Há histórias que só nós podemos contar.
O festival Alkantara tem 20 para nos faz
De hoje e até 10 de Junho, 20 espectáculos vindos de mais de 10 países contam histórias que ainda
não ouvimos. O Alkantara Festival começa hoje em Lisboa, no São Luiz, com The Inkomati (dis)cord,
do moçambicano Panaíba Canda e do sul-africano Boyzie Cekwana
Festival Alkantara
Tiago Bartolomeu Costa
“Ninguém te contou esta história. É
a tua história. E és tu quem a tem
que contar.” É assim que Boyzie
Cekwana, coreógrafo e encenador
sul-africano, explica a uma das intérpretes de The Inkomati (dis)cord que a
história que vai contar, “mesmo que
pareça exagerada, tem que [lhe] ser
natural, ou não merece a pena ser
contada”.
Cekwana é, com o moçambicano
Panaibra Canda, autor da peça que
hoje à noite, no São Luiz – Teatro
Municipal, abre a edição 2012 do
Alkantara Festival (repete amanhã,
também às 21h). Incomati é o nome
de um rio “que não sabe que atravessa três países”, diz-nos ele depois
de um ensaio. O (des)acordo de que
fala o título da peça remete para a
história política de dois desses países, a África do Sul e Moçambique
(o terceiro é o Zimbabwe), e para
um pacto de não-agressão assinado
em 1984 mas que ninguém cumpriu
“porque houve quem achasse que
representava o país, mais do que as
suas pessoas”.
Para usar palavras dos dois artistas,
é sobre pessoas e as suas histórias,
“sobre o que lhes pertence e sabem
contar” e “os valores que representam individualmente e a que, no conjunto, um a um, se pode dar o nome
de um país” que se fará este Alkantara. E a frase de Boyzie Cekwana à
sua intérprete serve bem como mote
para uma edição que até 10 de Junho
se estende para lá dos habituais teatros (São Luiz, Maria Matos, Culturgest, Dona Maria II, Centro Cultural
de Belém) para espaços tão diversos
como a sala de leitura da Biblioteca
Nacional, a Praia das Avencas, em
Oeiras, a Estação Elevatória a Vapor
dos Barbadinhos, a sala do antigo refeitório do Mosteiro dos Jerónimos e
o Museu da Electricidade.
As histórias, que terão a assinatura
de artistas vindos da Europa (Bélgica, França, Holanda, Alemanha, Áustria), mas também de latitudes mais
longínquas (Marrocos, Estados Unidos da América, Moçambique, África
do Sul), serão narradas em mais de
20 espectáculos ambicionando cumprir aquilo que, no original árabe,
significa a palavra alkantara: ponte.
Uma ideia que o espectáculo de
abertura conhece bem. “É preciso
reescrever essa história. E, ao fazê-lo,
sugerir uma nova definição do próprio país”, diz Boyzie, secundado por
Panaibra: “Tem a ver com a aceitação
do próprio passado e esse é um processo colectivo, à escala global”.
The Inkomati (dis)cord, estreada
em Novembro no Panorama Rio
Dança, no Rio de Janeiro, procura
levantar questões sobre como se ser
um indivíduo, como o representar e
como estabelecer um diálogo a partir
do que um diz e o outro ouve. Diz
Boyzie: “Só ao olharmos para o nosso
corpo como um país, e não tanto um
país definido por uma fronteira geográfica, conseguiremos reescrever
essa história. Nós, como artistas, nós
como cidadãos, precisamos de começar um processo de renegociação
dos nossos próprios corpos, entendidos como os verdadeiros herdeiros
de uma história que vai para lá da
política.”
A programação do Alkantara parece reflectir isso mesmo. Do lado
internacional, a par de nomes regulares nas programações anuais dos
teatros (Dood Pard, TgStan,
Meg Stuart, Anne Teresa de
Keersmaeker) juntam-se outros. Para além de Panaibra
Canda e Boyzie Cekwana, atenções
viradas para a marroquina Bouchra
Ouizgen que, com Madame Plaza
(São Luiz, 2 e 3 Junho), traz a Lisboa
o corpo e a voz, misto de sensualidade, religião e pecado de quatro extraordinárias mulheres chamadas,
no seu país, de aïtas.
É um espectáculo que se inscreve
numa linha de reconfiguração do encontro entre o sagrado e o profano, a
dança contemporânea e o gesto quotidiano, mostrando o modo como é
do Norte de África que têm vindo os
melhores exemplos de um diálogo
francamente exposto sobre os efeitos
de uma política de descentralização
cultural que tem, mas redes de produção e programação europeias, o
seu iceberg mais visível.
Não colhem já do mesmo modo
que há uns anos calendários de programação com olhares exóticos nem
quotas de representação. Os artistas
que chegam este ano ao Alkantara
pertencem, na sua maioria, a um
contexto de produção que é mais
amplo, não conhecendo efectivamente fronteiras, e que, a partir das
redes, conseguiram colocar-se acima
das definições limitativas da política,
da economia e da própria geografia.
Boyzie Cekana diz que tem tudo
a ver com o modo como se entende
uma ficção: “Ela começa quando se
sente a necessidade de contar uma
história, de moldar um futuro, e
de partilhar uma experiência.” Diz
Panaíbra Canda que “cada projecto permite alargar a nossa própria
voz”. Vindos de África, acrescenta Boyzie, “é impossível
escapar à história política
e económica africana”.
“Cada geração herdaa, procurando libertar-se desse peso e,
assim, ‘refrescar’ a
própria história.
Não é que África
The Inkomati
(dis)cord,
que abre o
Alkantara,
estreou em
Novembro no
Rio de Janeiro
er pensar
seja mais especial do que outras partes
do mundo, mas sente-se uma presença maior da história, talvez porque a
que é conhecida seja mais recente.” A
história é importante “porque o passado tem reminiscências no presente
e as questões que quisermos colocar
hoje terão que ser conscientes disso
mesmo”. O desafio que lhes é colocado, é-o à maioria dos artistas: “Ser-se
vertical perante as discussões que são
permanentes.”
Dentro dessa linha de pensamento
deveremos estar atentos ao espectáculo do encenador português Tiago
Rodrigues que em Três dedos abaixo
do joelho (TNDMII, 29 Maio a 3 Junho)
mergulha nos arquivos da comissão
de censura do Estado Novo, criando
um texto a partir dos cortes que foram feitos em várias peças de teatro.
Quer “apontar o que ainda é perigoso
e significativo no teatro”, explica no
programa. Devemos atentar ainda na
dupla de coreógrafos Sofia Dias e Vítor Roriz (CCB, 1 e 2) que em Fora de
qualquer presente procuram “um fora
que não é geográfico nem se concilia
com a clássica narrativa da viagem ou
com o êxodo face à aparente falência
do presente”.
São dois casos em apenas seis espectáculos no festival que contam
com a assinatura de artistas portugueses (três deles em co-autoria
com artistas estrangeiros), situação
explicada, conta a direcção do festival, assinada por Thomas Walgrave e
v
Ricardo Carmona, pelo corte de 38%
no apoio da Direcção-Geral das Artes
que “se revelou crucial para o desinvestimento em co-produções naciov
nais e nos artistas portugueses.”
Para este ano o orçamento é de 655
mil euros, o que representa um corte
de 30% relativamente a 2010. “Para
perfazer o que tínhamos idealizado
necessitaríamos dos 38% que a DGA
cortou. Com esse valor (124 mil euros)
e usando as redes europeias poderíamos ter duplicado o valor para investir em co-produções nacionais e nos
artistas portugueses”, explicam.
Esta história sabemo-la de cor e,
um dia, será espectáculo. Para já, é
só a realidade com a qual não vamos
conseguindo viver. Voltamos às questões de Boyze e Panaibra: “Quantas
destas histórias têm a ver com diferença e divisão, ao invés de partilha?
Como podemos tornar esta desvantaggem numa vantagem e começarmos
a transcender para lá do domínio da
política?”
19
655
10
Dias de festival
Mil euros de orçamento
Espaços diferentes de
apresentação de espectáculos
46
Elementos na equipa do festival,
dos quais 21 voluntários e 2
estagiários
140
610
Artistas e técnicos envolvidos
Camas ocupadas na cidade ao
longo dos 19 dias
100
A 120 programadores
internacionais deverão
acompanhar o festival
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