A HISTÓRIA E O ENSINO DOS LOGARITMOS Marco Aurélio Jarreta Merichelli1 Luzia Queiroz Hippolyto2 Este artigo descreve como surgiram os logaritmos, para que servem e como são ensinados. Para isso toma-se como premissa a ideia de Eves (1997), já que ele acredita que: (…) seja impossível uma apreciação verdadeira de um ramo da matemática sem algum conhecimento da história desse ramo, pois a matemática é, em grande parte, um estudo de ideias, e uma compreensão autêntica das ideias não é possível sem uma análise de suas origens. (p. 18, rodapé) A importância desse estudo para o processo de ensino-aprendizagem também é defendida por Karrer (1999), já que além de constituir um enriquecimento para as aulas, fornece a todos uma visão das dificuldades encontradas na época para a construção, desenvolvimento, amadurecimento e ampliação desse conceito. Através do estudo dos obstáculos epistemológicos vividos pelos matemáticos do passado, há a possibilidade de obter explicações a respeito das dificuldades apresentadas pelos nossos estudantes. Além disso, trabalhando com esta abordagem, permitimos ao aprendiz alterar a antiga visão de que um tema matemático surgiu do nada, sem nenhum objetivo ou finalidade, oferecendo meios para que o mesmo vivencie que aprender conceitos matemáticos implica em algo muito mais amplo do que simplesmente “estimular seu raciocínio”. A matemática não é construída por diletantismo, ela sempre avança com o intuito de resolver problemas, sejam eles teóricos ou práticos. (p. 32-33) A primeira seção apresenta os logaritmos como uma ferramenta para o cálculo e seus percursos históricos. A segunda parte trata exclusivamente da trajetória desse conhecimento dentro dos programas escolares do ensino médio no Brasil. Assim, pretendemos destacar como ao longo dos anos o ensino desse conteúdo foi se modificando e se adaptando às concepções Matemáticas vigentes. Os logaritmos como ferramenta de cálculo Na época das grandes navegações investir na expansão marítima era um negócio de muitos riscos. A fim de atrair capital, a ideia de juros compostos passou a ser socialmente 1 Graduado em Licenciatura Plena em Matemática pela Universidade Federal do Ceará (UFC); Especialista em Matemática pela FA7; Mestre em Ensino de Ciências e Matemática pela Cruzeiro do Sul/SP, Técnico em Educação na Secretaria de Educação do Estado do Ceará (SEDUC) e professor na Faculdade Cearense (FAC). 2 Graduada em Licenciatura Plena em Matemática pela Universidade Estadual do Ceará (UECE); Especialista em Ensino de Matemática pela Faculdade Ateneu (FATE); Mestre em Ensino de Ciências e Matemática pela universidade Federal do Ceará (UFC); Professora da rede pública estadual do Ceará; Assistente de pesquisa da UFC/ CNPq e Professora da Faculdade Ateneu (FATE). aceita e promovida (já que antes era uma atividade proibida). No entanto, o cálculo do valor a ser pago mostrou-se um problema aos matemáticos da época. Outras áreas do conhecimento também demandavam a necessidade de realizar diversas vezes operações matemáticas com muitos algarismos. Para facilitar algumas dessas contas, os matemáticos daquela época usavam fórmulas trigonométricas em um método chamado prostaférese (EVES 1997; FLORIANI, 2000; LIMA, 1996). Estas fórmulas ficaram conhecidas como as fórmulas de Johannes Werner (1468-1528). Como os valores trigonométricos já estavam representados em tabelas desde a época ptolomaica, era possível simplificar multiplicações e divisões. Para isso era preciso substituir os números que se desejava operar por valores encontrados na tabela, realizando com eles contas mais simples. Por exemplo, uma multiplicação poderia ser reduzida à uma adição, uma subtração e, em seguida, uma divisão por dois. Uma observação pertinente é o fato de que a prostaférese apenas reduz as multiplicações e divisões à somas e subtrações. Aos problemas envolvendo expoentes reais esse procedimento não apresentava solução. Dessa forma, era óbvio que o sistema em uso exigia uma melhora, e vários matemáticos da época se colocaram a pesquisar uma nova forma de prostaférese3. O primeiro a obter notável êxito nessa busca e conseguir publicar seu trabalho John Napier (1550-1617). Napier era um proprietário escocês, Barão de Murchiston, que administrava suas grandes propriedades e escrevia sobre vários assuntos. Sabe-se que ele trabalhou em sua invenção durante vinte anos antes de publicar seus resultados (ANDREATINI, 2009). Napier começou a reduzir operações tediosas de multiplicação a operações mais simples de adição através da correspondência entre progressões ariméticas e geométricas. Em um trabalho de Michael Stiefell, de 1544, encontramos um exemplo onde surge lado a lado as seguintes progressões aritmética e geométrica: 0 1 1 2 3 4 5 6 7 8 2 4 8 16 32 64 128 256 Quadro 1 – PROGRESSÃO ARITMÉTICA AO LADO DE PROGRESSÃO GEOMÉTRICA 3 Outra forma de prostaférese que poderia ser usada derivava do fato de que em ab= ( a+b )2 =a2 +2 ab+b 2 implica (a+b)2 +( a2 −b2 ) . Bastaria dispor de uma tabela com os quadrados dos números naturais para que 2 fosse possível reduzir uma multiplicação à duas somas, uma subtração e uma divisão por dois. (SILVA, 2007). Observou-se que havia uma relação entre essas duas sequências, que poderia ser expressa da seguinte forma: ao operarmos com dois termos quaisquer da progressão aritmética e localizarmos a soma, encontramos também o produto dos termos correspondentes na progressão geométrica. Isto é, se os termos da progressão aritmética citada forem escritos na forma ai e os termos da progressão geométrica na forma bi, teremos a i +a j =a k levando a b i⋅b j =b k . Da mesma forma, é possível relacionar a divisão com a subtração. Sabemos que essas propriedades já eram de certa forma conhecidas desde Arquimedes (287 aC – 212 aC), mas o responsável por sua formalização foi o matemático medieval Oresmus, a partir de um livro chamado “Algorismus Proportionum”, publicado em 1350, segundo Oliveira (2005). Mas usar a base 2 para a simplificação de cálculos cotidianos não era conveniente pelo fato de que entre suas potências naturais há intervalos muito grandes. Era preciso encontrar uma base muito próxima do elemento neutro multiplicativo, de modo que suas potências fossem capazes de relacionarem-se com todos os números naturais. Provavelmente, Silva (2007) é quem melhor ilustra como essa conclusão foi obtida, ao partir da tabela: O que acontece se reduzirmos mais a base? Nesse caso, os números (1,1)x continuam a se distanciar, porém com uma rapidez menor, conforme gráfico abaixo. O escocês John Napier se debruçou sobre este problema durante 20 anos. [...]. Percebendo a vantagem de trabalhar com potências próximas de 1, ele usou a base 1−10−7 . [...] Com essa escolha da base, os números acima ficaram próximos demais. Para chegar a um equilíbrio e evitar decimais, Napier multiplicou cada potência por 107. (SILVA, 2007, p.20-21) Desse modo era possível “cobrir” uma grande quantidade de números naturais, reduzindo a margem de erro quando aproximações eram necessárias. Anos mais tarde, o matemático inglês Henry Briggs (1561-1631) sugere a Napier a utilização de um sistema de base 10 e então os logaritmos assumem uma forma muito similar a que nós conhecemos. É fácil ver que de posse de uma tabela com os valores das potências de um determinado número, podemos resolver multiplicações de suas potências como somas de seus expoentes e divisões como subtrações. Os pesquisadores afirmam que poucas invenções atravessaram com tanta facilidade o universo acadêmico em direção à transformação das práticas sociais quanto os logaritmos e suas tábuas de calcular (FLORIANI, 2000; EVES, 1997). Todos os méritos da invenção dos logaritmos foram atribuídos a Napier, mas Jobst Bürgi (1552-1632), um fabricante de relógios suíços criou uma tabela semelhante adotando os mesmo esquemas de Napier – exceto pelo fato de que Bürgi usava como razão 1+10−4 . Como a tábua de Bürgi só foi publicada em 1620 (seis anos após a de Napier), o mérito da invenção dos logaritmos acabou sendo atribuído inteiramente a Napier. A palavra logaritmo significa em grego “número de razão” e foi adotada por Napier após ter usado a expressão “número artificial” (EVES, 1997). Ele e Bürgi utilizavam a expressão de Euclides para a potenciação. Euclides dizia “a razão dupla do número a” em vez de “o quadrado do número a”. Para expoentes maiores ou iguais a quatro, a expressão era “número da razão” ou, em grego, ⌠ (da razão) ós (número) (ler: lógu aritmós), que soa em português algo como “logaritmo” (FLORIANI, 2000). Já o termo mantissa foi introduzido por Briggs e significa “adição” em latim etrusco (EVES, 1997). A concepção geométrica dos logaritmos é atribuída à Gregory St Vincent (15841667) e seu aluno, Alfonso Antonio de Sarasa (1618-1667). Segundo Diniz (2006), St Vincent usou retângulos estreitos inscritos e circunscritos de larguras diferentes para encontrar o valor da área sob a hipérbole xy=1 . Sua construção é feita a partir do gráfico dessa curva com linhas paralelas a assíntota horizontal, de modo que a área encontrada é delimitada pelos eixos cartesianos, pela curva e por uma reta paralela ao eixo x. Figura 1 - GRÁFICO DA HIPÉRBOLE xy = 1 Anos mais tarde, Sarasa relacionou a quadratura da hipérbole às propriedades multiplicativas dos logaritmos. Interessante notar que a base que ele estava considerando era e= 2,718281. . . . Para explicar o aparecimento desse valor é preciso recorrer ao cálculo diferencial e integral. Trata-se de um tipo de variação dos mais simples e mais comumente encontrados: àquele em que o crescimento (ou decrescimento) da grandeza em cada instante é proporcional ao valor da grandeza naquele instante. Em termos atuais, podemos exemplificar esse tipo de variação com questões de juros, crescimento populacional, desintegração radioativa, etc. A primeira publicação sobre esse assunto é de 1749, de autoria de Leonard Euler (1707-1783), cujo título era “Da controvérsia entre os Senhores Leibniz e Bernoulli sobre os logaritmos dos números negativos e imaginários”. Nele, Euler esclareceu definitivamente a teoria dos logaritmos nos termos que até hoje são aceitos e brindou-nos com sua bela fórmula e iy=cosy +i⋅seny . Euler mostra explicitamente neste trabalho que para cada número real existem infinitos logaritmos complexos, com exceção de um único se o número dado for positivo4. Euler chamava de logaritmos hiperbólicos aos logaritmos de base e= 2,718281. . . por eles satisfazerem a condição log e (1 +x )=x quando x tende a zero. Impropriamente, às vezes os logaritmos que tem base e= 2,718281. . . são chamados de “logaritmos neperianos”. Como já foi dito, Napier originalmente usou como base o número 4 Uma exposição detalhada sobre como Euler relacionou logaritmos, trigonometria e números complexos pode ser encontrada em Lima (1985). a= 1−10 −7 , sendo, portanto, mais apropriado chamar “logaritmos naturais” aos logaritmos de base e= 2,718281. . . (LIMA, 1983a). Ainda a respeito do número e= 2,718281. . . , é preciso que se diga que nenhuma outra constante matemática é tão utilizada para a resolução de problemas nas mais diversas áreas de estudo. Seu valor surge em problemas relacionados à Economia, Estatística, Teoria das Probabilidades, além da função exponencial. Em Oliveira (2005) encontramos também as seguintes informações: [...] o número e é transcendental [,isto é,] não é raiz de nenhuma equação algébrica com coeficientes inteiros. O trabalho de George Cantor com os infinitos provou que, de todos os números em Matemática, os transcendentes são os mais comuns. A primeira demonstração de que e é transcendental foi feita pelo matemático francês Hermite, em 1873 [...] (p. 45) Já foi dito aqui, que quanto queremos encontrar o valor de um número cujo logaritmo decimal é igual a x, estamos querendo saber quanto vale 10 x . O que não foi dito, é que essa concepção de logaritmos como expoentes só pode ser encontrada em livros escritos 140 anos após a invenção dos logaritmos por Napier. A obra “Tables of Logarithms” (GARDINER, 1742, p. 1), define o logaritmo decimal de um número como o expoente da potência de 10 que é igual a esse número5. Os caminhos que levaram os matemáticos daquela época a relacionar as equações exponenciais com os logaritmos foram imensamente tortuosos e desencontrados6. Segundo esses autores devemos observar que àquela época “o próprio conceito de função estava apenas no início de seu processo de desenvolvimento” (p. 91), e também a noção de transcendência “estava começando a ser apropriada pelos matemáticos e começando a ser vista como bastante adequada para designar os objetos que estavam sendo investigados” (p. 92). Embora o uso efetivo dos expoentes remonte a Descartes e o uso de expoentes negativos, fracionários e irracionais seja atribuído à John Wallis (1616-1703), foi apenas a partir dos trabalho de Gottfried W. von Leibniz (1646-1716) e dos irmãos Bernoulli que os expoentes vieram a adquirir o mais alto grau de generalidade e passaram também a ser considerados como grandezas variáveis. Desse modo, segundo Miorim e Miguel (2002), é somente após a percepção de que os logaritmos prestavam-se também para expressar analiticamente fenômenos naturais envolvendo variações de grandezas interdependentes, que eles começaram a ser vistos como uma expressão analítica e como uma função. Assim, com essa breve apresentação da trajetória dos logaritmos, acreditamos ter 5 Tradução nossa de “the common Logarithm of a number is the index of that power of 10, which is equal to the number”. 6 Uma exposição detalhada desse percurso encontra-se em Miguel e Miorim (2004). reunido elementos suficientes para elucidar ao leitor a importância dessa invenção para o progresso da ciência e da cultura ocidental. O ensino dos logaritmos no ensino médio Segundo Godoy (2002), o ensino de Matemática de 1838 até o fim do império (1889) incluía o estudo da Aritmética, Álgebra, Geometria e a Trigonometria. Esses tópicos eram trabalhados de forma isolada sem nenhuma preocupação em mostrar a relação entre eles. Até 1856, o ensino de Matemática era desenvolvido apenas nos últimos anos do curso secundário. A partir desta data o ensino da Matemática passou a ser desenvolvido nos primeiros anos também. O pesquisador cita ainda Beltrame (2000, apud GODOY, 2002) para nos lembrar de que entre 1837 e 1932 a Matemática continuou não sendo ensinada em todos os anos de escolaridade. A análise dos programas oficiais brasileiros de ensino de Matemática para o curso secundário a partir de 1856 nos mostra que a teoria dos logaritmos esteve inicialmente presente no campo da Aritmética. Além disso, as grandes unidades desses programas que conduziam a definição de logaritmo eram ordenadas do seguinte modo: a teoria das razões e proporções, a teoria das progressões e a teoria dos logaritmos. Só no programa de 1892 é que os logaritmos são trabalhados pela primeira vez entre os tópicos algébricos, permanecendo ainda vinculados ao campo da aritmética até 1912. Somente a partir de 1915 os programas oficiais situam o tema logaritmos exclusivamente no terreno da álgebra (MIORIM; MIGUEL, 2002). Esse trabalho alternante com logaritmos ora entre os tópicos aritméticos, ora entre os algébricos sugere o início da convivência de duas concepções diferenciadas de logaritmos. As próximas seções tem como objetivos situar três desses diferentes enfoques dentro do contexto da educação Matemática no Brasil. Concepção aritmética Podemos caracterizar a concepção aritmética como sendo aquela que se baseia na teoria das progressões, não recorrendo, portanto, a noções e expedientes de natureza algébrica. Como exemplo, pode-se citar as palavras de Serrasqueiro (1900, p.320 apud MIORIM; MIGUEL, 2002, p. 28) onde ele define os logaritmos como sendo “termos de uma progressão arithmetica começando por zero correspondentes aos termos de uma progressão geométrica começando pela unidade.” Uma característica dos autores de livros didáticos que optavam por essa concepção era de classificar as operações matemáticas em três grupos de acordo com sua complexidade: 1) adição e subtração; 2) multiplicação e divisão; 3) potenciação e radiciação. Nesse contexto, o logaritmo se enquadrava como uma nova operação cujo papel era reduzir as operações complexas às mais simples. A cultura escolar apropria-se, assim, do uso dos logaritmos extraído das práticas sócio-culturais de uma época em que esse conhecimento era de uso recorrente. Concepção geométrica O primeiro educador a propor o ensino dos logaritmos como faixa de uma hipérbole foi Christian Felix Klein (1849-1925). Para ele, a introdução dos logaritmos naturais partindo da quadratura da hipérbole tem o mesmo rigor que qualquer outro método, com a vantagem, como temos assinalado, de superar a todos em simplicidade e intuição. É indubitável que este desenvolvimento moderno passou de um modo estranho pelo ensino secundário sem deixar qualquer vestígio no ensino fundamental. [...] Vamos, agora, expor concisamente o modo como acreditamos que deveria fazer-se a introdução dos logaritmos no ensino, seguindo o caminho mais natural e simples: o conceito fundamental, a fonte de onde se deriva essa introdução de novas funções é a quadratura de curvas conhecidas. Isso corresponde, como já vimos, por um lado ao processo histórico, e por outro ao procedimento seguido em áreas de matemática superior (KLEIN, 1927, p. 228-30, apud MIORIM; MIGUEL, 2002, p. 80-81). Miorim e Miguel (2002) citam ainda que encontraram uma única obra didática em que tal concepção dos logaritmos é trabalhada. Trata-se do Volume II da coleção Matemática: curso colegial, organizada pelo School Mathematics Study Group-SMSG, traduzida para português na década de 60 do século XX pelos professores Lafayette de Moraes e Lydia C. Lamparelli. Lima (1996) é provavelmente o único que ainda sugere que o ensino dos logaritmos partindo do estudo da área de uma faixa de hipérbole. Em 1983, o autor já dizia que esse método era capaz de “desenvolver a teoria de forma simples e elegante” (LIMA, 1983a). Não conhecemos, no entanto, nenhuma experiência de aplicação dessa concepção em escolas de ensino médio no Brasil. Segundo Karrer (1999), definir os logaritmos a partir do estudo das áreas das faixas de uma hipérbole tem por vantagem apresentar o número irracional e= 2,718281. . . de uma forma natural e simples, mas “não há como desenvolvê-la na primeira série do ensino médio, pelo motivo de envolver conteúdos que só serão trabalhados em alguns cursos do ensino superior” (p. 48). O pensamento dessa autora parece em sintonia com o que pensam os autores de livros didáticos contemporâneos, que optam por não apresentar os logaritmos desta forma. Concepção algébrico-funcional Se os logaritmos foram por um longo período de tempo considerados importantes por facilitarem os cálculos numéricos, a partir da década de 70 do século XX um outro papel começou a ser desempenhado por eles na cultura escolar brasileira. O estudo dos logaritmos como uma operação aritmética perdeu seu espaço para o estudo das funções exponencial e logarítmica e suas aplicações em outras áreas do conhecimento. Essa ideias vinham sendo gradualmente absorvidas pela escola, e isto se refletia na organização curricular dos programas pedagógicos. Serrasqueiro (1900, apud MIORIM; MIGUEL, 2002, p. 97), a certa altura do texto, opta por apresentar o logaritmo de um número como sendo o expoente da potência a que é necessário elevar uma quantidade positiva, chamada base, para produzir esse número. Assim, sendo x= logy (base a), por definição teremos y=a x (p.325). Observe-se que tal definição pode ser apresentada sem que se estabeleça qualquer relação com as progressões aritméticas e geométricas, o que era inédito até então, já que esse período predominava o ensino dos logaritmos a partir da concepção aritmética. Somente a partir de 1915 que os programas oficiais brasileiros situam o tema logaritmos completamente no terreno da álgebra. No entanto, o uso das tábuas – um resquício da atividade aritmética – permanece nos currículos até 1942. Só então começa a se firmar na cultura escolar brasileira a introdução de elementos associados ao desenvolvimento da Matemática ocorridos após o século XVII, entre eles o estudo das funções exponencial e sua inversa, a logarítmica. Conclusão: um retrato atual dos logaritmos Como podemos ver, a invenção dos logaritmos foi decisiva para alavancar diversos setores da atividade humana que dependiam de uma ferramenta para cálculo. Também é possível notar que o estudo da funções logarítmicas e exponencial trouxeram grandes avanços para a matemática e para a ciência de uma forma geral. Mas a relação entre a matemática e os logaritmos não se reduz apenas a essa constatação. Segundo Eves (1997) por muitos anos a régua de cálculo logarítmica 7, pendurada no cinto, num estojo de couro, foi o símbolo do estudante de engenharia dos campi universitários. Pela forma como esse autor descreve, parece-nos que havia uma relação não só simbólica, mas também afetiva entre os matemáticos e suas ferramentas de trabalho. Essa percepção é confirmada no texto de um autor de livros de cálculo para cursos de biociências, onde nota-se um vestígio da crença na superioridade das tábuas logarítmicas frente suas concorrentes históricas. Estamos falando de Batschelet (1978), que ressalta a importância dos logaritmos quando nos diz que eles reduzem “a multiplicação de dois números A e B a uma simples adição, ideia [que] é utilizada na régua de cálculo, um instrumento manual e barato, que sobreviverá a era do computador” (p. 141). Também Fraenkel (1984) cita que, para despertar nos alunos a admiração pela teoria, o ensino dos logaritmos nas escolas deveria ter entre suas metas “capacitar o aluno para a utilização da potente ferramenta que é o cálculo com logaritmos”. Ao contrário de Batschelet, no entanto, esse autor já recomendava que a introdução da calculadora era de extrema importância (apesar de pedir que os professores fizessem as “devidas ressalvas” sobre esse ato). No Estado de São Paulo existe um documento intitulado Parâmetros Curriculares do Estado de São Paulo–PCESP que é atualizado periodicamente. Segundo uma versão de 19948, o ensino de Matemática – tanto no primeiro quanto no segundo grau – deveria partir do concreto. Nessa época, já era dito que: em alguns momentos dos cursos de função, probabilidades, trigonometria, logaritmo e exponencial, por exemplo, o uso de calculadoras se faz necessário. Libertando o aluno dos cálculos (que são elementos secundários em alguns exercícios), ele poderá se preocupar com as propriedades dos conceitos em estudo. (SÃO PAULO, 1994, p.12) Esse mesmo documento diz ainda que hoje em dia a aplicação computacional dos logaritmos deixou de ter utilidade devido ao avanço tecnológico da microeletrônica que permitiu a construção de máquinas de calcular extremamente rápidas e eficientes. (ibidem, p.317) Em nossa opinião, fazemos coro com Eves (1997), quando ele diz que 7 Um estudo mais aprofundado sobre essa invenção e seu idealizador pode ser encontrado em Tanonaka (2008). 8 No texto mais atual (SÂO PAULO, 2008), não é possível encontrar nenhuma referência significativa aos logaritmos. com o advento das mais espantosas e cada vez mais baratas calculadoras portáteis, ninguém mais em sã consciência usa uma tábua de logaritmos ou uma régua de cálculo para fins computacionais. O ensino dos logaritmos, como um instrumento de cálculo, está desaparecendo das escolas [...]. Os produtos da grande invenção de Napier tornaram-se peças de museu. A função logaritmo, porém, nunca morrerá, pela simples razão de que as variações exponencial e logarítmica são partes vitais da natureza e da análise. Consequentemente, um estudo das propriedades da função logaritmo e de sua inversa, a função exponencial, permanecerá sempre uma parte importante do ensino de matemática (p. 347). Com essas palavras, as quais nós assumimos como um perfeito retrato da concepção sobre os logaritmos nos dias atuais, estabelece-se o fim dessa suposta relação entre os matemáticos e suas réguas de cálculo. As calculadoras que substituíram o cálculo com os logaritmos foram rapidamente substituídas por ferramentas eletrônicas menores, mais velozes e com mais funções – um processo de renovação contínuo que não oferece mais o tempo necessário para que se estabeleça algum vínculo entre o profissional e suas ferramentas de trabalho. REFERÊNCIAS ANDREATINI, A. Alessandro Andreatini Home Page - John Napier, inventor dos logaritmos, disponível em http://sandroatini.sites.uol.com.br/napier.htm , ultimo acesso em 29/10/2009. BATSCHELET, E.. Introdução à Matemática para Biocientistas. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1978. DINIZ, G. L.. História da Integral, disponível em http://www.ufmt.br/icet/matematica/geraldo/histintegral.htm , último acesso em 26/05/2010. EVES, H.. 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