Ivanize Ribeiro de Souza Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá OS PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA DO PARANÁ E OS GRUPOS DE ESTUDO AOS SÁBADOS: AS ARMADILHAS DA FORMAÇÃO CONTINUADA 1 INTRODUÇÃO Numa sociedade em constantes transformações, diferentes funções colocamse para serem assumidas pelos professores que, muitas vezes, têm sua existência profissional marcada por sentimentos de culpa pelos reflexos dos embates provocados por essas mudanças na sociedade e que adentram o espaço escolar, tais como: o desencontro entre currículos propostos e práticas realizadas, fracasso escolar, problemas de indisciplina e mesmo de violência na escola. Diante dessa problemática, discursos oficiais apontam, a todo instante, para a necessidade de resgatar a valorização da escola, que deve ser pública e precisa garantir o acesso, a permanência e a aprendizagem de todos os seus alunos no processo de escolarização. Para melhor compreensão do papel do professor nesse embaraçoso movimento social e pedagógico podemos observar as interferências das decisões pedagógicas na constituição da subjetividade desse profissional. Segundo Gonçalves (1996), nos cursos de qualificação de docentes, há pouco espaço para discussões que envolvam a relação entre a subjetividade desses sujeitos e a sua prática pedagógica. Ora se estuda o profissional sem levar em conta a influência de seu contexto de vida com sua atuação prática, ora, situa o professor como pessoa sem considerar o contexto de sua profissão. A esse profissional restam ainda as oportunidades de formação continuada oferecidas pelos diversos sistemas de ensino. Nosso objetivo é discutir uma dessas propostas desenvolvida junto aos professores da rede pública estadual do Paraná sob a modalidade de grupos de estudos voluntários aos sábados. Almejamos refletir sobre as lacunas geradas pelo aparato estatal que acabam por transformar as iniciativas antes desejadas pelo coletivo da classe docente em meros instrumentos burocráticos e quantitativos. Para tanto, julgamos inicialmente necessário discutir o papel do professor de língua portuguesa enquanto mediador do processo ensino-aprendizagem de língua materna a partir de uma perspectiva sociointeracionista. À luz dessas teorias, pretendemos, então lançar um olhar crítico sobre o processo de formação continuada supramencionado. 2 O Professor de língua materna e seu objeto de ensino Para apresentar a posição teórica sobre o que se pretende considerar como definição de língua assumida neste trabalho, recorremos a Bakhtin/Volochinov (1992, p. 127) que, questionando as concepções de língua postas em seu tempo, o “subjetivismo individualista” e o “objetivismo abstrato”, formula um olhar próprio sobre esse fenômeno a partir de cinco proposições: 1 – A língua como sistema estável de formas normativamente idênticas é apenas uma abstração científica que só pode servir a certos fins teóricos e práticos particulares. Essa abstração dá conta de maneira adequada da realidade concreta da língua. 2 – A língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza através da interação verbal social dos locutores. 3 – As leis da evolução lingüística não são de maneira alguma as leis da psicologia individual, mas também não podem ser divorciadas da atividade dos falantes. As leis da evolução lingüística são essencialmente leis sociológicas. 4 – A criatividade da língua não coincide com a criatividade artística nem com qualquer outra forma de criatividade ideológica específica. Mas, ao mesmo tempo, a criatividade da língua não pode ser compreendida independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que a ela se ligam. A evolução da língua, como toda evolução histórica, pode ser percebida como uma necessidade cega de tipo mecanicista, mas também pode tornar-se “uma necessidade de funcionamento livre”, uma vez que alcançou a posição de uma necessidade consciente e desejada. 5 – A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A enunciação como tal só se torna efetiva entre falantes. O ato de fala individual (no sentido estrito do termo “individual”), é um paradoxo. Disso depreendemos que a língua é um sistema estático enquanto abstração científica, porém, as diversas práticas sociais decorrente de seu uso é que a torna um organismo vivo, dinamizado nas relações sociais concretas e não individual. Esse caráter de dinamicidade da língua pressupõe uma atitude de criatividade. Porém, isso não pode ser compreendido como algo espontâneo, próprio dos falantes. É marcado por uma “necessidade de funcionamento livre” Bakhtin/Volochinov (1992) por meio de enunciações que só se efetivam entre falantes, nos diversos campos da atividade humana por força das relações sociais entre eles estabelecidas. Nesta perspectiva, o mesmo autor propõe uma ordem metodológica para o estudo da língua enquanto viva e historicamente em evolução: 1 – As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições concretas em que se realiza; 2 – As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em ligação estreita com a interação de que constitui os elementos, isto é, as categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a uma determinação pela interação verbal; 3 – A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação lingüística habitual. Esta ordem metodológica estabelecida nos conduz à conclusão de que o processo de evolução da língua é desencadeado pela evolução das relações sociais. Isto é, os seres humanos, organizados em sociedade, vão modificando, substituindo e inovando as suas relações intersubjetivas. Tais relações acabam por reconfigurar o uso que esses sujeitos fazem da língua, propiciando o surgimento de novas formas e deslocando alguns outros. Tais movimentos serão, somente a posteriori, objeto das abstrações científicas. Mas, dada a dinamicidade dos usos da língua na sociedade, como situar a atuação do professor, profissional encarregado do ensino da língua materna nas instituições escolares? Para delinearmos o papel do professor de língua materna, fundamentados na idéia de que a linguagem é instrumento para o desenvolvimento de estruturas psicológicas superiores, utilizamo-nos das contribuições das teorias vygotskyanas em seus estudos sobre a formação dos Processos Psicológicos Superiores e a formação dos conceitos científicos, especificamente quando o teórico valoriza a intervenção do adulto mais experiente. Apresentamos brevemente as características principais da origem desses PPS na teoria de Vygotsky: - a natureza dos PPS se dá pela internalização das formas culturais de conduta que implica a reconstrução da atividade sobre a base das operações com signos; - os PPS se originam na vida social na participação do sujeito em atividades compartilhadas com outros; - o processo de desenvolvimento dos PPS é complexo porque inclui mudanças na estrutura e função dos processos que se transformam intrinsecamente em PPS, implica mudança na estrutura e função dos processos que se transformam. Não é natural; - o desenvolvimento dos PPS se dá por um processo culturalmente organizado. Esta organização se refere à ação educativa em sentido geral, pode ser reconhecido nos processos de educação familiar, mas parece possuir uma especificidade crucial no ensino escolar. Ao considerarmos estas características, podemos inferir que o professor tem uma grande contribuição no desenvolvimento dos PPS dos alunos, por isso julgamos necessário definir alguns aspectos que precisam ser perseguidos no processo de sua formação continuada. A esse respeito, é imprescindível que este profissional saiba ou aprenda como propor atividades que promovam o desenvolvimento dessas funções. Além disso, precisa saber profundamente do conhecimento a ser ensinado e aprendido pelos alunos; necessita, ainda, ter conhecimento das teorias pedagógicas e dos avanços das várias ciências. Portanto, ao professor não poder ser negado o direito a esses conhecimentos imprescindíveis para a sua atuação docente culminando na garantia do direito do aluno à aprendizagem. 3 Caracterização da proposta de formação continuada do Estado do Paraná A Secretaria de Estado da Educação do Paraná (doravante, SEED-PR) propõe, como uma de suas políticas públicas atuais, projetos de formação continuada para os professores da rede pública estadual, anunciando esta ação como resposta a seu compromisso para com a valorização desse profissional, assegurada pela qualificação de sua prática social no espaço educativo. Diante da luta secular pela democratização da escola pública, pelo ensino de qualidade e pela educação pública, gratuita e universal o Estado do Paraná vislumbra a possibilidade de instaurar um processo de formação continuada que acrescente e supere a formação inicial (a qual precisa ser constantemente revista) para dar conta da ação escolar que, enquanto prática social, é formada por sujeitos que estão em constante movimento de transformação e atualizações mediante a dinamicidade das relações sociais. Essa perspectiva é assumida pelo Plano Estadual de Educação, ainda em processo de elaboração, que elenca como uma de suas prioridades: Valorização da totalidade dos profissionais da educação mediante a garantia de ingresso por concurso público, o plano de carreira, o estabelecimento de piso salarial profissional e a oferta de oportunidades de formação continuada [grifo nosso]. (PARANÁ, 2005, p. 4) Em consonância com o Plano Estadual de Educação, a proposta de formação continuada da SEED-PR, contempla as seguintes modalidades de capacitação docente: reuniões técnicas; cursos de atualização – de 16 a 39 horas/aula; cursos de proficiência – de 40 a 120 horas/aula; programas de acompanhamento da prática docente – de 120 a 180 horas/aula; grupos de estudos; cursos de pós graduação; cursos de aperfeiçoamento – acima de 180 horas/aula; cursos de especialização – acima de 360 horas/aula Tomamos como objeto de estudo neste trabalho a modalidade “grupos de estudos” por ser a que se aproxima de maior número de professores da rede estadual. Esta modalidade tem como objetivo “favorecer o processo de implementação das Diretrizes Curriculares Estaduais (documento em processo de elaboração), aprofundar as concepções de ensino das diferentes disciplinas curriculares, provocar discussões e oferecer a reflexão sobre a prática pedagógica”.(Instrução 001/2005 e 006/2006/SEED-PR). Neste processo, são organizados e distribuídos às escolas, através dos Núcleos Regionais de Educação, artigos, capítulos de livros e outros materiais teóricos para todas as disciplinas e modalidades de educação que a rede estadual oferece e que são a base de estudo desses grupos, bem como, em alguns casos, um roteiro – guia – para a leitura destes materiais. Estes grupos de estudos são realizados aos sábados, organizados em seis encontros de quatro horas cada, totalizando vinte e quatro horas de formação. O número de participantes para composição de cada grupo deve ser de, no mínimo três e, no máximo, quinze participantes. É organizado por um coordenador, escolhido pelo próprio grupo, que se responsabiliza pela dinâmica de trabalho, definição de papéis e divisão das tarefas entre os participantes. Os professores da rede estadual aderem ao programa por opção, ou seja, a formação não tem caráter de obrigatoriedade, apesar de estar atrelada a pontuação para avanço no plano de cargos e salários, por meio de certificação que é garantida pela comprovação de 100% de freqüência, envolvimento e registro das experiências significativas para socialização com o grupo. No caso do Ensino Médio, o material para estudo e discussão era encaminhado pela SEED-PR aos Núcleos Regionais de Educação e estabelecimentos de ensino em um CD-ROM. Assim, a impressão dos textos ficava a cargo de cada escola ou de cada professor. Em 2005, foram enviados para estudo os seguintes textos, sendo que a ordem de discussão ficava a critério dos participantes de cada grupo: AUTOR BAKHTIN, Mikhil FARACO, Carlos Alberto CASTRO, Gilberto de PIVOVAR, Altair DELEUZE, Jullio KOCH, Ingedore Villaça TEXTO Estética da Criação Verbal - Os Gêneros dos Discursos Educar em Revista (UFPR) Por uma Teoria Lingüística que Fundamente o Ensino de Língua Materna Leitura e Escrita: A Captura de um Objeto de Estudo Deslocamento 3 – Rizoma e Educação O Texto e a Construção dos Sentidos Já em 2006, o conjunto de textos, cuja ordem de discussão novamente ficou a critério dos professores participantes, era o seguinte: AUTOR FARACO, Carlos Alberto CASTRO, Gilberto de MARCUSHI, Luiz Antonio BARTHES, Roland ZILBERMAN, Regina CARVALHO, Marlene SILVIA, Mauricio da FARACO, Carlos Alberto PERINI, Mario A. TEXTO Questões de Política de Língua no Brasil: Problemas e Implicações Aula de Português: Ensino de uma Língua Estrangeira para Brasileiros Da fala para a escrita: Atividades de Retextualização O Rumor da língua Leitura em crise na escola: As alternativas do professor Como ensinar a ler a quem já sabe ler O dialogismo como chave de uma antropologia folosófica Sofrendo a gramática – ensaios sobre a linguagem 4 Um olhar sobre os grupos de estudo: reflexões e novos questionamentos É discurso corrente entre os educadores e a Secretaria de Estado da Educação do Paraná o desejo pela implementação de grupos de estudos destinados a discussão de teorias e troca de saberes e experiências pedagógicas. A reflexão aqui apresentada não tem por meta desmerecer a iniciativa dessa Secretaria, mas mostrar alguns elementos cuja reconsideração entendemos ser necessária a fim de prover o processo de implementação das condições favoráveis imprescindíveis para garantir o seu maior intento, que é desenvolver, entre os educadores, as aprendizagens necessárias para o seu fazer pedagógico. O primeiro elemento a ser considerado, refere-se à adesão, pelos professores, à proposta de Grupos de Estudos, no que se refere ao seu caráter voluntário. Dadas as condições econômicas da classe e sua sobrecarga de trabalho que ultrapassa os muros escolares, adentrando-se também em sua vida cotidiana, a descentralização dos grupos de estudos pode ser considerado um elemento facilitador das condições de acesso dos professores. Porém, como toda proposta de caráter voluntário, implicou na adesão por grupos heterogêneos, formados por diferentes níveis de interesse e comprometimento. Assim, os estudos acabaram fortalecendo os que já estão engajados no processo de aprendizagem, porém, ao final, todos foram avaliados da mesma forma e receberam os mesmos benefícios institucionais, ou seja, certificação e progressão em sua carreira profissional. Outro ponto que descaracteriza o aspecto voluntário da proposta está presente no que tange à subjetividade do professor que não se coloca na posição de quem opta livremente, mas de quem se vê obrigado, por necessidades materiais, a abrir mão de seu dia de descanso. Este fato abre espaço para interpretação da proposta como a mascaração do grupo de estudo voluntário. Um outro elemento que queremos considerar em nossas reflexões e que gerou desconforto entre os profissionais foi o fato desta formação acontecer, obrigatoriamente, aos sábados. Diante das constantes reclamações por parte dos professores sobre esse calendário, estes acabavam sempre recebendo como resposta que a determinação da SEED embasava-se na necessidade de se garantir aos alunos seu direito assegurado por Lei, ou seja, os duzentos dias letivos e que, ao professor, estava sendo oferecida uma oportunidade, mas que não seria obrigatória sua adesão, ele poderia fazer sua opção1. Refletindo sobre a problemática posta pela determinação de se realizar os grupos de estudos aos sábados, nas atuais conjunturas, visualizamos duas possibilidades para uma readequação do formato dos grupos de estudo. Uma delas seria oferecer liberdade para os grupos se organizarem de acordo com a disponibilidade de seus membros. Outra, seria reorganizar em toda a rede estadual, o tempo destinado à hora/atividade dos professores, direcionando e determinando que os estudos aconteçam por disciplinas, favorecendo o espaço para os grupos de estudos. Sendo assim, o professor seria contemplado em sua jornada de trabalho, 1 Informação obtida por meio de nossa convivência com os professores participantes. dando ao grupo de estudo caráter de maior flexibilidade, aproximando-se do que se possa considerar como “voluntário”, porém ainda permeado por um aspecto de autoritarismo. Mais um elemento que queremos contemplar nesta reflexão se refere à ausência de mediação docente no processo de estudo dos materiais teóricos enviados aos grupos pela SEED-PR. Para essa reflexão, utilizamos-nos aqui das contribuições de Vygotsky que afirma que “a ajuda do outro mais experiente leva o aprendiz a resolver questões mais complexas do que consegue resolver sozinho.” Assim, estabeleceu a Zona de Desenvolvimento Real como a margem de atuação em que o aprendiz, sozinho, obtém sucesso e a Zona de Desenvolvimento Proximal como a margem de atuação em que, com a ajuda de um par mais desenvolvido, o aprendiz pode atuar em limites mais amplos que os da Zona de Desenvolvimento Real. Reconhecemos a riqueza dos diversos saberes que circulam entre os professores da rede pública paranaense. Porém, retornando ao conjunto de textos encaminhados pela SEED nos anos de 2005 e 2006, percebemos a necessidade de um mediador altamente especializado visto que, em função de suas condições de trabalho e de sua formação inicial, a imensa maioria desses professores não conseguiria, por si só, dar conta da profunda complexidade dos conceitos neles contemplados. Condição sine qua nom para a transposição didática dessas teorias. O colega de trabalho seria um excelente mediador quando se refere a troca de experiência. Porém quando se trata de aprofundamento teórico metodológico, parece que esse ideal se torna bastante difícil de ser atingindo entre pares iguais, não ultrapassando discussões fervorosas sobre o senso comum. A esse respeito, concordamos com a proposição de Facci ( ): Na formação do professor, portanto além do conhecimento de suas experiências pessoais e profissionais, dos saberes práticos, tem que haver uma ruptura com a forma de pensamento e a ação próprios do conhecimento cotidiano. A humanização do aluno e do professor está limitada por relações e formas de ação presentes na prática educativa, que refletem a influência de relações mais amplas, presentes na prática social. Ainda na perspectiva vygotskyana, a internalização de conceitos e procedimentos situados externamente é reconstruída e começa a ocorrer internamente. Nesse mesmo movimento, um processo interpessoal é transformado num processo intrapessoal e essa transformação é resultado de uma série de eventos dentre os quais assume caráter imprescindível a mediação a respeito da qual já discutimos. (VYGOTSKY, 1988) Da forma como está estruturada, a proposta da SEED-PR parece desconsiderar esse fato e espera que os conceitos contidos nos textos sejam automaticamente internalizados pela mera decodificação do conteúdo textual. Outro elemento que merece destaque nesta reflexão é a produção solicitada ao professor no final do processo de capacitação, como exigência para certificação, sem a qual este profissional não teria assegurado seu avanço na carreira. Em 2005, essa produção consistia em um relato a respeito das leituras e discussões ocorridas ao longo do ano. Já em 2006, passou a exigir de cada grupo a produção de dois Folhas, que consistem em uma seqüência didática destinada ao uso pelos alunos do Ensino Médio nas práticas se sala de aula em cada uma das disciplinas curriculares2. Esse projeto é parte de um trabalho mais amplo na produção do livro didático público do Ensino Médio. Percebemos na prática uma manifestação daquilo que, em Lingüística Aplicada, costuma-se chamar de escrita como conseqüência, ou seja, a escrita solicitada ao final de uma série de atividades prévias... (SERCUNDES) Esse caráter é acentuado pelo fato de que a produção de Folhas não foi contemplada no total da carga horária para certificação, ou seja, não era considerada parte da capacitação, funcionando apenas como uma forma de prestação de contas a respeito do que se fez ao longo de seis sábados. A produção de Folhas poderia ser considerada pela SEED-PR como um sinal do desenvolvimento do profissional participante. Porém, como temos insistido, outras condições, como a necessidade de mediação, não foram cumpridas para que o amadurecimento teórico metodológico se concretizasse. Isso pode resultar em trabalhos que refletem muito mais a experiência empírica do profissional do que os conceitos e posturas que se queriam internalizados. Ao associar o papel da mediação à teoria bakhtiniana, consideramos necessária a reflexão sobre o processo de interlocução instaurado em qualquer situação social de interação verbal. Conforme postula Bakhtin (2003, p. ) “um traço essencial (constitutivo) do enunciado é o seu direcionamento a alguém, o seu endereçamento”. Nessa perspectiva, podemos considerar a existência de três possíveis instâncias interlocutivas, conforme propõem alguns pesquisadores da Lingüística Aplicada: o interlocutor real, o interlocutor virtual e o interlocutor institucional. No caso da produção escrita de que estamos falando, podemos considerar como interlocutor real o conjunto de professores validadores, colegas, da mesma disciplina que o autor, ou de outras áreas com as quais o texto dialoga e de cuja apreciação dependem a publicação do texto e a certificação do autor. O aluno, por sua vez, assume o papel de interlocutor virtual, aquele a quem indiretamente se dirige o texto do professor, marca clássica do artificialismo presente nas práticas escolares. Tem-se, ainda, o interlocutor social prefigurado pela própria SEED-PR, instância organizadora da referida modalidade de formação continuada, ou seja, aquela a quem os locutores estão prestando contas. Nesse processo interlocutivo, há que se considerar o caráter de responsividade que lhe é constitutivo. Assim, espera-se de cada um dos elementos desse rol de interlocutores, uma atitude responsiva. A esse respeito Bakhtin (2003, p. ) afirma que “Toda compreensão da fala viva, de enunciado vivo é de natureza ativamente responsiva”. 2 Outras informações poderão ser obtidas em <http://www.folhas.pr.gov.br>. Disso podemos depreender que só poderá haver atitude responsiva por parte do interlocutor real, ou seja, o validador, pois somente a ele compete compreender e avaliar o Folhas enquanto enunciado. Porém, se temos consciência, à luz das teorias já mencionadas, de que o colega de trabalho pode não ser o mediador adequado para a internalização de certos conceitos e posturas, nossa perplexidade aumenta quando percebemos que a esses mesmos colegas é delegado o poder de decisão em relação ao enunciado didático produzido pelo outro, pois ele compartilha desse mesmo processo, além de estar sujeito às armadilhas do corporativismo. Todavia, cumpre-nos destacar que o material produzido em 2006, ainda não teve seu processo de validação concluído tornando incerta a efetivação da resposta, podendo até provocar o desinteresse por esta devolutiva. Por parte do aluno, interlocutor virtual, não há como assegurar uma resposta, porque a publicação do Folhas na internet não está assegurada até que se conclua o processo de validação. E, mesmo depois dessa publicação, é ainda necessário que outro profissional adentre à cadeia interlocutiva, imprima o material e leve-o para a sala de aula. Nesse processo, a SEED-PR, interlocutor institucional, exerce sua atitude responsiva a partir da perspectiva que lhe é inerente, fiscalizando, conferindo freqüência, protocolos de entrega das tarefas e emitindo certificados, finalizando o ciclo. Voltando ao processo ocorrido em 2005 cumpre-nos ressaltar a existência de um maior nível de comprometimento das relações interlocutivas, uma vez que o relato produzido foi encaminhado diretamente à Secretaria, que determinou a expedição dos certificados, sem, no entanto, endereçar qualquer resposta aos professores participantes. Por fim, em se tratando do aspecto próprio da formação de professor de língua portuguesa, percebemos ainda uma inversão na organização dos estudos sobre a língua e seu ensino em relação a ordem preconizada por Bakhtin, quer dizer, a proposta toma como ponto de partida da formação continuada o estudo descontextualizado de textos que envolvem alto grau de abstração e para os quais não se disponibiliza o mediador necessário, esperando, com isso, atingir e transformar a complexidade das práticas sociais desenvolvidas em sala de aula e ainda que isso reflita na organização da sociedade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Ao longo deste trabalho procuramos refletir a respeito da proposta de formação continuada dos professores da rede pública estadual do Paraná sob a modalidade de grupos de estudo. Nossa reflexão mostrou que essa proposta encontra-se já em processo de consolidação em todo o Estado, instaurando a construção de uma nova cultura de capacitação entre os profissionais daquele sistema de ensino, possibilitando-lhes o acesso a uma grande diversidade de materiais teóricos que poderiam vir a subsidiar a sua prática docente de forma diferenciada. Ao mesmo tempo, fomos levados a constatar a existência de uma série de lacunas de variados graus de complexidade que tem comprometido e, em certos casos, impedido o desenvolvimento de novos conceitos e de novas posturas por parte desses mesmos professores. Conscientes de que todo processo educacional referente ao ensino de língua materna envolve necessariamente o planejar, rever, avaliar e replanejar, esperamos que estas nossas considerações possam ser úteis para o repensar dessa modalidade que, se bem encaminhada, poderá favorecer de forma bastante significativa o inalienável direito dos professores ao processo de formação continuada, atendendo assim àquilo que o próprio Estado do Paraná coloca como uma de suas prioridades na área da educação. Somente assim, a formação continuada, objeto de desejo e de luta de várias gerações de educadores, deixará de se configurar como uma armadilha em favor da alienação dessa mesma classe. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo, Hucitec, 2003 __________ Marxismo e Filosofia da Linguagem. 6. ed. São Paulo, Hucitec, 1992 FACCI, Marilda Gonçalves Dias. Valorização do esvaziamento do trabalho do Professor? 1. ed. Maringá, Autores Associados, 2004 PARANÁ. SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO. Plano Estadual de Educação: PEE Paraná uma construção coletiva. Curitiba: 2005. SERCUNDES, Maria Madalena Iwamoto. Ensinando a escrever. In GERALDI, João Wanderlei. Aprender e Ensinar com Textos de Alunos. V.1 São Paulo: Cortez, 1997 VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente. 2. ed. São Paulo, Martins Fontes, 1988 Resumo apresentado no ato de inscrição no evento OS PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA DO PARANÁ E OS GRUPOS DE ESTUDO AOS SÁBADOS: AS ARMADILHAS DA FORMAÇÃO CONTINUADA. Ivanize Ribeiro de Souza, Universidade Estadual de Maringá. O trabalho discute a proposta de formação continuada dos professores de Língua Portuguesa do Ensino Médio da rede pública estadual do Paraná a partir da modalidade de grupos de estudos voluntários aos sábados. Partindo das concepções sociointeracionistas e da pedagogia histórico-crítica e de suas relações com a concepção enunciativa da linguagem, procura-se discutir os pressupostos teóricos e metodológicos que nortearam essa modalidade de formação de professores, nos anos de 2005 e 2006, a fim de verificar as reais contribuições que esse processo pode oferecer aos professores no que tange ao exercício de sua prática profissional, principalmente em relação à melhoria qualitativa do ensino de língua materna nas escolas públicas. (Palavras-Chave: formação continuada, professores, língua portuguesa, ensino médio, Paraná)