sfL VIA HELENA BARBI CARDOSO (Univ. Federal de Uberlfuldia) ABSTRACT:The present article is an attempt to exceed the limits of the traditional conception of anaphoric reference. The anaphoric reference, as it is conceived here, is much more than a syntactic-semantic relation. It is a complex process of polyphonic composition or interdiscours. KEY WORDS: Referencia, Demonstrativos, Interdiscurso, Anafora, E:x6fora. Fugindo a tradir;llo de reservar 0 emprego anaf6rico aos tradicionais pronomes, tradir;ao que remonta a Apol5nio Discolo (seculo II d.C.) na Grecia, muitos autores tem acusado 0 funcionamento da anafora em outras partes do discurso. Alem disso, argumentam que 0 funcionamento anaf6rico e muito mais complexo do que 0 processo semfultico-sint!tico que possa ser atribuido a ele no interior de urn contexto lingilistico. Seriot (1985) estende 0 funcionamento anaf6rico aos sintagmas nominais, con forme os exemplos abaixo, em que se pressupoe a co-referencialidade dos itens destacados: (1)Guslalle Flaubert naquit a Rouen en 1821. naturalism ...(pag.150) (2)Aliocha tomba amoureux de Vera. Son amour fut un coup de foudre. (pag.148) e Uma caracterfstica da anafora nominal, segundo Seriot, que 0 funcionamento anaf6rico repousa sobre urna predicar;ao implfcita: sob a apar~ncia de urna simples reprise, de uma simples substituir;ao, a segunda menr;llo quase sempre urna predicar;ao, de modo que anaforizar;llo, que em principio urn fator de coerencia textual, mascara com efeito a adjunr;ao de uma informar;llo, que permite fazer 0 texto caminhar nurna nova direr;llo. Assim, em (1) a reprise anaf6rica repousa sobre a seguinte predicar;llo: "G. Flaubert e 0 pai do naturalismo". Tambem a anafora por nominalizar;ao, que tern por antecedente nllo urn nome, mas uma proposir;llo (exemplo (2)), pode aerescentar urna nova relar;ao predicativa, sobretudo quando a nominaliza~ao e feita por uma descrir;ao definida que nao corresponde lexicalmente a proposir;ao que ela retoma, como no exemplo abaixo: e e (3) Le Parti Communiste de [,Union Sovietique compte actuellement 12.471.000 membres et stagiaires, ce qui represente unaccroissement d' effectifs, pour la periode embrassee dans ce rapport, de 2.755.000 personnes. Une teUe evolution tbnoigne de la grande auto rite et de La confiance absolue dont Ie P arti jouit aupres du peuple sovietique. (pag .153) No entanto, mais do que defender a supera~llo da concep~llo substitutiva tradicional da anaforiz~llo, Seriot pretende mostrar que 0 funcionamento anaf6rico coloca em questllo a unicidade do texto, ou a no~llode "fio do discurso", e desloca a ideia de coesllo-coerencia textual para a no~llo discursiva de heterogeneidade constitutiva. Segundo essa analise, somente urn saber extra-lingtifstico, partilhado entre os interlocutores, ou mais exatamente, urn "efeito de saber", permite reconhecer a coreferencialidade. Isto equivale a dizer que a an8fora nominal repousa sobre urn efeito de pressuposi~o: a reprise anaf6rica nllo e estabelecida por urn determinado signa formal, mas por urn ato de reconhecimento, ou por urn funcionamento "endoxal", correspondente ao que Arist6teles chamava "doxa", ou opiniiio comum. Deve ficar claro que a fonte do doxa nllo e a natureza das unidades, mas urn funcionamento discursivo. Nos casos de funcionamento exof6rico, Seriot reconhece a existencia de urna anMora potencial. Com base em lingilistas sovieticos, como Paduceva, afuma que a pressuposi~llo e urn enunciado que nllo e necessario afirmar, na medida que ja e dado a interloc~llo. Esse enunciado pressuposto, mesmo nllo estando presente materialmente no contexto lingilistico, pode ser 0 elemento anaforizado pela nominaliz~llo. Assim, Seriot propoe ampliar a anMora a todo comportamento exof6rico, de modo que uma anMora por nominaliza~llo tanto pode remeter a uma anterioridade material no contexto a esquerda como a uma exterioridade ao texto, exterioridade contudo especffica aquilo que constitui 0 universe de referencia do discurso, e que nllo M necessidade de ser efetivamente dito. Ao afirmar que a primeira men~llo de uma nominaliza<;llopode ser urna proposi~llo e que essa proposi~llo pode ser exterior ao pr6prio texto, por ser urn pressuposto discursivo ou urn elemento dado a interlocu~llo, Seriot assume que a ex6fora nllo faz referencia a uma realidade extra-lingilistica, mas relaeiona 0 discurso com umaanterioridade lexterioridade discursiva. Todo discurso e teeido de palavras ja ditas por outrern, de outros ditos, de asser~oesja proferidas. Em resumo, e a heterogeneidade enunciativa que constitui 0 fio do discurso. a funeionamento exof6rico por anMora nominal, por sua vez, e uma ponte entre 0 discurso que se constitui na interlocu~llo e 0 interdiscurso, 0 qual, formado pelo conjunto de enunciados pertencentes a uma determinada epoca e a um grupo social determinado, e a condi~llode existencia do pr6prio discurso: "Ce que je veux montrer est que l'anaphore par nominalization est un point de passage entre la coherence lineaire superflCielle des phrases d'un texte, et l' avant texte, inter-texte ou interdiscours qui en est la condition de possibiliti et auquel el est mele en um entrelace inextricable." (Striot, 1985:158) Longe estou de discordar de Seriot. De fato 0 discurso nao vem ao mundo numa inocente solitude, nao e homogetleo; ele se constr6i atraves dos ja-ditos de outros discursos. A ex6fora parece realmente constituir 0 ponto de contato do discurso que se constr6i na interlocu\tao com uma anterioridadel exterioridade discursiva. o problema t que Serriot nao endossa que os sintagmas nominais e os sintagmas pronominais possam desempenhar as mesmas fun\toes referenciais. Logo ap6s afirmar (pag.151) que a fonte do doxa t um funcionamento e nao a natureza das unidades, Seriot nega que 0 doxa possa funcionar quando a anMora for pronominal: a "Ainsi, la difference des pronoms, rien dans un nom ne permet de lui reconnaitre par une seule analyse intra-textuelle, jormelle, Ie statut d'anaphore". (Seriot, 1985:151) "Parler d' anaphore comme rappel (au niveau pressuppose) de ce qui a ete dit avant aligne l'anaphore nominale sur l'anaphore pronominale. C'est a dire qu' en ne parlant que de reprise, on ne pose pas Ie probleme de ce qui est perdu ou modijie dans le passage de l'antecedent son anaphore." (Striot, 1985:156) a Striot t fiel A mais autentica tradi\tao francesa. Basta lembrar que para Benveniste (1966) a anMora pronominal t um fenOmeno sintatico, pertencendo ao domfnio daquilo que 0 lingilista categorizou como "terceira pessoa". A "terceira pessoa", na qual Benveniste inclui todo 0 sistema anaf6rico da lingua, cumpre uma fun\tao representacional, por oposi\tao A primeira e A segunda pessoas, que cumprem uma fun\taoenunciat6ria ou discursiva. Ora, conforme desejo argurnentar, esse funcionamento pragmatico-discursivo de referenda, acusado por Seriot, nao t priviltgio da anMora nominal. E igualmente vAlida para os casos de anMora pronominal, que a lfngua em uso nao se cansa de exibir. Um exame mais cuidadoso dos demonstrativos vai mostrar que os demonstrativos anaf6ricos, de "terceira pessoa", cumprem igualmente uma fun~ao diseursiva. Sua referencia nao e determinada por urn mecanismo sintatico independente, como querem Benveniste e Serriot, mas por urn mecanismo discursivo, em cuja base estA uma pressuposi\tao. Marcas formais nao garantem a co-referencia, mesmo quando hA coincidencia de genero e nUmero entre elementos formais, candidatos a co-referencialidade, como no exemplo abaixo, extrafdo do discurso do Presidente Collor, de 03 de abril de 1991: (4) "Voces sabem, como e dif{cilpara 0 nordestino se a/irmar no cenario naciona~ sat do govemo das Alagoas, dois anos e dois meses de govemo, lutando contra ospoderosos, contra aqueles que humilhavam 0 nossopovo ... " Somente urn saber determinado e partilhado entre os interlocutores permite decidir se "os poderosos" e "aqueles que humilhavam 0 nosso povo" SaD ou nao coreferenciais. "funcionamento doxal" da anafora pronominal parece ser extensivo tambem aos casos com pronome neutro, lexicalmente vazio, conforme infuneros exemplos da linguagem oral (Inqueritos NURC SP): o (5) L2 ela estava contando assim...que uma vez um dos medicos ficou com uma dor no niio sei do que... dor de estomago e tal...jalou "vamos chamar os pajes ne?" ai vieram tres pajis e jicaram duas horas suan::do aU em cima...mas jazendo os maiores estardalha::r;os e tal acabaram tirando::... (acho que) uma pena uma pena de passarinho uma galinha... um neg6cio assim...pronto sarou... mas ((ri)) jicaram duas horas ali em cima cantando pulando eles...suando mesmo ne? literalmente LIe tiraram 0 que? pena de passarinho do cara? L2 e...um neg6cio assim...pronto sarou era isso que estava interferindo...era um esp(rito niio sei das quantas...que estava ne? (D2 SP 343:768) Uma analise apenas formal, estritamente lingtifstica, nao permitiria dizer que "pena de passarinho", "isso" e "urn espfrito nao sei das quantas" SaD co-referenciais. Esse curiosa exemplo, em que se conjugam os fenOmenos anaf6rico e cataf6rico, coloca em oposi~ao dois interdiscursos: isso refere-se cataforicamente a urn espirito, urn referente localizado no interdiscurso da tribo indigena em questao, e anaforicamente a pena de passarinho , urn referente do interdiscurso de L1 e L2. o que esses exemplos parecem mostrar e que a concep~ao tradicional de anafora (ver Halliday & Hasan, 1976), segundo a qual a anafora representa urn fenOmeno de dependencia interpretativa entre duas unidades, a segunda nao podendo ter urn sentido referencial sem ter sido colocada em conexao com a primeira, nao funciona. E nao funciona porque eia nao privilegia 0 nivel pragmatico-discursivo, mas ta~ somente 0 nivel sintl1tico e 0 senllintico. Os exemplos que se seguem de ex6fora parecem conflrmar que nao h;1 razoes para se diferenciar anafora nominal de anafora pronominal: (6)parajazer uma obra de arte... mais ou menos... a gente se dispoe... a gente para aquela vida cotidiana da gente... (EF SP 405: 157) (7) Doc. sim...agora...do milho na jazenda nao se jazia nada? ..s6 se vendia? In/. bom ...ja::z jazem ...jazem-se ...esses doces tradicionais ne? (DID SP 18:342) (8) preciso ...depois de colhido ...ah colcolocar 0 arroz e bater 0 arroz. ..pra so/soltar da casca ... e tambem. ..e a::fica uma ...aquilo que chama palha de arroz (DID SP 18:407) Empregado fora da demonstra~ao propriamente dita, c sem estar anaforizando urn elemento anterior materialmente presente no contexto lingilistico, 0 demonstrative exibe nos exemplos de (6) a (8) urn funcionamento exof6rico pressuposicional, no sentido que remete a elementos pressupostos na ·interlocu~ao. Essa remissao pode ser consideradaurn caso de anafora potencial. Pode parecer que nesse emprego fica comprometida a diferen~a entre 0 tradicional artigo e 0 tradicional demonstrativo, ou seja, que 0 demonstrativo seria perfeitamente dispensavel, podendo 0 artigo ser empregado em seu lugar: (6') (7') (8') (9) 62:227) a gente para a vida cotidiana da gente ... jazem-se os doces tradicionais ne? fica uma ... 0 que chama palha de arroz nos entramos aU no ntlquele arroz unido venceremos (02 SP No entanto com 0 emprego do artigo nao se obtem 0 mesmo efeito de sentido que com 0 demonstrativo. Nos enunciados com demonstrativos «6) a (8)), a alteridade enunciativa e mais marcada do que nos enunciados com artigos «6') a (8'). Nos primeiros M um nivel maior de distanciamento entre 0 espa~o enunciativo do discurso que se constitui na interlo~ao e 0 interdiscurso no interior do qual se localizam os referentes. No exemplo (9), a troca do artigo pelo demonstrativo desloca 0 referente para urn espa~o enunciativo cuja responsabilidade 0 locutor nao e obrigado a assumir. Minha inten~ao, ao mostrar que a anlifora pronominal demonstrativa, tanto quanto a anafora por nominaliz~ao, e uma forma de parlifrase discursiva e nao simplesmente uma deriva~ao morfo-sintatica, e estender 0 funcionamento da heterogeneidade enunciativa aos sintagmas determinados por demonstrativos e tambem aos sintagmas constitufdos de demonstrativos "neutros", lexicalmente vazios, 0 que equivale a dizer que a anlifora demonstrativa, tanto quanta a nominaliza~ao, constitui urn lugar privilegiado de contato que 0 texto mantern com seu exterior especffico ou com 0 dominio de sua refer~ncia. Se todo sintagma nominal que constitui urna descri\(llodefinida e ja em si uma rela\(ao, como quer Seriot, uma rela~ao de uma referencia exterior com 0 texto que se constitui na interlocu~ilo,no caso dos sintagmas determinados por demonstrativos exof6ricos, pressuposicionais, essa rela~o parece marcada por urn distanciamento maior do que no caso dos sintagmas nominais articulados. BENVENISTE, E. (1966), "A Natureza dos Pronomes", trad. bras., in ProblelJlQS de Iingilfstica Campinas, SP, Pontes, 1988, 2a. ed. Geral!, SIDuOT, P. (1985), "L' Anaphore et Ie Fil du Discours (Sur l'Interpretation des Noroinalisations en Fr~ et en Russe)", in Opirateurs Syntaxiques et Cohesion Descursive, Henning NOlke ed.