7 Encontro Nacional de Estudos do Consumo Mercados contestados - As novas fronteiras da moral, da ética, da religião e da lei 24, 25 e 26 de Setembro de 2014/Rio de Janeiro O Mercado da Carne e as Contestações em Torno da Vida e Morte de “Animais que Sentem” Ana Paula Perrota1 1 Mestre em Sociologia e Antropologia no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia - UFRJ. Doutoranda nesse mesmo programa. Email:[email protected] O Mercado da Carne e as Contestações em Torno da Vida e Morte de “Animais que Sentem” Resumo: Nas últimas décadas observamos no Brasil a atuação dos chamados defensores dos animais. Esses grupos reivindicam a atribuição de direitos para viventes não humanos, através da elaboração de outra perspectiva ontológica sobre os animais. Fundamentados por estudos científicos e filosóficos, os defensores buscam destituir o caráter autômato dos animais e atribuir-lhes uma interioridade, através de sua capacidade de sentir. Em razão dessa característica comum com os humanos, os defensores justificam a reivindicação sobre a simetria moral do valor da vida humana e animal. A nova condição dos animais, tratados como “seres que sentem” e não mais como “máquinas”, faz emergir uma nova moralidade em torno de sua vida e morte. Uma das consequências decorrentes desse processo é a institucionalização das noções de bem estar animal e abate humanitário, que visam atender principalmente os animais de produção. Essas noções, de acordo com Jocelyne Porcher (2002) colocam em questão o modo de relação e ação que construímos com e para os animais de produção. Constituídos a partir da crítica ao processo industrializado e em massa de produção da carne, as premissas em torno do bem estar animal e abate humanitária são inseridas como discurso e prática nos ambientes de produção da carne, promovendo impactos sobre esse mercado. Nesse caso, discutimos que o mercado da carne é pressionado a levar em conta essa nova realidade, que trata os animais não mais como objetos, mas como vivantes. Em conformidade a esse vigente universo de valores, novas técnicas, ferramentas e instalações são gradualmente introduzidas e transformadas nos frigoríficos com vistas a evitar “estresse”, “agitação”, “sofrimento”, além de lesões físicas nos animais. Palavras chaves: direitos dos animais; mercados contestados; bem estar animal I - Introdução Nos dias de hoje é possível observar manifestações políticas em favor dos “direitos dos animais” em diferentes esferas da vida social. O uso de animais, seja como fonte de alimentos, experimentação científica ou diversão, se tornam alvos de protestos por parte dos chamados defensores dos animais. Nesse caso, a “ética animal” se impõe no século XX (Descola, 1998; Vilmer, 2011), com vistas a transformar a responsabilidade moral e jurídica dos homens com relação à outras espécies. As ações políticas dos defensores dos animais consistem então em redefinir a relação entre homens e animais do ponto de vista moral e prático, ao questionar a posição exclusiva dos homens no que se refere ao valor da vida e à titularidade de direitos. A consideração dos animais como sujeitos de direitos perpassa a transformação de práticas consolidadas e institucionalizadas, presentes de diferentes maneiras em nosso cotidiano, como na alimentação, vestuário, experimentação científica, entretenimento e etc. Atribuir direito aos animais significa, portanto, repensar um amplo quadro de relações nos quais esses seres estão inseridos. Logo não se de uma simples tarefa. Cientes desse desafio, os defensores empreendem um esforço científico e filosófico a fim de desenvolveram uma ética e direito animalista capaz de justificar a atribuição à vida animal do mesmo valor atribuído à vida humana.Trata-se de dizer então que a reivindicação dos direitos 2 dos animais não se faz de maneira arbitrária, mas a partir de um conjunto de formulações teóricas que têm a pretensão tornar legítima a “causa animal”. Diferentes aspectos são então mobilizados em torno da ética e do direito animalista. Em linhas gerais, os animais são dotados de uma interioridade, tal qual os humanos, se constituindo de igual modo como agentes dotados de racionalidade e, portanto, capacitados a fazer escolhas que atendem seus interesses, seja o interesse geral da espécie, ou particular, enquanto indivíduo. A pergunta por que animais merecem ser respeitados tal qual os humanos? É respondida através da ideia de que animais, assim como os humanos, possuem uma vida e o interesse de vive-la bem. A relação entre ética e interesse, é mobilizada como aspecto fundamental que justifica a proteção moral dos animais. Portanto, a perspectiva de que os animais possuem interesses é o que confere conteúdo a proibição moral e legal de tratarmos animais como coisas. Caso possamos considerar essa estratégia dos defensores como um apelo à nossa razão, por outro lado, observamos também a mobilização de elementos capazes de atingir nossos sentidos. Devemos a partir de nossas atividades intelectuais reconhecer os animais enquanto sujeitos, mas também nos sensibilizarmos com o seu sofrimento e nos convencermos de que é preciso exigir a reparação dessa situação. A capacitação racional dos animais e a posse de uma interioridade fazem deles seres que sentem. E a denúncia sobre situações de violência a qual são submetidos é acionada como elemento importante para justificar a transformação das relações entre humanos e não humanos. Observa-se então que as questões em torno do “sofrimento animal” se tornam uma categoria central na luta dos defensores, que atravessa humanos e animais na busca de direitos e na delimitação dos seres implicados com a justiça. A morte nos frigoríficos, a tortura nos laboratórios, a separação dos filhotes na indústrias do leite, a privação da liberdade nos zoológicas e etc. são situações que importam, porque os animais sofrem. As discussões em torno do sofrimento é o elemento que tornaria inadmissível a continuidade dessas práticas. A nova condição dos animais, tratados como “seres que sentem” e não mais como “máquinas”, faz emergir uma nova moralidade em torno de sua vida e morte. Uma das consequências decorrentes desse processo é a institucionalização das noções de bem estar animal e abate humanitário, que visam atender principalmente os animais de produção. Essas noções, de acordo com Jocelyne Porcher (2002) colocam em questão o modo de relação e ação que construímos com e para os animais de produção. Constituídos a partir da crítica ao processo industrializado e em massa de produção da carne, as premissas em torno do bem estar animal e abate humanitário são inseridas como discurso e prática nos ambientes de produção da carne, promovendo impactos sobre esse mercado. Tal moralidade refletiu na constituição de normas nacionais e internacionais que se constituem como fonte de preocupações inéditas. A partir de então, 3 foram criadas novas formas de manejo durante a criação, o transporte e o abate dos animais, que visam evitar seu “sofrimento desnecessário”. As questões em torno do bem estar animal e abate humanitário se constituem como uma nova fonte de preocupações que passaram a incidir sobre as redes de produção, venda e consumo da carne, se constituindo numa nova tensão e fonte de medidas disciplinatórias: tratar bem animais que irão morrer. Por meio do processo de abate para a produção da carne será pensado, portanto, conceitos de vida e morte em termos morais e quais os dilemas em torno da transformação de animais que “sentem”, que têm “inteligência”, em suma, que são “como os humanos”, em carne. Casos de crueldade aos animais, principalmente domésticos, como cachorros e gatos, são cada vez mais denunciados no cenário brasileiro, ganhando cobertura da imprensa e sendo alvo de protestos por parte dos defensores dos animais e da população de forma mais ampla. Mas o processo de abate para a produção da carne bovina pode ser abordado como um caso limite que confronta a preocupação em ter que tratar bem os animais que continuarão a ser abatidos. Trata-se de discutir que embora nesse processo a morte dos animais exista como uma situação inevitável, isso não deveria excluir que os bovinos recebam um tratamento considerável plausível ou justo. Nesse caso, os novos valores e ideologias políticas em torno do movimento de defesa dos animais, contribuem para que os frigoríficos sejam obrigados, através de leis federais, a implementar novas regras de manejo dos animais2. Tendo em vista essas questões, será discutido nesse trabalho o processo de abate bovino para a produção da carne, a fim de tratarmos sobre uma rede produtiva que reifica os animais, mas que agora precisa conjugar essa objetivação com uma subjetivação, que traz o imperativo de dispensar um “tratamento ético” aos animais. Orientados ou obrigados por normatizações no âmbito federal, os agentes envolvidos nesse campo econômico devem levar em consideração a integridade física e emocional dos animais, sob pena de boicote de consumidores, restrições de mercado ou sanções governamentais. Para tratar dessas questões, terei como base as informações obtidas durante o trabalho de campo realizado em Açailândia (MA), em julho de 2012, que contou com uma visita ao abatedouro JBS, e com entrevistas realizadas entre seus funcionários. 2 Esse trabalho é parte da pesquisa que realizo para o doutoramento em Sociologia e Antropologia no programa de pósgraduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para discutir sobre essas questões, serão consideradas, principalmente, as informações obtidas durante o trabalho de campo realizado em Açailândia (MA), em julho de 2012, que contou com uma visita ao abatedouro JBS. 4 II- Industrialização da produção de carne: mudança de práticas e de vínculos De maneira simplificada, o sistema de produção da carne consiste em dar vida aos animais, criálos e como última etapa, promover seu abate de modo a obter a mercadoria final. Esses processos, por sua vez, podem ser conduzidos de diferentes maneiras. Não só a forma de abate se organiza a partir de diferentes critérios, mas a maneira como os animais são criados também diferem segundo os modelos de organização. Atualmente, pautado por um modelo cientificista e um ideal de modernização e primor técnico, a estrutura que culmina no abate nos chamados frigoríficos industriais adquire hegemonia na rede global de produção e venda da carne. As discussões em torno do bem estar animal dialogam diretamente como essa forma de organização do mercado, que se caracteriza pela expressividade dos números produtivos. Os animais abatidos nesse regime industrial são contados as centenas ou milhares por dia. O alcance desse número se faz mediante uma série de apropriações e manipulações dos animais que foram consideradas cruéis. As normas de bem estar e abate humanitário visam intervir nessa situação específica, portanto, é importante discutirmos sobre a construção do mercado nesses moldes industriais. A atividade de produção da carne diz respeito à transformação do bovino (vivante) em alimento (objeto), uma vez que não consumimos animais mortos mas comida. Nesse caso, há, uma organização técnica e moral que diz respeito ao processo de conversão do animal em alimento, ou em outros termos, que faz da carcaça uma substância consumível e não um cadáver repugnante (Remy, 2002). Ao pensarmos nas diferentes facetas da morte, os frigoríficos são lugares então em que a perda da vida não se configura na produção de um corpo morto, mas na fragmentação do vivente, e por conseguinte, na produção de diferentes bens comercializáveis que adquirem uma realidade própria. Sendo assim, embora pudéssemos dizer os abatedouros são locais em que há a situação rotineira de morte dos animais, estes são pensados como fora da contingências dos mortais, de modo que a atividade de abate se configura como mais uma etapa do processo produtivo da carne. Desse modo, mesmo depois de abatidos, os animais continuam a participar da vida humana, mas agora sob a forma de alimento. O modelo de abate bovino industrial, tal como se organiza hoje nas sociedades contemporâneas, tem seu surgimento no início do século XIX e se caracteriza como uma forma de organização inédita, com relação ao modelo existente até então. Nesse contexto de mudanças tanto os aspectos técnicos quanto o modo e a concepção acerca da relação entre humanos e animais são transformados. Essas transformações ocorrem em meio a um processo mais amplo de urbanização e industrialização e seguem a dinâmica de reordenamento do espaço urbano das grandes cidades. A cidade de Chicago, nos Estados Unidos, é discutida por historiadores e cientistas sociais como paradigma dessa nova modalidade 5 produtiva, devido às instalações pioneiras das empresas Swift e Armourn, nas primeiras décadas do século XIX. Nesse mesmo período, os chamados frigoríficos industriais foram igualmente implantados em cidades européias como Paris e Londres. A partir de então, esse modo de abate se expandiu entre os países capitalistas, de modo, que desde o final do século XIX, a transformação da estrutura de abate no Brasil seguiu essa mesma dinâmica: A construção do matadouro no Campo de São José, em Santa Cruz, na cidade do Rio de Janeiro, distante do centro da cidade cinqüenta e cinco quilômetros e oficialmente inaugurado no dia 30 de dezembro de 1881, prometia uma solução modernizadora para a capital do Império. (…) Para o novo estabelecimento, encomendaram-se todos os acessórios, maquinário, e mesmo os portões, “dos países civilizados da Europa”, no intuito de erguer, na cidade do Rio de Janeiro, um matadouro modelo. (Dias, 2009, pag.5) De maneira geral, a formação e instalação da estrutura de abate industrial têm como fundamento uma proposta modernizadora, a fim de atender tanto a expectativa de aumento da rentabilidade, como as novas pressões existentes pelo controle sanitário dos animais e da carne. Contudo, além dessas questões outro aspecto discutido como motivação para essas mudanças diz respeito à preocupação moral de impedir a visibilidade pública do abate, num movimento conjunto de tornar oculta a morte de humanos e animais. Pois se a morte era considerada um espetáculo público, a partir do século XX se torna um tabu (Esquerre e Truc, 2011). A partir de então, o trânsito e a mortes dos animais nas cidades se tornaram inaceitáveis. Os abatedouros foram levados para longe dos centros urbanos, ao que Noelie Vialles (1987) trata como um exílio para o exterior das cidades. Ainda de acordo com a autora, trata-se de tornar invisível o que antes era tratado como um espetáculo público, ao mesmo tempo em que o vermelho do sangue é trocado pelo branco, seja dos revestimentos das paredes, dos acessórios ou das roupas dos funcionários, que vão dos pés as cabeças. A concentração e o distanciamento da atividade de abate dos centros urbanos cumprem diferentes funções. Permitem a vigilância das práticas a fim de garantir a qualidade da carne, evitando fraudes ou contaminações. Ocultam a morte dos animais, bem como, os “restos” desse processo produtivo e seus efeitos: mau odor, presença de animais que se alimentam desses “restos”, contaminações, etc. Esse modo de abate se torna “higienizado”, e conforme Vialles (1987) ressalta, adquire características de um ambiente laboratorial, em razão da brancura e assepsia. Assim, observa-se a entrada e a legitimação do corpo veterinário e de suas práticas, que fazem do abatedouro um lugar considerado decisivo para a segurança sanitária dos alimentos (Bonnaud, 2008). Contudo, esses aspectos correspondem também ao processo de racionalização técnica, que caracterizam as sociedades modernas. Desse modo, o método de abate se transforma num processo mecanizado e massivo, e portanto, marcado por uma extensa divisão do trabalho. A partir dessas novas perspectivas, uma das mudanças 6 fundamentais ocorridas, é que se na Idade Media não havia diferenças entre o oficio do açougueiro e dos criadores, a partir de então os açougueiros são obrigados a abater os animais nos abatedouros municipais das grandes cidades (Gascar, 1973). O abatedouro é separado então dos consumidores e criadores, promovendo um distanciamento também acerca da relação entre humanos e animais. O processo de abate passa a ser orientado predominantemente pela razão econômica e, em conseqüência, “l´animal doit répondre à dês critères et performances définis par les éleveurs, les techniciens et le conteute économique de la production” (Porcher, 2002, pag. 3). Os animais destinados ao abate são, portanto, considerados ferramentas de produção ou produtos, de modo que o distanciamento oriundo da forma como essa modalidade produtiva passa a se organizar permite a construção do corpo dos animais como objeto (Remy, 2003). Diante da obrigação do aumento de produção e rendimentos, os animais são definidos por consideração ao que eles se tornarão e não por consideração ao que eles ainda são (Anzalone, 2005). Durante o trabalho de campo em Açailândia, participei do leilão de gado ocorrido na 45º Exposição Agropecuária de Imperatriz. Chama atenção para as questões discutidas aqui, os termos mencionados pelo leiloeiro para caracterizar a qualidade dos bovinos. Os atributos físicos dos animais eram ressaltados como aspectos que garantiriam a eficiência e a seguridade da produção do “boi gordo”, que por sua vez geraria um alto rendimento na produção da carne. Os aspectos físicos diziam respeito à capacidade dos animais de atingir o melhor peso e tamanho em menos tempo. Assim, adjetivos como “alta performance” e “precocidade” foram repetidamente utilizados durante a apresentação dos animais para a venda. Esses termos nos permitem pensar sobre a dualidade vivante – objeto, que define a forma como os animais foram apresentados. A eficiência produtiva dos bovinos se dá através do funcionamento biológico acelerado do seu corpo, que, por sua vez, é pensado como uma máquina manipulável a fim de ser melhor ajustada. A conjugação dessas duas perspectivas nos permite observar então a condição dos bovinos de “animal-máquina” (Remy, 2003), ou seja, a de um vivante que é manipulado e planejado para trazer aos agentes envolvidos na rede de produção da carne maiores ganhos financeiros. Os animais têm, portanto, seu desenvolvimento biológico compreendido segundo uma lógica mecânica, mas, sua performance ocorre segundo processos orgânicos. Nesse sentido, as ciências biológicas incorporam os animais como um dispositivo de pesquisa que tem por finalidade torná-los mais eficazes em termos produtivos, através, por exemplo, da melhora do seu rendimento energético ou da maximização do resultado de suas funções nutritivas, reprodutivas e de crescimento (Remy, 2003).Tais ciências são, portanto, definidas por Jocelyne Porcher (2002) como “biotécnicas” na medida em que são especializadas e aplicadas para o considerado melhor desenvolvimento das funções biológicas dos animais de produção ou, em outros termos, para o melhoramento de sua performance produtiva. 7 No âmbito desse processo de industrialização, racionalização e mecanização que permeia a rede de produção da carne, são tratadas questões referentes à consideração moral em torno dos animais. Alguns autores das ciências sociais (Vialles, 1987; Remy, 2003; Porcher, 2002; Anzalone, 2005) falam de “objetivação do sensível” bem como de “desanimalização” dos animais de produção, para definir sua mudança de status nesse processo de abate. A consideração de que a relação com os animais passa a ser orientada em torno de uma lógica técnico-econômica, que se satisfaz em termos de uma política de produtividade e assepsia é criticada com vistas à perspectiva de que os animais são reduzidos à sua fria materialidade (Gascar, 1973). Nesses termos, por “objetivação do sensível” e “desanimalização”, os autores entendem como um processo relacionado à reificação do animal de produção e à banalização do abate na medida em que transformam “les “tueurs” en “operateurs”, et l´animal-viande em artefact” (Remy, 2003). Nessa mesma perspectiva Porcher (2002) diz que há uma construção do status dos animais de produção reificado e ao mesmo tempo a negação do vínculo entre criadores e animais em razão da separação entre as atividades de criação e abate. Os animais, de acordo com a autora, são considerados de forma unilateral, uma vez que o único objetivo de sua existência se torna o lucro, havendo, portanto um esquecimento do sentido de sua vida. Em complemento a essa discussão, Blondeau (2002) afirma que os animais de produção perdem sua personalidade, sua natureza animal e sua visibilidade. A crítica acadêmica sobre a “desanimalização dos animais” é acompanhada pela crítica dos defensores dos animais contra a “crueldade” que seria cometida nesses ambientes, em termos físicos e emocionais. Da perspectiva de acadêmicos e defensores, a reificação dos animais de produção, bem como o isolamento físico e moral do processo de abate produzem uma “insensibilidade” e “invisibilidade” que fazem com que os animais sejam tratados de forma “cruel” e “violenta”. Ainda no século XIX foram fundadas então as primeiras associações protetoras dos animais, em países como Inglaterra e França. E na metade do século XX, veterinários passaram a considerar os métodos de abate nessa forma de organização produtiva como bárbaro e cruel, dando surgimento à perspectiva do “bem estar animal” e de “abate humanitário” como forma de reparar essa situação. Da controvérsia entre “animal-máquina” ou “animal-sujeito”, o abate, bem como a forma cujo essa atividade se estrutura, foi incorporado às críticas dos defensores dos direitos dos animais. Os frigoríficos são denunciados como locais onde ocorrem milhares de assassinatos por dia. Essas denúncias colocam em questão o fato de que vida e morte são conceitos políticos que adquirem um significado preciso através de tomadas de decisão e que têm efeito sobre o destino de humanos e não humanos, conforme a qualificação moral de suas vidas. Sendo assim, se da perspectiva dos defensores, a produção de carne bovina é entendida como um ato criminoso, do ponto de vista dos órgãos governamentais, bem 8 como da população em geral, significa uma conquista em termos econômicos, ou de forma mais “natural” o resultado de uma atividade que tem por finalidade suprir nossas necessidades alimentícias. Por parte dos defensores dos animais, o tratamento físico e moral dos animais de produção são questionados nos termos de um resgate ou de uma reforma do seu status de “objeto” para “sujeito”. Para efetuar tais denúncias e lutar pela reversão dessa situação, os defensores realizam o esforço de transformar o status dos animais, de modo que possam ser inseridos moralmente na contingência dos mortais. Essa transformação conceitual e prática que tem como objetivo refundar o modo de conceber a realidade e de se relacionar com os animais, tem como uma de suas principais formas de embasamento os trabalhos acadêmicos, principalmente das áreas biológicas, sobre a igual capacidade entre humanos e não humanos de sentir. A explicação dita racional acerca da sensibilidade entre os animais é mobilizada por militantes, militantes-cientistas e cientistas para afirmar um novo status moral dos animais. Portanto, a tarefa de tornar animais e homens compatíveis no plano moral passa pela tarefa de torná-los primeiramente compatíveis no plano da fisiologia ou de suas capacidades cognitivas. Essa compatibilidade, atribuída através de um viés científico, justificaria a igualdade de tratamento entre os viventes, a partir de uma nova representação do homem e do animal. Nos termos da própria lógica racionalista, os movimentos se engajam politicamente a fim de alterar a atual correlação de forças e modificar a condição dos animais. Considerando a legislação existente sobre “bem estar animal” no âmbito nacional e internacional, podemos entender que de fato está em curso uma perspectiva que aceita de forma legítima a capacidade dos animais de sentir e que, por conseguinte, pressiona o mercado da carne a levar em consideração essa nova realidade. Desse modo, a discussão sobre o “bem estar animal” coloca em questão o modo de relação e ação que construímos com e para os animais de produção (Porcher, 2002). As denúncias contra o “sofrimento dos animais” foram incorporadas pelo Estado na forma de novas regulações e foram impostas aos agentes econômicos. Observamos então que a senciência animal, ou seja, sua capacidade de sentir modifica o padrão de funcionamento do mercado da carne, desempenhando um papel performativo sobre a maneira como esse mercado se organiza. Ao consideramos que as denúncias contra o “sofrimento animal” colocam em questão o ato de matar animais para comer, visualizamos por um lado uma situação de crise ou mudança no campo econômico e por outro a estratégia dos agentes desse mercado de adotar uma nova estratégia com vistas a reorientar sua forma de atuação. O mercado da carne passa a ter que indubitavelmente atender as normatizações em torno do bem estar animal. 9 III - O desmembramento do animal e a produção da carcaça A sensibilização com o sofrimento dos animais é alçada ao debate político como uma questão pública significativa por parte dos defensores dos animais. Os agentes econômicos são influenciados pelas ações de organizações sociais e são forçados, segundo sua posição no espaço social e suas possibilidades econômicas, a modificar seus investimentos para se colocar em conformidade com as classificações existentes (Garcia-Parpet, 2007). Nesse tópico discutiremos como o mercado da carne é pressionado a levar em conta essa nova realidade, que trata os animais não mais como objetos, mas como vivantes. Em conformidade a esse universo de valores, novas técnicas, ferramentas e instalações são gradualmente introduzidas e transformadas nos frigoríficos com vistas a evitar “estresse”, “agitação”, “sofrimento”, além de lesões físicas nos animais. Portanto, através da perspectiva “ética” dos defensores dos animais, será discutido como essa dimensão se transformou num critério técnico que deve ser seguido na rede de produção da carne. Para discutirmos essas questões serão privilegiadas as questões decorrentes do trabalho de campo, em Açailandia (MA). Além das entrevistas realizadas com funcionários do frigorífico JBS e com outras pessoas vinculadas à cadeia produtiva da carne, será levado em consideração também a visita realizada as instalações do frigorífico. Cabe ressaltar que a descrição desses processo produtivo terá como foco, aspectos que nos permitem pensar a respeito das questões em torno do bem-estar animal. Digo isso, porque mesmo que o processo de abate seja uma das etapas da estrutura de produção da carne, esse ambiente permite a discussão de múltiplas questões : desde a problemática do risco e seguridade sanitária dos alimentos às condições de trabalho dos funcionários da empresa. Portanto, essa apresentação será restrita às questões pertinentes a discussão aqui proposta. O antigo frigorífico Equatorial, agora JBS3 , fica distante de carro quinze minutos do centro de Açailândia. A entrada no local se dá por uma saída da BR 010 km. Assim que cheguei observei primeiramente os escritórios, o estacionamento e o galpão em que há o abate, corte e estocagem da carne. O local é bastante arborizado e não é possível ver os animais que serão abatidos. O que nos faz saber que se trata de um frigorífico é o cheiro da fumaça que sai das chaminés do galpão. Essa fumaça é oriunda do cozimento de osso e vísceras não utilizáveis, para o preparo da chamada farinha de sangue e osso, aproveitada na fabricação de rações. Nesse local fui apresentada e recebida por Milton, médico veterinário e gerente de produção do frigorífico. Após as apresentações iniciais, Milton me orientou a vestir as roupas adequadas para percorrer o espaço interno do local: calça, blusa, botas, touca e capacete brancos, mais um protetor auricular. Recebi também recomendações para tirar objetos como brincos, 3 A JBS S.A. é uma empresa brasileira, e o maior frigorífico no setor de carne bovina do mundo. 10 relógio, pulseiras e anéis. Segundo ele, essas determinações são regras do controle de qualidade. Não pude tirar fotos ou realizar gravações de vídeo, pude somente gravar através de áudio as suas explicações. Vestida adequadamente para a visita, iniciamos o percurso, conforme ele disse, pela ordem lógica do frigorífico, nos currais aonde os animais que chegam das fazendas aguardam pelo momento do abate. A capacidade do frigorífico é de 450 abates por dia e cada boi utiliza 1800 litros de água. Mas como pude observar nesse dia, havia cerca de 200 animais a espera. Milton me explicou que as atividades do frigorífico foram reduzidas temporariamente em razão das mudanças de trabalho oriundas do processo de transferência de gestão da nova empresa que assumiu o Equatorial. Caminhamos então por alguns minutos até os currais, onde começa a primeira fase do processo de abate do gado e finalmente pudemos observar os animais. Os currais são espaços retangulares com chão e muros de cimento. O frigorífico visitado possui oito currais que devem comportar seis deles, cinquenta indivíduos, e os outros dois, sessenta. A separação dos bovinos entre os currais tem como objetivo a identificação do rebanho de cada criador. Os animais que chegam são ainda registrados pela identificação das fazendas, para efeito de fiscalização das agências governamentais. A separação por criadores é utilizada também para garantir o controle sobre a pesagem futura da carcaça e o somatório do valor a ser pago aos criadores. Os animais são abatidos, portanto, a partir da divisão de cada lote dos diferentes criadores. A preocupação com a divisão e o espaço ocupado pelos bovinos é justificada ainda como uma estratégia técnica para haver um espaço considerado adequado para os animais se locomoverem. Ao me explicar sobre essa forma de organização, Milton compôs sua fala com alguns dos princípios do chamado bem estar animal. De acordo com ele, os animais não podem ficar muito apertados, pois isso aumenta o risco de “estresse” e brigas. A divisão dos currais foi explicada também como um mecanismo que evita juntar animais de diferentes produtores em um mesmo local. De acordo com Milton, essa divisão é importante para evitar as brigas, já que ao juntar rebanhos diferentes, os animais não reconheceriam seus líderes, e a situação já “estressante” produziria também conflitos entre os bovinos. Nos currais, os animais devem ter um tempo mínimo de “espera” que é de doze horas, conforme regulamentação do Estado. Nesse período o rebanho fica em jejum, só é permitido beber água. Contudo, se o rebanho vem de uma distância de até 50 km ele pode ser abatido com um tempo de seis horas, porque os animais já teriam cumprido o jejum prescrito. O objetivo do tempo de “espera” é o de “esvaziar o estômago” para haver um processo mais fácil de limpeza das partes dos animais aproveitadas como subprodutos. Além disso, serve também para “acalmar” os animais. Nesse caso, Milton explicou que a “espera” tem implicação com o “tempo de prateleira” da carne e com a qualidade do produto, pois se o bovino for abatido “estressado” a carne ficará escura, dura e seca, além de ter um prazo de validade 11 menor. Portanto, o tempo no curral é importante também, pois diminuiria os níveis de adrenalina do rebanho que presumivelmente se agitou devido ao transporte e ao deslocamento, e ao fato de ser instalado em um lugar desconhecido. Há então uma preocupação com a necessidade dos animais terem que “se acalmar”, pois caso contrário, existe interferência direta na qualidade do produto final: A espera é para o animal ficar melhor preparado para a hora do abate e além disso a vida de prateleira do produto final. Se eu abato o animal sem estresse, a adrenalina dele está praticamente zero, a questão do ph, tudo isso influencia no produto final lá na frente. Se eu abato o animal que fez no mínimo 12h de jejum de dieta, essa carne vai ter uma vida de prateleira muito maior. Hoje nossa média é de dois meses, de carne resfriada, desossada e resfriada.São dois meses o tempo de prateleira. Isso é exigência da própria empresa, do gq que é o controle de qualidade, mas até três meses é tranquilo, a carne não vai vencer não vai ter problema nenhum. Desde de que seja dessa forma que eu estou te falando, no mínimo doze horas. E essa é a média que a gente trabalha,com 12h a gente abate os animais, você pode ver que os animais estão calminhos, não tem correria, não tem euforia, estão totalmente descansados como a gente chama. Nesse local o contato com os animais se dá por passarelas suspensas, assim é possível ter um olhar mais amplo sobre eles, permitindo o controle, por exemplo, a respeito de animais doentes ou lesionados. Conforme, foi possível visualizar, embora em grandes espaços, os animais ficam amontoados em um canto, na parte dos fundos dos currais. Não há agitação nem mugidos, mas há a impressão de que eles parecem assustados. Com o barulho de nossos passos nas passarelas de madeira, assim como da nossa voz, os animais se direcionam ainda mais para o fundo do curral, ficando mais distantes de nós e espremidos no canto. Os currais, como Milton explicou, devem ser limpos diariamente para garantir um melhor ambiente para os animais, além de responder aos imperativos de higienização para o abate. Esses espaços têm ligações com os corredores que levam os animais para o abate. Os corredores, em sua parte inicial têm mais ou menos dois metros de largura. Esses corredores conduzem os animais para um compartimento setorizado onde recebem banhos de água através de pequenos chuveiros suspensos. O banho serve para limpar o animal, tirar o excesso de fezes para diminuir o risco de contaminação da carne e além disso, facilitará a retirada do couro. Como Milton explicou “essa água é fria e os animais vêm quente, dá uma sucção, facilita no processo de escoreamento, que é tirar o couro”. Depois do banho, os animais andam pelo corredor e são direcionados para outra parte setorizada. A última antes da rampa final que os leva para o abate. Nesse local, contei o número de oito bois. Foi a primeira vez que vi os animais “agitados”. Eles andavam de um lado para o outro, e às vezes, escorregando no chão de cimento, às vezes caindo, talvez por estarem molhados. Havia também o movimento dos animais que presumivelmente identifiquei como uma tentativa de voltar, fazer o caminho contrário, sair daquele pequeno “cercado”. 12 Sem que eu fizesse qualquer menção à considerada agitação dos animais, Milton se antecipou em explicar porque os animais agiam daquela forma: Os bois sabem que vão morrer, quando ele desce nesse corredor é algo sem retorno, uma vez nesse corredor nunca mais retornará. E de fato eles sabem, sabia? Quando eles entram no boxe de atordoamento, quando eles entram lá, ele abaixa a cabeça para o cara não conseguir pistolar, eles sabem que aquilo ali é a morte mesmo. Depois desse trecho, o corredor se transforma em uma rampa estreita, com menos de um metro de largura. Os animais só conseguem se acomodar enfileirados. A rampa é o último caminho que percorrem até o abate. Eles ficam todos juntos e preenchem em fila toda a rampa. Não é possível qualquer movimento para frente, para trás ou para os lados (embora tenha ouvido nesse momento histórias contadas por Milton de animais que já pularam esse muro). Nesse setor há um trabalho conjunto entre os funcionários. Quando um animal lá em cima é conduzido para o abate, outro animal em baixo é conduzido daquele segundo compartimento para a rampa. Em todo o corredor, os animais são conduzidos a partir de pequenos choques que recebem dos funcionários por meio de cumpridas barras. De acordo com Milton, os animais não sairiam do lugar se não houvesse esse choque. Contudo, a partir de leitura prévia de uma bibliografia a respeito das normas de bem estar animal, compreendi que o corredor do frigorífico não está de acordo com tais normas. Os corredores, a partir desse princípio, devem ser construídos com curvas para evitar que os animais de trás vejam os da frente, facilitando assim sua locomoção, pois não veriam o que está acontecendo. Assim, os choques seriam evitados, pois diminuiria a resistência dos animais em se locomover. E de acordo com essas normas, os animais que apresentassem resistência deveriam ser estimulados a andar não com choque, mas com bandeiras brancas manuseadas pelos empregados. Questionando esse assunto com Milton, a explicação obtida foi a de que realmente a prática do frigorífico JBS não é adequada aos princípios e técnicas do bem estar animal. Mas, como ele disse, a prática continua e o governo tolera porque sabe das dificuldades de condução do animal nesse trajeto sem o choque. No final da rampa há uma porta que se abre para a entrada individual de cada animal, e o cenário muda, pois adentramos o interior do galpão. Para entrar no galpão, eu que já tinha vestido o uniforme branco, tive que lavar botas e mãos. No interior do galpão, há uma pessoa responsável pela qualidade, que faz a fiscalização desses itens com o objetivo de não comprometer o resultado final do produto por meio de contaminações. Ainda nessa entrada, enquanto lavava as mãos, vi pessoas transitando com roupas manchadas de sangue e isso me impactou. Mas chegando propriamente no espaço em que ocorre o abate, havia tanto sangue nas roupas brancas dos funcionários e pelo chão e paredes igualmente brancos, que era impossível continuar impactada. Não era possível evitar o sangue, tanto do contato visual, quando de 13 nossa própria roupa, embora no início eu tentasse desviar dos respingos. No transporte das partes dos bois de um lugar para outro, bem como na acomodação dessas partes em bacias e tanques, o sangue espirrava todo o tempo. A entrada no galpão nos conduz inicialmente para o espaço onde ocorre o abate, que é a primeira etapa para a transformação do corpo do animal em carcaça, por meio da separação dos subprodutos: couro, vísceras e ossos, e da retirada de partes não utilizáveis. Do corredor que observamos do lado de fora, os animais entram, um por um, dentro de um compartimento de metal que os deixa imóveis ao prender sua cabeça. Esse compartimento fica num patamar mais alto do que o chão e em um local onde não é possível vê-los. Existe um funcionário responsável pelo início do abate nesse local, que é feito através do acionamento de uma pistola de ar pneumático que atordoa os bovinos. Milton não quis me levar até lá por considerar a imagem forte e o lugar perigoso. A sua explicação foi a de que eu me chocaria, mas depois, em conversa com o encarregado do setor do abate, recebi explicações mais detalhadas sobre a falta de segurança daquele setor. Ele disse que o animal não fica totalmente imobilizado e, por isso, às vezes pula, podendo pressionar o funcionário contra a parede. Desse lugar o animal recebe então o impacto da pistola que libera um dardo capaz de penetrar sua caixa craniana. A pistola é retrátil, e o impacto sobre a cabeça do animal é tão forte, que quando o dardo sai, traz consigo parte do cérebro, que podemos ver caído no chão, junto ao dos outros bois abatidos. O bovino cai, vivo, mas inconsciente em uma esteira. Como disse Milton, a situação do animal nesse instante é comparada a um estado de coma. Conforme sua explicação, “a função respiratória e cardíaca está normal. Normal entre aspas, está funcionando. Aí depois da sangria que é o corte na carótida e jugular, aí que ele morre, entendeu. Então ele não está totalmente morto, está tipo em coma”. Quando o bovino cai na esteira, há um funcionário encarregado em suspendê-lo. A suspensão se dá por uma corrente presa em uma das patas e então um botão é acionado para levantá-lo. Milton me explicou que há uma marreta nesse local, a disposição do funcionário que está no chão, porque às vezes o animal cai em estado de consciência, ficando em pé. Nessa ocasião, o boi deve, portanto, levar outro impacto com a marreta para poder ser desacordado e então suspenso. O ato de suspensão, de acordo com Milton deve ser rápido, não pode passar de um minuto, para evitar que o animal “acorde”. Uma vez suspenso há um segundo funcionário responsável por fazer um corte em seu pescoço, a chamada sangria. Será através desse corte que o animal efetivamente será morto. Enquanto é suspenso e enquanto sangra, o animal faz movimentos com suas patas e cabeça. O que nos leva a questionar se está realmente desacordado ou inconsciente no momento da morte. Milton, assim como as leituras sobre esse assunto, indicam que tais movimentos não são frutos de uma ação consciente dos animais, mas trata-se de espasmos. Nesse sentido, cabe enfatizar que a pistola pneumática é utilizada em lugar da marretada na 14 cabeça, antiga forma de atordoamento. A ideia é que com a pistola, apenas um tiro seria suficiente e certeiro para “derrubar” o animal, além disso, haveria realmente um atordoamento eficaz do animal, que o impediria de “sentir” a morte através da sangria. Contrário, portanto, ao uso da marreta, quando era preciso acertar os animais repetidas vezes, resultando nem sempre no atordoamento efetivo, o uso da pistola visa atender também aos princípios do bem estar. Durante o período da sangria, que deve durar em torno de três minutos, o animal fica intocável, até que metade do volume de sangue saia do seu corpo. O animal não pode, portanto, nesse período mínimo ser manipulado para haver a certeza de que realmente está morto, como nos informa Milton: Aqui não pode ser inferior a três minutos para ter a certeza de que o animal vai estar totalmente morto. Por que? Daqui até lá no mínimo cinquenta por cento do volume sanguíneo já escoou, ou seja ele morreu. Nesse processo o animal já não sente mais nada. Após esse tempo, o animal é considerado morto e pronto para ser dada continuidade ao processo de produção da nova condição do bovino em um objeto material, a carcaça. Nesse momento da produção, há em torno de seis funcionários alinhados uns ao lado dos outros, como em uma linha de montagem, tendo tarefas específicas e repetidas. Posicionados a frente desses funcionários existem outros, responsáveis por alocar as partes dos animais que vão sendo retiradas. Algumas são descartadas e outras destinadas aos setores que preparam os subprodutos para a venda. O trabalho é feito de acordo com o ritmo da roldana em que o animal está suspenso, em um legítimo sistema fordista. São retirados olhos, chifres, língua, cabeça, patas, rabo, vísceras e por último o couro. Cabe enfatizar então que se trata de um processo de montagem (do corpo do animal em carcaça) mas a partir de uma desmontagem (retirada de certas partes do corpo dos animais). Esse processo de (re) composição é feito sucessivamente através de movimentos rápidos e treinados, qualquer corte mal dado pode condenar partes do animal/carcaça ou ferir os funcionários. Nesse instante, os funcionários devem manusear duas facas a fim de evitar a contaminação. A faca utilizada para o corte de partes que há couro, não pode ser utilizada para cortar a carne do animal. As partes dos animais são destinadas para dois setores localizados em frente ao próprio local do (des) monte e que recebe o nome de “toalete”. Um cuida da lavagem e limpeza do bucho, considerado como “parte suja”. E o outro setor cuida da parte “limpa”, como rabo, rins, fígado, etc. Depois desse tratamento os produtos são destinados para o processo de refrigeração e para serem embalados, ficando pronto para as vendas. O último passo dessa sessão consiste no corte vertical do animal\carcaça que é então dividido em duas partes. O animal está pronto para ser novamente decomposto, agora em costela, picanha, alcatra, etc. Contudo, no setor do abate existe ainda um espaço destinado ao médico veterinário responsável pelo 15 Serviço de Inspeção Federal (SIF), que garante o selo que será estampado na embalagem do produto e que é exigido para a comercialização da carne no país. O selo garante que a carne foi inspecionada, atestando a qualidade sanitária e a conformidade com a legislação. Portanto, além do setor de qualidade, próprio do frigorífico, existe a fiscalização governamental a fim de atestar a qualidade do produto sobre o aspecto sanitário. Nesse espaço, o médico veterinário deve avaliar a carcaça dos animais, pois através da observação, doenças como a tuberculose, por exemplo, podem ser identificadas. Transferidos do lugar do abate, os animais, agora carcaças, são destinados, ainda por essa roldana, a uma sala refrigerada. O novo processo de separação dos produtos não ocorre imediatamente. Segundo as normas sanitárias é preciso que haja um período de resfriamento para evitar contaminações. Logo, o processo de desmembramento da carcaça ocorre com os animais abatidos em dias anteriores. Entre essas duas atividades, é possível assinalar a transformação de fato do animal em carcaça. A partir de então já não há mais um animal representado a partir do corpo orgânico vivo, mas uma peça, representada a partir dos nomes de produtos, tal como são adquiridos pelos consumidores. IV - Dimensões subjetivas para a produção de carne de qualidade Conforme a descrição das operações produtivas do frigorífico JBS, observa-se que da pressão dos defensores dos animais, bem como dos resultados de estudos científicos, a preocupação com o chamado bem estar animal é reconhecida e incorporada na cadeia produtiva da carne em termos discursivos e práticos. Desse modo, novas técnicas, ferramentas e instalações são gradualmente introduzidas nos frigoríficos com vistas a evitar “estresse”, “agitação”, “sofrimento”, além de lesões físicas nos animais. As operações no frigorífico que dizem respeito tanto a instrumentabilidade técnica, quanto aos procedimentos adotados pelos funcionários nos mostram a tensão em torno do animal enquanto ser senciente. A introdução das normas de bem estar faz com que os funcionários assumam novas práticas, um novo imaginário sobre o animal que está sendo manipulado, ao mesmo tempo em que devem lidar com a irredutibilidade da morte nesses ambientes. A respeito dessa tensão que permeia o estatuto do animal como sujeito e objeto simultaneamente, observamos que a incorporação da perspectiva de que os animais são seres que sentem não promoveu a reversão da condição desses animais, considerados matéria prima para a produção de um bem alimentício. No âmbito das normas de bem estar não se fala em garantir o direito à vida aos animais, portanto, a nova orientação à essa modalidade produtiva consiste em conduzir à boa vida e à boa morte dos animais. Haveria, podemos dizer então, uma aparente contradição, se considerarmos a lógica acerca do valor da 16 vida expressa pelos defensores dos direitos dos animais. De um ponto de vista filosófico, Peter Singer, no livro “Libertação animal” (2010), trabalha com a ideia de que aquele que sofre tem o direito de não sofrer. Não sofrer consistiria também em não ser morto, já que a perda da vida seria considerada fonte de sofrimento. Nesse caso, é preciso lidar então com o fato de que os animais continuarão a ser abatidos para a produção de carne. Para lidar com essa aparente contradição, Milton explora o que entende como uma existência diferente entre as espécies animais que, como consequência traz a cada uma das diferentes categorias de espécies uma forma de tratamento particular: Eu quando comecei aqui há nove anos atrás, o dono era um português e aí ele conversando comigo no dia da minha entrevista para começar a trabalhar aqui, você é veterinário, tem que cuidar dos animais, você quer matar os animais, como é isso, me explica isso, eu falei não, isso daí não é animal de estimação, vivemos em um país capitalista, a gente mata os animais para alimento. Os bovinos estão inseridos na rede de produção da carne como matéria-prima, logo privá-los da morte é que seria contraditório dentro desse sistema econômico, pois o inviabilizaria. Incorporar a subjetividade atribuída aos animais na perspectiva mais radical, que justifica a igual consideração moral entre humanos e nao humanos poder ser entendida como uma ação disparatada por parte desse mercado, uma vez que não faria sentido à sua lógica de funcionamento. Mas como então o princípio do bem estar adquire razoabilidade? Haveria espaço para a preocupação ética com o bem estar dos animais na cadeia produtiva da carne? Observamos que de fato esse princípio é reconhecido e levado a frente, contudo seu fundamento adquire outros contornos, não com relação à sacralidade da vida dos animais, mas com relação à eficiência produtiva. Tendo em vista a organização do frigorífico JBS descrita, observa-se que a perspectiva do bem estar animal é incorporada aos parâmetros técnicos e produtivistas que orientam a sua lógica, num sistema operacional mais amplo. A estrutura do frigorífico, em diferentes setores, é remodelada com vistas a atender às práticas consideradas compatíveis com as premissas do bem estar animal. Além disso, os funcionários são orientados também a mudar sua forma de lidar com os bovinos com o objetivo de garantir a seguridade física e emocional dos animais. Esses fatores, por sua vez, adquirem sentido na medida em que são diretamente relacionados com a produção em termos de maior rentabilidade. Portanto, os parâmetros técnicos em torno do bem estar animal são introduzidos a partir de um discurso científico, que além de reconhecer a senciência animal, vincula essa característica à eficácia produtiva do frigorífico. Considerando a mudança de gestão do antigo grupo Equatorial, com a aquisição da planta pela empresa JBS, a maior do ramo, foi possível observar, através do discurso dos funcionários, a existência de novas orientações com respeito a estruturação produtiva do frigorífico no sentido da “maior 17 profissionalização”. Por “profissionalização” foi possível entender que se trata da capacidade e rigor da empresa em atender as regulamentações impostas, de modo a garantir a máxima qualidade e aproveitamento dos produtos. Nesse sentido, Milton enfatizou o rigor com relação a temperatura dos ambientes de estocagem da carne, bem como dos caminhões em que são transportadas, como forma de atender aos requisitos que atestam a qualidade do produto, evitando assim a rejeição por parte do comprador. Durante entrevista realizada com Leandro, encarregado do setor de abate, foi mencionado também algumas novas diretrizes implementadas pela gestão atual, como por exemplo o “osso branco”, que se trata de um aprimoramento da técnica para desossar a carne em sua totalidade, de modo que sobre apenas o osso, sem resíduos de carne. Em vigência dessas transformações em direção ao maior “profissionalismo”, o bem estar animal é tratado igualmente como um componente importante. A realização da entrevista com Leandro ocorreu em sua casa em um domingo pela manhã. Quando cheguei no horário combinado, Leandro havia programado que eu assistisse ao vídeo sobre abate humanitário produzido pela WSPA (Sociedade Mundial de Proteção Animal), e que foi encaminhado a ele pelo setor administrativo da empresa, como forma de treinamento. O conteúdo do vídeo, corrobora a perspectiva sobre a incorporação da dimensão do bem estar animal no âmbito das técnicas produtivas do frigorífico. Com uma linguagem fundamentalmente didática, o vídeo traz orientações sobre como deve ser realizado o manejo dos animais e, ao mesmo tempo, possui um discurso justificador e motivador que ressalta a importância da adoção dessas práticas. Ao prestar atenção sobre a maneira como as normas de bem estar são apresentadas no vídeo, observa-se que há a preocupação em demonstrar que as novas técnicas, como por exemplo, o tempo de espera dos bovinos nos currais antes do abate, não promove uma redução da produtividade, ao contrário, tais normas contribuem para o aumento da qualidade da carne e, por conseguinte, para a maior rentabilidade da empresa. Assim, fatores emocionais dos animais são relacionados às características da carne. Discute-se então que dependendo do nível de estresse ou agitação dos bovinos na hora do abate, pode haver como resultado uma carne escura, dura e com prazo de validade menor. Além disso, o modo como os animais são manejados no momento em que são “descarregados” dos caminhões, ou quando são conduzidos no frigorífico podem ocasionar lesões físicas que resultarão em danos na carcaça e, portanto, menor aproveitamento do produto, já que as partes lesionadas precisam ser descartadas. Atualmente há então um crescente número de publicações científicas nas áreas de zoologia e medicina veterinária que aliam os fatores relacionados ao bem estar com aspectos produtivos. A partir dessa perspectiva as normas de bem estar são então justificadas e implementadas nos frigoríficos. Observa-se ainda que a normatização das operações que levam em conta o bem estar animal é de difícil padronização, uma vez que diz respeito em muitos casos a micro ações dos funcionários com 18 relação aos bovinos. Além disso, a fiscalização, bem como a adoção dessas práticas depende de uma ação eficaz, tanto por parte do controle de qualidade da empresa, quanto por parte do setor de fiscalização governamental. Tal eficácia não é sempre atingida, porque as pessoas implicadas nesses postos nem sempre estão “convencidas” de que as condições físicas e emocionais dos animais são relevantes ou têm interferência sobre a qualidade da carne. Essa questão pode ser percebida através da entrevista realizada com Luciana, engenheira de alimentos e ex-funcionário do frigorífico: A questão e complicada porque a gente vai lá e explica e eles acham besteira. A gente diz, olha o bichinho não pode sofrer, a gente tem que dar o choque na parte da tal, porque em outro local pode afetar a qualidade da carne e o bichinho pode sofrer. Aí eles acham a maior idiotice porque não tem conhecimento prévio. E se a gente entrar no frigorífico a maior parte das pessoas que trabalham não tiveram estudo nenhum. Noventa por cento, sinceramente, você vai ver que eles não tem estudo nenhum. Tudo o que eles fazem é o que o controle de qualidade ensina para eles antes deles entrarem para fazer o trabalho. No frigorífico, o seguimento das regras depende da inspeção, de quem esta lá dentro. Esses dois aspectos, nos permitem um entendimento a respeito da existência no vídeo de um discurso que visa tomar partido das ações de bem estar animal pelo convencimento sobre os benefícios econômicos produzidos pela adoção desse novo modelo operacional. Sendo assim, embora em determinado momento o apresentador diga que as novas técnicas “não são um beneficio opcional, mas uma exigência da lei”, a dinâmica produtiva dos frigoríficos, bem como o caráter dessas técnicas, se estruturam inicialmente de uma maneira fluida, de modo que o seu cumprimento depende em grande parte da iniciativa pessoal dos funcionários, pois a fiscalização e a normatização dessas técnicas não se estruturam de forma rígida. Nesse caso, a disposição da lei como fator justificador possui menos centralidade que os ganhos econômicos que seriam obtidos. V - Considerações finais A partir da discussão realizada até aqui, observamos que a disposição moral a respeito do cuidado com a vida dos animais raramente é refletido como um componente importante sobre a incorporação das normas de bem estar animal por parte dos agentes envolvidos nessa etapa da produção da carne. Ainda que a subjetividade do animal seja incorporada e portanto, considerada uma dimensão válida, os agentes econômicos a tornam um critério relacionado a qualidade da carne e não a preocupação com a qualidade de vida dos animais. Nesse sentido, evitar o “sofrimento” e a “dor” entre os animais de produção aparece como uma exigência que atende aos bons padrões de produção da indústria. Desse modo, se por um lado os defensores dos animais evidenciem a sua capacidade de sentir para fundamentar denúncias contra as 19 situações de violência infligidas aos animais em termos morais, por outro lado, a maneira como o sofrimento é incorporado no âmbito das relações mercantis se dá por meio de um deslocamento desse sentido. A preocupação ao invés de ética se torna econômica. Corresponder aos aspectos que garantam a boa vida dos animais, segnifica corresponder a sua boa transformação em mercadoria. O mercado da carne faz da subjetividade dos animais, evidenciada pela senciência, um componente importante acerca da qualidade do produto final. Seguindo os direcionamentos do vídeo, bem como as explicações de Milton, realizar o manejo de uma maneira que leve em conta as sensações dos animais, e estabelecer um ambiente “calmo”, “confortável” e “livre de estresse” é importante enquanto forma de controlar os aspectos da carne do animal, enquanto produto final. Portanto, de uma pressão externa e ética, a perspectiva do bem estar animal é apropriada e resignificada, se tornando uma diretriz gerencial interna, implicada com a gestão produtiva. Nesses termos, bem-estar animal significa cuidar bem do produto, ou seja, tratar os animais adequadamente é importante, pois se trata de uma mercadoria valiosa. Referências bibliográficas BLONDEAU, Cecile. La boucherie : un lieu d’innocence ? Ethnographiques.org, Numéro 2 - novembre 2002 [en ligne]. DESCOLA, Phillipe. Estrutura ou Sentimento: A relação com o animal na Amazônia. MANA: Estudos de Antropologia Social, n. 4 (1): p. 23-45, 1998. BONNAUD, Laure e COPPALE.Qui contrôle ce que nous mangeons ? La sécurité sanitaire des aliments. Paris : Ellipses, La France de demain, 2011. DIAS, Juliana Vergueiro Gomes. O rigor da morte : a construção simbólica do « animal de açougue » na produção industrial brasileira. 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