A resposta contrastivista ao ceticismo Gregory Gaboardi1 Resumo: o contrastivismo epistêmico (conforme formulado por Jonathan Schaffer) oferece uma resposta ao ceticismo sobre nosso conhecimento do mundo exterior. Apresentaremos essa resposta e a objeção de Duncan Pritchard a ela. Por fim, apontaremos uma saída para o contrastivista diante da objeção. Palavras-chave: ceticismo; conhecimento contrastivo. 1. INTRODUÇÃO Considere esta formulação do argumento cético contra nosso conhecimento do mundo exterior (“A” representa o agente epistêmico, “E” representa uma proposição qualquer sobre o mundo exterior que assumimos que conhecemos em condições normais, como “Tenho mãos”, e “HC” é a hipótese cética, uma proposição inconsistente com E que normalmente assumimos que não sabemos se é falsa, como “Sou um cérebro em uma cuba”)2: (C1) A não sabe que não-HC. (C2) Se A não sabe que não-HC, então A não sabe que E. (CC) A não sabe que E. São conhecidos três tipos de resposta que tentam evitar a conclusão desse argumento. O primeiro tipo é o das respostas que negam C2, que com isso negam o princípio do fechamento epistêmico (que diz, grosso modo, que se sabemos que P, e que P implica Q, então sabemos que Q). O segundo tipo é o das respostas que negam C1, que com isso precisam explicar como podemos saber que não-HC (e porque parece que não sabemos que não-HC). O terceiro tipo é o das respostas contextualistas, que revisam o significado de “sabe” e sustentam que ele é um termo sensível ao contexto, por exemplo3. Cada tipo de resposta enfrenta problemas. Como o princípio do fechamento epistêmico é extremamente plausível, alguns autores defendem que negar C2 é uma causa perdida4. 1 Graduado em Comunicação Social pela UFRGS. Contato: [email protected] Embora possam mudar as variáveis e a forma lógica, essa já se tornou a formulação padrão do argumento cético. Aqui seguiremos à risca a formulação de Pritchard (2008) pela conveniência de discutir nos termos dele. 3 Não nos aprofundaremos nesses tipos de resposta, eles servirão apenas para comparações. 4 (Feldman, 1995; Pritchard, 2008). 2 1 Defender que o significado de “sabe” varia de acordo com o contexto também não é particularmente plausível, pois compromete a estabilidade epistêmica (discutiremos isso na próxima seção). Negar C1, por fim, não é uma resposta modesta (é inconsistente com a impossibilidade de saber que não-HC), ao contrário das duas respostas anteriores, e por isso seria preterível diante de respostas que preservassem a intuição de que talvez C1 seja necessariamente verdadeira. No que segue apresentaremos um quarto tipo de resposta, a contrastivista, que tenta ser modesta (consistente com a impossibilidade de saber que não-HC) sem enfrentar os problemas dos outros dois tipos de respostas. Depois apresentaremos uma objeção de Duncan Pritchard à resposta contrastivista, que será discutida na penúltima seção do artigo (onde apontaremos uma saída para o contrastivismo). 2. A RESPOSTA CONTRASTIVISTA O contrastivismo epistêmico5 é a tese de que a relação de conhecimento (tradicionalmente vista como uma relação binária entre agentes epistêmicos e proposições, cuja forma expressaríamos por “A sabe que P”) é uma relação ternária entre um agente epistêmico, uma proposição (que é a proposição conhecida) e uma classe de contraste (uma proposição potencialmente complexa composta pelas proposições que eliminamos ao aceitar a proposição conhecida) cuja forma expressaríamos por “A sabe que P em vez de Q”. Conforme formulado e defendido por Schaffer6, o contrastivismo é uma tese geral (toda instância de conhecimento seria ternária e contrastiva) sobre a própria relação de conhecimento (não sobre nosso conceito de conhecimento). O que o contrastivismo faz é tornar nossa capacidade discriminatória (de discriminar evidências e contrapor proposições) algo intrínseco à nossa capacidade de ter conhecimento. Essa capacidade discriminatória é usada, por exemplo, ao reconhecermos que certa experiência visual apoia uma crença (como “Há um tomate na minha frente”) em vez de outra (como “Há uma maçã na minha frente”) na 5 Abordaremos somente o contrastivismo epistêmico, mas existe contrastivismo em outras áreas, por exemplo: contrastivismo moral, contrastivismo causal, contrastivismo sobre crenças, etc. (Blaauw, 2012; SinnottArmstrong, 2008). Mesmo dentro do contrastivismo epistêmico encontramos diferentes propostas (Karjalainen e Morton, 2003; Sinnott-Armstrong, 2008), mas aqui nos apoiaremos somente no trabalho de Jonathan Schaffer (pela atenção que este já recebeu na literatura). 6 A formulação mais geral e completa do contrastivismo epistêmico de Schaffer está no artigo Contrastive Knowledge (2005). 2 medida em que discriminamos as experiências que apoiariam cada crença. Pela mesma razão podemos não reconhecer que certa experiência visual apoia uma crença (como “Há um tomate inteiro na minha frente”) em vez de outra (como “Há uma fatia de tomate na minha frente”) porque não conseguimos discriminar na própria experiência (pela posição do tomate no nosso campo visual, por exemplo) qual crença seria apoiada. Assim, de acordo com o contrastivismo nunca saberíamos que certa proposição é verdadeira simpliciter, saberíamos apenas que certa proposição é verdadeira relativamente a uma classe de contraste: não sabemos que temos mãos simpliciter, sabemos que temos mãos em vez de próteses, por exemplo. Não sabemos que chove, sabemos que chove em vez de nevar. O detalhe importante aí é que se mudamos a classe de contraste, então muda nosso estado epistêmico e podemos deixar de saber. Por exemplo: sabemos que temos mãos em vez de próteses, mas não sabemos que temos mãos em vez de sensações de mãos produzidas por um computador que nos alimenta com experiências simuladas; sabemos que chove em vez de nevar, mas não sabemos que chove em vez de que está caindo uma chuva cenográfica. Podemos diminuir ou aumentar a quantidade de proposições na classe de contraste, mas ela estará sempre presente e será determinante para que tenhamos conhecimento ou não. O que determina quais proposições compõem a classe de contraste são questões implícitas ou explícitas em cada contexto. Tais questões especificam as alternativas relevantes: no contexto em que o indivíduo sabe que chove a questão relevante poderia ser formulada como “Está chovendo, nevando ou o tempo está ensolarado?”, em outro contexto poderia ser “Está chovendo ou há uma chuva cenográfica sendo produzida?”7. Portanto, em toda instância de conhecimento haveriam questões implícitas que poderiam ser recuperadas para identificarmos o contexto e as proposições que comporiam a classe de contraste. Há diferentes argumentos em defesa do contrastivismo, mas discutiremos somente o de que ele seria a melhor solução para o argumento cético8. O contrastivista enfrenta o problema 7 Schaffer parece pressupor que quando há conhecimento cabem afirmações (ou a capacidade de fazê-las) de posse desse conhecimento por parte dos agentes epistêmicos (não haveria questões implícitas ou explícitas em contextos nos quais ninguém pudesse afirmar algo, ou que sabe alguma coisa, e por isso tampouco haveria conhecimento). Veremos na quarta seção que Pritchard identifica um problema importante nesse pressuposto. 8 Em seus textos Schaffer oferece também argumentos que tentam estabelecer o contrastivismo com base na natureza de nossas atribuições de conhecimento ou no funcionamento da busca por conhecimento. Um exemplo de argumento do primeiro tipo é o que se baseia na premissa de que atribuições de conhecimento pressupõem que os agentes epistêmicos são capazes de responder perguntas e eliminar alternativas (Schaffer, 2005, pp.240241), um exemplo de argumento do segundo tipo é o que se baseia na premissa de que o avanço na busca por conhecimento depende de que respondamos certas perguntas e, fazendo isso, eliminemos alternativas em cada estágio da investigação (Schaffer, 2005, pp. 241-242). 3 alegando que o cético altera indevidamente as classes de contraste relevantes. Ou seja, quando o cético estabelece que “A não sabe que E” ele está implicitamente dizendo: “A não sabe que E em vez de HC”. Ocorre que essa proposição não seria inconsistente, por exemplo, com “A sabe que E em vez de Q” (sendo “Q” alguma proposição sobre o mundo exterior que normalmente poderíamos saber que é falsa). É plausível que o indivíduo consiga eliminar algumas alternativas entre as que consegue discriminar pelas evidências, mesmo que não consiga eliminar todas, e que esse estado intermediário constitua conhecimento. Se o conhecimento for ternário e contrastivo, então nada impede que um indivíduo saiba que tem mãos em vez de próteses, mas não saiba que tem mãos em vez ser um cérebro em uma cuba com sensações de mãos geradas por um computador. É um resultado que se ajusta com algumas intuições sobre nossa situação epistêmica. Além disso, a resposta contrastivista teria outros méritos: a modéstia e o respeito ao fechamento epistêmico. Esses méritos tornariam o contrastivismo preferível em relação aos dois primeiros tipos de resposta ao argumento cético que consideramos. A modéstia está em ser consistente com a impossibilidade de que saibamos que não-HC (embora o contrastivismo não implique essa impossibilidade). Já o respeito pelo fechamento epistêmico é mais delicado, mas poderíamos adaptar tal princípio ao conhecimento contrastivo através de esquemas como (onde “P”; “P*”; “Q” e “Q*” representam proposições quaisquer) “Se P implica P*, então (A sabe que P em vez de Q) implica (A sabe que P* em vez de Q)” e “Se Q implica Q*, então (A sabe que P em vez de Q) implica (A sabe que P em vez de Q*)”9. Esses méritos não bastam, contudo, para deixar o contrastivismo em vantagem diante do contextualismo, o terceiro tipo de resposta ao argumento cético. Schaffer oferece diversas razões pelas quais o contrastivismo seria superior ao contextualismo (em suas várias formas)10, aqui basta destacar uma: o contrastivismo assegura a estabilidade epistêmica. Se o conhecimento for contrastivo o indivíduo pode sempre saber que tem mãos em vez de próteses e nunca saber que tem mãos em vez de sensações de mãos geradas por um computador, enquanto o contextualista concede que esses estados epistêmicos oscilariam de modo mais ou menos arbitrário, o que não é muito plausível. Por exemplo: o indivíduo saberia que tem mãos no tribunal, mas não saberia que tem mãos na aula de Filosofia. 9 (Schaffer, 2007). Particularmente nos artigos From Contextualism to Contrastivism (2004) e Contrastive Knowledge (2005). 10 4 Assim, o contrastivismo é plausível o suficiente para ser um quarto tipo de resposta que poderíamos dar ao cético. Se Schaffer estiver certo é o melhor tipo: é modesto, respeita o fechamento epistêmico e assegura a estabilidade epistêmica. 3. A OBJEÇÃO DE PRITCHARD11 Prtichard objeta que o contrastivista não escapa de um dilema: ou ele aceita o externismo epistêmico, e então o contrastivismo é desnecessário contra o cético; ou aceita o internismo epistêmico, e então o contrastivismo é insatisfatório. Assim, a resposta contrastivista ao ceticismo não seria a melhor disponível. Vejamos agora os detalhes desse argumento. A primeira (e mais plausível) premissa é a distinção entre internismo e externismo epistêmico (que esgotam as possibilidades: independentemente de aceitarmos o contrastivismo aceitaremos ou o internismo ou o externismo). Segundo Pritchard, o internismo epistêmico é a tese de que para a posse do conhecimento há uma condição necessária de acessibilidade: quando possui conhecimento o agente epistêmico pode acessar, pela pura reflexão sobre seus conteúdos e estados mentais, se a condição que faz certa crença constituir conhecimento foi satisfeita. Tipicamente, quando satisfeita, essa condição torna certas razões justificação para uma crença (o que envolve, além da posse das razões, o reconhecimento de que são razões para a aceitação da crença). O externismo é a negação do internismo: a acessibilidade não é condição necessária para que tenhamos conhecimento. Nem internismo e nem externismo implicam o contrastivismo, que por si só não é internista nem externista, mas inevitavelmente o contrastivista terá que aceitar um dos dois. Ser internista ou externista não basta para resolver o problema do ceticismo. Entretanto, uma vez que, seguindo Pritchard, assumimos que negar o fechamento epistêmico está fora de questão, e suspendemos juízo sobre o contrastivismo, restam apenas as respostas internistas e externistas binárias (possivelmente contextualistas) e sem modéstia: as respostas não podem ser modestas porque para evitar a conclusão cética só restaria rejeitar C1 e defender que sabemos que não-HC (pelas condições contextualistas ou confiabilistas, por exemplo). Cabe notar que o contrastivismo não impede que possamos saber que não-HC, sua modéstia se deve somente ao fato dele ser consistente com a impossibilidade de que saibamos que não-HC. 11 (Pritchard, 2008). 5 Portanto, o contrastivismo tem que se sair melhor que essas respostas, que implicam que podemos saber que a hipótese cética é falsa. Para esclarecer as relações entre as posições Pritchard formula o seguinte princípio (que chama de “princípio da subdeterminação”): (SUB) Para todo S, P, Q, se S não tem evidência adequada que favoreça P sobre Q, e S sabe que P implica não-Q, então S não sabe que P. O princípio expressa a tese de que as evidências só fornecem apoio epistêmico para crenças quando favorecem algumas crenças em detrimento de outras. Esse princípio seria assumido tanto pelos internistas quanto pelos externistas. É um princípio muito plausível, de acordo com Pritchard, que seguimos nas nossas práticas epistêmicas corriqueiras. Por exemplo: se em certo momento a evidência do indivíduo não favorece a crença de que ele está no trabalho (em oposição à crença incompatível de que ele está em casa), então o indivíduo não tem evidência adequada para acreditar que está no trabalho e não saberá que está no trabalho. No entanto, internistas e externistas que defendem que podemos saber que não-HC se dividem sobre “SUB”. Os externistas podem aceitar “SUB” sem ressalvas, pois não será condição necessária de adequação para evidências que elas sejam acessíveis, de modo que o agente epistêmico pode ter evidências adequadas favorecendo não-HC sem saber que as tem. Os internistas precisam fazer uma ressalva. Caso aceitem “SUB” e aceitem que o cético nos coloca em um cenário em que “SUB” implicaria que não temos conhecimento (porque as evidências que teríamos para não-HC seriam indiscerníveis das que teríamos para HC), mas pensem que sabemos que não-HC, terão que conceder que ao menos algumas crenças sejam conhecimento sem que tenhamos acesso às suas evidências, sem que pareçam ter qualquer evidência favorecedora. Para as demais crenças, porém, a acessibilidade continuaria sendo condição necessária para o conhecimento. Essas considerações preparam o terreno para o dilema de Pritchard. A primeira alternativa do dilema é esta: o externismo (como resposta ao cético) por natureza não é modesto e, portanto, não é consistente com o contrastivismo. Logo, o contrastivismo será preferível diante do externismo apenas se houverem razões independentes para aceitarmos que é impossível saber que não-HC (o contrastivismo por si só não oferece razão alguma). Mas, abandonando a modéstia (que não é essencial ao contrastivismo) poderíamos defender um contrastivismo externista. O problema nesse caso é que o contrastivismo se 6 tornaria desnecessário: o externista pode sustentar, conforme Pritchard sugere, que há uma condição de segurança para o conhecimento. Nesse caso uma crença qualquer só constituiria conhecimento se nos mundos possíveis mais próximos em que a tivéssemos ela continuasse verdadeira, de modo que poderíamos considerar a capacidade de separar os mundos possíveis mais próximos dos mais distantes uma capacidade discriminatória (o que é verdadeiro em cada mundo teria efeitos regularmente discrimináveis para as fontes do nosso conhecimento). O externista não precisaria revisar a forma da relação de conhecimento para defender a importância epistêmica da capacidade de discriminar evidências, mesmo que pareça estranho não exigir que essa discriminação seja acessível à reflexão. Portanto, a segunda premissa do argumento de Pritchard é que se o externismo for aceito, então o contrastivismo é desnecessário. Logo, resta ao contrastivista a defesa da modéstia e do internismo. A segunda alternativa do dilema mostra que se o contrastivista aceita o internismo, então o contrastivismo é insatisfatório. O problema (que também ocorre na alternativa externista, mas é mais grave no internismo) é que o contrastivismo é inconsistente com “SUB” e não consegue contornar isso de maneira satisfatória (mostrando que vale a pena abrir exceções para “SUB” sem abandonar a modéstia). Da mesma forma que o fechamento epistêmico, “SUB” poderia ser reformulado em termos contrastivistas, mas não está claro se, dado o internismo, essa reformulação não seria ad hoc: o contrastivista defenderia que por mais que certa evidência seja acessível e favoreça alguma crença comum, essa evidência deixaria de fornecer apoio epistêmico precisamente contra o cético. Pritchard oferece um exemplo que elucida o problema: imagine um indivíduo que está no zoológico diante de uma zebra. Segundo o contrastivismo o indivíduo poderá saber (por evidências acessíveis) que há uma zebra diante dele em vez de uma girafa, mas ainda assim não ter evidências que favoreçam a crença de que está diante de uma zebra em vez de uma mula disfarçada de zebra, e desse modo não saberia que está diante de uma zebra dado tal contraste. Assumindo somente o internismo, essa situação é plausível? Suponha que as evidências acessadas pelo indivíduo incluem a) a experiência de ver um objeto que parece uma zebra (sendo que o indivíduo sabe como zebras se parecem); b) uma boa razão para pensar que seus sentidos estão funcionando bem e c) uma boa razão para pensar que não há evidências contrárias sendo ignoradas (como uma placa que dissesse “Atenção: isto não é realmente uma zebra”). Dadas todas essas evidências, por que não é eliminado o contraste da mula disfarçada? Mesmo que na ocasião o indivíduo não pudesse diferenciar uma zebra de uma mula disfarçada, se ignorarmos os contrastes céticos, o que nos impediria qua internistas 7 de julgar que o indivíduo sabe que está diante de uma zebra em vez de uma mula disfarçada? Afinal, não haveria nenhuma boa razão para o indivíduo crer que estaria sendo enganado. O contrastivismo só se tornaria razoável ao considerarmos os contrastes das hipóteses céticas (no lugar de uma hipótese como a da mula disfarçada de zebra), os casos em que não saberíamos a proposição relevante em virtude de “SUB”. Assim, tudo que o contrastivismo mostraria é que enquanto ignoramos o cético podemos pensar que as evidências favorecem certas proposições, sem mostrar porque a mera aceitação do contraste cético compromete evidências que até então seriam perfeitamente adequadas e conclusivas para os padrões internistas. Retomando o exemplo da zebra: se o indivíduo considerar a possibilidade de ser vítima de um cenário cético (de estar diante de uma zebra simulada), subitamente abandonaremos a evidência b. Só que esse abandono parece gratuito. O contrastivista faz com que saibamos certas coisas só porque ignoramos o contraste cético (não por alguma característica contrastiva geral do nosso conhecimento, que mostre porque as mudanças de contraste afetam nossas evidências), o que é muito artificial, ad hoc. Portanto, se aceitamos o internismo, então o contrastivismo é insatisfatório. Assim, a conclusão do dilema de Pritchard é que o contrastivismo é desnecessário ou insatisfatório. As saídas mais plausíveis são: i) defender que é falso que se o internismo for aceito, então o contrastivismo é insatisfatório ou ii) defender que é falso que se o externismo for aceito, então o contrastivismo é desnecessário. A saída i parece menos promissora porque aparentemente exige que o contrastivismo arrisque a estabilidade epistêmica: na busca por uma explicação satisfatória teríamos que encontrar uma regra que especificasse quais questões podem determinar os contrastes em cada contexto (quais contrastes podem efetivamente entrar na classe de contraste), e é difícil conceber que tal regra não seja mais ou menos arbitrária (ela seria muito similar aos critérios contextualistas para determinação das condições de atribuição do conhecimento, por exemplo). A saída ii exige o sacrifício da modéstia, mas parece mais promissor esperar que as teorias externistas justifiquem esse sacrifício do que esperar que os contrastivistas assegurem e expliquem a estabilidade epistêmica. Aqui também pesa a consideração de que o externismo se acomoda mais facilmente com “SUB” (sem a condição de acessibilidade “SUB” não se choca tão diretamente com o contrastivismo), e por essas razões investigaremos como o contrastivista pode defender a saída ii. 8 4. UMA SAÍDA PARA O CONTRASTIVISMO Pritchard observa que o erro do contrastivista seria confundir condições em que se pode afirmar a posse do conhecimento (condições para o indivíduo afirmar “Sei que P”) com as condições da posse do conhecimento (condições para o indivíduo saber que P). Ao afirmarmos que possuímos certo conhecimento nos colocamos em posição de oferecer razões que justificam esse conhecimento, de modo que ter tais razões é condição necessária para afirmarmos honestamente que possuímos conhecimento. Geralmente afirmamos a posse de certo conhecimento exatamente nos casos em que queremos reforçar para as demais pessoas que temos tal conhecimento: quando nos desafiam ou nos apontam alguma possibilidade relevante de erro. Por exemplo: se perguntam ao indivíduo “Que horas são?” ele pode simplesmente responder “São onze horas”, mas se observam que recentemente entramos no horário de verão o indivíduo pode afirmar “Eu sei que são onze horas”, e nesse caso indica que tem razões para pensar tal coisa (talvez ele afirme saber por lembrar que ajustou seu relógio e julgar que pode apresentar essa justificação). Varia o rigor da expectativa que esperamos que o indivíduo preencha ao afirmar que sabe alguma coisa, mas invariavelmente essa expectativa acompanhará a afirmação da posse do conhecimento. E, principalmente, assumiremos que o indivíduo é capaz de discriminar as possibilidades relevantes, os contrastes, e nos justificar como ele sabe que, por exemplo, são onze horas em vez de meio-dia. Pritchard considera esse aspecto fundamental: “Alegações de conhecimento apropriadas assim refletem a classe de contraste saliente em questão nesse contexto”12 (no contexto da alegação). Nada disso implica, porém, que para ter certo conhecimento o indivíduo precise afirmar (ou ser capaz de afirmar) que o tem, e sustentar isso seria o erro do contrastivista. O que podemos perguntar é se esse erro seria maciço: se a posse de nenhum tipo de conhecimento exige a capacidade de ser afirmada. Há muitos casos que não exigem (o conhecimento baseado na percepção é o caso paradigmático, não importando se somos internistas ou externistas), mas não é óbvio que nenhum caso exija. Um caso que parece exigir esse tipo de conhecimento é o da própria questão de como responder ao argumento cético. Lembremos que para evitar a conclusão cética temos que 12 “Appropriate claims to know thus reflect the salient contrast class at issue in that context.” (Pritchard, 2008, p.313) 9 considerar a disjunção formada por pelo menos quatro tipos de resposta (os três que vimos na introdução e o contrastivismo). É implausível supor que alguém poderia saber a resposta certa sem ser capaz de afirmar que a sabe. Talvez por humildade ou insegurança o indivíduo que soubesse a resposta preferisse não afirmar “Sei qual é a resposta para o argumento cético”, mas isso não mostra que ele não seria necessariamente capaz (ou que poderia ser absolutamente incapaz) de afirmar (talvez verdadeira e justificadamente) que sabe a resposta. O conhecimento da resposta ao argumento cético parece ser, desse modo, um caso em que a capacidade de afirmar a posse do conhecimento é condição necessária para a posse desse conhecimento. Poderia ser objetado o seguinte: se o externismo for verdadeiro, então plausivelmente muitos indivíduos saberão que não-HC. Dificilmente, porém, esses indivíduos precisariam ser capazes de afirmar que sabem que não-HC, e ainda assim saberiam que o cético está errado. Só que esse contraexemplo não funciona porque saber que não-HC é diferente de saber a resposta ao argumento cético, ou mesmo de saber que o externismo é verdadeiro. Se o externismo for verdadeiro, então muita gente sabe que não-HC, o que não implica que muita gente saiba que “O argumento cético falha porque o externismo é verdadeiro”, por exemplo. Assim, a primeira premissa de nossa defesa do contrastivismo é que se pode haver conhecimento sobre qual é a resposta correta ao argumento cético, então esse conhecimento será do tipo que depende da capacidade de afirmar posse. A segunda premissa, que Pritchard concede ao dizer que “Alegações de conhecimento apropriadas assim refletem a classe de contraste saliente em questão nesse contexto.”, é que esse tipo de conhecimento, se existe, é contrastivo. Isso também parece particularmente plausível no caso da resposta ao cético, pois como vimos essa resposta exigiria a consideração da disjunção de no mínimo quatro tipos de resposta, e por isso se ajustaria naturalmente na forma contrastiva. Aqui poderia ser objetado que, conforme Pritchard argumentou, a defesa de algo como uma condição de segurança para o conhecimento faria com que não precisássemos assumir que a relação de conhecimento é ternária e contrastiva. O problema é que essa objeção soa ad hoc: se reconhece que a capacidade de discriminar tem um papel epistêmico importante, que ela resultaria na formação de uma classe de contraste, e que mudanças na classe de contraste implicariam em mudanças no estado epistêmico do agente (alterariam o valor de verdade de proposições da forma “A sabe que P”), sem, com isso, a classe de contraste ser um termo na relação de conhecimento. Agora, o que mais seria razoável exigir para aceitarmos que o conhecimento é ternário em vez de binário? Uma vez que a alteração da classe de contraste é sistematicamente 10 importante para o estado epistêmico, e que o contrastivismo acomoda isso fazendo justiça à nossa intuição sobre o papel da capacidade de discriminar, então prima facie não há porque manter que a relação de conhecimento é binária (ou somente binária). Mesmo porque, embora uma condição de segurança dependa de que tenhamos uma capacidade discriminatória com importância epistêmica, ela não mostra exatamente o que é que torna a discriminação importante (por que a discriminação se correlaciona com a obtenção de conhecimento? O binarista não poderá responder que é por ser contrastiva). Nossa terceira premissa em defesa da saída ii é que se o externismo é aceitável, então buscar a resposta ao argumento cético é buscar por conhecimento. Quem poderia rejeitá-la é quem pensa que o ceticismo é um pseudoproblema ou que não é um problema que desafia nosso conhecimento, mas apenas nossas competências argumentativas (ou seja, seria um exercício dialético que não afetaria o conhecimento que de fato temos ou podemos ter). Contudo, como justificar a terceira premissa foge completamente do alcance deste trabalho, ela será somente enunciada (Pritchard defende explicitamente que não teríamos como afirmar que conhecemos as proposições anticéticas13, mas porque ele assume que não há conhecimento que, para ser possuído, exige que o agente tenha a capacidade de afirmar sua posse). Uma vez que o externismo é aceitável, buscar a resposta para o argumento cético é buscar por conhecimento contrastivo. Portanto, se aceitamos o contrastivismo, devemos defender que a primeira alternativa de Pritchard é falsa: não é o caso que, se aceitamos o externismo, então o contrastivismo é desnecessário. Muito pelo contrário. 5. CONCLUSÃO O contrastivismo é uma tese radical, revisionária, que precisa ser atenuada para evitar objeções como a de Pritchard. Não exploramos a possibilidade do contrastivista aceitar o internismo e defender sua posição em virtude da modéstia, do respeito pelo fechamento epistêmico e pela estabilidade epistêmica (que seria difícil de manter). Nos parece, pelas razões expostas, que é mais promissor abandonar a modéstia e aceitar o externismo. Adotar a saída defendida implica reconhecer, no entanto, que o contrastivismo é incapaz de solucionar diretamente o problema cético. Devemos sustentar, em vez disso, que o 13 (Pritchard, 2008, p.313) 11 contrastivismo é indiretamente necessário se temos a convicção de que a busca por uma solução para o problema cético é uma busca por conhecimento. Isto é, se algum dia conhecermos a solução, plausivelmente esse conhecimento será contrastivo. REFERÊNCIAS BLAAUW, Martijn (ed.). Contrastivism in Philosophy. New York: Routledge, 2012, 177 pp. FELDMAN, R. “In Defence of Closure”. In: The Philosophical Quarterly. St. Andrews, vol. 45, n. 181, pp. 487-494, 1995. 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