TRICEVERSA Revista do Centro Ítalo-Luso-Brasileiro de Estudos Linguísticos e Culturais ISSN 1981 8432 www.assis.unesp.br/cilbelc TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009 CILBELC CRÍTICA E ANTROPOFAGIA EM OSWALD DE ANDRADE Regina Célia dos Santos Alves UEL RESUMO O presente trabalho procura mostrar que o viés antropofágico acompanha não apenas a prática literária de Oswald de Andrade, mas percorre também seu exercício crítico. Nesse sentido, serão analisados três textos da coletânea Ponta de Lança, “Carta a um torcida”, “Bilhete aberto” e “O sol da meia-noite”, os quais, embora tratem de assuntos diversos, apontam para o pensamento antropofágico em Oswald de Andrade, a nortear os comentários do autor acerca de preocupações que vão do âmbito cultural ao político. PALAVRAS-CHAVE Oswald de Andrade; crítica literária; antropofagia. ABSTRACT The present paper aims to show that the anthropophagic point of view by Oswald de Andrade is presented not only in his literary creation, but also in his criticism writing. The three texts analyzed are from the collection Ponta de Lança, “Carta a um torcida”, “Bilhete aberto” and “O sol da meianoite”, texts which, in spite of their different subjects, show the anthropophagic thought of Oswald de Andrade and lead the comments of the author about concerns which have cultural, social, and political aspects. KEYWORDS Oswald de Andrade; literary criticism; anthropophagy. Oswald de Andrade foi não apenas um dos nossos maiores escritores modernistas, e com certeza o mais polêmico, mas um crítico de primeira ordem em seu momento, exercitando paralelamente à composição literária a prática crítica, sobretudo na sua atuação em diversos jornais, como o Diário Popular, o Jornal do Comércio, o Correio Paulistano, o Meio-Dia (RJ), o Diário da Manhã, o Diário de São Paulo, a Folha de São Paulo, o Estado de São Paulo, a Folha da Manhã e O Estado. Da colaboração do escritor nos jornais O Estado, Diário de São Paulo e Folha da Manhã, no ano de 1943, conforme afirmações do próprio Oswald de Andrade, resultaram os artigos que compõem a coletânea Ponta de Lança, TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009 44 organizada pelo próprio autor, que além das publicações dos jornais, possui três conferências pronunciadas nos anos de 1943 e 1944. A obra Ponta de lança atesta, sem dúvida, o espírito crítico, contestador, polêmico e singular de Oswald de Andrade. Como afirma Caio Túlio Costa, um “homem sem nenhuma condescendência com a burrice, as banalidades e os descaminhos do mundo” (1991, orelha). Nos artigos reunidos na coletânea a acidez e a lucidez crítica de Oswald de Andrade despontam em questões tanto de ordem estética e cultural quanto de ordem política e social. Por trás de suas considerações, no entanto, ressoa reiteradamente o pensamento antropofágico, que vai marcar o escritor do início ao fim de sua produção intelectual e que se manifesta, de forma mais ou menos evidente, em cada um dos textos que compõem Ponta de Lança. Na mira de Oswald de Andrade estão escritores renomados como Machado de Assis e Euclides da Cunha, bem como contemporâneos seus, como José Lins do Rego, Cassiano Ricardo e Jorge Amado, alguns merecedores de fartos elogios, como o último, outros, como os dois primeiros, de críticas extremamente ácidas, dispensadas também a alguns nomes ligados à crítica literária acadêmica e emergentes à época, como Antonio Candido e Otto Maria Carpeaux, dentre outros, alcunhados de chato boys. De outro lado, verifica-se em vários textos da coletânea a preocupação constante de Oswald de Andrade com questões políticas e sociais em críticas agudas aos regimes nazi-facistas, de grande poder à época em que escreve seus artigos, bem como de comentários frequentes acerca da cultura nacional e do desejo de uma sociedade justa e igualitária. Esse ideário utópico, obviamente, está arraigado nos vínculos do autor com o Partido Comunista, ao qual se filia, e, em consequência disso, na esperança de uma sociedade fraterna e democrática. Os textos de Ponta de Lança aqui selecionados para análise, “Bilhete aberto”, “Carta a um Torcida” e “O sol da meia-noite”, de certa forma reúnem as preocupações centrais que perpassam por toda a coletânea e neles podemos ver reflexões de Oswald de Andrade que vão do âmbito cultural ao político, sendo que em nenhum momento o autor se divorcia de sua postura TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009 45 antropofágica, a qual subjaz por todos os artigos de Ponta de Lança. Sendo assim, nossa leitura se encaminhará no sentido de mostrar que os textos selecionados, embora tratem de assuntos diferentes, unem-se por um elo ideológico, que é o pensamento antropofágico. “Bilhete aberto”, endereçado a C. R., ou seja, Cassiano Ricardo, a primeira vista parece mais um texto polêmico de Oswald de Andrade, cuja língua ferina se lança com violência sobre o companheiro modernista: Meu fotogênico C.R. Não se envaideça com o qualificativo. Ele transcende da iconografia pessoal. Fotogênico aqui vai como sinalação de indivíduo de precisos contornos, de acentuadas feições típicas, de robustas formas psicológicas e morais. Quer dizer sujeito nada evasivo, impressionista ou enervado de hesitações, problemas e hamléticos escrúpulos. Você quando é, é. É mais que o princípio de identidade. É o princípio de adesão. E por isso, daqui deste modesto canto paulista do Correio, estou certo de que você assumirá a inteira responsabilidade da campanha que, sob sua oficiosa férula, se vem fazendo contra a liberdade de expressão literária no Brasil. E que não se possa dizer depois que nada teve de participação nesse crime contra o espírito, que só a pororoca mundial de um sistema pode criar na renitente cabeça de seus crentes e batizados. Para que não se queixe depois da injustiça de lhe vestirem uma camisola colorida, em você que sempre se disse um adepto emburrado da tanga, do cocar e do tacape. (1991, p. 42) Como se observa, com seu procedimento peculiar de crítica, Oswald de Andrade inicia seu comentário, que tem como objetivo central refletir sobre uma literatura modernista verdadeiramente original, libertadora e nacional, a partir de um ataque à pessoa de Cassiano Ricardo, o que deixa seu texto mais virulento e combativo, quase uma espécie de luta corporal. Todavia, o qualificativo fotogênico, a princípio vinculado a um aspecto apenas físico do autor de Martim Cererê, estende-se para seu comportamento e, mais ainda, para uma postura frente ao fato literário. Assim, Cassiano Ricardo é fotogênico, ou seja, com contornos precisos, com acentuadas feições típicas, com formas psicológicas e morais robustas não apenas na aparência física, mas num comportamento literário que, do ponto de vista de Oswald de Andrade, engessa e fere “a liberdade de expressão no Brasil” (1991, p. 42). TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009 46 O que abomina em Cassiano Ricardo, desse modo, não é sua aparência física, mas sua postura intelectual, seu comportamento frente à literatura. Observa em Cassiano Ricardo um falseamento de intenções, sobretudo no que diz respeito à nacionalidade buscada através do índio e de sua cultura. Para o autor de Miramar, o fato de seu contemporâneo ser adepto “da tanga, do cocar e do tacape” não faz dele um escritor que busca verdadeiramente as raízes nacionais e do homem brasileiro, mas apenas mascara um conservadorismo e uma visão idealista de nossa realidade cultural: Sabemos, porém, que esses utensílios de ferocidade nativa fazem parte duma barriquinha de vaticínios amáveis que há anos você carrega nas costas como o homem do periquito. E que as suas canções nativas são como esses bonecos de cerâmica que representam Pai João e Peri, Anhanguera e D. Pedro II, mas que vêm da Alemanha, fabricados em série. Porque a sua literatura, rotulada de nativismo, não passa de macumba para turistas. E uma vez desatada a fitinha verde-amarela que recobre seu pacote de símbolos, só se encontram nele o Martim Cererê, o Caapora, o Saci e outros ratões que nunca penetraram na corrente folclórica da imaginária nacional. Se sua prosa literária é melhor que sua poesia, não sente ela nenhuma vocação para os roteiros da liberdade e para os caminhos do futuro. E, por isso, dela restará apenas um estilo duro, robusto e pedregoso a serviço dum oportunismo mole e adulão. Que adianta isso, meu feliz e vitorioso C. R.? (1991, p. 42-3) Vê-se, nesse momento, que o qualificativo “fotogênico”, de início aplicado à pessoa de Cassiano Ricardo, é transferido para o estilo do mesmo, “duro, robusto e pedregoso a serviço de um oportunismo mole e adulão” (1991, p. 43). Assim, observa-se que as afirmações ácidas acerca de Cassiano Ricardo e de sua literatura devem-se sobretudo à distância verificada entre as aspirações modernistas de Oswald de Andrade, que encontra na antropofagia o caminho ideal para a busca das raízes brasileiras e para a libertação e legitimação das artes e da cultura nacionais, e o viés ideológico e estético seguido por seu contemporâneo. É nítido, portanto, que ressoa, nas entrelinhas do discurso oswaldiano, o desejo de uma “revolução Caraíba”, conforme coloca no Manifesto Antropófago, e não de uma literatura que se prende ao pitoresco e a uma imagem falseada da realidade nacional, vestida com uma “fitinha verdeamarela” que, ao ser desatada, revela um vazio, onde se mostram apenas TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009 47 “bonecos de cerâmica” feitos para o deleite de turistas, mas que não penetram “na corrente folclórica da imaginária nacional” (1991, p. 42), como, por exemplo, Martim Cererê, de Cassiano Ricardo. Dessa forma, conforme mostra Heloisa Toller Gomes, “na rejeição de falsos purismos, de cópias subservientes ou de xenofobias redutoras, a Antropofagia condenava o indianismo, em sua feição ufanista e romântica” (2005, p. 42). É exatamente a subserviência e a feição ufanista e redutora que Oswald de Andrade condena em Cassiano Ricardo, a quem chama a atenção, de modo bastante irônico, para a necessidade de revisão dessa postura, considerada uma “traição do espírito”, sobretudo o do espírito modernista: Reflita na sua sólida longevidade. Você pode viver de cento e cinco a cento e vinte anos, sem o auxílio de nenhum soro russo. Basta a gente ver você de fardão na Academia, para sentir que a sua natureza participa da dos paquidermes diluvianos e da tartaruga de água-doce. Você pode, um dia, mais tarde, vir a convencer-se de que Júpiter ensandece mesmo os homens que deseja castigar. E castigo não pode haver maior do que a marca da traição ao espírito. (1991, p. 43) Na mesma linha de pensamento podemos enquadrar o artigo “Carta a um Torcida”, cujos comentários se destinam a José Lins do Rego. Da mesma forma que inicia “Bilhete aberto” fazendo referência à pessoa de Cassiano Ricardo, também o faz nesse texto endereçado a Lins do Rego, de modo ainda mais áspero, até porque o artigo se configura como uma resposta de Oswald de Andrade a comentários feitos por José Lins a seu respeito. O início do texto é truculento e aponta mesmo para o desejo de destruição do outro: Meu velho José Lins do Rego. Não tome o qualificativo como tratamento de intimidade nem tampouco como nota de fichário. Velho vai aí no sentido de ancianidade perene e não particular de desgaste. ........................................................................................... Você sabe pois que a idade não é cronológica. De modo que, quando lhe devolvo o epíteto de velho, não é porque esteja quase me alcançando na casa dos cinquenta ou dos sessenta, nem me lembro mais... É porque, desde que teve bigode, você foi o maior ancião de nossas letras e o cacete mais tenebroso do Nordeste de livraria. Você, quando escreve artigos, vira até velha, tal a insuportabilidade dos seus cacoetes vulgares, dos seus domésticos pontos de vista e dos seus rancorosos e insolúveis transes de idade-crítica. (1991, p. 44) TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009 48 Em que pesem os desafetos pessoais, observa-se que algumas colocações sobre José Lins do Rego devem-se à postura ideológica assumida por Oswald de Andrade, que vê a literatura de José Lins como conservadora e mantenedora do status quo. Nesse sentido, a “ancianidade”, que remete a tudo que é velho, ultrapassado e estagnado, e que afirma ser perene em José Lins do Rego, por isso a expressão “Meu velho José Lins do Rego”, aponta para a próprio pensamento do autor e para sua literatura, pois, segundo Oswald de Andrade, o escritor paraibano não passa de um participante do Integralismo e que se compraz no futebol, afastando-se da literatura, diferentemente de José Geraldo Vieira: Para ele [José Geraldo Vieira], a maturidade serena e a velhice só podem ampliar a posição de humanista e firmar o clímax da criação. Para você, para os seus sessenta anos, sobrarão os abraços dos craques, a carona na choupana dos clubes, a rouquidão e os espasmos dos estádios. Quem negará ao futebol esse condão de catarse circense com que os velhos sabidos de Roma lambuzavam o pão triste das massas? (1991, p. 46-7) Como mostra Silviano Santiago (1991, p. 14), o que está por trás das colocações de Oswald de Andrade sobre José Lins do Rego “é a relação que o intelectual mantém com o povo no cotidiano e na ficção”. Assim, Lins do Rego é aquele que mantém uma pseudo-aproximação com o povo por meio de sua paixão pelo futebol, mas que, no âmbito ficcional, estaria dele sobremaneira afastado, criando uma “série de romances úteis, os quais no fundo são a homeopatia gatafunhada de Casa Grande & Senzala” (1991, p. 47). Mais uma vez, fala mais alto o posicionamento ideológico assumido por Oswald de Andrade, que vê a necessidade da literatura aproximar-se do povo, fazendo deste sujeito e não apenas objeto. É em razão disso que valoriza Jorge Amado, sobretudo Jubiabá, pois aí o negro, elemento marginalizado no espaço ficcional e na sociedade, assume força imperativa, tornando-se herói e sujeito da história. José Lins do Rego, ao contrário, na visão de Oswald de Andrade, é o Coronel Lula do romance nacional: “Nas letras, também está você definitivamente colocado. A posteridade já o julgou. Não há prefácio, TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009 49 concurso de Miss Literatura ou banquete que possa reacender o fogo-morto de sua obra de ficção. Você é o Coronel Lula do romance nacional” (1991, p. 47). Oswald de Andrade, desse modo, funde José Lins do Rego a seu personagem Lula de Holanda, de Fogo morto, representante, por excelência, do conservadorismo, de uma sociedade patriarcal em decadência e que tenta, a todo custo, manter um status e um mundo falidos, à beira do desaparecimento. Retorna, portanto, ao início de seu artigo quando afirma que o aspecto velho, ancião de José Lins do Rego tem seu ponto máximo em sua própria literatura, incapaz de renovação, de “remoção do entulho de ancestralidade” (1991, p. 44). Nesse sentido, o autor de Menino de engenho não colabora, na visão de Oswald de Andrade, para a construção de uma pátria justa, livre de desigualdades e de preconceitos ao se revelar, na verdade, um defensor da elite dominante. Estaria distante, assim, do legado antropofágico, não colaborando para uma verdadeira revolução Caraíba, para um entendimento do Brasil. O texto “Sol da meia-noite”, último que analisaremos aqui é, na visão de Silviano Santiago, de leitura obrigatória na coletânea, dada a perspicácia e a agudeza de pensamento que Oswald de Andrade aí revela. A questão fundamental do texto, pode-se dizer, centra-se na “destruição sistemática dos conceitos de unidade e pureza” (SANTIAGO, 1978, p. 18), em prol da contaminação cultural, racial ou, como diz metaforicamente Oswald de Andrade, da “mulatização”. A discussão acerca dessas questões se faz de maneira bastante peculiar no artigo a partir da lembrança de um seu professor alemão, tirano e autoritário, uma espécie de Hitler, que vem à memória de Oswald de Andrade após assistir ao filme Noite sem lua, de Steinbeck, cujo enredo gira em torno da ocupação alemã em uma cidadezinha da Noruega. A partir do filme, o autor modernista relaciona o ontem, a truculência e tirania de seu professor de infância, ao filme que vê no presente e cujos sargentos alemães trazem à tona a imagem do velho professor. TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009 50 No decorrer das colocações de Oswald de Andrade em “O sol da meianoite” aparece o que, a nosso ver, mais uma vez deixa clara a sustentação da argumentação e do discurso oswaldiano, ou seja, o pensamento antropofágico, explícito na sua resposta ao ser indagado sobre o que fazer com a Alemanha depois da guerra: Perguntava-me a revista Diretrizes, ultimamente, em enquete, que se devia fazer da Alemanha depois da guerra? Esfolar inteira? Comunizar? Entregar todinha aos noruegueses, aos gregos e aos russos? Aos filhos dos fuzilados, dos enforcados e dos bombardeados do mundo inteiro? Dá-la aos judeus? Não! É preciso alfabetizar esse monstrengo. Há dentro dela um raio esquivo de luz. É o do seu Humanismo. É o que vem de Goethe e através de Heine produz Thomas Mann. A Alemanha racista, purista e recordista precisa ser educada pelo nosso mulato, pelo chinês, pelo índio mais atrasado do Peru ou do México, pelo africano do Sudão. E precisa ser misturada de uma vez para sempre. Precisa ser desfeita do melting-pot do futuro. Precisa mulatizar-se. (1991, p. 83-4) Fica evidente, nesse trecho, o ideal antropofágico de mistura, de deglutição de outras culturas, de fuga do purismo preconceituoso, engessado e que impede a liberdade. Assim, para Oswald de Andrade a Alemanha não precisa de um castigo, mas de mudança de postura diante do mundo, que aceite a igualdade social e racial de todos. O pensamento antropofágico de Oswald de Andrade encaminha-se, desse modo, para o desejo de uma sociedade igualitária, livre de preconceitos e hierarquizações. Como afirma no Manifesto Antropófago, sua luta é “contra a realidade social, vestida e opressora, cadastrada por Freud a realidade sem complexos, sem loucura, sem prostituições e sem penitenciárias do matriarcado de Pindorama” (1996, p. 27). Em que pese a utopia da postura oswaldiana, vale ressaltar as palavras de Silviano Santiago, para quem No momento […] em que o racismo levanta multidões nos países mais poderosos do mundo, a lição do pensamento político de Oswald estica uma linha até os nossos dias para nos fazer elogio da tolerância étnica, para nos salvar de catástrofes ainda maiores que a recente guerra do Golfo, catástrofes que estão por vir caso se teime em não discernir em casa e no outro o que precisa ser “educado”. Sem discernimento interpreta-se o outro pela linguagem do medo e esta, fóbica por natureza, só e sempre falará da ameaça mortal que ele representa. (1991, p. 22) TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009 51 Comentário bastante oportuno de Silviano Santiago, que soa como uma premonição de catástrofes futuras, como o ataque às torres gêmeas de Nova York e que aponta para a modernidade e pertinência das reflexões de Oswald de Andrade. Em síntese, os três textos aqui abordados, “Bilhete aberto”, “Carta a um Torcida” e “O sol da meia-noite”, embora com assuntos bastante diferentes, levam a uma questão fundamental no pensamento de Oswald, que é a antropofagia, tanto no viés estético, como fica evidente na carta a Cassiano Ricardo e também nos comentários sobre José Lins do Rego, quanto no político-social, exemplarmente exposto em “O sol da meia-noite”. Oswald de Andrade faz da Antropofagia, assim, um modo original e perspicaz de se pensar a problemática da dependência cultural e, conforme Heloisa Toller Gomes, “pretende inaugurar simbolicamente uma outra história que, servindo-se do passado conhecido e a partir dele, desterritorializa os terrenos da tradição oficial, criando novas territorializaçãos e apontando para novos rumos (2005, p. 49). Desse modo, na mira de Oswald de Andrade não estão apenas Cassiano Ricardo, José Lins do Rego ou a Alemanha, mas, sobretudo, uma transformação de ordem social, cultural e política por mais descompromissadas que por vezes possam parecer as reflexões do autor através da deglutição do outro, do ser antropófago. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Oswald. Manifeto Antropófago. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. ______. Ponta de lança. São Paulo: Globo,1991. Texto da orelha. COSTA, Caio Túlio. Você tem em mãos... In: ANDRADE, Oswald. Ponta de lança. São Paulo: Globo, 1991 (orelha). GOMES, Heloisa Toller. Antropofagia. In: FIGUEIREDO, Eurídice (org.). Conceitos de literatura e cultura. Juiz de Fora: UFJF, 2005. SANTIAGO, Silviano. O entre-lugar do discurso latino-americano. In: Uma literatura nos trópicos. São Paulo: Perspectiva, 1978. TriceVersa, Assis, v.2, n.2, nov.2008-abr.2009 52 ______. Sobre plataformas e testamentos. In: ANDRADE, Oswald. Ponta de lança. São Paulo: Globo, 1991. 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