SOBRE O CONTO SUL-RIO-GRANDENSE CONTEMPORÂNEO: Estranhezas e bizarrices Mauro Nicola Póvoas (FURG) Sigmund Freud, no artigo “O estranho” (Das unheimliche), de 1919, estuda e elenca um catálogo de coisas, impressões, eventos e/ou situações que despertam um sentimento de estranheza nas pessoas, seja por meio da realidade ou da ficção: o impacto causado por figuras de cera, bonecos ou autômatos engenhosamente construídos; acessos epiléticos; manifestações de insanidade; presença de duplos; compulsão à repetição; previsões, pressentimentos e maus-olhados; reanimação dos mortos; fantasmas; enterrados vivos; atividade independente de órgãos decepados; animismo; onipotência dos pensamentos; realização mágica dos desejos. Freud aponta que a origem do estranhamento (em especial o medo do desconhecido e da morte) está nos nossos primitivos antepassados, que acreditavam que essas possibilidades todas listadas acima eram passíveis de realização em determinados momentos. Hoje, embora aparentemente estes modos de pensamento estejam superados, o ser humano não se sente ainda completamente seguro com as novas crenças, e tão logo aconteça algo que pareça confirmar as velhas tradições, estabelece-se o estranho. Assim, estranho, para Freud, é a sensação de algo que, secretamente familiar e submetido à repressão, vem à tona a partir de determinada situação que é exposta em casos clínicos estudados por um médico, ou pela literatura imaginativa. Em outras palavras, “uma experiência estranha ocorre quando os complexos infantis que haviam sido reprimidos revivem uma vez mais por meio de alguma impressão, ou quando as crenças primitivas que foram superadas parecem outra vez confirmar-se” (FREUD, 1996:266). O psicanalista austríaco, no entanto, chama a atenção para o fato de que como a ficção tem muito mais meios de criar efeitos estranhos do que a realidade, muitas vezes os casos apresentados em determinados textos – nos contos de fadas, por exemplo – podem ser surpreendentes ou engraçados, mas não estranhos ou amedrontadores. Já Tzvetan Todorov, em Introdução à literatura fantástica, faz algumas diferenciações importantes entre fantástico, maravilhoso e estranho. Para Todorov, o fantástico dura apenas o tempo de uma hesitação, comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o que percebem depende ou não da “realidade”. Ao final da história, 1030 leitor e/ou personagem devem optar por uma solução, saindo do fantástico, que se caracteriza, deste modo, como um gênero sem autonomia. Assim, se as leis da realidade permanecem intactas e permitem explicar fenômenos descritos, tem-se um outro gênero, o estranho; se, ao contrário, é preciso que se admitam novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno poderá ser explicado – com o sobrenatural sendo aceito, portanto –, entra-se no gênero do maravilhoso. Todorov defende-se daqueles que porventura o ataquem por criar um gênero, o fantástico, evanescente, que às vezes só “quase-existe” ou “meio-existe”. Ele diz que uma categoria dessa natureza pode ser equiparada ao conceito de presente, que nada mais é que um limite tênue entre passado e futuro. É claro que o fantástico não aparece somente em algumas partes – há obras em que a ambiguidade permanece até o fim, e, com ela, o fantástico. E ao dizer “até o fim”, quer se dizer “além”, pois a dúvida permanece mesmo com o livro fechado. Examinando com mais nitidez, nota-se que é possível traçar alguns subgêneros: são obras que mantém por muito tempo a hesitação fantástica, terminando enfim no maravilhoso ou no estranho. Essas subdivisões poderiam ser discriminadas como estranho puro, fantástico-estranho, fantásticomaravilhoso e maravilhoso puro. Estranho puro é quando se relatam acontecimentos que podem perfeitamente ser explicados pelas leis da razão, mas que não deixam de ser incríveis, extraordinários, chocantes, singulares. No estranho, nunca há o desafio à razão, nem a hesitação. Fantástico-estranho é quando acontecimentos que parecem sobrenaturais ao longo de toda a história recebem, no fim, uma explicação racional. A crítica em geral condena esse “sobrenatural explicado”, porque leva o personagem e o leitor a acreditar na intervenção extranatural, que é reduzida por uma série de explicações ao fim de uma narrativa. Fantástico-maravilhoso é aquela classe de textos que se apresenta como fantástica e que termina por uma aceitação do sobrenatural. Por fim, no maravilhoso puro, os elementos sobrenaturais não provocam qualquer reação particular nem nas personagens nem no leitor. A partir dos pressupostos acima listados, esta comunicação pretende observar questões em torno do estranho, do fantástico e do maravilhoso em alguns contos de Ovelhas que voam se perdem no céu, de Daniel Pellizzari 1, cuja primeira edição, de 1 Este texto é vinculado ao projeto de pesquisa “Perspectivas da literatura sul-rio-grandense contemporânea: o conto”, que estuda vários autores gaúchos da chamada novíssima geração. Pelos limites de uma comunicação, aqui se aborda somente Daniel Pellizzari. 1031 2001, saiu pela editora Livros do Mal, empreendimento que Pellizzari mantinha com Daniel Galera, ambos autores que, embora não tenham nascido no Rio Grande do Sul, são considerados como pertencentes ao sistema literário sul-rio-grandense, já que lançaram suas obras em Porto Alegre e circulam pela cidade e pelo Estado até hoje. Atualmente, o livro pode ser baixado no formato PDF em diferentes sites, como no http://www.cabrapreta.org/, endereço pessoal do escritor, que recebe o leitor com os seguintes dizeres (as partes em negrito indicam hiperlinks que podem ser acessados a fim de que os leitores obtenham outras informações): Oi. Sou Daniel Pellizzari. Vivo resmungando em @cabrapreta e tento contar a história do mundo com imagens no kaliyuga blues. Traduzi uns livros, editei mais alguns, escrevi outros tantos. Se você caiu aqui atrás da edição em PDF do meu primeiro livro, pode pegar. Também sou co-criador de uma HQ e às vezes esculpo drones mastodônticos sob a criativa alcunha de “cabrapreta”. Bueno, era isso; tome lá um abraço e até mais ver. (acesso em: 2 out. 2011) Aliás, recados sarcásticos parecem ser uma das tônicas do escritor, como o que repassa informações biográficas do autor na edição em PDF, em página que Pellizzari aparece em foto com barba, óculos e uma taça de vinho – fora os dados de ano e cidade de nascimento e da bibliografia, o que mais é verdade? Em 1998, Daniel Pellizzari (Manaus, 1974) obteve seu PhD em Literatura Anglo-Saxã pelo Trinity College, com a tese Hwæt!Grendel Was a Færie: Transgender Issues in “Beowulf” & 8th Century Britain During the Viking Invasion. Em seguida, abandonou a vida acadêmica, cortou o cabelo, aposentou seus dados de vinte lados e escreveu os livros Ovelhas que voam se perdem no céu (2001; Itália, 2003) e O livro das cousas que acontecem (2002). (PELLIZZARI, 2004:77)2 Interessante pensar que o volume continua a circular pela Internet, já que o livro impresso, que teve duas edições em papel – 2001 e 2002 – está esgotado, e a distribuição gratuita do livro (3ª edição revista, de 2004) garante o acesso irrestrito do público à obra. Em tempos de circulação on-line, o cuidado para que o livro não seja mutilado fica demonstrado no colofão da edição em PDF, de novo com ironia, em citação acompanhada por um desenho de um porco: “Este livro eletrônico pode ser distribuído e impresso livremente, desde que de forma gratuita e que seu conteúdo não sofra nenhum tipo de alteração. Os transgressores serão currados por um javali 2 A seguir, nas citações do livro de Pellizzari, constará apenas a página. 1032 asmático” (p. 79). Ainda no final do livro, pequeno trecho explica o título, numa citação de autoria de Pölla (outra brincadeira?): Ovelhas não voam porque se perdem no céu. (p. 76) Antes, como epígrafes, dois trechos de poemas: Ah, dessa vez é a vírgula em lugar de vírgula, crase em lugar de crase. Todo fixo vira móvel, desde o primeiro ai até o último par de ases. Mariana E. Messias, NÃO (p. 3) Lembro do dia em que Deus me veio Navegando barbudo por entre brumas alaranjadas. Veio seco como quem sai de um freezer. Pra minha surpresa Deus era macho mesmo. Joana Lenz Cesar, DELEITE MALVADO (p. 3) Ainda há, na mesma página 3, uma dedicatória: “para meus pais”. Todos esses elementos paratextuais indiciam o espírito do livro, de dezoito contos breves, com temáticas variadas, que vão do trágico ao cômico, passeando pelo estranho e pelo fantástico. Veja-se, por exemplo, a primeira narrativa, na verdade um miniconto de uma página, “Teias”, que traz um personagem anônimo (como vários do livro) que “fizera amizade com as aranhas que viviam no banheiro de sua nova casa” (p. 5). Esta, que é a frase inicial do livro, ao fazer menção ao fato de que um ser humano possa ter laços de amizade com uma aranha, um animal não-domesticado, inaugura a atmosfera de estranhamento que por vezes saltará aos olhos ao longo da leitura. A simpatia para com as aranhas era tanta que fazia com que o personagem caçasse insetinhos no pátio e os levasse para as aranhas devorarem. Um dia, porém, ele matou a maior da aranhas sem querer, no chuveiro; depois, consternado, “ficou horas ajoelhado no chão do banheiro pedindo desculpas pela crueldade para a aranha que se mudara para trás da porta” (p. 5). A seguir, o conto encerra-se abruptamente, com o personagem, após acordar, exterminando todas as aranhas da casa com um aspirador de pó, sem motivo aparente, a não ser, talvez, o (re)aparecimento da repulsa e do medo que as pessoas, em geral, sentem pelos aracnídeos. Em “O voo das ovelhas”, conto seguinte, diferentes personagens que transitam pela Rua Voluntários da Pátria (um indicativo de que a ação se passa em Porto Alegre, 1033 já que esta é uma conhecida via do Centro da cidade) transformam-se em objetos, sempre “quando chega(m) em casa”, frase que é repetida como um bordão: Genésio vende vales-transportes, mas quando chega em casa, vira caldo de cana; Rita vende despertadores e guarda-chuvas, mas quando chega em casa vira coxão mole; Marciano distribui folhetos de propaganda e recebe apostas do jogo do bicho, mas quando chega em casa vira feijão; Osvaldo anuncia pelo microfone produtos de uma loja, mas quando chega em casa vira rapadura. Essas pequenas narrativas, sempre em itálico, são entremeadas por uma outra que, aos pedaços, vai se apresentando ao leitor, em que um personagem sem nome narra sua vida num hospício (“Já faz uns doze anos que estou aqui nesse hospital pra gente louca”, p. 6). Ele não se acha louco, mas diz que finge ser, depois que bateu no seu pai e quebrou tudo em casa; e finge tão bem que nem os médicos se dão conta do logro. Ele conta a sua rotina no local – comer, fumar, brigar com outros pacientes, tomar remédios. Um destaque no cotidiano entediante são as visitas da mãe, que acontecem uma ou duas vezes por ano – e para que não descubram que ele não é louco, ele nada fala com ela, apenas pensa frases como “Eu também te amo, mãe” e “Até daqui a um ano. A gente se vê” (p. 9). A atitude, aparentemente sem sentido, de se recolher num hospício, talvez possa ser explicada porque o personagem está feliz ali (“Os médicos ficam satisfeitos, os atendentes também, e ninguém me enche o saco”, p. 8), ou porque se descobrirem sua farsa, ela vai para um lugar pior, a prisão, ainda mais levando em conta o delito de doze anos atrás. Todos os personagens do conto – Genésio, Rita, Marciano, Osvaldo, o paciente do hospício – indiciam a alienação na contemporaneidade. Portanto, as estranhas metamorfoses podem ser classificadas como metáfora da coisificação que acomete as pessoas frente à sociedade de consumo: com os trabalhadores da Voluntários, há a fuga de um mundo brutalizado que impõe suas regras por meio de trocas mediadas tãosomente pelo lado monetário; no caso do falso alienado mental, vê-se o escapismo da vida “normal”, insuportável, para uma vida encarcerada e vigiada que, se o priva da liberdade, traz para ele a paz de uma vida sem incomodações. Interessante notar que, conforme Todorov (1975:71), a alegoria, no momento em que se concretiza, inviabiliza o aparecimento do extranatural: se o que se lê num texto descreve um acontecimento sobrenatural e exige que as palavras sejam tomadas não no sentido literal, mas em um sentido que não remeta a nada de sobrenatural, não há mais lugar para o fantástico. 1034 O terceiro texto, “As boas maneiras do acaso”, um microconto de apenas três frases, também traz um ambiente de estranheza, instaurado em especial pelo exagero constituído a partir do par opositivo das palavras “sempre” e “nunca”. Acostumar-se com algo que a princípio era somente sinal de desconforto é uma sensação que acompanha os contos de Pellizzari – no momento em que se faz o silêncio, o incômodo surge, numa inversão daquilo que seria considerado o normal: Sempre reclamava do barulho dos vizinhos. Um dia foi reclamar do silêncio, mas eles tinham se mudado. Nunca mais consegui dormir. (p. 11) Em “História de amor número 17”, o conto percorre o caminho da brutalidade, no momento em que traz um personagem masculino anônimo que compra um bebê de uma pedinte na esquina de uma cidade. Ao chegar a casa com a criança, dá-lhe um banho; na sequência, mata-a por meio de um golpe entre os olhos, com um martelo de bater carne. Após, retira as vísceras do corpo da criança, salga e espeta a carne, colocando-a para assar na churrasqueira. Prepara a mesa com vinho, talheres especiais e velas, pois é o aniversário da sua mulher que, ao chegar, destrata-o por sua ignorância: “onde já se viu churrasco à luz de velas e com talheres de prata seu imbecil” (p. 22) Dito isto, ela se retira para o quarto; ele, “mais uma vez, dormiu no sofá” (p. 22). A presença da expressão “mais uma vez”, usada pelo narrador, denota que um dormir separadamente do outro era atitude comum entre o casal. Do absurdo da situação sobressai-se uma sensação de desamparo, frente à violência e à falta de escrúpulos do homem, que trata um ser humano como se fosse um corte de rês comprado em um açougue. A ausência de dignidade e de trato, na verdade, é a tônica do casal, pois a esposa, inclusive, xinga o esposo de imbecil, sem valorizar o esforço dele em preparar um jantar romântico – a princípio, a mulher não desconfia qual é o tipo de carne que está sendo servido. Assim, o comportamento abjeto do marido – que aparentemente busca uma forma diferente, e desesperada, de agradar à sua mulher – é o reflexo da falta de respeito entre os seres humanos, que embora vivam em sociedade, não conseguem se entender nem viver com harmonia. Em “Gravidade”, o diferente estabelece-se a partir do rompimento da normalidade de um dia qualquer, de céu azul e sem nuvens: Laura está na cozinha, prestes a colocar um pernil no forno, quando um pequeno vulto cinza, muito veloz, cruza o espaço emoldurado pela janela. São gatos que caem em intervalos regulares, 1035 empilhando-se no piso da garagem do edifício. Laura tenta ver de onde eles vêm, mas é impossível precisar. Após, seguem-se vacas, o que faz com que a mulher pegue o telefone para ligar para a polícia, momento em que vê vultos diferentes passando, maiores que gatos, menores que vacas, mas mais coloridos – agora são velhas que caem do céu, sem gritar ou se debater. Depois de mais de vinte minutos observando o espetáculo, Laura, começando a achar tudo aquilo muito chato, “volta à sua tarefa de colocar o pernil no forno”, até porque “tudo que sobe tem que cair, cada um faz o que quiser da vida” (p. 56). A primeira sentença aponta para a lei da gravidade, mencionada no título do conto; já a segunda mostra uma das facetas mais caras da vida em sociedade moderna, em que as pessoas buscam independência em suas ações, tentando se livrar de pré-conceitos. Entretanto, se uma lei é obedecida – tudo o que sobe tem que descer –, outra é rompida, pois não há conhecimento de que alguma vez tenha havido chuva de gatos, vacas ou velhas. Chama a atenção, neste sentido, a estupefação de Laura num primeiro momento, tanto que quase liga para polícia, atitude normal numa situação dessas; logo a seguir, todavia, cansada do processo que parece não ter fim, volta para suas atividades domésticas, numa relação que poderia ser resumida em: 1) rotina; 2) transgressão da normalidade (embora uma das leis da física seja mantida, a da gravidade, o que confere certo ar de cotidiano ao insólito); 3) aceitação da transgressão; 4) a partir dessa aceitação, volta à normalidade no interior da casa, embora no exterior continuem as quedas. Ou seja, de novo a situação de um personagem que se acostuma com o bizarro, a ponto de que ele seja encarado como normal. Já em “A fronteira no fim do mundo”, conforme Freud aponta, o clima de estranheza instaura-se por meio de dois elementos: o duplo e o estado onírico. O personagem principal, que nunca lembra dos sonhos, ao acordar fica com uma sequência de palavras na cabeça: “Oiapoque-Clevelândia: aqui começa o Brasil” (p. 57). No que massageia as têmporas, lhe surge outro fragmento de sonho: um soldado, assustado, fuzil no ombro, que se revela, na verdade, ser o próprio personagem. Guarnecendo a fronteira brasileira, o militar espera a troca de guarda, enquanto sofre com o calor e com a vontade de urinar. O conto vai alternando passagens do personagem em sua casa e na floresta amazônica3. No final, enquanto o soldado abandona o seu posto e mergulha num 3 Única referência, no livro, à região natal do escritor, o Norte. 1036 igarapé, o outro personagem, em sua casa, escuta música de um vinil, pressentindo que há alguém por detrás de seus ombros, pois nota inclusive a respiração roçando o pescoço. O último parágrafo, porém deixa tudo em suspenso: Acendeu o cigarro. Num repente a fumaça invadiu seus pensamentos, e não mais pôde enxergar o soldado, nem a floresta, nem o igarapé, nem nada. Ainda aturdido, abriu as janelas e observou a cidade que dormia, alheia aos tanques que desfilavam imponentes pelas ruas. (p. 60) Sem maiores explicações, o conto termina assim, deixando para o leitor várias dúvidas: alguém espreitava mesmo o personagem, ou a força do sonho fez com que ele sentisse algo que estava apenas em sua mente? E os tanques referenciados são o indicativo de uma sociedade que vive sob um regime ditatorial de cunho militar? Ou trata-se da véspera de um desfile do dia 7 de Setembro? Ou ainda outra opção, mais ou menos estranha do que as que foram aventadas? As demais histórias também trazem situações não-familiares, que assustam ou incomodam o leitor, como as tentativas de suicídio em “Arnaldo e os moinhos” e “Os calos de Sísifo”, ou a busca de sensações passadas, no conto “Monga”, em que um personagem-narrador entra na tenda de Monga, a mulher que se transforma em gorila, tanto para fugir da algazarra do parque, quanto para tentar recuperar um passado que dê algum sentido à sua vida cotidiana do presente, em que é esposo e pai de dois filhos, “tão diferentes de mim” (p. 49). Há ainda momentos-limite desenhados em “Diotima”, com a presença de uma mulher que mistura seus pensamentos aos delírios da avó moribunda; “Missal para rastejantes”, em que uma mulher convive (ou sonha conviver) com formigas e outros insetos; “Tango sobremesa”, em que um homem faz sexo com cadáveres; e “Chamada a cobrar”, em que um casal separado comunica-se somente por meio do telefone4. Convém marcar que alguns dos contos aqui comentados – “Teias”, “História de amor número 17”, “A fronteira no fim do mundo”, “Monga” – podem ser tipificados, segundo Todorov, como estranhos puros: a par da bizarrice das atitudes dos personagens, as ações das narrativas, ao fim e ao cabo, mesmo as mais extremas, são passíveis de verificação na realidade, sem que novas regras sobrenaturais precisem ser criadas. 4 A partir dos comentários feitos sobre os contos de Pellizzari, pode-se observar, na sua produção – assim como em, por exemplo, Amilcar Bettega Barbosa e Ítalo Ogliari, dois outros contistas sul-rio-grandenses contemporâneos –, a influência de autores da literatura universal e nacional, como Franz Kafka, Ray Bradbury, Julio Cortázar, Murilo Rubião e o gaúcho Moacyr Scliar. 1037 Para finalizar esta breve comunicação, um olhar sobre “Ponto de fuga”, que encerra o livro. Desde o começo do conto, entra em cena o leitor: “Quando você olha através da janela, só o que vê são outras janelas” (p. 74). A partir daí, o narrador mostra o deslocamento do leitor (sempre por meio da indicação “você”) pelo interior de um quarto, até parar ante um espelho, despir-se e deitar numa cama. A seguir, aflora o fantástico (como em, por exemplo, “O voo das ovelhas” e “Gravidade”), pois começa a descrição de um processo de autofagia, a partir da ingestão do polegar, depois da mão, do braço, do outro braço, das duas pernas, até que o leitor fique “frente a frente com seu cu” (p. 75). A seguir, com um pouco de esforço, ele encosta o nariz no próprio ânus, enfiando a cabeça ali, até que desapareça sem vestígios, “sem deixar um bilhete de despedida” (p. 75). É o fim do livro, é o fim do leitor, que aturdido com os casos bizarros e fantásticos vividos pelos personagens, acaba ele mesmo por se transformar numa figura ficcional. O leitor, antes de poder fechar o volume, acaba por se engolir, no momento em que obedece às ordens do narrador, que faz questão de deixar o receptor constrangido, primeiro pela demonstração de voracidade, depois pela posição esquisita a que é submetido, vislumbrando o seu próprio orifício anal, momentos antes do sumiço completo, momentos antes do estranho, muito estranho, fim. REFERÊNCIAS FREUD, Sigmund. O estranho, In: ______. Uma neurose infantil e outros trabalhos (1917-1918). Rio de Janeiro: Imago, 1996. Volume XVII da edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. p. 233-273. PELLIZZARI, Daniel. Ovelhas que voam se perdem no céu. Porto Alegre: Livros do Mal, 2004. Edição em PDF. Disponível em: http://www.cabrapreta.org/. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1975. 1038