Ivanize Ribeiro de Souza
Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Estadual de Maringá
OS PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA DO PARANÁ E OS
GRUPOS DE ESTUDO AOS SÁBADOS:
AS ARMADILHAS DA FORMAÇÃO CONTINUADA
1 INTRODUÇÃO
Numa sociedade em constantes transformações, diferentes funções colocamse para serem assumidas pelos professores que, muitas vezes, têm sua existência
profissional marcada por sentimentos de culpa pelos reflexos dos embates
provocados por essas mudanças na sociedade e que adentram o espaço escolar,
tais como: o desencontro entre currículos propostos e práticas realizadas, fracasso
escolar, problemas de indisciplina e mesmo de violência na escola.
Diante dessa problemática, discursos oficiais apontam, a todo instante, para a
necessidade de resgatar a valorização da escola, que deve ser pública e precisa
garantir o acesso, a permanência e a aprendizagem de todos os seus alunos no
processo de escolarização.
Para melhor compreensão do papel do professor nesse embaraçoso
movimento social e pedagógico podemos observar as interferências das decisões
pedagógicas na constituição da subjetividade desse profissional.
Segundo Gonçalves (1996), nos cursos de qualificação de docentes, há
pouco espaço para discussões que envolvam a relação entre a subjetividade desses
sujeitos e a sua prática pedagógica. Ora se estuda o profissional sem levar em conta
a influência de seu contexto de vida com sua atuação prática, ora, situa o professor
como pessoa sem considerar o contexto de sua profissão.
A esse profissional restam ainda as oportunidades de formação continuada
oferecidas pelos diversos sistemas de ensino. Nosso objetivo é discutir uma dessas
propostas desenvolvida junto aos professores da rede pública estadual do Paraná
sob a modalidade de grupos de estudos voluntários aos sábados. Almejamos refletir
sobre as lacunas geradas pelo aparato estatal que acabam por transformar as
iniciativas antes desejadas pelo coletivo da classe docente em meros instrumentos
burocráticos e quantitativos.
Para tanto, julgamos inicialmente necessário discutir o papel do professor de
língua portuguesa enquanto mediador do processo ensino-aprendizagem de língua
materna a partir de uma perspectiva sociointeracionista. À luz dessas teorias,
pretendemos, então lançar um olhar crítico sobre o processo de formação
continuada supramencionado.
2 O Professor de língua materna e seu objeto de ensino
Para apresentar a posição teórica sobre o que se pretende considerar como
definição de língua assumida neste trabalho, recorremos a Bakhtin/Volochinov
(1992, p. 127) que, questionando as concepções de língua postas em seu tempo, o
“subjetivismo individualista” e o “objetivismo abstrato”, formula um olhar próprio
sobre esse fenômeno a partir de cinco proposições:
1 – A língua como sistema estável de formas normativamente idênticas é
apenas uma abstração científica que só pode servir a certos fins teóricos e
práticos particulares. Essa abstração dá conta de maneira adequada da
realidade concreta da língua.
2 – A língua constitui um processo de evolução ininterrupto, que se realiza
através da interação verbal social dos locutores.
3 – As leis da evolução lingüística não são de maneira alguma as leis da
psicologia individual, mas também não podem ser divorciadas da atividade
dos falantes. As leis da evolução lingüística são essencialmente leis
sociológicas.
4 – A criatividade da língua não coincide com a criatividade artística nem
com qualquer outra forma de criatividade ideológica específica. Mas, ao
mesmo tempo, a criatividade da língua não pode ser compreendida
independentemente dos conteúdos e valores ideológicos que a ela se
ligam. A evolução da língua, como toda evolução histórica, pode ser
percebida como uma necessidade cega de tipo mecanicista, mas também
pode tornar-se “uma necessidade de funcionamento livre”, uma vez que
alcançou a posição de uma necessidade consciente e desejada.
5 – A estrutura da enunciação é uma estrutura puramente social. A
enunciação como tal só se torna efetiva entre falantes. O ato de fala
individual (no sentido estrito do termo “individual”), é um paradoxo.
Disso depreendemos que a língua é um sistema estático enquanto abstração
científica, porém, as diversas práticas sociais decorrente de seu uso é que a torna
um organismo vivo, dinamizado nas relações sociais concretas e não individual.
Esse caráter de dinamicidade da língua pressupõe uma atitude de
criatividade. Porém, isso não pode ser compreendido como algo espontâneo, próprio
dos falantes. É marcado por uma “necessidade de funcionamento livre”
Bakhtin/Volochinov (1992) por meio de enunciações que só se efetivam entre
falantes, nos diversos campos da atividade humana por força das relações sociais
entre eles estabelecidas.
Nesta perspectiva, o mesmo autor propõe uma ordem metodológica para o
estudo da língua enquanto viva e historicamente em evolução:
1 – As formas e os tipos de interação verbal em ligação com as condições
concretas em que se realiza;
2 – As formas das distintas enunciações, dos atos de fala isolados, em
ligação estreita com a interação de que constitui os elementos, isto é, as
categorias de atos de fala na vida e na criação ideológica que se prestam a
uma determinação pela interação verbal;
3 – A partir daí, exame das formas da língua na sua interpretação
lingüística habitual.
Esta ordem metodológica estabelecida nos conduz à conclusão de que o
processo de evolução da língua é desencadeado pela evolução das relações
sociais.
Isto é, os seres humanos, organizados em sociedade, vão modificando,
substituindo e inovando as suas relações intersubjetivas. Tais relações acabam por
reconfigurar o uso que esses sujeitos fazem da língua, propiciando o surgimento de
novas formas e deslocando alguns outros. Tais movimentos serão, somente a
posteriori, objeto das abstrações científicas.
Mas, dada a dinamicidade dos usos da língua na sociedade, como situar a
atuação do professor, profissional encarregado do ensino da língua materna nas
instituições escolares?
Para delinearmos o papel do professor de língua materna, fundamentados na
idéia de que a linguagem é instrumento para o desenvolvimento de estruturas
psicológicas superiores, utilizamo-nos das contribuições das teorias vygotskyanas
em seus estudos sobre a formação dos Processos Psicológicos Superiores e a
formação dos conceitos científicos, especificamente quando o teórico valoriza a
intervenção do adulto mais experiente.
Apresentamos brevemente as características principais da origem desses
PPS na teoria de Vygotsky:
- a natureza dos PPS se dá pela internalização das formas culturais de
conduta que implica a reconstrução da atividade sobre a base das
operações com signos;
- os PPS se originam na vida social na participação do sujeito em atividades
compartilhadas com outros;
- o processo de desenvolvimento dos PPS é complexo porque inclui
mudanças na estrutura e função dos processos que se transformam
intrinsecamente em PPS, implica mudança na estrutura e função dos
processos que se transformam. Não é natural;
- o desenvolvimento dos PPS se dá por um processo culturalmente
organizado. Esta organização se refere à ação educativa em sentido geral,
pode ser reconhecido nos processos de educação familiar, mas parece
possuir uma especificidade crucial no ensino escolar.
Ao considerarmos estas características, podemos inferir que o professor tem
uma grande contribuição no desenvolvimento dos PPS dos alunos, por isso
julgamos necessário definir alguns aspectos que precisam ser perseguidos no
processo de sua formação continuada.
A esse respeito, é imprescindível que este profissional saiba ou aprenda
como propor atividades que promovam o desenvolvimento dessas funções. Além
disso, precisa saber profundamente do conhecimento a ser ensinado e aprendido
pelos alunos; necessita, ainda, ter conhecimento das teorias pedagógicas e dos
avanços das várias ciências.
Portanto, ao professor não poder ser negado o direito a esses conhecimentos
imprescindíveis para a sua atuação docente culminando na garantia do direito do
aluno à aprendizagem.
3 Caracterização da proposta de formação continuada do Estado do Paraná
A Secretaria de Estado da Educação do Paraná (doravante, SEED-PR)
propõe, como uma de suas políticas públicas atuais, projetos de formação
continuada para os professores da rede pública estadual, anunciando esta ação
como resposta a seu compromisso para com a valorização desse profissional,
assegurada pela qualificação de sua prática social no espaço educativo.
Diante da luta secular pela democratização da escola pública, pelo ensino de
qualidade e pela educação pública, gratuita e universal o Estado do Paraná
vislumbra a possibilidade de instaurar um processo de formação continuada que
acrescente e supere a formação inicial (a qual precisa ser constantemente revista)
para dar conta da ação escolar que, enquanto prática social, é formada por sujeitos
que estão em constante movimento de transformação e atualizações mediante a
dinamicidade das relações sociais. Essa perspectiva é assumida pelo Plano
Estadual de Educação, ainda em processo de elaboração, que elenca como uma de
suas prioridades:
Valorização da totalidade dos profissionais da educação mediante a
garantia de ingresso por concurso público, o plano de carreira, o
estabelecimento de piso salarial profissional e a oferta de oportunidades
de formação continuada [grifo nosso]. (PARANÁ, 2005, p. 4)
Em consonância com o Plano Estadual de Educação, a proposta de formação
continuada da SEED-PR, contempla as seguintes modalidades de capacitação
docente: reuniões técnicas; cursos de atualização – de 16 a 39 horas/aula; cursos
de proficiência – de 40 a 120 horas/aula; programas de acompanhamento da prática
docente – de 120 a 180 horas/aula; grupos de estudos; cursos de pós graduação;
cursos de aperfeiçoamento – acima de 180 horas/aula; cursos de
especialização – acima de 360 horas/aula
Tomamos como objeto de estudo neste trabalho a modalidade “grupos de
estudos” por ser a que se aproxima de maior número de professores da rede
estadual. Esta modalidade tem como objetivo “favorecer o processo de
implementação das Diretrizes Curriculares Estaduais (documento em processo de
elaboração), aprofundar as concepções de ensino das diferentes disciplinas
curriculares, provocar discussões e oferecer a reflexão sobre a prática
pedagógica”.(Instrução 001/2005 e 006/2006/SEED-PR).
Neste processo, são organizados e distribuídos às escolas, através dos
Núcleos Regionais de Educação, artigos, capítulos de livros e outros materiais
teóricos para todas as disciplinas e modalidades de educação que a rede estadual
oferece e que são a base de estudo desses grupos, bem como, em alguns casos,
um roteiro – guia – para a leitura destes materiais.
Estes grupos de estudos são realizados aos sábados, organizados em seis
encontros de quatro horas cada, totalizando vinte e quatro horas de formação. O
número de participantes para composição de cada grupo deve ser de, no mínimo
três e, no máximo, quinze participantes. É organizado por um coordenador,
escolhido pelo próprio grupo, que se responsabiliza pela dinâmica de trabalho,
definição de papéis e divisão das tarefas entre os participantes.
Os professores da rede estadual aderem ao programa por opção, ou seja, a
formação não tem caráter de obrigatoriedade, apesar de estar atrelada a pontuação
para avanço no plano de cargos e salários, por meio de certificação que é garantida
pela comprovação de 100% de freqüência, envolvimento e registro das experiências
significativas para socialização com o grupo.
No caso do Ensino Médio, o material para estudo e discussão era
encaminhado pela SEED-PR aos Núcleos Regionais de Educação e
estabelecimentos de ensino em um CD-ROM. Assim, a impressão dos textos ficava
a cargo de cada escola ou de cada professor.
Em 2005, foram enviados para estudo os seguintes textos, sendo que a
ordem de discussão ficava a critério dos participantes de cada grupo:
AUTOR
BAKHTIN, Mikhil
FARACO, Carlos Alberto
CASTRO, Gilberto de
PIVOVAR, Altair
DELEUZE, Jullio
KOCH, Ingedore Villaça
TEXTO
Estética da Criação Verbal
- Os Gêneros dos Discursos
Educar em Revista (UFPR) Por uma Teoria Lingüística que
Fundamente o Ensino de Língua Materna
Leitura e Escrita: A Captura de um Objeto de Estudo
Deslocamento 3 – Rizoma e Educação
O Texto e a Construção dos Sentidos
Já em 2006, o conjunto de textos, cuja ordem de discussão novamente ficou
a critério dos professores participantes, era o seguinte:
AUTOR
FARACO, Carlos Alberto
CASTRO, Gilberto de
MARCUSHI, Luiz Antonio
BARTHES, Roland
ZILBERMAN, Regina
CARVALHO,
Marlene
SILVIA, Mauricio da
FARACO, Carlos Alberto
PERINI, Mario A.
TEXTO
Questões de Política de Língua no Brasil: Problemas e Implicações
Aula de Português: Ensino de uma Língua Estrangeira para
Brasileiros
Da fala para a escrita: Atividades de Retextualização
O Rumor da língua
Leitura em crise na escola: As alternativas do professor
Como ensinar a ler a quem já sabe ler
O dialogismo como chave de uma antropologia folosófica
Sofrendo a gramática – ensaios sobre a linguagem
4 Um olhar sobre os grupos de estudo: reflexões e novos questionamentos
É discurso corrente entre os educadores e a Secretaria de Estado da
Educação do Paraná o desejo pela implementação de grupos de estudos destinados
a discussão de teorias e troca de saberes e experiências pedagógicas.
A reflexão aqui apresentada não tem por meta desmerecer a iniciativa dessa
Secretaria, mas mostrar alguns elementos cuja reconsideração entendemos ser
necessária a fim de prover o processo de implementação das condições favoráveis
imprescindíveis para garantir o seu maior intento, que é desenvolver, entre os
educadores, as aprendizagens necessárias para o seu fazer pedagógico.
O primeiro elemento a ser considerado, refere-se à adesão, pelos
professores, à proposta de Grupos de Estudos, no que se refere ao seu caráter
voluntário. Dadas as condições econômicas da classe e sua sobrecarga de trabalho
que ultrapassa os muros escolares, adentrando-se também em sua vida cotidiana, a
descentralização dos grupos de estudos pode ser considerado um elemento
facilitador das condições de acesso dos professores. Porém, como toda proposta de
caráter voluntário, implicou na adesão por grupos heterogêneos, formados por
diferentes níveis de interesse e comprometimento. Assim, os estudos acabaram
fortalecendo os que já estão engajados no processo de aprendizagem, porém, ao
final, todos foram avaliados da mesma forma e receberam os mesmos benefícios
institucionais, ou seja, certificação e progressão em sua carreira profissional.
Outro ponto que descaracteriza o aspecto voluntário da proposta está
presente no que tange à subjetividade do professor que não se coloca na posição de
quem opta livremente, mas de quem se vê obrigado, por necessidades materiais, a
abrir mão de seu dia de descanso. Este fato abre espaço para interpretação da
proposta como a mascaração do grupo de estudo voluntário.
Um outro elemento que queremos considerar em nossas reflexões e que
gerou desconforto entre os profissionais foi o fato desta formação acontecer,
obrigatoriamente, aos sábados. Diante das constantes reclamações por parte dos
professores sobre esse calendário, estes acabavam sempre recebendo como
resposta que a determinação da SEED embasava-se na necessidade de se garantir
aos alunos seu direito assegurado por Lei, ou seja, os duzentos dias letivos e que,
ao professor, estava sendo oferecida uma oportunidade, mas que não seria
obrigatória sua adesão, ele poderia fazer sua opção1.
Refletindo sobre a problemática posta pela determinação de se realizar os
grupos de estudos aos sábados, nas atuais conjunturas, visualizamos duas
possibilidades para uma readequação do formato dos grupos de estudo. Uma delas
seria oferecer liberdade para os grupos se organizarem de acordo com a
disponibilidade de seus membros. Outra, seria reorganizar em toda a rede estadual,
o tempo destinado à hora/atividade dos professores, direcionando e determinando
que os estudos aconteçam por disciplinas, favorecendo o espaço para os grupos de
estudos. Sendo assim, o professor seria contemplado em sua jornada de trabalho,
1
Informação obtida por meio de nossa convivência com os professores participantes.
dando ao grupo de estudo caráter de maior flexibilidade, aproximando-se do que se
possa considerar como “voluntário”, porém ainda permeado por um aspecto de
autoritarismo.
Mais um elemento que queremos contemplar nesta reflexão se refere à
ausência de mediação docente no processo de estudo dos materiais teóricos
enviados aos grupos pela SEED-PR. Para essa reflexão, utilizamos-nos aqui das
contribuições de Vygotsky que afirma que “a ajuda do outro mais experiente leva o
aprendiz a resolver questões mais complexas do que consegue resolver sozinho.”
Assim, estabeleceu a Zona de Desenvolvimento Real como a margem de atuação
em que o aprendiz, sozinho, obtém sucesso e a Zona de Desenvolvimento Proximal
como a margem de atuação em que, com a ajuda de um par mais desenvolvido, o
aprendiz pode atuar em limites mais amplos que os da Zona de Desenvolvimento
Real.
Reconhecemos a riqueza dos diversos saberes que circulam entre os
professores da rede pública paranaense. Porém, retornando ao conjunto de textos
encaminhados pela SEED nos anos de 2005 e 2006, percebemos a necessidade de
um mediador altamente especializado visto que, em função de suas condições de
trabalho e de sua formação inicial, a imensa maioria desses professores não
conseguiria, por si só, dar conta da profunda complexidade dos conceitos neles
contemplados. Condição sine qua nom para a transposição didática dessas teorias.
O colega de trabalho seria um excelente mediador quando se refere a troca
de experiência. Porém quando se trata de aprofundamento teórico metodológico,
parece que esse ideal se torna bastante difícil de ser atingindo entre pares iguais,
não ultrapassando discussões fervorosas sobre o senso comum. A esse respeito,
concordamos com a proposição de Facci ( ):
Na formação do professor, portanto além do conhecimento de suas
experiências pessoais e profissionais, dos saberes práticos, tem que haver
uma ruptura com a forma de pensamento e a ação próprios do
conhecimento cotidiano. A humanização do aluno e do professor está
limitada por relações e formas de ação presentes na prática educativa, que
refletem a influência de relações mais amplas, presentes na prática social.
Ainda na perspectiva vygotskyana, a internalização de conceitos e
procedimentos situados externamente é reconstruída e começa a ocorrer
internamente. Nesse mesmo movimento, um processo interpessoal é transformado
num processo intrapessoal e essa transformação é resultado de uma série de
eventos dentre os quais assume caráter imprescindível a mediação a respeito da
qual já discutimos. (VYGOTSKY, 1988)
Da forma como está estruturada, a proposta da SEED-PR parece
desconsiderar esse fato e espera que os conceitos contidos nos textos sejam
automaticamente internalizados pela mera decodificação do conteúdo textual.
Outro elemento que merece destaque nesta reflexão é a produção solicitada
ao professor no final do processo de capacitação, como exigência para certificação,
sem a qual este profissional não teria assegurado seu avanço na carreira.
Em 2005, essa produção consistia em um relato a respeito das leituras e
discussões ocorridas ao longo do ano. Já em 2006, passou a exigir de cada grupo a
produção de dois Folhas, que consistem em uma seqüência didática destinada ao
uso pelos alunos do Ensino Médio nas práticas se sala de aula em cada uma das
disciplinas curriculares2. Esse projeto é parte de um trabalho mais amplo na
produção do livro didático público do Ensino Médio.
Percebemos na prática uma manifestação daquilo que, em Lingüística
Aplicada, costuma-se chamar de escrita como conseqüência, ou seja, a escrita
solicitada ao final de uma série de atividades prévias... (SERCUNDES)
Esse caráter é acentuado pelo fato de que a produção de Folhas não foi
contemplada no total da carga horária para certificação, ou seja, não era
considerada parte da capacitação, funcionando apenas como uma forma de
prestação de contas a respeito do que se fez ao longo de seis sábados.
A produção de Folhas poderia ser considerada pela SEED-PR como um sinal
do desenvolvimento do profissional participante. Porém, como temos insistido,
outras condições, como a necessidade de mediação, não foram cumpridas para que
o amadurecimento teórico metodológico se concretizasse. Isso pode resultar em
trabalhos que refletem muito mais a experiência empírica do profissional do que os
conceitos e posturas que se queriam internalizados.
Ao associar o papel da mediação à teoria bakhtiniana, consideramos
necessária a reflexão sobre o processo de interlocução instaurado em qualquer
situação social de interação verbal. Conforme postula Bakhtin (2003, p. ) “um traço
essencial (constitutivo) do enunciado é o seu direcionamento a alguém, o seu
endereçamento”.
Nessa perspectiva, podemos considerar a existência de três possíveis
instâncias interlocutivas, conforme propõem alguns pesquisadores da Lingüística
Aplicada: o interlocutor real, o interlocutor virtual e o interlocutor institucional.
No caso da produção escrita de que estamos falando, podemos considerar
como interlocutor real o conjunto de professores validadores, colegas, da mesma
disciplina que o autor, ou de outras áreas com as quais o texto dialoga e de cuja
apreciação dependem a publicação do texto e a certificação do autor. O aluno, por
sua vez, assume o papel de interlocutor virtual, aquele a quem indiretamente se
dirige o texto do professor, marca clássica do artificialismo presente nas práticas
escolares. Tem-se, ainda, o interlocutor social prefigurado pela própria SEED-PR,
instância organizadora da referida modalidade de formação continuada, ou seja,
aquela a quem os locutores estão prestando contas.
Nesse processo interlocutivo, há que se considerar o caráter de
responsividade que lhe é constitutivo. Assim, espera-se de cada um dos elementos
desse rol de interlocutores, uma atitude responsiva. A esse respeito Bakhtin (2003,
p. ) afirma que “Toda compreensão da fala viva, de enunciado vivo é de natureza
ativamente responsiva”.
2
Outras informações poderão ser obtidas em <http://www.folhas.pr.gov.br>.
Disso podemos depreender que só poderá haver atitude responsiva por parte
do interlocutor real, ou seja, o validador, pois somente a ele compete compreender e
avaliar o Folhas enquanto enunciado. Porém, se temos consciência, à luz das
teorias já mencionadas, de que o colega de trabalho pode não ser o mediador
adequado para a internalização de certos conceitos e posturas, nossa perplexidade
aumenta quando percebemos que a esses mesmos colegas é delegado o poder de
decisão em relação ao enunciado didático produzido pelo outro, pois ele compartilha
desse mesmo processo, além de estar sujeito às armadilhas do corporativismo.
Todavia, cumpre-nos destacar que o material produzido em 2006, ainda não teve
seu processo de validação concluído tornando incerta a efetivação da resposta,
podendo até provocar o desinteresse por esta devolutiva.
Por parte do aluno, interlocutor virtual, não há como assegurar uma resposta,
porque a publicação do Folhas na internet não está assegurada até que se conclua
o processo de validação. E, mesmo depois dessa publicação, é ainda necessário
que outro profissional adentre à cadeia interlocutiva, imprima o material e leve-o
para a sala de aula.
Nesse processo, a SEED-PR, interlocutor institucional, exerce sua atitude
responsiva a partir da perspectiva que lhe é inerente, fiscalizando, conferindo
freqüência, protocolos de entrega das tarefas e emitindo certificados, finalizando o
ciclo.
Voltando ao processo ocorrido em 2005 cumpre-nos ressaltar a existência de
um maior nível de comprometimento das relações interlocutivas, uma vez que o
relato produzido foi encaminhado diretamente à Secretaria, que determinou a
expedição dos certificados, sem, no entanto, endereçar qualquer resposta aos
professores participantes.
Por fim, em se tratando do aspecto próprio da formação de professor de
língua portuguesa, percebemos ainda uma inversão na organização dos estudos
sobre a língua e seu ensino em relação a ordem preconizada por Bakhtin, quer
dizer, a proposta toma como ponto de partida da formação continuada o estudo
descontextualizado de textos que envolvem alto grau de abstração e para os quais
não se disponibiliza o mediador necessário, esperando, com isso, atingir e
transformar a complexidade das práticas sociais desenvolvidas em sala de aula e
ainda que isso reflita na organização da sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho procuramos refletir a respeito da proposta de
formação continuada dos professores da rede pública estadual do Paraná sob a
modalidade de grupos de estudo.
Nossa reflexão mostrou que essa proposta encontra-se já em processo de
consolidação em todo o Estado, instaurando a construção de uma nova cultura de
capacitação entre os profissionais daquele sistema de ensino, possibilitando-lhes o
acesso a uma grande diversidade de materiais teóricos que poderiam vir a subsidiar
a sua prática docente de forma diferenciada.
Ao mesmo tempo, fomos levados a constatar a existência de uma série de
lacunas de variados graus de complexidade que tem comprometido e, em certos
casos, impedido o desenvolvimento de novos conceitos e de novas posturas por
parte desses mesmos professores.
Conscientes de que todo processo educacional referente ao ensino de língua
materna envolve necessariamente o planejar, rever, avaliar e replanejar, esperamos
que estas nossas considerações possam ser úteis para o repensar dessa
modalidade que, se bem encaminhada, poderá favorecer de forma bastante
significativa o inalienável direito dos professores ao processo de formação
continuada, atendendo assim àquilo que o próprio Estado do Paraná coloca como
uma de suas prioridades na área da educação.
Somente assim, a formação continuada, objeto de desejo e de luta de várias
gerações de educadores, deixará de se configurar como uma armadilha em favor da
alienação dessa mesma classe.
REFERÊNCIAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo, Hucitec, 2003
__________ Marxismo e Filosofia da Linguagem. 6. ed. São Paulo, Hucitec, 1992
FACCI, Marilda Gonçalves Dias. Valorização do esvaziamento do trabalho do
Professor? 1. ed. Maringá, Autores Associados, 2004
PARANÁ. SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO. Plano Estadual de
Educação: PEE Paraná uma construção coletiva. Curitiba: 2005.
SERCUNDES, Maria Madalena Iwamoto. Ensinando a escrever. In GERALDI, João
Wanderlei. Aprender e Ensinar com Textos de Alunos. V.1 São Paulo: Cortez,
1997
VYGOTSKY, Lev Semenovich. A formação social da mente. 2. ed. São Paulo,
Martins Fontes, 1988
Resumo apresentado no ato de inscrição no evento
OS PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA DO PARANÁ E OS GRUPOS DE
ESTUDO AOS SÁBADOS: AS ARMADILHAS DA FORMAÇÃO CONTINUADA.
Ivanize
Ribeiro
de
Souza,
Universidade
Estadual
de
Maringá.
O trabalho discute a proposta de formação continuada dos professores de Língua
Portuguesa do Ensino Médio da rede pública estadual do Paraná a partir da
modalidade de grupos de estudos voluntários aos sábados. Partindo das
concepções sociointeracionistas e da pedagogia histórico-crítica e de suas relações
com a concepção enunciativa da linguagem, procura-se discutir os pressupostos
teóricos e metodológicos que nortearam essa modalidade de formação de
professores, nos anos de 2005 e 2006, a fim de verificar as reais contribuições que
esse processo pode oferecer aos professores no que tange ao exercício de sua
prática profissional, principalmente em relação à melhoria qualitativa do ensino de
língua materna nas escolas públicas.
(Palavras-Chave: formação continuada, professores, língua portuguesa,
ensino médio, Paraná)
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