7 Encontro Nacional de Estudos do Consumo
Mercados contestados - As novas fronteiras da moral, da ética, da
religião e da lei
24, 25 e 26 de Setembro de 2014/Rio de Janeiro
O Mercado da Carne e as Contestações em Torno
da Vida e Morte de “Animais que Sentem”
Ana Paula Perrota1
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Mestre em Sociologia e Antropologia no Programa de Pós Graduação em Sociologia e Antropologia - UFRJ.
Doutoranda nesse mesmo programa. Email:[email protected]
O Mercado da Carne e as Contestações em Torno da Vida e Morte de “Animais que
Sentem”
Resumo:
Nas últimas décadas observamos no Brasil a atuação dos chamados defensores dos animais. Esses grupos
reivindicam a atribuição de direitos para viventes não humanos, através da elaboração de outra perspectiva
ontológica sobre os animais. Fundamentados por estudos científicos e filosóficos, os defensores buscam destituir o
caráter autômato dos animais e atribuir-lhes uma interioridade, através de sua capacidade de sentir. Em razão dessa
característica comum com os humanos, os defensores justificam a reivindicação sobre a simetria moral do valor da
vida humana e animal. A nova condição dos animais, tratados como “seres que sentem” e não mais como
“máquinas”, faz emergir uma nova moralidade em torno de sua vida e morte. Uma das consequências decorrentes
desse processo é a institucionalização das noções de bem estar animal e abate humanitário, que visam atender
principalmente os animais de produção. Essas noções, de acordo com Jocelyne Porcher (2002) colocam em questão
o modo de relação e ação que construímos com e para os animais de produção. Constituídos a partir da crítica ao
processo industrializado e em massa de produção da carne, as premissas em torno do bem estar animal e abate
humanitária são inseridas como discurso e prática nos ambientes de produção da carne, promovendo impactos
sobre esse mercado. Nesse caso, discutimos que o mercado da carne é pressionado a levar em conta essa nova
realidade, que trata os animais não mais como objetos, mas como vivantes. Em conformidade a esse vigente
universo de valores, novas técnicas, ferramentas e instalações são gradualmente introduzidas e transformadas nos
frigoríficos com vistas a evitar “estresse”, “agitação”, “sofrimento”, além de lesões físicas nos animais.
Palavras chaves: direitos dos animais; mercados contestados; bem estar animal
I - Introdução
Nos dias de hoje é possível observar manifestações políticas em favor dos “direitos dos animais”
em diferentes esferas da vida social. O uso de animais, seja como fonte de alimentos, experimentação
científica ou diversão, se tornam alvos de protestos por parte dos chamados defensores dos animais.
Nesse caso, a “ética animal” se impõe no século XX (Descola, 1998; Vilmer, 2011), com vistas a
transformar a responsabilidade moral e jurídica dos homens com relação à outras espécies. As ações
políticas dos defensores dos animais consistem então em redefinir a relação entre homens e animais do
ponto de vista moral e prático, ao questionar a posição exclusiva dos homens no que se refere ao valor da
vida e à titularidade de direitos.
A consideração dos animais como sujeitos de direitos perpassa a transformação de práticas
consolidadas e institucionalizadas, presentes de diferentes maneiras em nosso cotidiano, como na
alimentação, vestuário, experimentação científica, entretenimento e etc. Atribuir direito aos animais
significa, portanto, repensar um amplo quadro de relações nos quais esses seres estão inseridos. Logo não
se de uma simples tarefa. Cientes desse desafio, os defensores empreendem um esforço científico e
filosófico a fim de desenvolveram uma ética e direito animalista capaz de justificar a atribuição à vida
animal do mesmo valor atribuído à vida humana.Trata-se de dizer então que a reivindicação dos direitos
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dos animais não se faz de maneira arbitrária, mas a partir de um conjunto de formulações teóricas que têm
a pretensão tornar legítima a “causa animal”.
Diferentes aspectos são então mobilizados em torno da ética e do direito animalista. Em linhas
gerais, os animais são dotados de uma interioridade, tal qual os humanos, se constituindo de igual modo
como agentes dotados de racionalidade e, portanto, capacitados a fazer escolhas que atendem seus
interesses, seja o interesse geral da espécie, ou particular, enquanto indivíduo. A pergunta por que animais
merecem ser respeitados tal qual os humanos? É respondida através da ideia de que animais, assim como
os humanos, possuem uma vida e o interesse de vive-la bem. A relação entre ética e interesse, é
mobilizada como aspecto fundamental que justifica a proteção moral dos animais. Portanto, a perspectiva
de que os animais possuem interesses é o que confere conteúdo a proibição moral e legal de tratarmos
animais como coisas.
Caso possamos considerar essa estratégia dos defensores como um apelo à nossa razão, por outro
lado, observamos também a mobilização de elementos capazes de atingir nossos sentidos. Devemos a
partir de nossas atividades intelectuais reconhecer os animais enquanto sujeitos, mas também nos
sensibilizarmos com o seu sofrimento e nos convencermos de que é preciso exigir a reparação dessa
situação. A capacitação racional dos animais e a posse de uma interioridade fazem deles seres que sentem.
E a denúncia sobre situações de violência a qual são submetidos é acionada como elemento importante
para justificar a transformação das relações entre humanos e não humanos. Observa-se então que as
questões em torno do “sofrimento animal” se tornam uma categoria central na luta dos defensores, que
atravessa humanos e animais na busca de direitos e na delimitação dos seres implicados com a justiça. A
morte nos frigoríficos, a tortura nos laboratórios, a separação dos filhotes na indústrias do leite, a privação
da liberdade nos zoológicas e etc. são situações que importam, porque os animais sofrem. As discussões
em torno do sofrimento é o elemento que tornaria inadmissível a continuidade dessas práticas.
A nova condição dos animais, tratados como “seres que sentem” e não mais como “máquinas”, faz
emergir uma nova moralidade em torno de sua vida e morte. Uma das consequências decorrentes desse
processo é a institucionalização das noções de bem estar animal e abate humanitário, que visam atender
principalmente os animais de produção. Essas noções, de acordo com Jocelyne Porcher (2002) colocam
em questão o modo de relação e ação que construímos com e para os animais de produção. Constituídos a
partir da crítica ao processo industrializado e em massa de produção da carne, as premissas em torno do
bem estar animal e abate humanitário são inseridas como discurso e prática nos ambientes de produção da
carne, promovendo impactos sobre esse mercado. Tal moralidade refletiu na constituição de normas
nacionais e internacionais que se constituem como fonte de preocupações inéditas. A partir de então,
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foram criadas novas formas de manejo durante a criação, o transporte e o abate dos animais, que visam
evitar seu “sofrimento desnecessário”.
As questões em torno do bem estar animal e abate humanitário se constituem como uma nova
fonte de preocupações que passaram a incidir sobre as redes de produção, venda e consumo da carne, se
constituindo numa nova tensão e fonte de medidas disciplinatórias: tratar bem animais que irão morrer.
Por meio do processo de abate para a produção da carne será pensado, portanto, conceitos de vida e morte
em termos morais e quais os dilemas em torno da transformação de animais que “sentem”, que têm
“inteligência”, em suma, que são “como os humanos”, em carne. Casos de crueldade aos animais,
principalmente domésticos, como cachorros e gatos, são cada vez mais denunciados no cenário brasileiro,
ganhando cobertura da imprensa e sendo alvo de protestos por parte dos defensores dos animais e da
população de forma mais ampla. Mas o processo de abate para a produção da carne bovina pode ser
abordado como um caso limite que confronta a preocupação em ter que tratar bem os animais que
continuarão a ser abatidos. Trata-se de discutir que embora nesse processo a morte dos animais exista
como uma situação inevitável, isso não deveria excluir que os bovinos recebam um tratamento
considerável plausível ou justo. Nesse caso, os novos valores e ideologias políticas em torno do
movimento de defesa dos animais, contribuem para que os frigoríficos sejam obrigados, através de leis
federais, a implementar novas regras de manejo dos animais2.
Tendo em vista essas questões, será discutido nesse trabalho o processo de abate bovino para a
produção da carne, a fim de tratarmos sobre uma rede produtiva que reifica os animais, mas que agora
precisa conjugar essa objetivação com uma subjetivação, que traz o imperativo de dispensar um
“tratamento ético” aos animais. Orientados ou obrigados por normatizações no âmbito federal, os agentes
envolvidos nesse campo econômico devem levar em consideração a integridade física e emocional dos
animais, sob pena de boicote de consumidores, restrições de mercado ou sanções governamentais. Para
tratar dessas questões, terei como base as informações obtidas durante o trabalho de campo realizado em
Açailândia (MA), em julho de 2012, que contou com uma visita ao abatedouro JBS, e com entrevistas
realizadas entre seus funcionários.
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Esse trabalho é parte da pesquisa que realizo para o doutoramento em Sociologia e Antropologia no programa de pósgraduação da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Para discutir sobre essas questões, serão consideradas, principalmente,
as informações obtidas durante o trabalho de campo realizado em Açailândia (MA), em julho de 2012, que contou com uma
visita ao abatedouro JBS.
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II- Industrialização da produção de carne: mudança de práticas e de vínculos
De maneira simplificada, o sistema de produção da carne consiste em dar vida aos animais, criálos e como última etapa, promover seu abate de modo a obter a mercadoria final. Esses processos, por sua
vez, podem ser conduzidos de diferentes maneiras. Não só a forma de abate se organiza a partir de
diferentes critérios, mas a maneira como os animais são criados também diferem segundo os modelos de
organização. Atualmente, pautado por um modelo cientificista e um ideal de modernização e primor
técnico, a estrutura que culmina no abate nos chamados frigoríficos industriais adquire hegemonia na rede
global de produção e venda da carne. As discussões em torno do bem estar animal dialogam diretamente
como essa forma de organização do mercado, que se caracteriza pela expressividade dos números
produtivos. Os animais abatidos nesse regime industrial são contados as centenas ou milhares por dia. O
alcance desse número se faz mediante uma série de apropriações e manipulações dos animais que foram
consideradas cruéis. As normas de bem estar e abate humanitário visam intervir nessa situação específica,
portanto, é importante discutirmos sobre a construção do mercado nesses moldes industriais.
A atividade de produção da carne diz respeito à transformação do bovino (vivante) em alimento
(objeto), uma vez que não consumimos animais mortos mas comida. Nesse caso, há, uma organização
técnica e moral que diz respeito ao processo de conversão do animal em alimento, ou em outros termos,
que faz da carcaça uma substância consumível e não um cadáver repugnante (Remy, 2002). Ao pensarmos
nas diferentes facetas da morte, os frigoríficos são lugares então em que a perda da vida não se configura
na produção de um corpo morto, mas na fragmentação do vivente, e por conseguinte, na produção de
diferentes bens comercializáveis que adquirem uma realidade própria. Sendo assim, embora pudéssemos
dizer os abatedouros são locais em que há a situação rotineira de morte dos animais, estes são pensados
como fora da contingências dos mortais, de modo que a atividade de abate se configura como mais uma
etapa do processo produtivo da carne. Desse modo, mesmo depois de abatidos, os animais continuam a
participar da vida humana, mas agora sob a forma de alimento.
O modelo de abate bovino industrial, tal como se organiza hoje nas sociedades contemporâneas,
tem seu surgimento no início do século XIX e se caracteriza como uma forma de organização inédita,
com relação ao modelo existente até então. Nesse contexto de mudanças tanto os aspectos técnicos quanto
o modo e a concepção acerca da relação entre humanos e animais são transformados. Essas
transformações ocorrem em meio a um processo mais amplo de urbanização e industrialização e seguem a
dinâmica de reordenamento do espaço urbano das grandes cidades. A cidade de Chicago, nos Estados
Unidos, é discutida por historiadores e cientistas sociais como paradigma dessa nova modalidade
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produtiva, devido às instalações pioneiras das empresas Swift e Armourn, nas primeiras décadas do
século XIX. Nesse mesmo período, os chamados frigoríficos industriais foram igualmente implantados
em cidades européias como Paris e Londres. A partir de então, esse modo de abate se expandiu entre os
países capitalistas, de modo, que desde o final do século XIX, a transformação da estrutura de abate no
Brasil seguiu essa mesma dinâmica:
A construção do matadouro no Campo de São José, em Santa Cruz, na cidade do Rio de Janeiro,
distante do centro da cidade cinqüenta e cinco quilômetros e oficialmente inaugurado no dia 30 de
dezembro de 1881, prometia uma solução modernizadora para a capital do Império. (…) Para o novo
estabelecimento, encomendaram-se todos os acessórios, maquinário, e mesmo os portões, “dos países
civilizados da Europa”, no intuito de erguer, na cidade do Rio de Janeiro, um matadouro modelo.
(Dias, 2009, pag.5)
De maneira geral, a formação e instalação da estrutura de abate industrial têm como fundamento
uma proposta modernizadora, a fim de atender tanto a expectativa de aumento da rentabilidade, como as
novas pressões existentes pelo controle sanitário dos animais e da carne. Contudo, além dessas questões
outro aspecto discutido como motivação para essas mudanças diz respeito à preocupação moral de
impedir a visibilidade pública do abate, num movimento conjunto de tornar oculta a morte de humanos e
animais. Pois se a morte era considerada um espetáculo público, a partir do século XX se torna um tabu
(Esquerre e Truc, 2011). A partir de então, o trânsito e a mortes dos animais nas cidades se tornaram
inaceitáveis. Os abatedouros foram levados para longe dos centros urbanos, ao que Noelie Vialles (1987)
trata como um exílio para o exterior das cidades. Ainda de acordo com a autora, trata-se de tornar
invisível o que antes era tratado como um espetáculo público, ao mesmo tempo em que o vermelho do
sangue é trocado pelo branco, seja dos revestimentos das paredes, dos acessórios ou das roupas dos
funcionários, que vão dos pés as cabeças.
A concentração e o distanciamento da atividade de abate dos centros urbanos cumprem diferentes
funções. Permitem a vigilância das práticas a fim de garantir a qualidade da carne, evitando fraudes ou
contaminações. Ocultam a morte dos animais, bem como, os “restos” desse processo produtivo e seus
efeitos: mau odor, presença de animais que se alimentam desses “restos”, contaminações, etc. Esse modo
de abate se torna “higienizado”, e conforme Vialles (1987) ressalta, adquire características de um
ambiente laboratorial, em razão da brancura e assepsia. Assim, observa-se a entrada e a legitimação do
corpo veterinário e de suas práticas, que fazem do abatedouro um lugar considerado decisivo para a
segurança sanitária dos alimentos (Bonnaud, 2008). Contudo, esses aspectos correspondem também ao
processo de racionalização técnica, que caracterizam as sociedades modernas.
Desse modo, o método de abate se transforma num processo mecanizado e massivo, e portanto,
marcado por uma extensa divisão do trabalho. A partir dessas novas perspectivas, uma das mudanças
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fundamentais ocorridas, é que se na Idade Media não havia diferenças entre o oficio do açougueiro e dos
criadores, a partir de então os açougueiros são obrigados a abater os animais nos abatedouros municipais
das grandes cidades (Gascar, 1973). O abatedouro é separado então dos consumidores e criadores,
promovendo um distanciamento também acerca da relação entre humanos e animais. O processo de abate
passa a ser orientado predominantemente pela razão econômica e, em conseqüência, “l´animal doit
répondre à dês critères et performances définis par les éleveurs, les techniciens et le conteute économique
de la production” (Porcher, 2002, pag. 3). Os animais destinados ao abate são, portanto, considerados
ferramentas de produção ou produtos, de modo que o distanciamento oriundo da forma como essa
modalidade produtiva passa a se organizar permite a construção do corpo dos animais como objeto
(Remy, 2003). Diante da obrigação do aumento de produção e rendimentos, os animais são definidos por
consideração ao que eles se tornarão e não por consideração ao que eles ainda são (Anzalone, 2005).
Durante o trabalho de campo em Açailândia, participei do leilão de gado ocorrido na 45º
Exposição Agropecuária de Imperatriz. Chama atenção para as questões discutidas aqui, os termos
mencionados pelo leiloeiro para caracterizar a qualidade dos bovinos. Os atributos físicos dos animais
eram ressaltados como aspectos que garantiriam a eficiência e a seguridade da produção do “boi gordo”,
que por sua vez geraria um alto rendimento na produção da carne. Os aspectos físicos diziam respeito à
capacidade dos animais de atingir o melhor peso e tamanho em menos tempo. Assim, adjetivos como
“alta performance” e “precocidade” foram repetidamente utilizados durante a apresentação dos animais
para a venda. Esses termos nos permitem pensar sobre a dualidade vivante – objeto, que define a forma
como os animais foram apresentados. A eficiência produtiva dos bovinos se dá através do funcionamento
biológico acelerado do seu corpo, que, por sua vez, é pensado como uma máquina manipulável a fim de
ser melhor ajustada.
A conjugação dessas duas perspectivas nos permite observar então a condição dos bovinos de
“animal-máquina” (Remy, 2003), ou seja, a de um vivante que é manipulado e planejado para trazer aos
agentes envolvidos na rede de produção da carne maiores ganhos financeiros. Os animais têm, portanto,
seu desenvolvimento biológico compreendido segundo uma lógica mecânica, mas, sua performance
ocorre segundo processos orgânicos. Nesse sentido, as ciências biológicas incorporam os animais como
um dispositivo de pesquisa que tem por finalidade torná-los mais eficazes em termos produtivos, através,
por exemplo, da melhora do seu rendimento energético ou da maximização do resultado de suas funções
nutritivas, reprodutivas e de crescimento (Remy, 2003).Tais ciências são, portanto, definidas por Jocelyne
Porcher (2002) como “biotécnicas” na medida em que são especializadas e aplicadas para o considerado
melhor desenvolvimento das funções biológicas dos animais de produção ou, em outros termos, para o
melhoramento de sua performance produtiva.
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No âmbito desse processo de industrialização, racionalização e mecanização que permeia a rede
de produção da carne, são tratadas questões referentes à consideração moral em torno dos animais. Alguns
autores das ciências sociais (Vialles, 1987; Remy, 2003; Porcher, 2002; Anzalone, 2005) falam de
“objetivação do sensível” bem como de “desanimalização” dos animais de produção, para definir sua
mudança de status nesse processo de abate. A consideração de que a relação com os animais passa a ser
orientada em torno de uma lógica técnico-econômica, que se satisfaz em termos de uma política de
produtividade e assepsia é criticada com vistas à perspectiva de que os animais são reduzidos à sua fria
materialidade (Gascar, 1973). Nesses termos, por
“objetivação do sensível” e “desanimalização”, os
autores entendem como um processo relacionado à reificação do animal de produção e à banalização do
abate na medida em que transformam “les “tueurs” en “operateurs”, et l´animal-viande em
artefact” (Remy, 2003). Nessa mesma perspectiva Porcher (2002) diz que há uma construção do status
dos animais de produção reificado e ao mesmo tempo a negação do vínculo entre criadores e animais em
razão da separação entre as atividades de criação e abate. Os animais, de acordo com a autora, são
considerados de forma unilateral, uma vez que o único objetivo de sua existência se torna o lucro,
havendo, portanto um esquecimento do sentido de sua vida. Em complemento a essa discussão, Blondeau
(2002) afirma que os animais de produção perdem sua personalidade, sua natureza animal e sua
visibilidade.
A crítica acadêmica sobre a “desanimalização dos animais” é acompanhada pela crítica dos
defensores dos animais contra a “crueldade” que seria cometida nesses ambientes, em termos físicos e
emocionais. Da perspectiva de acadêmicos e defensores, a reificação dos animais de produção, bem como
o isolamento físico e moral do processo de abate produzem uma “insensibilidade” e “invisibilidade” que
fazem com que os animais sejam tratados de forma “cruel” e “violenta”. Ainda no século XIX foram
fundadas então as primeiras associações protetoras dos animais, em países como Inglaterra e França. E na
metade do século XX, veterinários passaram a considerar os métodos de abate nessa forma de
organização produtiva como bárbaro e cruel, dando surgimento à perspectiva do “bem estar animal” e de
“abate humanitário” como forma de reparar essa situação.
Da controvérsia entre “animal-máquina” ou “animal-sujeito”, o abate, bem como a forma cujo
essa atividade se estrutura, foi incorporado às críticas dos defensores dos direitos dos animais. Os
frigoríficos são denunciados como locais onde ocorrem milhares de assassinatos por dia. Essas denúncias
colocam em questão o fato de que vida e morte são conceitos políticos que adquirem um significado
preciso através de tomadas de decisão e que têm efeito sobre o destino de humanos e não humanos,
conforme a qualificação moral de suas vidas. Sendo assim, se da perspectiva dos defensores, a produção
de carne bovina é entendida como um ato criminoso, do ponto de vista dos órgãos governamentais, bem
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como da população em geral, significa uma conquista em termos econômicos, ou de forma mais “natural”
o resultado de uma atividade que tem por finalidade suprir nossas necessidades alimentícias.
Por parte dos defensores dos animais, o tratamento físico e moral dos animais de produção são
questionados nos termos de um resgate ou de uma reforma do seu status de “objeto” para “sujeito”. Para
efetuar tais denúncias e lutar pela reversão dessa situação, os defensores realizam o esforço de
transformar o status dos animais, de modo que possam ser inseridos moralmente na contingência dos
mortais. Essa transformação conceitual e prática que tem como objetivo refundar o modo de conceber a
realidade e de se relacionar com os animais, tem como uma de suas principais formas de embasamento os
trabalhos acadêmicos, principalmente das áreas biológicas, sobre a igual capacidade entre humanos e não
humanos de sentir. A explicação dita racional acerca da sensibilidade entre os animais é mobilizada por
militantes, militantes-cientistas e cientistas para afirmar um novo status moral dos animais. Portanto, a
tarefa de tornar animais e homens compatíveis no plano moral passa pela tarefa de torná-los
primeiramente compatíveis no plano da fisiologia ou de suas capacidades cognitivas. Essa
compatibilidade, atribuída através de um viés científico, justificaria a igualdade de tratamento entre os
viventes, a partir de uma nova representação do homem e do animal.
Nos termos da própria lógica racionalista, os movimentos se engajam politicamente a fim de
alterar a atual correlação de forças e modificar a condição dos animais. Considerando a legislação
existente sobre “bem estar animal” no âmbito nacional e internacional, podemos entender que de fato está
em curso uma perspectiva que aceita de forma legítima a capacidade dos animais de sentir e que, por
conseguinte, pressiona o mercado da carne a levar em consideração essa nova realidade. Desse modo, a
discussão sobre o “bem estar animal” coloca em questão o modo de relação e ação que construímos com e
para os animais de produção (Porcher, 2002). As denúncias contra o “sofrimento dos animais” foram
incorporadas pelo Estado na forma de novas regulações e foram impostas aos agentes econômicos.
Observamos então que a senciência animal, ou seja, sua capacidade de sentir modifica o padrão de
funcionamento do mercado da carne, desempenhando um papel performativo sobre a maneira como esse
mercado se organiza. Ao consideramos que as denúncias contra o “sofrimento animal” colocam em
questão o ato de matar animais para comer, visualizamos por um lado uma situação de crise ou mudança
no campo econômico e por outro a estratégia dos agentes desse mercado de adotar uma nova estratégia
com vistas a reorientar sua forma de atuação. O mercado da carne passa a ter que indubitavelmente
atender as normatizações em torno do bem estar animal.
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III - O desmembramento do animal e a produção da carcaça
A sensibilização com o sofrimento dos animais é alçada ao debate político como uma questão
pública significativa por parte dos defensores dos animais. Os agentes econômicos são influenciados
pelas ações de organizações sociais e são forçados, segundo sua posição no espaço social e suas
possibilidades econômicas, a modificar seus investimentos para se colocar em conformidade com as
classificações existentes (Garcia-Parpet, 2007). Nesse tópico discutiremos como o mercado da carne é
pressionado a levar em conta essa nova realidade, que trata os animais não mais como objetos, mas como
vivantes. Em conformidade a esse universo de valores, novas técnicas, ferramentas e instalações são
gradualmente introduzidas e transformadas nos frigoríficos com vistas a evitar “estresse”, “agitação”,
“sofrimento”, além de lesões físicas nos animais. Portanto, através da perspectiva “ética” dos defensores
dos animais, será discutido como essa dimensão se transformou num critério técnico que deve ser seguido
na rede de produção da carne.
Para discutirmos essas questões serão privilegiadas as questões decorrentes do trabalho de campo,
em Açailandia (MA). Além das entrevistas realizadas com funcionários do frigorífico JBS e com outras
pessoas vinculadas à cadeia produtiva da carne, será levado em consideração também a visita realizada as
instalações do frigorífico. Cabe ressaltar que a descrição desses processo produtivo terá como foco,
aspectos que nos permitem pensar a respeito das questões em torno do bem-estar animal. Digo isso,
porque mesmo que o processo de abate seja uma das etapas da estrutura de produção da carne, esse
ambiente permite a discussão de múltiplas questões : desde a problemática do risco e seguridade sanitária
dos alimentos às condições de trabalho dos funcionários da empresa. Portanto, essa apresentação será
restrita às questões pertinentes a discussão aqui proposta.
O antigo frigorífico Equatorial, agora JBS3 , fica distante de carro quinze minutos do centro de
Açailândia. A entrada no local se dá por uma saída da BR 010 km. Assim que cheguei observei
primeiramente os escritórios, o estacionamento e o galpão em que há o abate, corte e estocagem da carne.
O local é bastante arborizado e não é possível ver os animais que serão abatidos. O que nos faz saber que
se trata de um frigorífico é o cheiro da fumaça que sai das chaminés do galpão. Essa fumaça é oriunda do
cozimento de osso e vísceras não utilizáveis, para o preparo da chamada farinha de sangue e osso,
aproveitada na fabricação de rações. Nesse local fui apresentada e recebida por Milton, médico
veterinário e gerente de produção do frigorífico. Após as apresentações iniciais, Milton me orientou a
vestir as roupas adequadas para percorrer o espaço interno do local: calça, blusa, botas, touca e capacete
brancos, mais um protetor auricular. Recebi também recomendações para tirar objetos como brincos,
3 A JBS
S.A. é uma empresa brasileira, e o maior frigorífico no setor de carne bovina do mundo.
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relógio, pulseiras e anéis. Segundo ele, essas determinações são regras do controle de qualidade. Não
pude tirar fotos ou realizar gravações de vídeo, pude somente gravar através de áudio as suas explicações.
Vestida adequadamente para a visita, iniciamos o percurso, conforme ele disse, pela ordem lógica
do frigorífico, nos currais aonde os animais que chegam das fazendas aguardam pelo momento do abate.
A capacidade do frigorífico é de 450 abates por dia e cada boi utiliza 1800 litros de água. Mas como pude
observar nesse dia, havia cerca de 200 animais a espera. Milton me explicou que as atividades do
frigorífico foram reduzidas temporariamente em razão das mudanças de trabalho oriundas do processo de
transferência de gestão da nova empresa que assumiu o Equatorial.
Caminhamos então por alguns minutos até os currais, onde começa a primeira fase do processo de
abate do gado e finalmente pudemos observar os animais. Os currais são espaços retangulares com chão e
muros de cimento. O frigorífico visitado possui oito currais que devem comportar seis deles, cinquenta
indivíduos, e os outros dois, sessenta. A separação dos bovinos entre os currais tem como objetivo a
identificação do rebanho de cada criador. Os animais que chegam são ainda registrados pela identificação
das fazendas, para efeito de fiscalização das agências governamentais. A separação por criadores é
utilizada também para garantir o controle sobre a pesagem futura da carcaça e o somatório do valor a ser
pago aos criadores. Os animais são abatidos, portanto, a partir da divisão de cada lote dos diferentes
criadores.
A preocupação com a divisão e o espaço ocupado pelos bovinos é justificada ainda como uma
estratégia técnica para haver um espaço considerado adequado para os animais se locomoverem. Ao me
explicar sobre essa forma de organização, Milton compôs sua fala com alguns dos princípios do chamado
bem estar animal. De acordo com ele, os animais não podem ficar muito apertados, pois isso aumenta o
risco de “estresse” e brigas. A divisão dos currais foi explicada também como um mecanismo que evita
juntar animais de diferentes produtores em um mesmo local. De acordo com Milton, essa divisão é
importante para evitar as brigas, já que ao juntar rebanhos diferentes, os animais não reconheceriam seus
líderes, e a situação já “estressante” produziria também conflitos entre os bovinos.
Nos currais, os animais devem ter um tempo mínimo de “espera” que é de doze horas, conforme
regulamentação do Estado. Nesse período o rebanho fica em jejum, só é permitido beber água. Contudo,
se o rebanho vem de uma distância de até 50 km ele pode ser abatido com um tempo de seis horas, porque
os animais já teriam cumprido o jejum prescrito. O objetivo do tempo de “espera” é o de “esvaziar o
estômago” para haver um processo mais fácil de limpeza das partes dos animais aproveitadas como
subprodutos. Além disso, serve também para “acalmar” os animais. Nesse caso, Milton explicou que a
“espera” tem implicação com o “tempo de prateleira” da carne e com a qualidade do produto, pois se o
bovino for abatido “estressado” a carne ficará escura, dura e seca, além de ter um prazo de validade
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menor. Portanto, o tempo no curral é importante também, pois diminuiria os níveis de adrenalina do
rebanho que presumivelmente se agitou devido ao transporte e ao deslocamento, e ao fato de ser instalado
em um lugar desconhecido. Há então uma preocupação com a necessidade dos animais terem que “se
acalmar”, pois caso contrário, existe interferência direta na qualidade do produto final:
A espera é para o animal ficar melhor preparado para a hora do abate e além disso a vida de prateleira
do produto final. Se eu abato o animal sem estresse, a adrenalina dele está praticamente zero, a questão
do ph, tudo isso influencia no produto final lá na frente. Se eu abato o animal que fez no mínimo 12h
de jejum de dieta, essa carne vai ter uma vida de prateleira muito maior. Hoje nossa média é de dois
meses, de carne resfriada, desossada e resfriada.São dois meses o tempo de prateleira. Isso é exigência
da própria empresa, do gq que é o controle de qualidade, mas até três meses é tranquilo, a carne não
vai vencer não vai ter problema nenhum. Desde de que seja dessa forma que eu estou te falando, no
mínimo doze horas. E essa é a média que a gente trabalha,com 12h a gente abate os animais, você
pode ver que os animais estão calminhos, não tem correria, não tem euforia, estão totalmente
descansados como a gente chama.
Nesse local o contato com os animais se dá por passarelas suspensas, assim é possível ter um olhar
mais amplo sobre eles, permitindo o controle, por exemplo, a respeito de animais doentes ou lesionados.
Conforme, foi possível visualizar, embora em grandes espaços, os animais ficam amontoados em um
canto, na parte dos fundos dos currais. Não há agitação nem mugidos, mas há a impressão de que eles
parecem assustados. Com o barulho de nossos passos nas passarelas de madeira, assim como da nossa
voz, os animais se direcionam ainda mais para o fundo do curral, ficando mais distantes de nós e
espremidos no canto.
Os currais, como
Milton explicou, devem ser limpos diariamente para garantir um melhor
ambiente para os animais, além de responder aos imperativos de higienização para o abate. Esses espaços
têm ligações com os corredores que levam os animais para o abate. Os corredores, em sua parte inicial
têm mais ou menos dois metros de largura. Esses corredores conduzem os animais para um
compartimento setorizado onde recebem banhos de água através de pequenos chuveiros suspensos. O
banho serve para limpar o animal, tirar o excesso de fezes para diminuir o risco de contaminação da carne
e além disso, facilitará a retirada do couro. Como Milton explicou “essa água é fria e os animais vêm
quente, dá uma sucção, facilita no processo de escoreamento, que é tirar o couro”. Depois do banho, os
animais andam pelo corredor e são direcionados para outra parte setorizada. A última antes da rampa final
que os leva para o abate. Nesse local, contei o número de oito bois. Foi a primeira vez que vi os animais
“agitados”. Eles andavam de um lado para o outro, e às vezes, escorregando no chão de cimento, às vezes
caindo, talvez por estarem molhados. Havia também o movimento dos animais que presumivelmente
identifiquei como uma tentativa de voltar, fazer o caminho contrário, sair daquele pequeno “cercado”.
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Sem que eu fizesse qualquer menção à considerada agitação dos animais, Milton se antecipou em explicar
porque os animais agiam daquela forma:
Os bois sabem que vão morrer, quando ele desce nesse corredor é algo sem retorno, uma vez nesse
corredor nunca mais retornará. E de fato eles sabem, sabia? Quando eles entram no boxe de
atordoamento, quando eles entram lá, ele abaixa a cabeça para o cara não conseguir pistolar, eles
sabem que aquilo ali é a morte mesmo.
Depois desse trecho, o corredor se transforma em uma rampa estreita, com menos de um metro de
largura. Os animais só conseguem se acomodar enfileirados. A rampa é o último caminho que percorrem
até o abate. Eles ficam todos juntos e preenchem em fila toda a rampa. Não é possível qualquer
movimento para frente, para trás ou para os lados (embora tenha ouvido nesse momento histórias
contadas por Milton de animais que já pularam esse muro). Nesse setor há um trabalho conjunto entre os
funcionários. Quando um animal lá em cima é conduzido para o abate, outro animal em baixo é
conduzido daquele segundo compartimento para a rampa. Em todo o corredor, os animais são conduzidos
a partir de pequenos choques que recebem dos funcionários por meio de cumpridas barras. De acordo
com Milton, os animais não sairiam do lugar se não houvesse esse choque. Contudo, a partir de leitura
prévia de uma bibliografia a respeito das normas de bem estar animal, compreendi que o corredor do
frigorífico não está de acordo com tais normas. Os corredores, a partir desse princípio, devem ser
construídos com curvas para evitar que os animais de trás vejam os da frente, facilitando assim sua
locomoção, pois não veriam o que está acontecendo. Assim, os choques seriam evitados, pois diminuiria a
resistência dos animais em se locomover. E de acordo com essas normas, os animais que apresentassem
resistência deveriam ser estimulados a andar não com choque, mas com bandeiras brancas manuseadas
pelos empregados. Questionando esse assunto com Milton, a explicação obtida foi a de que realmente a
prática do frigorífico JBS não é adequada aos princípios e técnicas do bem estar animal. Mas, como ele
disse, a prática continua e o governo tolera porque sabe das dificuldades de condução do animal nesse
trajeto sem o choque.
No final da rampa há uma porta que se abre para a entrada individual de cada animal, e o cenário
muda, pois adentramos o interior do galpão. Para entrar no galpão, eu que já tinha vestido o uniforme
branco, tive que lavar botas e mãos. No interior do galpão, há uma pessoa responsável pela qualidade, que
faz a fiscalização desses itens com o objetivo de não comprometer o resultado final do produto por meio
de contaminações. Ainda nessa entrada, enquanto lavava as mãos, vi pessoas transitando com roupas
manchadas de sangue e isso me impactou. Mas chegando propriamente no espaço em que ocorre o abate,
havia tanto sangue nas roupas brancas dos funcionários e pelo chão e paredes igualmente brancos, que era
impossível continuar impactada. Não era possível evitar o sangue, tanto do contato visual, quando de
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nossa própria roupa, embora no início eu tentasse desviar dos respingos. No transporte das partes dos bois
de um lugar para outro, bem como na acomodação dessas partes em bacias e tanques, o sangue espirrava
todo o tempo.
A entrada no galpão nos conduz inicialmente para o espaço onde ocorre o abate, que é a primeira
etapa para a transformação do corpo do animal em carcaça, por meio da separação dos subprodutos:
couro, vísceras e ossos, e da retirada de partes não utilizáveis. Do corredor que observamos do lado de
fora, os animais entram, um por um, dentro de um compartimento de metal que os deixa imóveis ao
prender sua cabeça. Esse compartimento fica num patamar mais alto do que o chão e em um local onde
não é possível vê-los. Existe um funcionário responsável pelo início do abate nesse local, que é feito
através do acionamento de uma pistola de ar pneumático que atordoa os bovinos. Milton não quis me
levar até lá por considerar a imagem forte e o lugar perigoso. A sua explicação foi a de que eu me
chocaria, mas depois, em conversa com o encarregado do setor do abate, recebi explicações mais
detalhadas sobre a falta de segurança daquele setor. Ele disse que o animal não fica totalmente
imobilizado e, por isso, às vezes pula, podendo pressionar o funcionário contra a parede.
Desse lugar o animal recebe então o impacto da pistola que libera um dardo capaz de penetrar sua
caixa craniana. A pistola é retrátil, e o impacto sobre a cabeça do animal é tão forte, que quando o dardo
sai, traz consigo parte do cérebro, que podemos ver caído no chão, junto ao dos outros bois abatidos. O
bovino cai, vivo, mas inconsciente em uma esteira. Como disse Milton, a situação do animal nesse
instante é comparada a um estado de coma. Conforme sua explicação, “a função respiratória e cardíaca
está normal. Normal entre aspas, está funcionando. Aí depois da sangria que é o corte na carótida e
jugular, aí que ele morre, entendeu. Então ele não está totalmente morto, está tipo em coma”. Quando o
bovino cai na esteira, há um funcionário encarregado em suspendê-lo. A suspensão se dá por uma corrente
presa em uma das patas e então um botão é acionado para levantá-lo. Milton me explicou que há uma
marreta nesse local, a disposição do funcionário que está no chão, porque às vezes o animal cai em estado
de consciência, ficando em pé. Nessa ocasião, o boi deve, portanto, levar outro impacto com a marreta
para poder ser desacordado e então suspenso. O ato de suspensão, de acordo com Milton deve ser rápido,
não pode passar de um minuto, para evitar que o animal “acorde”.
Uma vez suspenso há um segundo funcionário responsável por fazer um corte em seu pescoço, a
chamada sangria. Será através desse corte que o animal efetivamente será morto. Enquanto é suspenso e
enquanto sangra, o animal faz movimentos com suas patas e cabeça. O que nos leva a questionar se está
realmente desacordado ou inconsciente no momento da morte. Milton, assim como as leituras sobre esse
assunto, indicam que tais movimentos não são frutos de uma ação consciente dos animais, mas trata-se de
espasmos. Nesse sentido, cabe enfatizar que a pistola pneumática é utilizada em lugar da marretada na
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cabeça, antiga forma de atordoamento. A ideia é que com a pistola, apenas um tiro seria suficiente e
certeiro para “derrubar” o animal, além disso, haveria realmente um atordoamento eficaz do animal, que o
impediria de “sentir” a morte através da sangria. Contrário, portanto, ao uso da marreta, quando era
preciso acertar os animais repetidas vezes, resultando nem sempre no atordoamento efetivo, o uso da
pistola visa atender também aos princípios do bem estar.
Durante o período da sangria, que deve durar em torno de três minutos, o animal fica intocável, até
que metade do volume de sangue saia do seu corpo. O animal não pode, portanto, nesse período mínimo
ser manipulado para haver a certeza de que realmente está morto, como nos informa Milton:
Aqui não pode ser inferior a três minutos para ter a certeza de que o animal vai estar totalmente morto.
Por que? Daqui até lá no mínimo cinquenta por cento do volume sanguíneo já escoou, ou seja ele
morreu. Nesse processo o animal já não sente mais nada.
Após esse tempo, o animal é considerado morto e pronto para ser dada continuidade ao processo
de produção da nova condição do bovino em um objeto material, a carcaça. Nesse momento da produção,
há em torno de seis funcionários alinhados uns ao lado dos outros, como em uma linha de montagem,
tendo tarefas específicas e repetidas.
Posicionados a frente desses funcionários existem outros,
responsáveis por alocar as partes dos animais que vão sendo retiradas. Algumas são descartadas e outras
destinadas aos setores que preparam os subprodutos para a venda. O trabalho é feito de acordo com o
ritmo da roldana em que o animal está suspenso, em um legítimo sistema fordista. São retirados olhos,
chifres, língua, cabeça, patas, rabo, vísceras e por último o couro. Cabe enfatizar então que se trata de um
processo de montagem (do corpo do animal em carcaça) mas a partir de uma desmontagem (retirada de
certas partes do corpo dos animais).
Esse processo de (re) composição é feito sucessivamente através de movimentos rápidos e
treinados, qualquer corte mal dado pode condenar partes do animal/carcaça ou ferir os funcionários.
Nesse instante, os funcionários devem manusear duas facas a fim de evitar a contaminação. A faca
utilizada para o corte de partes que há couro, não pode ser utilizada para cortar a carne do animal. As
partes dos animais são destinadas para dois setores localizados em frente ao próprio local do (des) monte
e que recebe o nome de “toalete”. Um cuida da lavagem e limpeza do bucho, considerado como “parte
suja”. E o outro setor cuida da parte “limpa”, como rabo, rins, fígado, etc. Depois desse tratamento os
produtos são destinados para o processo de refrigeração e para serem embalados, ficando pronto para as
vendas.
O último passo dessa sessão consiste no corte vertical do animal\carcaça que é então dividido em
duas partes. O animal está pronto para ser novamente decomposto, agora em costela, picanha, alcatra, etc.
Contudo, no setor do abate existe ainda um espaço destinado ao médico veterinário responsável pelo
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Serviço de Inspeção Federal (SIF), que garante o selo que será estampado na embalagem do produto e
que é exigido para a comercialização da carne no país. O selo garante que a carne foi inspecionada,
atestando a qualidade sanitária e a conformidade com a legislação. Portanto, além do setor de qualidade,
próprio do frigorífico, existe a fiscalização governamental a fim de atestar a qualidade do produto sobre o
aspecto sanitário. Nesse espaço, o médico veterinário deve avaliar a carcaça dos animais, pois através da
observação, doenças como a tuberculose, por exemplo, podem ser identificadas.
Transferidos do lugar do abate, os animais, agora carcaças, são destinados, ainda por essa roldana,
a uma sala refrigerada. O novo processo de separação dos produtos não ocorre imediatamente. Segundo
as normas sanitárias é preciso que haja um período de resfriamento para evitar contaminações. Logo, o
processo de desmembramento da carcaça ocorre com os animais abatidos em dias anteriores. Entre essas
duas atividades, é possível assinalar a transformação de fato do animal em carcaça. A partir de então já
não há mais um animal representado a partir do corpo orgânico vivo, mas uma peça, representada a partir
dos nomes de produtos, tal como são adquiridos pelos consumidores.
IV - Dimensões subjetivas para a produção de carne de qualidade
Conforme a descrição das operações produtivas do frigorífico JBS, observa-se que da pressão dos
defensores dos animais, bem como dos resultados de estudos científicos, a preocupação com o chamado
bem estar animal é reconhecida e incorporada na cadeia produtiva da carne em termos discursivos e
práticos. Desse modo, novas técnicas, ferramentas e instalações são gradualmente introduzidas nos
frigoríficos com vistas a evitar “estresse”, “agitação”, “sofrimento”, além de lesões físicas nos animais.
As operações no frigorífico que dizem respeito tanto a instrumentabilidade técnica, quanto aos
procedimentos adotados pelos funcionários nos mostram a tensão em torno do animal enquanto ser
senciente. A introdução das normas de bem estar faz com que os funcionários assumam novas práticas,
um novo imaginário sobre o animal que está sendo manipulado, ao mesmo tempo em que devem lidar
com a irredutibilidade da morte nesses ambientes.
A respeito dessa tensão que permeia o estatuto do animal como sujeito e objeto simultaneamente,
observamos que a incorporação da perspectiva de que os animais são seres que sentem não promoveu a
reversão da condição desses animais, considerados matéria prima para a produção de um bem alimentício.
No âmbito das normas de bem estar não se fala em garantir o direito à vida aos animais, portanto, a nova
orientação à essa modalidade produtiva consiste em conduzir à boa vida e à boa morte dos animais.
Haveria, podemos dizer então, uma aparente contradição, se considerarmos a lógica acerca do valor da
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vida expressa pelos defensores dos direitos dos animais. De um ponto de vista filosófico, Peter Singer, no
livro “Libertação animal” (2010), trabalha com a ideia de que aquele que sofre tem o direito de não sofrer.
Não sofrer consistiria também em não ser morto, já que a perda da vida seria considerada fonte de
sofrimento. Nesse caso, é preciso lidar então com o fato de que os animais continuarão a ser abatidos para
a produção de carne.
Para lidar com essa aparente contradição, Milton explora o que entende como uma existência
diferente entre as espécies animais que, como consequência traz a cada uma das diferentes categorias de
espécies uma forma de tratamento particular:
Eu quando comecei aqui há nove anos atrás, o dono era um português e aí ele conversando comigo no
dia da minha entrevista para começar a trabalhar aqui, você é veterinário, tem que cuidar dos animais,
você quer matar os animais, como é isso, me explica isso, eu falei não, isso daí não é animal de
estimação, vivemos em um país capitalista, a gente mata os animais para alimento.
Os bovinos estão inseridos na rede de produção da carne como matéria-prima, logo privá-los da
morte é que seria contraditório dentro desse sistema econômico, pois o inviabilizaria. Incorporar a
subjetividade atribuída aos animais na perspectiva mais radical, que justifica a igual consideração moral
entre humanos e nao humanos poder ser entendida como uma ação disparatada por parte desse mercado,
uma vez que não faria sentido à sua lógica de funcionamento. Mas como então o princípio do bem estar
adquire razoabilidade? Haveria espaço para a preocupação ética com o bem estar dos animais na cadeia
produtiva da carne? Observamos que de fato esse princípio é reconhecido e levado a frente, contudo seu
fundamento adquire outros contornos, não com relação à sacralidade da vida dos animais, mas com
relação à eficiência produtiva.
Tendo em vista a organização do frigorífico JBS descrita, observa-se que a perspectiva do bem
estar animal é incorporada aos parâmetros técnicos e produtivistas que orientam a sua lógica, num sistema
operacional mais amplo. A estrutura do frigorífico, em diferentes setores, é remodelada com vistas a
atender às práticas consideradas compatíveis com as premissas do bem estar animal. Além disso, os
funcionários são orientados também a mudar sua forma de lidar com os bovinos com o objetivo de
garantir a seguridade física e emocional dos animais. Esses fatores, por sua vez, adquirem sentido na
medida em que são diretamente relacionados com a produção em termos de maior rentabilidade. Portanto,
os parâmetros técnicos em torno do bem estar animal são introduzidos a partir de um discurso científico,
que além de reconhecer a senciência animal, vincula essa característica à eficácia produtiva do frigorífico.
Considerando a mudança de gestão do antigo grupo Equatorial, com a aquisição da planta pela
empresa JBS, a maior do ramo, foi possível observar, através do discurso dos funcionários, a existência de
novas orientações com respeito a estruturação produtiva do frigorífico no sentido da “maior
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profissionalização”. Por “profissionalização” foi possível entender que se trata da capacidade e rigor da
empresa em atender as regulamentações impostas, de modo a garantir a máxima qualidade e
aproveitamento dos produtos. Nesse sentido, Milton enfatizou o rigor com relação a temperatura dos
ambientes de estocagem da carne, bem como dos caminhões em que são transportadas, como forma de
atender aos requisitos que atestam a qualidade do produto, evitando assim a rejeição por parte do
comprador. Durante entrevista realizada com Leandro, encarregado do setor de abate, foi mencionado
também algumas novas diretrizes implementadas pela gestão atual, como por exemplo o “osso branco”,
que se trata de um aprimoramento da técnica para desossar a carne em sua totalidade, de modo que sobre
apenas o osso, sem resíduos de carne.
Em vigência dessas transformações em direção ao maior “profissionalismo”, o bem estar animal é
tratado igualmente como um componente importante. A realização da entrevista com Leandro ocorreu em
sua casa em um domingo pela manhã. Quando cheguei no horário combinado, Leandro havia programado
que eu assistisse ao vídeo sobre abate humanitário produzido pela WSPA (Sociedade Mundial de Proteção
Animal), e que foi encaminhado a ele pelo setor administrativo da empresa, como forma de treinamento.
O conteúdo do vídeo, corrobora a perspectiva sobre a incorporação da dimensão do bem estar animal no
âmbito das técnicas produtivas do frigorífico. Com uma linguagem fundamentalmente didática, o vídeo
traz orientações sobre como deve ser realizado o manejo dos animais e, ao mesmo tempo, possui um
discurso justificador e motivador que ressalta a importância da adoção dessas práticas.
Ao prestar atenção sobre a maneira como as normas de bem estar são apresentadas no vídeo,
observa-se que há a preocupação em demonstrar que as novas técnicas, como por exemplo, o tempo de
espera dos bovinos nos currais antes do abate, não promove uma redução da produtividade, ao contrário,
tais normas contribuem para o aumento da qualidade da carne e, por conseguinte, para a maior
rentabilidade da empresa. Assim, fatores emocionais dos animais são relacionados às características da
carne. Discute-se então que dependendo do nível de estresse ou agitação dos bovinos na hora do abate,
pode haver como resultado uma carne escura, dura e com prazo de validade menor. Além disso, o modo
como os animais são manejados no momento em que são “descarregados” dos caminhões, ou quando são
conduzidos no frigorífico podem ocasionar lesões físicas que resultarão em danos na carcaça e, portanto,
menor aproveitamento do produto, já que as partes lesionadas precisam ser descartadas. Atualmente há
então um crescente número de publicações científicas nas áreas de zoologia e medicina veterinária que
aliam os fatores relacionados ao bem estar com aspectos produtivos. A partir dessa perspectiva as normas
de bem estar são então justificadas e implementadas nos frigoríficos.
Observa-se ainda que a normatização das operações que levam em conta o bem estar animal é de
difícil padronização, uma vez que diz respeito em muitos casos a micro ações dos funcionários com
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relação aos bovinos. Além disso, a fiscalização, bem como a adoção dessas práticas depende de uma ação
eficaz, tanto por parte do controle de qualidade da empresa, quanto por parte do setor de fiscalização
governamental. Tal eficácia não é sempre atingida, porque as pessoas implicadas nesses postos nem
sempre estão “convencidas” de que as condições físicas e emocionais dos animais são relevantes ou têm
interferência sobre a qualidade da carne. Essa questão pode ser percebida através da entrevista realizada
com Luciana, engenheira de alimentos e ex-funcionário do frigorífico:
A questão e complicada porque a gente vai lá e explica e eles acham besteira. A gente diz, olha o
bichinho não pode sofrer, a gente tem que dar o choque na parte da tal, porque em outro local pode
afetar a qualidade da carne e o bichinho pode sofrer. Aí eles acham a maior idiotice porque não tem
conhecimento prévio. E se a gente entrar no frigorífico a maior parte das pessoas que trabalham não
tiveram estudo nenhum. Noventa por cento, sinceramente, você vai ver que eles não tem estudo
nenhum. Tudo o que eles fazem é o que o controle de qualidade ensina para eles antes deles entrarem
para fazer o trabalho. No frigorífico, o seguimento das regras depende da inspeção, de quem esta lá
dentro.
Esses dois aspectos, nos permitem um entendimento a respeito da existência no vídeo de um
discurso que visa tomar partido das ações de bem estar animal pelo convencimento sobre os benefícios
econômicos produzidos pela adoção desse novo modelo operacional. Sendo assim, embora em
determinado momento o apresentador diga que as novas técnicas “não são um beneficio opcional, mas
uma exigência da lei”, a dinâmica produtiva dos frigoríficos, bem como o caráter dessas técnicas, se
estruturam inicialmente de uma maneira fluida, de modo que o seu cumprimento depende em grande
parte da iniciativa pessoal dos funcionários, pois a fiscalização e a normatização dessas técnicas não se
estruturam de forma rígida. Nesse caso, a disposição da lei como fator justificador possui menos
centralidade que os ganhos econômicos que seriam obtidos.
V - Considerações finais
A partir da discussão realizada até aqui, observamos que a disposição moral a respeito do cuidado
com a vida dos animais raramente é refletido como um componente importante sobre a incorporação das
normas de bem estar animal por parte dos agentes envolvidos nessa etapa da produção da carne. Ainda
que a subjetividade do animal seja incorporada e portanto, considerada uma dimensão válida, os agentes
econômicos a tornam um critério relacionado a qualidade da carne e não a preocupação com a qualidade
de vida dos animais. Nesse sentido, evitar o “sofrimento” e a “dor” entre os animais de produção aparece
como uma exigência que atende aos bons padrões de produção da indústria. Desse modo, se por um lado
os defensores dos animais evidenciem a sua capacidade de sentir para fundamentar denúncias contra as
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situações de violência infligidas aos animais em termos morais, por outro lado, a maneira como o
sofrimento é incorporado no âmbito das relações mercantis se dá por meio de um deslocamento desse
sentido. A preocupação ao invés de ética se torna econômica. Corresponder aos aspectos que garantam a
boa vida dos animais, segnifica corresponder a sua boa transformação em mercadoria.
O mercado da carne faz da subjetividade dos animais, evidenciada pela senciência, um
componente importante acerca da qualidade do produto final. Seguindo os direcionamentos do vídeo, bem
como as explicações de Milton, realizar o manejo de uma maneira que leve em conta as sensações dos
animais, e estabelecer um ambiente “calmo”, “confortável” e “livre de estresse” é importante enquanto
forma de controlar os aspectos da carne do animal, enquanto produto final. Portanto, de uma pressão
externa e ética, a perspectiva do bem estar animal é apropriada e resignificada, se tornando uma diretriz
gerencial interna, implicada com a gestão produtiva. Nesses termos, bem-estar animal significa cuidar
bem do produto, ou seja, tratar os animais adequadamente é importante, pois se trata de uma mercadoria
valiosa.
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