Resumo
A propósito de um caso clínico de uma criança de 5 anos com Hemofilia A, submetida a cirurgia electiva de
orquidopexia, apresentamos uma breve revisão teórica acerca desta doença e consequentes implicações com a
anestesia, nomeadamente, a preparação pré-anestésica, a técnica anestésica e os cuidados pós-operatórios.
PALAVRAS - CHAVE - Hemofilia A; Anestesia.
Introdução
A Hemofilia A é uma doença hereditária recessiva, ligada ao cromossoma X. Caracteriza-se pelo défice de factor
VIII. Representa 80% dos transtornos hemorrágicos de tipo hereditário (1/100000 recém-nascidos) e 85% dos
síndromas hemofílicos.
As manifestações clínicas dependem do grau de défice de globulina antihemofílica. A Hemofilia A classifica-se em
benigna, moderada e grave.(Quadro 1)
O diagnóstico é baseado nas provas de coagulação, sobretudo provas que avaliam a via intrínseca (tempo de
coagulação e tempo de tromboplastina parcial activada, aPTT). O diagnóstico de certeza baseia-se no doseamento
do factor VIII.
O tratamento compreende:
•
Orientação genética;
•
Medidas de tipo profiláctico;
•
Cuidados nas crises hemorrágicas agudas – Administração de plasma fresco congelado (PFC), crioprecipitado
(1 ud/10 kg), concentrado de factor VIII;
•
Tratamento das complicações;
•
Tratamentos alternativos: ácido épsilon amino-capróico (50-100 mg/kg/ 6 h); ácido tranexâmico (10-20 mg/kg/
6 h); desmopressina (0,3 g/12 h).
ENDEREÇO:
Dra. Beatriz Santamaria
Serviço de Anestesiologia | Hospital de São Bernardo - S. A. 2910 Setúbal
[email protected]
Revista SPA ‘ nº 2 ‘ Maio 2005
Caso Clínico
Doente do sexo masculino, 5 anos de idade, com 17
Kg de peso, proposto para cirurgia electiva
(orquidopexia direita).
Antecedentes Pessoais: no período neonatal fez um
hematoma que não foi valorizado. Aos 2 meses de
idade fez uma escoriação ao nível da face com
dificuldade em controlar a hemorragia. Recorreu ao
Serviço de Urgência, apresentando valores aumentados
de aPTT (> 80 segundos), PT e tempo de hemorragia
totalmente normais. O doseamento de factor VIII (<
1,5%) determinou o diagnóstico de Hemofilia A.
Posteriormente sofre vários internamentos em
Pediatria (S.0.) por hemartrose no joelho (> 3
internamentos).
Antecedentes Familiares: pais saudáveis e irmã saudável.
Como se tratou de uma cirurgia programada, o doente
foi observado em Consulta de Anestesia, por forma
a planear, em colaboração com os Serviços de Pediatria,
Imunohemoterapia e Patologia Clinica, a sua preparação
pré-anestésica.
Por se tratar de uma hemofilia moderada (Factor VIII:
1 – 5%), houve necessidade de proceder à
administração de factor VIII no pré-operatório.
O cálculo para a reposição do factor VIII foi o seguinte:
40 ml x 17 kg x 1 = 680 unidades 12/12 h.
A administração do referido factor iniciou-se 2 dias
antes com reposição de 500 U, 8/8h. No dia anterior
à cirurgia passa a 1000 U, 8/8h., e no dia da cirurgia
fez 1000 U 1hora antes da intervenção. Em simultâneo,
foi realizado doseamento de Factor VIII (quadro 2).
Em relação à técnica anestésica, foi submetido a
anestesia geral balanceada.
A medicação pré-anestésica com midazolam (5 mg
rectal) e aplicação de EMLA tópica em ambas as
mãos permitiu uma redução significativa dos níveis
de ansiedade, optimizando toda a abordagem
anestésica, nomeadamente a cateterização venosa
periférica. Após cateterização de veia periférica no
dorso da mão esquerda, iniciou-se perfusão de soro
dextrosado a 80 ml/h.Administrou-se alfentanil (0,15mg
ev) e na indução utilizou-se Propofol (100 mg).
Procedeu-se à intubação orotraqueal com tubo orotraqueal 5,5 sem cuff. A manutenção foi realizada com
O2/ N2O, (FiO2 – 0,4) e Sevoflurano ( MAC –2).
Antes do estímulo cirúrgico, foi administrado
paracetamol, 250 mg, por via rectal. O intraoperatorio
decorreu sem intercorrências, tendo-se verificado
uma estabilidade hemodinâmica. As perdas sanguíneas
Tipo Factor VIII (%)
Grave
Clínica
<1
Hemorragias espontâneas desde
a 1ª infância
Hemartrose e outras hemorragias
espontâneas frequentes que
requerem tratamento
de substituição
Moderada
1-5
Hemorragias secundárias
a traumatismos ou cirurgias
Hemartroses espontâneas
esporádicas
Benigna
6 - 40
Hemorragias secundárias
a traumatismos ou cirurgias
Hemorragias espontâneas
pouco frequentes
Quadro 1 - Classificação Clínica da Hemofilia A
Valor Médio Resultado Tempo em relação à cirurgia Reposição FVIII
FVIII
99,9s
< 5%
48h antes
500 U 8/8h
FVIII
79,8s
13,3%
24h antes
1000 U 8/8h
FVIII
57,6s
102,3%
1h antes
+1000 U
Quadro 2 - Controlo Pré-Operatório do Factor VIII
Volume plasmático = 40ml/Kg
Se 100% de procoagulante, então 1 unidade de procoagulante para 1ml
de palsma.
Exemplo: num doente com 50 Kg
40ml x 50kg x 1unidade = 2000 U 12/12h
Quadro 3 - Cálculo das necessidades de FVIII
durante a cirurgia não foram significativas. O tempo
total de cirurgia foi de 90 minutos e o tempo de
anestesia foi de 120 minutos.
No pós-operatório fez um ligeiro hematoma escrotal
pouco significativo. Nas primeiras 48 horas manteve
a administração de factor VIII, 1000U de 8/8 h.
Teve alta no 3º dia de pós-operatório, sem
complicações, com indicação de reposição diária de
factor VIII 1000U durante 48 horas.
Discussão
O objectivo da preparação pré-operatória é estabelecer
uma concentração plasmática de factor VIII que garanta
a hemostase no período perioperatório. 0 cálculo das
necessidades do factor VIII baseia-se no cálculo da
percentagem de procoagulante em relação ao volume
de plasma (quadro 3), sabendo que o ideal é aumentar
o factor até 100% (prévio à cirurgia) e manter 50%
nos 10 a 14 dias posteriores. Um nível plasmático
superior a 30% é considerado adequado para a
hemostase após cirurgia major.
Em relação à técnica anestésica, a anestesia geral deve
ser preferida, já que existe risco acrescido de
hemorragia nas técnicas loco-regionais. A medicação,
nomeadamente a medicação pré-anestésica não deve
ser administrada por via intramuscular.
A intubação oro-traqueal deve ser suave, de modo a
evitar traumatismos da cavidade oral e pensar sempre
na alternativa da máscara laringea.. Devemos, na medida
do possível, evitar as intubações naso-traqueais.
A selecção de fármacos anestésicos realiza-se
considerando que pode existir uma doença hepática
subjacente. No entanto, as interferências dos fármacos
anestésicos com a hemostase são mínimos.
Conclusão
A preparação perioperatória de um doente com
Hemofilia A constitui o aspecto fundamental na anestesia
destes doentes. Esta preparação requer uma abordagem
multidisciplinar, adequada à gravidade da doença assim
como ao tipo de cirurgia.
No caso clínico descrito, salientamos a importância
da preparação do doente no período pré-operatório,
com uma monitorização seriada do factor VIII, por
forma a optimizar a sua concentração aquando da
intervenção cirúrgica. A reposição de Factor VIII no
pós-operatório imediato permite uma concentração
de Factor VIII acima dos 50%, necessário para a
hemostase.
Bibliografia
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