primeira infância. A história da relação de Freud com seus pais é oposta à referida acima para o religioso. Descrente de uma força superior, estoico e atribuindo ao próprio homem toda a responsabilidade pela sua existência, Freud teve em Amalie a mãe autoritária, narcisista, distante das necessidades dos filhos e incapaz de vê-los fora da perspectiva de objetos de sua sa- Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.181-185 – Novembro. 2009 183 Psicanálise e religião tisfação e orgulho pessoal. Isso era bem evidente na sua relação com Freud, o filho famoso, em detrimento dos demais. Porém Jacob, seu pai, era bondoso, dócil e tolerante (RIZZUTO, 2001). Freud fala da religião como uma manifestação neurótica, uma neurose coletiva, e diz que a obsessão é a religião particular do neurótico. A esse respeito, Morano (2003) chama a atenção que a transferência no âmbito das relações dos fiéis com os religiosos é favorecida pela confidência e privacidade da relação e se constitui num terreno fértil para relações marcadas por traços histéricos e obsessivos, uma vez favorecidas pela intensa repressão sexual e pela ambivalência. Esta última é uma marca das relações de poder e submissão. No que diz respeito às manifestações histéricas, a relação entre os religiosos e as mulheres se caracteriza pela intimidade, em que o homem, em princípio, garante o lugar da impossibilidade, porque dessexualizado. Por outro lado, algumas mulheres que fazem parte do ciclo social mais próximo dos religiosos desempenham em relação a eles o papel de mães zelosas e protetoras. Quanto à neurose obsessiva, as demandas feitas pelos fiéis ao apelarem repetidamente ao sacerdote pelo perdão de suas transgressões, com este último no papel de pai bondoso e provedor incondicional, carrega consigo o desejo de vê-lo fracassar alguma vez nas tentativas de livrá-los da culpa. Nesse particular, o perdão aos erros de sua namorada do cliente mencionado acima, seguia-se de novas transgressões da parte dela, claramente em desacordo com princípios e valores morais cultivados por ele, numa provável tentativa de que em algum momento ele não mais a perdoasse – como efetivamente ocorreu – e ela viesse a se constituir sujeito de seus próprios atos. 184 A dominação medra no terreno das fraquezas do dominado, o que está em sintonia com a percepção de Freud da religião como sintoma neurótico. Por outro lado, a pessoa dominada goza desta condição, à medida que, naquilo que ela faz – e o faz em nome do Outro – se evanesce da condição de sujeito, de ser de falta e de desejo; tudo é feito em nome do Deus, da Ciência, do Estado. Se o imperativo da atualidade é gozar a qualquer preço, como nos aponta Melman (2003), a alienação a um Deus todo poderoso é terreno fértil para a proliferação de seitas e religiões com esse perfil, o que efetivamente vem acontecendo de forma acelerada em muitos países. Ao lado da religião como um sintoma neurótico, cuja origem remonta à extrema desvalia da criança, em seus momentos iniciais, em face das adversidades do mundo externo, em particular no contexto das relações parentais, há uma outra religião traduzida na ação de missionários nas lutas contra a dominação e a injustiça e pelo exercício da cidadania e do direito, sobretudo, entre as populações menos favorecidas. Essas práticas, longe de se constituírem uma deturpação política dos textos religiosos, são, também, uma tradução deles. Tratase de um Deus mais próximo do humano; os seus seguidores são admitidos em toda a sua potencialidade e capacidade de transformar o mundo a partir de suas próprias forças, mas que, ainda assim, por si mesmos, sozinhos, não serão capazes de tudo, não encontrarão todas as respostas e necessitam se sentir protegidos. O mito de Adão e Eva contém essa visão mais abrangente da religião, à medida que, ao colocar o homem diante da responsabilidade por si mesmo, Deus não o abandona. Situações banais do nosso cotidiano traduzem a necessidade de um Deus de proteção: o que pode Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.181-185 – Novembro. 2009 Psicanálise e religião o passageiro diante da possibilidade de um acidente aéreo como os que têm vitimado centenas de pessoas. Antes da decolagem, eu rezo. Keywords Psychoanalysis; the practice of Psychoanalysis; religion; sociology; subject. Abstract Taking account little pieces of the history of psychoanalysis, philosophy, arts and sociology the author emphasize the transgression as part of the subject constitution and how it appears on Adam and Eve myth. Coming close to religion and psychoanalysis, he takes the psychoanalytic treatment of a faithful to God patient as motivation to analyze the transference, the chosen of a religious life under the light of the psychoanalysis and the religion as a neurotic symptom. The author points out other kind of faith followers, who not completely dependent of God, are protagonists of their own lives, without giving up the protection of God. Tramitação Recebido : 04/06/2009 Aprovado : 09/09/2009 Nome : Tarcísio Matos de Andrade Endereço : Av. Trancredo Neves, 1632 / 1004 Ed. Trade Center – Torre Norte, C. das Árvores CEP : 41820 – 020, Salvador/Ba Fones : (71) 3367 6459 / 3113 1414 E-mail : [email protected] Referências BECKER, E. A negação da morte. . Rio de Janeiro: Record, 1973 FREUD, S. O mal-estar na Civilização (1930). Edição Standard brasileira das Obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro : Imago, 1974. v XXI. _____. O futuro de uma Ilusão (1927). Edição Standard brasileira das Obras psicológicas completas. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro : Imago, 1974. v XXI. MELMAN, C. O homem sem gravidade – gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro : Companhia de Freud, 2003 MORANO C. D. Crer depois de Freud. São Paulo: Edições Loyola, 2003 RIZZUTO, A. Porque Freud Rejeitou Deus. São Paulo : Edições Loyolas, 2001 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.181-185 – Novembro. 2009 185 Normas de Publicação1 1. Serão publicados apenas trabalhos inéditos de Psicanálise e textos de colaboradores convidados pela Comissão Editorial. Entendem-se como inéditos os que não foram publicados, nem no todo nem em parte, em periódicos, capítulos de livros nem em anais de eventos. 2. Os trabalhos serão publicados em língua portuguesa ou em língua estrangeira. Ficará a cargo do autor a tradução para o português do resumo dos trabalhos enviados em outro idioma. 3. Poderão também ser publicados: 3.1 Reflexões sobre a Psicanálise, articulando-a com outras áreas do conhecimento; 3.2 Casos clínicos; 3.3 Entrevistas; 3.4 Resenhas; 3.5 Ensaios. 4. A estrutura dos trabalhos deverá estar de acordo com as normas abaixo: 4.1 Todo trabalho deverá ser obrigatoriamente acompanhado de: 4.1.1 Folha de rosto com o título do trabalho, nome dos autores e titulação. No corpo do trabalho não deverá constar o nome dos autores, com o objetivo de manter o anonimato na avaliação feita pelo corpo editorial. 4.1.2 Título em português e em inglês no corpo do trabalho. 4.1.3 Palavras-chave, de três a cinco, que identifiquem o conteúdo, para a completa descrição do assunto e, quanto à localização, após o título. 4.1.4 Resumo expressando o conteúdo, salientando os elementos novos e indicando sua importância. Deverá ser colocado antes do texto e não deve exceder a duzentas e cinquenta palavras. 4.1.5 Keywords deverá suceder o texto e antes das referências. 4.1.6 O abstract deve ser colocado após keywords. 4.1.7 Referências. Citadas como no exemplo a seguir: 4.1.7.1 Registrar as referências em ordem alfabética conforme os exemplos, observando os detalhes de dois pontos, abreviaturas e vírgulas, bem como qualquer outro assinalado abaixo: 1 186 Normas atualizadas para as edições de 2010. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.186-189 – Novembro. 2009 Normas de Publicação a) de livro AUTOR. Título em itálico: subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação: Editora, ano de publicação. Exemplos: CERVO, A. L. Metodologia Científica: para uso dos estudantes universitários. 2. ed. São Paulo: McGraw-Hill do Brasil, 1978. PIMENTEL, D. O sonho do jaleco branco: saúde mental dos profissionais de saúde. Aracaju: Universidade Federal de Sergipe, 2005. b) de capítulo de livro AUTOR DO CAPÍTULO. Título do capítulo. In: Autor do livro (colocar __. se o autor for o mesmo). Título em itálico: subtítulo. Edição. Local (cidade) de publicação: Editora, ano de publicação. Número do volume (se houver). Intervalo das páginas. Exemplos: FREUD, S. Sobre a psicoterapia [1905]. In:___. Edição standart brasileira das obras psicológicas completas. Trad. de Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1989. v.VII. p. 239-251. LAMBOTE, M. C. O tempo anunciador. In: __. Estética da melancolia. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 2000. p. 103-109. PIMENTEL, D. Interfaces entre a Psicanálise e Psiquiatria. In:___; ARAUJO, M.G. (organizadoras). Interfaces entre a Psicanálise e Psiquiatria. Aracaju: Círculo Brasileiro de Psicanálise, 2008. p.9-13. c) de artigo de revista AUTOR. Título do artigo. Título do periódico em itálico, local de publicação (cidade), número do volume, número do fascículo, páginas inicial e final, mês e ano. Exemplos: PIMENTEL, D; VIEIRA, M.J. Perfil e saúde mental dos psicanalistas. Psychê, São Paulo, n. 15, p. 155-165, jun. 2005. BERNARDES, W.S. Condenação, desmentido, divisão. Reverso, Belo Horizonte, v. 26, n. 51, p. 115-122, set. 2004. d) outros modelos de referência, consulte os editores ou o site do Círculo Brasileiro de Psicanálise. 5. Tabelas e gráficos deverão ser enviados em separado, numerados, com as respectivas legendas e indicação da localização no texto entre dois traços horizontais. 6. As citações deverão estar acompanhadas de suas fontes, com as respectivas páginas. 6.1. Direta: Quando é extraído um trecho literal, copiado fielmente do original. Neste caso é obrigatório colocar sobrenome e ano da obra, além da página. As citações diretas podem ser de dois tipos, conforme o número de linhas. 6.1.1. Até três linhas Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.186-189 – Novembro. 2009 187 Normas de Publicação Aparece incorporada ao texto, entre aspas. Ex.a: Como diz Pontalis (1998, p. 274): “Nossas memórias para serem vivas, nossa psique, para ser animada, devem se encarnar”. Ex.b: “O objetivo da análise é preparar o paciente para a autoanálise” (GREEN, 1988, 302). 6.1.2 Mais de 3 linhas Devem ser destacadas com recuo de 4 cm da margem esquerda, com letra menor (tamanho 10) e espaçamento simples. Não há necessidade de colocar entre aspas. Ex.: Conforme Freud (1919): Recusamo-nos decididamente a transformar em propriedade nossa o paciente que se entrega a nossas mãos em busca de auxílio, a conformar o seu destino, impor-lhe nossos ideais e, com a soberba de um Criador, modelá-lo à nossa imagem, nisso encontrando prazer (1999, p.424) 6.2. Indireta: texto baseado na obra do autor consultado. Ex. a: Diversos autores citam a importância do estudo das perversões para entender as psicopatias da vida cotidiana (CLAUVREUL, 1990; DOR, 1991; ANDRÉ, 2003; CORRÊA, 2006). Ex. b: A concepção médica de oposição, entre o normal e o perverso, se desfaz, segundo Corrêa (2006), à medida que o inconsciente vai sendo revelado. Ex. c: Para a psicanálise, o Sujeito não seria natural como queria Sade, seria um Sujeito irremediavelmente dividido, como demonstrou Freud, ao que Lacan acrescenta que isso aconteceria pela relação dele, Sujeito, com a linguagem (LACAN apud LEITE, 2000). 7. Não serão aceitas notas de rodapé, salvo as da primeira página do artigo com a titulação dos autores. 8. Cabe ao Conselho Consultivo de cada sociedade participante do CBP, o exame e aprovação dos trabalhos, em primeira instância, de seus respectivos sócios, e o encaminhamento à Comissão Editorial, já dentro das normas de publicação da revista, que decidirá sobre a sua publicação de acordo com a programação da revista. 9. A Comissão Editorial reserva-se o direito de recusar os trabalhos que não se enquadrem nas normas citadas ou não tenham qualidade editorial. 10. Os originais deverão ser enviados em duas vias, devidamente numeradas e rubricadas, com espaço simples, fonte Times New Roman tamanho 12, não excedendo 15 laudas. O título do trabalho deve conter no máximo dez palavras e o tamanho da fonte, em negrito, é 14. 10.1 188 Os originais deverão ser encaminhados também em mídia eletrônica no Word 1997-2003. Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.186-189 – Novembro. 2009 Normas de Publicação 10.2 Os autores deverão enviar os originais para a sede do Círculo Brasileiro de Psicanálise, com carta dirigida aos editores, autorizando a publicação e ratificando ser um trabalho inédito. A carta deve conter o título do trabalho, nome do(s) autor(s) com sua titulação acadêmica e institucional, e o endereço físico e eletrônico do autor principal. 10.3 Os trabalhos deverão ser enviados para: CBP – Revista Estudos de Psicanálise Praça Tobias Barreto, Ed. Centro Médico Odontológico, 510, sala 1208 CEP: 49015-130 – Aracaju – Se Para receber a Revista Estudos de Psicanálise ou obter outras informações entre em contato com: CBP Praça Tobias Barreto, Ed. Centro Médico Odontológico, 510 – Sala 1208 CEP: 49015-130 - Aracaju – Se Tel. (79) 3211-2055 [email protected] www.cbp.org.br Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p.186-189 – Novembro. 2009 189 Roteiro de avaliação dos artigos 1. Título claro e preciso sobre o conteúdo do artigo. 2. Resumo claro e preciso sobre o conteúdo do artigo, contendo no máximo 250 palavras. 3. Palavras-chave adequadas ao conteúdo em número máximo de cinco. 4. Abstract e Keywords conforme instruções. 5. Normas para citações e referências conforme instruções. 6. Relevância do tema. 7. Clareza de pensamento. 8. Consistência e coerência na fundamentação teórico-metodológica do trabalho. 9. Linguagem, considerando objetividade, estilo e correção. 10. Aspectos éticos de acordo com a Resolução CNS 196/96 sobre privacidade e anonimato das pessoas envolvidas, e declaração de conflito de interesses. 11. O artigo deverá conter conclusão ou considerações finais. 190 Estudos de Psicanálise – Aracaju – n. 32 – p. 190 – Novembro. 2009