O Saber em Psicanálise
Franciny Tenório Cavalcante Maiorano de Lima; Camila de Albuquerque Alves da Silva; Pedro Cerqueira de
Almeida; Karla Julliana da Silva Sousa*;Charles Elias Lang**
Nesse texto trabalharemos o saber em psicanálise partindo de dois caminhos. O
primeiro compreende o saber em psicanálise no campo da formação do analista. O
segundo, o saber em psicanálise a partir do Discurso Analítico. Para tanto, utilizamos
como aporte metodológico a metodologia de leitura próxima, atenta e desconstrutiva. E
tomamos como base os textos O Saber do Psicanalista (LACAN, 1971-1972/2002001), Os discursos na psicanálise (SOUZA, 2008), A estranheza da psicanálise
(QUINET, 2009) e Os discursos e a cura (VEGH, 2001).
A proposição desses dois campos de discussão surgiu a partir da leitura do
Seminário XVII: O avesso da psicanálise (LACAN, 1969-1970/1992) realizada ao
longo de um projeto de iniciação científica que ocorreu no período de agosto de 2012 a
julho de 2013. Tal leitura possibilitou situarmos a noção de Discurso Analítico
formalizada por Lacan, e, posteriormente, nos encaminhou para a discussão do saber em
psicanálise a partir desses dois caminhos, a formação do analista e o Discurso Analítico.
Com a psicanálise, e a descoberta Freudiana do inconsciente, o saber adquire um
novo estatuto, o saber inconsciente. Um saber que estaria fora da religião e fora da
filosofia. Como afirma Lacan (1971-1972, p.17) “a novidade é que o que a psicanálise
revela é um saber não sabido por si mesmo”, um saber que não se sabe. Através das
formações do inconsciente –chistes, sonhos, atos falhos...- de seus pacientes, Freud
inaugura esse novo saber, denominando-o Unbewusste.
Lacan, em seu seminário O saber do psicanalista (1971-1972) formula a
pergunta “Será que há necessidade de demonstrar que há na psicanálise, fundamental e
primeiro, o saber?” (p.16). Como resposta, ele menciona a primazia desse saber na
psicanálise. E completa que “esse novo estatuto do saber –o saber inconsciente- deve
*
Graduandos em Psicologia pela Universidade Federal de Alagoas
Professor Doutor nos cursos de graduação e pós graduação em Psicologia na Universidade Federal de
Alagoas. Psicanalista . Analista membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre.
**
acarretar um tipo de discurso totalmente novo, que não é fácil de apreender e até, um
certo ponto, ainda nem começou” (grifo nosso, p.18), seja ele, o Discurso Analítico.
Diante disso, buscamos discutir sobre a prática analítica que possibilidade a
construção e o atravessamento desse saber. Optamos por iniciar nossos apontamentos
discutindo o saber em psicanálise enquanto formação do analista. Tal escolha, pode-se
dizer, justifica-se por considerarmos que o Discurso Analítico não opera por si só, fazse necessário que o analista, a partir do seu saber teórico-clínico, construído ao longo de
sua formação, conduza o tratamento e o faça operar. As noções de Discurso Analítico
serão trabalhadas posteriormente, para, enfim, voltarmo-nos para a discussão do saber
no Discurso Analítico.
Falar em formação do analista implica levantarmos questões ao que concerne
ensino e transmissão, teoria e clínica. Buscando nortear essas questões, trabalhamos
com a ideia da formação do analista segundo o tripé do psicanalista, que é sustentado
por: atendimento de pacientes, análise pessoal, supervisão/estudo teórico; e um quarto
pilar –instaurado por Lacan – o convívio com os pares, que consiste em ser reconhecido
como analista pela comunidade analítica.
Em Sobre o ensino da psicanálise nas Universidades (1919), Freud, se referindo
ao estudante de medicina (mas que, aqui, se aplica a todos aqueles que almejam ser
psicanalistas), diz que “será suficiente que ele aprenda algo sobre psicanálise e que
aprenda algo a partir da psicanálise” (FREUD, 1919/1996, grifo do autor, p.189). Nesse
sentido, podemos depreender que o saber sobre psicanálise está associado ao estudo
teórico, atendimentos de pacientes e supervisão; e o saber a partir da psicanálise está
associado à análise pessoal. E não pretendemos desarticular um do outro, pois, ambos,
são fundamentais e complementares na formação do analista. Não há saber teórico que
se sustente sem a prática clínica, e não há prática clínica que se sustente sem saber
teórico. E, por sua vez, ambos não se sustentam sem a análise pessoal.
Nesse mesmo sentido, Coelho (2006, p.119) aponta que a psicanálise é
construída no entrelaçamento entre teoria e clínica, é uma práxis. Se nos debruçarmos
sobre a palavra “entrelaçamento”, que tem origem na física quântica, e que corresponde
a um evento em que a conexão entre dois ou mais elementos (ou objetos) se dá de tal
forma que o que ocorre em um afeta igualmente o outro, podemos então, nos referindo à
psicanálise, afirmar que esse entrelaçamento diz respeito a essa interdependência e
diálogo mútuo entre clínica e teoria, remetendo também a algo que não compreende
uma segregação.
Pensar em formação do analista implica pensarmos também em transmissão.
Segundo Quinet (2009, p.53) transmissão da psicanálise é o que dela passa de um
sujeito a outro sujeito. A partir dessa afirmação, podemos ter de um lado a transmissão
da psicanálise enquanto ensino, pautada por uma discussão e reflexão teórica-clínica. E
de outro, a transmissão da psicanálise por meio da própria análise pessoal do analista.
Não descartamos a noção, pontuada por Quinet (2009, p.18) de que “não há
saber prévio em psicanálise, nem no campo teórico-clínico da análise, nem sobre a
questão de como se faz um analista”. Temos então que o saber em psicanálise é algo a
ser produzido, elaborado e construído. Além disso, o autor também discute que não há
um saber prévio que pode ser aplicado a todos os casos. É aí que se coloca a questão da
singularidade do caso, pautada pela noção de que o trabalho da psicanálise é sem um a
um – caso a caso-.
Contudo, não podemos desconsiderar que há um saber antecedente, fundamental
e necessário, que vai ser construído ao longo da formação do analista. O que nas
palavras de Quinet (2009, p.56) em resposta à pergunta “o que o analista deve saber?”,
ele traz como uma das respostas possíveis: saber o que fundamenta a experiência
analítica.1Dai decorre que esse saber vai possibilitar a condução do tratamento, desde o
início, a partir das entrevistas preliminares, no estabelecimento do diagnóstico,
transferência e na direção do tratamento. Não havendo esse aporte teórico, a ética falha.
E é impensável haver clínica onde não há transferência e onde não faz o Discurso
Analítico operar.
Antes de falar propriamente do discurso que aqui nos interessa, a saber, o
Discurso Analítico, faz-se necessário uma breve exposição – nos limites que nos sabe –
de como foi construída essa noção de Discurso formalizada por Jacques Lacan.
O Seminário XVII: O avesso da psicanálise proferido por Lacan entre 1969 e
1970 na Faculdade de Direito, marca, de certa forma, uma reformulação ou revolução
1
Nesse momento Quinet cita o texto de Lacan Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista
da Escola, onde, segundo ele, Lacan enfatiza o saber textual que sustenta a psicanálise em extensão e
intensão. Concluindo que é o texto freudiano que fundamenta e que torna consistente a psicanálise em
intensão.
no campo do ensino e do saber. Contextualizando os fatos, data da mesma época, o
movimento de Maio de 68 que ocorreu em toda Europa e particularmente na França e
que se constituiu numa luta em defesa dos direitos à subjetividade e que ainda trazia
como objetivo propiciar um hedonismo na cultura (SOUZA, 2008, p.91).
Após receber uma carta da Escola Normal Superior, informando-o que em
decorrência às críticas que o Movimento de Maio havia feito às instituições, sobretudo à
instituição universitária, ele não poderia mais continuar ensinando na ENS, Lacan
considerou “que se a psicanálise não poderia ser enunciada ali como um saber e
ensinada como tal, ele não teria o que fazer naquele lugar” (SOUZA, 2008, p.90). Essa
posição de Lacan expõe ainda mais sua preocupação com o ensino e transmissão da
psicanálise, e ao conceito de Escola que é reformulado de forma peculiar e distinta por
Lacan.2
É então, em meio a esse contexto, que o Seminário XVII formaliza sua teoria
dos quatro discursos. O discurso, como afirma Lacan (1969-1970/1992) é o que faz o
laço social. Os discursos surgem como um meio de formalizar o vínculo social entre os
sujeitos; os laços sociais possíveis entre o sujeito e o outro. Discurso é “aquilo pelo
qual, pelo efeito puro e simples da linguagem, se precipita um laço social” (LACAN,
1971-1972/2001, p. 96).
Dessa forma, a teoria dos discursos compreende quatro formas distintas de se
estabelecer laço social, sejam elas o Discurso do Mestre, Discurso Universitário,
Discurso Histérico e Discurso Analítico. Para cada discurso há um matema específico.
Cada matema dispõe de quatro elementos – a, $, S1, S2 – distribuídos em quatro lugares
(ou quadrantes) diferentes: o lugar do agente, lugar do outro, lugar da verdade, lugar da
produção, estabelecendo “uma permutação circular, com os termos permanecendo na
mesma ordem” (LACAN, 1969-1970/1992, p.40).
O Discurso Analítico, este que tem o objeto a (a) no lugar de agente, o sujeito
dividido ($) no lugar de outro, o saber (S2) no lugar da Verdade, e o significante mestre
(S1) no lugar da produção, é o discurso que impulsiona o ato analítico (AMIGO, 2001).
2
A esse respeito ler o texto Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola em :
Outros Escritos (LACAN, 1901-1981/2003).
Vemos então que a psicanálise passa a estabelecer um novo laço social, peculiar e
distinto, entre analista e analisante.
𝑎 $
S2 𝑆1
No Discurso Analítico, o objeto a ocupa o lugar de agente, aquele que põe em
movimento o discurso, ou, nas palavras de Souza (2008, p.148) “de onde se inaugura o
discurso e ordena as outras relações”. Amigo (2001) defende que o a está como objeto
esvaziado de substância, que causa um movimento desejante. Esvaziado de substância
no sentido de que não é o ser, a pessoa do analista que está em jogo; e causa um
movimento desejante na medida em que, como discute Souza (2008, p.148) “possibilita
ao analisante [$], sob transferência, interrogar seu desejo e fazer cada vez uma outra
leitura disso que se realiza em ato, como formação do inconsciente”.
O analisante, a partir dessa nova leitura que vai fazer dos conteúdos que vão
surgindo ao longo da análise, a partir do que ele fala, constrói –ou elucida- um saber
(que até então era não sabido). A partir daí é que vão ser produzidos novos significantes
mestres (S1), correspondendo ao lugar da produção que S1 ocupa no Discurso
Analítico.
Em torno disso, podemos nos remeter ao que Lacan em seu Seminário 1: Os
escritos técnicos de Freud (1953-1954/1986, p.317) já enunciava, o analista “não tem
de guiar o sujeito num Wissen, num saber, mas nas vias de acesso a esse saber”. É por
meio do Discurso Analítico que serão estabelecidas as vias de acesso a esse saber.
Quando o analista convoca o analisante a dizer tudo o que lhe vem à mente, a partir da
regra da associação livre –regra fundamental da psicanálise-, já se vê presente um dos
dispositivos que o analista dispõe para estabelecer as vias de acesso ao saber
inconsciente.
É na posição de analisante que o sujeito ao interrogar seu desejo “vai poder
inferir o saber (S2), que não é simplesmente suposto, mas inventado como saber
inconsciente e que se encontra no lugar da Verdade” (SOUZA, 2008). Propõe-se então
que a verdade que sustenta o discurso analítico é o saber inconsciente. O mesmo autor
pontua que “tudo o que se pode saber numa análise não se escreve no real, mas funciona
no registro da verdade” (p.150). E funcionando no registro da verdade compreende um
semi-dizer, como afirma Lacan (1969-1970/1992), um saber não todo, o saber como
uma verdade meio-dita através da palavra.
Por fim, cabem ainda algumas exposições em torno do que Lacan nos coloca, em
O Saber do Psicanalista, seminário realizado na capela do Hospital de Sainte-Anne
entre 1971 e 1972 - que teve como público os psiquiatras residentes desse Hospital-, e
que marca o retorno dele a Saint-Anne.
No início deste seminário, Lacan postula que a ignorância está ligada ao saber.
Para tanto, utiliza-se do que o cardeal Nicolau de Cusa chamava “douta ignorância”, o
saber mais elevado (LACAN, 1971-1972).
Se o analista acredita que sua tarefa é transmitir um saber, está
profundamente enganado acerca do que seja a psicanálise, já que esse saber
não é o que está em jogo em análise, o saber a respeito do qual aquele que
está na posição de analista se coloca numa posição de não-saber, não de
ignorância;esse saber é aquilo que o paciente mesmo transmitirá sobre seu
próprio inconsciente através da associação livre (RABINOVICH, 2000,
p.37).
Aproximamos assim, o saber do psicanalista à “douta ignorância”, articulando
também o desejo do psicanalista, considerando assim, este saber como elaborado. Em
que o psicanalista reconhece seus limites e sabe que não se trata de transmitir um saber
ao analisante, ou de compreendê-lo ou ajudá-lo, mas sim, de estabelecer condições para
que o analisante possa falar e elaborar esse saber inconsciente.
Em torno da douta ignorância, desse saber mais elevado, elaborado e distinto,
podemos associar outro ponto peculiar pelo qual o analista se distingue. Seja ela, a de
fazer de uma função que é comum a todos os homens –a fala/ a palavra – um uso que
não está alcance de todo mundo (LACAN, 1953/1998, p.352).
Sobre a questão do saber do psicanalista, Lacan (1971-1972, p.24) irá dizer
ainda que “a questão é saber em que lugar é preciso estar para sustentá-lo”. Entramos aí
na questão da ética em psicanálise, apoiada em tudo o que gira em torno da formação do
analista e transmissão da psicanálise. É então, a partir disso, que o analista, assumirá sua
posição de analista, e falará a partir desse lugar nas análises que conduzir.
Diante desses breves apontamentos, situamos o saber em psicanálise em dois
campos: formação do analista e Discurso Analítico. Apresentamos dessa forma, uma
possível leitura do que pode ser entendido como saber em psicanálise, não pretendendo
colocá-los como divergentes ou dignos de segregação. Mas, situá-los, de certo modo,
como articulados, na medida em que a psicanálise só é possível a partir da operação do
Discurso Analítico. E esse, por sua vez, só opera a partir da psicanálise enquanto teoria
e clínica, por meio da análise conduzida por um analista.
A partir dessa leitura passamos o enunciar o saber em psicanálise enquanto
formação e discurso. Marcando, dessa forma, a subversão analítica que Lacan –e a
psicanálise – traz para a sociedade. Com a psicanálise, o saber adquire um novo
estatuto, o de saber inconsciente. Sendo assim, requer que seja permeado por um novo
tipo de discurso, o Discurso Analítico, este que se dá de forma peculiar e distinta, na
relação analítica entre analista e analisante.
De todo modo, tanto em um campo quanto noutro, o saber em psicanálise tratase sempre de um saber a ser construído, ao longo de um percurso. Seja a partir das
relações singulares que são estabelecidas pelo sujeito (enquanto analisante) na sua
análise – no que diz respeito ao saber inconsciente -; seja a partir das relações singulares
que são estabelecidas pelo sujeito, (enquanto analista – ou futuro analista), ao longo de
sua formação. Esta última não excluindo a primeira.
Por fim, temos que o que aqui é enunciado como saber em psicanálise,
compreende o saber do sujeito (S2), o saber inconsciente, que ocupa o lugar da Verdade
no Discurso Analítico. E o saber do analista –que é construído ao longo da sua
formação, no entrelaçamento entre teoria e clínica, e é sustentado pelos quatro pilares.
REFERÊNCIAS
AMIGO, S. Notas sobre o Discurso do Analista. Em: VEGH, I. Os discursos e a cura.
Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2001.
COELHO, C. Psicanálise e laço social – uma leitura do Seminário 17. Revista
Mental, vol. IV, n.6. Barbacena, 2006, p.107-121.
FREUD, S. Sobre o ensino da Psicanálise nas Universidades (1919 [1918]). Em: Edição
Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas: Volume XVII. Rio de
Janeiro: Imago, 1996.
LACAN, J. O Saber do Psicanalista: Seminário 1971-1972. Publicação para
circulação interna. Recife: Centro de Estudos Freudianos do Recife, 2000-2001.
__________. O seminário, livro 1: os escritos técnicos de Freud (1953-1954). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1986.
__________. O seminário, livro 17: o avesso da psicanálise (1696-1970). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1992.
__________. Variantes do tratamento-padrão. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar, 1998.
QUINET, A. A estranheza da psicanálise: a Escola de Lacan e seus analistas. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2009.
RABINOVICH, D. A questão do saber do psicanalista: a douta ignorância. Em: O
desejo do psicanalista: liberdade e determinação em psicanálise. Rio de Janeiro:
Companhia de Freud, 2000.
SOUZA, A. Os discursos na Psicanálise. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2008.
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