As origens antropológicas da reciprocidade
Dominique TEMPLE1
Resumo: O artigo trata do princípio da reciprocidade nas sociedades humanas. Procura nas diversas
tradições humanas as representações das origens da reciprocidade. A reciprocidade é logo analisada
segundo as três dimensões: o real, o simbólico e o imaginário. No plano real, as estruturas elementares da
reciprocidade são apresentadas, na continuidade dos trabalhos de Mauss e de Lévi-Strauss, assim como os
valores humanos gerados pela atualização das suas diversas formas e estruturas. No plano simbólico a
revelação da humanidade pode se expressar segundo o princípio de união ou o de oposição. No
imaginário o simbólico torna se preso de diversos tipos de feiticismo que vem alienar a expressão da
reciprocidade. Finalmente o autor analisa a contradição entre os sistemas de reciprocidade e os sistemas
regidos pelo intercâmbio. Conclui sobre a atualidade da reciprocidade em nossa época marcada pela
procura da sociabilidade ou a preocupação com a sua perda.
Palavras-chave: estruturas, reciprocidade, dádiva, princípios de união e de oposição, intercâmbio,
sociabilidade.
The anthropological origins of reciprocity
Abstract: This paper is about the principle of reciprocity in human societies. It first searches in the
different human traditions, the representation of reciprocity origins. The reciprocity is then analysed
through three dimensions: the real, the symbolic and the imaginary. In the real dimension, elementary
structures of the reciprocity are presented in the continuity of Mauss & Lévi-Strauss contributions. The
actualisation of different forms and structures of reciprocity produces diverse human values. On the
symbolic plan, the revelation of the humanity can be expressed by the union or by the opposition’s
principles. In the imaginary, the symbolic becomes prisoner of different kinds of fetishism which conduce
to the alienation of reciprocity expression. At least, the author analyses the contradiction between
reciprocity systems and exchange systems. He concludes about the actuality of reciprocity in a period
characterised by the search of social link.
Key-words: structures, reciprocity, gift, union and opposition principles, exchange, social link.
Les origines anthropologiques de la réciprocité
Résumé: L’article traite du principe de réciprocité dans les sociétés humaines. Il procure dans les diverses
traditions humaines les représentations des origines de la réciprocité. La réciprocité est ensuite analysée
selon les trois dimensions : le réel, le symbolique et l’imaginaire. Sur le plan du réel, les structures
élémentaires de réciprocité sont présentées dans la continuité des travaux de Mauss et de Lévi-Strauss,
ainsi que les valeurs humaines engendrées par l’actualisation de leurs diverses formes et structures. Sur le
plan du symbolique la révélation de l’humanité peut s’exprimer selon le principe d’union ou selon celui
d’opposition. Dans l’imaginaire, le symbolique devient prisonnier de divers types de fétichisme qui
viennent aliéner l’expression de la réciprocité. Finalement, l’auteur analyse la contradiction entre les
systèmes de réciprocité et les systèmes régis par l’échange. Il conclue par l’actualité de la réciprocité dans
notre époque marquée par la recherche du lien social ou la préoccupation pour sa dégradation.
Mots-clef: structures, réciprocité, don, principes d’union et d’opposition, échange, sociabilité
1
[email protected] – site : http://dominique.temple.chez-alice.fr/ - tradução Eric Sabourin
1. A reciprocidade e as origens
Em todas as tradições a sociedade humana é fundada sobre a proibição do incesto, a interdição
do “Mesmo”. Mas, quando o Diferente se apresenta sob uma forma radical, então, é ele que está
sendo condenado.Assim, o que pode ser declinado sob o modo da diferença absoluta sofre a
mesma proibição que a Identidade absoluta: tabu sobre as relações dos homens com os
estrangeiros vistos tão diferentes que seriam indiferentes e poderiam ser considerados até como
animais.Proibir o Mesmo ou proibir a Diferença absoluta pode ser entendido como duas
aplicações de uma lei mais geral: a proibição do que se afirma como logicamente nãocontraditório (Lupasco, 1941).E essa proibição leva a relativização do Diferente pelo Mesmo e
do Mesmo pelo Diferente para gerar uma resultante, por si mesma contraditória, que interessa
imediatamente o pensamento, a energia psíquica (Lupasco, 1951).Os termos de não-contraditório
e contraditório indicam aqui somente a estrutura lógica do objeto em questão, sem presumir do
seu conteúdo (Temple, 1998).
É quando entra em jogo a reciprocidade: cada parceiro de uma relação recíproca, atuando e
sofrendo a sua vez, acessa à uma situação onde cada uma dessas dinâmicas antagônicas (atuar e
sofrer) - cada uma em si não contraditória - é relativisada pela outra, de tal maneira que elas se
transformem uma na outra, pelo menos em parte, numa energia refletida sobre si mesma, uma
energia psíquica. Isto quer dizer que os reflexos, instintos, atividades dos sentidos não são
doravante orientados por uma finalidade biológica cega, mas refletidos sobre si mesmos em uma
consciência do que são: “uma consciência de consciência”. Essa metamorfose é a chegada da
consciência de consciência que as tradições chamam de Revelação.
Mas, sobretudo, a reciprocidade permite que a consciência que resulte dessa metamorfose
pertença simultaneamente tanto a uns como aos outros. O sentido é imediatamente universal.
Nas grandes narrações da história dos homens, as forças físicas e biológicas da natureza são
chamadas de cegas, caos das origens, trevas. Desse caos, surge a luz. Essa luz (espiritual) tem
uma eficiência específica (mesmo se essa eficiência não é mais que o equivalente da eficiência
das energias antagônicas em jogo para dar-lhe nascimento). Essa eficiência é a palavra, da qual
se diz, às vezes, que tem origem sobrenatural porque está livre das determinações de natureza
física e biológica. Pela palavra, a consciência adquire um nome e da um nome à natureza. Logo,
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defronta-se com aquelas das forças da natureza, instintos ou reflexos, que não participam da
reciprocidade. É por isto que a reciprocidade constitui uma ruptura, ruptura entre a natureza e a
cultura.
2. As estruturas elementares da reciprocidade
Quase todas as atividades dos homens estão então sendo submetidas ao princípio da
reciprocidade para ter sentido. São confundidas na mesma matriz, e são chamadas, desde Marcel
Mauss, de prestações totais. Mas quando a reciprocidade se especializa, cada um adquire seu
próprio sentido. Segundo Lévi Strauss (1947), foi em termos de reciprocidade, de aliança
matrimonial e de filiação que os homens organizaram suas primeiras comunidades: as estruturas
elementares do parentesco. É proibido se casar com os seus consangüíneos (irmãos e irmãs). É
também proibido a duas gerações diferentes de se casar com o mesmo conjugue (o filhos dos
seus pais). Logo este princípio é aplicado segundo outras normas que aquele do parentesco
biológico, mas sempre para fundar estruturas de reciprocidade.
A aliança matrimonial nas sociedades primitivas é, geralmente, uma relação de reciprocidade
binária: é chamada de reciprocidade restrita por Lévi Strauss. Pode, de fato, transformar-se em
reciprocidade generalizada (chamada também de ternária porque três prestações são suficientes
para simbolizar o ciclo).
A filiação é exclusivamente ternária: os pais geram crianças que gerarão por sua vez 2…Lembro
simplesmente que as estruturas elementares de reciprocidade podem ser classificadas em dois
grupos: reciprocidade binária e reciprocidade ternária; o grupo da reciprocidade binária de novo
em dois: o cara a cara (frente a frente) e a partilha. Por ternária, entende se uma relação na qual
você atua sobre um parceiro e, ao mesmo tempo, você está sujeito à ação de um outro parceiro.
A cadeia é continua e se fecha numa rede ou num círculo. Pode ser linear, ou quando um só
parceiro serve de intermediário para todos os outros, em forma de estrela: é então chamada de
estrutura centralizada.
Existem, por fim, estruturas intermediárias entre as estruturas elementares. Algumas dessas
estruturas são dadas desde a origem, como a filiação e a aliança, enquanto outras se auto2
Para essas questões ver o meu artigo "Le principe du contradictoire et les structures élémentaires de la reciprocité"
(Temple, 1998) ou sua tradução espanhola em Teoria de la reciprocidad Tomo II (Temple 2003).
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excluem, como a reciprocidade linear (chamada também de horizontal ou segmentar) e a
reciprocidade centralizada (ou ainda reciprocidade vertical ou redistribuição). Ora bem, cada
uma dessas estruturas elementares é a matriz de um sentimento específico (o “frente a frente”,
por exemplo, da amizade; a reciprocidade ternária, da responsabilidade, etc..) (Temple, 1998).
Precisa, portanto, inventariar as estruturas elementares, identificar o valor que cada uma produz,
entender como as diferentes estruturas se articulam entre si para formar sistemas, às vezes
exclusivos uns dos outros. O sentimento de humanidade gerado ao nível de um sistema de
reciprocidade será diferente daquele criado num outro sistema. Se todos os valores são universais
a humanidade não deixa de ser plural.
3. As duas palavras
Quando a reciprocidade permite uma relativização de si e dos outros que tende para um estado
intermediário equilibrado, o resultado é o sentimento de pertencer à uma humanidade comum.
Quando essa relativização está desequilibrada por um dos pólos que domina o outro, este
sentimento reflete as características do pólo oposto! Por exemplo, o doador (que perde o que dá)
terá o sentimento de adquirir o valor de humanidade (o prestígio) enquanto o donatário, que
recebe, terá o sentimento de perder a cara. Disto, para ele, o desejo de reconquistar prestígio, que
se traduz pela obrigação de reciprocidade, a obrigação de dar de novo, de devolver.
Ora bem, a palavra se expressa transformando a natureza nos seus próprios significativos. O
corpo é o primeiro significativo, logo cortado de cicatrizes, de tatuagens, adornado de enfeites,
os quais, separados do corpo, se tornarão mascaras. Ao que chamamos de revelação sucede
assim a significação, que pode ser chamada, de acordo com as Tradições religiosas de
encarnação, um movimento de sentido inverso aquele produzido para gerar a consciência.
Existe, desde logo, logicamente duas encarnações possíveis para a consciência, uma que utiliza
por significativo a lógica da Diferença, a outra, a Identidade. A expressão pela Diferença é
referenciada pela antropologia com o nome de princípio de oposição, ou ainda de disjunção; e a
expressão pela Identidade, com o nome de princípio de união, ou ainda de conjunção: trata-se,
de fato, dos fundamentos das duas palavras, que o chamo aqui de palavra política e de palavra
religiosa (Clavero, 1996).
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4. A palavra de oposição, a honra e o prestígio
A primeira oposição útil para expressar o sentimento de humanidade é amigo-inimigo. A
reciprocidade pode logo ser reproduzida conscientemente de várias maneiras, dependendo de
como é mais ou menos bem equilibrada ou, em outras palavras, segundo domine a amizade ou a
inimizade.
Numerosas são as sociedades construídas a partir dessas três formas de reciprocidade, ditas uma
positiva, a reciprocidade das dádivas; a outra negativa, a reciprocidade da vingança; a terceira
simétrica (da qual as organizações dualistas nas sociedades primitivas constituem um primeiro
exemplo).
A palavra de oposição distingue concórdia e discórdia. Toda dádiva ou vingança deve ser
recíproca, o contrário seria inumano. Somente a reciprocidade permite metamorfosear o fato de
dar e aquele de receber num valor novo, do qual o prestígio é um testemunho. É a mesma coisa
para a vingança, o homicídio ou o roubo, que se não são inscritas na reciprocidade, perdem
sentido: somente a reciprocidade lhes da sentido criando a honra.
Esses dois sistemas de reciprocidade chamados de positivo e de negativo podem se compensar
diretamente - um homicídio por um matrimônio, uma dádiva por um golpe - porque são
equivalentes do ponto de vista da estrutura. Mas um termo real dessa relação pode ser substituído
por um símbolo: a compensação e a composição (uma fiança) e quando os símbolos são
idênticos, os dois sistemas podem se substituir um ao outro. Desde logo, as sociedades dão
geralmente a preferência à reciprocidade positiva e afastam a reciprocidade negativa à sua
periferia (os bárbaros).
O prestígio e a honra ilustram o sentimento de humanidade criado pela reciprocidade de dádiva
ou de vingança, mas polarizam na sua não-contradição respectiva, a reprodução do ciclo que leva
à dialética da dádiva e à dialética da vingança.
Essas dialéticas podem se relativisar mutuamente, e essa relativização conduz a uma terceira
forma de reciprocidade: a reciprocidade simétrica que está na origem dos valores éticos. A
reciprocidade simétrica tem a peculiaridade notável de não levar a nenhuma forma de dominação
e, portanto, não aparece em nenhuma relação de poder. Não deixa, mesmo assim, de constituir o
fundamento da sociedade humana.
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5. A palavra de união e o sagrado
Se a palavra de oposição leva a diferentes formas de organização, a palavra de união, pelo
contrário, conduz a uma só forma de organização. Está na origem da religião; e ela opõe outro
valor a honra e ao prestígio: o sagrado.
Podemos distinguir duas estruturas elementares de reciprocidade que geram a palavra de união: a
partilha, que produz a confiança e a reciprocidade ternária centralizada, na qual os membros da
comunidade são todos ligados entre si por um só intermediário, que se torna o centro da
redistribuição e a autoridade suprema (o rei Sihanouk na Camboja, por exemplo). O sentimento
de confiança mútua não tem mais “vis-à-vis”. Torna se fé. Quando o centro se dedica à
redistribuição dos valores espirituais, a fé dos fieis transforma se em subalternização pessoal
(obediência e submissão). O chefe de uma monarquia religiosa ocidental, o pontífice soberano da
Igreja Católica Apostólica e Romana agregou recentemente ao símbolo do Nicée (o Credo dos
Cristãos) um artigo que testemunha dessa focalização extrema: "Ademais, aderiu por uma
obediência escrupulosa da vontade e da inteligência as doutrinas enunciadas pelo Pontífice
romano ou pelo Colégio episcopal quando exercem seu Magistério autentico mesmo se não
pretendem proclamá-las num ato definitivo".
Todas as sociedades tentam conciliar a palavra de oposição com a palavra de união, e vemos
aparecer uma tríade, a tríade do poder: o chefe-guerreiro e o doador-rei de um lado e o religioso
do outro, Aquiles, Agamenão e Calcas, que celebrou Homero na Ilíada : uma tríade que assegura
a sustentação de nossa civilização até o século XVII, e que os historiadores descrevem sob vários
trípticos,
por
exemplo
:
o
cavaleiro,
o
lavrador
e
o
padre
(Duby,
1981).
Mas, em tais sistemas, um homem que não participa de nenhuma relação de reciprocidade ou que
não pode conseguir participar não é mais considerado como humano. Os três referentes, a honra,
o prestígio e o sagrado implicam negativamente um quarto referente: o inumano, que funda, em
todos as civilizações antigas o escravismo.
Se nenhuma sociedade humana ignora as duas palavras, cada uma dá a prevalência a uma ou a
outra alternativamente. Nas sociedades ameríndias dos Andes, a linhagem masculina é
responsável pela palavra de oposição, a linhagem feminina da palavra de união. Na civilização
européia, até o século X, reina a palavra política e a palavra oriunda da reciprocidade negativa
domina a palavra oriunda da reciprocidade positiva (os cavaleiros tornam se senhorios e os
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lavradores servos). No século XI, a palavra religiosa toma a vantagem. Os religiosos consagram
os reis e infeudam suas prerrogativas até validar ou não as suas alianças matrimoniais!
Evidentemente, em cada ordem, política ou religiosa, um debate interno opõe a tentação do nãocontraditório à sua relativização em contraditório: poder e liberdade, imaginário e simbólico, lei
e gênese. A antinomia entre o não-contraditório que pretende ao poder, e a sua relativização para
gerar a liberdade é inextinguível. Não é somente uma constante das origens, é uma constante da
gênese: aqui, ela encontra-se ao nível da palavra, um segundo círculo de relações humanas com
relação a aquele do real, das atividades da vida. A propriedade luta com a reciprocidade, a
seleção com a eleição, o poder com a liberdade. E quando o não-contraditório domina, toca a
hora de ideologias assassinas que prometem os judeus ao inferno, os negros ao escravismo, os
índios, ao "serviço doméstico", os "heréticos" à tortura e à morte.
Para as duas palavras, a prova é, de fato, difícil porque cada uma deve contar com sentimento de
humanidade criado pela reciprocidade ao nível do real (o primeiro círculo), e as duas são logo
ameaçadas pela lógica do não-contraditório do seu significativo (a união ou a oposição).
6. O feiticismo
Mas por que o imaginário encarcera o simbólico? Por que o poder se apodera da liberdade? Por
que a reciprocidade simétrica não domina nas sociedades, não se reproduz imediatamente na
linguagem e não conduz para o melhor dos mundos?
O feiticismo do prestígio
Lewis Hyde na sua interpretação do texto mais famoso da literatura antropológica (o
ensinamento do sábio Maori Ranapiri a um antropólogo inglês chamado de Best) nos da uma
idéia deste feiticismo. Ranapiri queria explicar a Best o tipo das relações que o homem Maori
mantêm com a natureza. Ranapiri se referia à uma relação entre os homens, uma relação de
reciprocidade generalizada (a mais comum de todas as relações de reciprocidade) : “supomos”,
diz Ranapiri, “que você me dá um presente que eu transmito para um terceiro ; quando este me
devolverá por reciprocidade outro presente, não vou poder guardá-lo para mim, porque é justo
que o devolva para você: este presente é o hau do teu (o hau : prestígio que lhe valeu o presente
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que você me fez) e não seria justo guardá-lo para mim, poderia morrer por isto” (Hyde, 1979).
Ora bem, Ranapiri imagina uma relação de reciprocidade ternária entre os caçadores, ele e a
floresta: a floresta dá pássaros ao caçador, o caçador dá a Ranapiri que dá, de novo, para a
floresta, um passaro e, ademais, o que ele chama o mauri, uma representação do prestígio (do
hau) que gera a dádiva. É a da sua posição intermediária entre a floresta e os caçadores, que lhe
assegura ser ao mesmo tempo doador e donatário (uma situação contraditória), que o sábio Maori
adquire um sentimento de responsabilidade. Expressa um tal sentimento de responsabilidade
fabricando o mauri, símbolo do espírito da dádiva. Ranapiri remete o mauri para a floresta para
que o ciclo dos caçadores seja reproduzido a sua iniciativa. Cria assim uma quimera de
reciprocidade da qual pode tirar um espírito com o qual pode encantar o mundo.
Lewis Hyde observa que os Maoris convidam a floresta nessa matriz, mas também os rios, a terra
o céu, o universo, e além do que ele chama mistério, enfim os espíritos. O objetivo dessa fuga no
mistério é provavelmente evitar que a reciprocidade não possa ser recuperada para o proveito do
primeiro doador, porque logo seria reduzida ao que poderia ser interpretado como uma dádiva
calculada por interesse, quer dizer a um intercâmbio.
Mas se o espírito da dádiva é confundido com a própria dádiva, se faz do espírito da dádiva um
primeiro doador, como se o mauri fosse o símbolo do doador, essa tal redução estabelece o valor
de responsabilidade como uma propriedade deste quarto participante do ciclo, que se torna então
o primeiro doador do ciclo, um Deus da dádiva; e, obviamente, a contra dádiva significa uma
outra propriedade. Esta relação entre propriedades é conhecida: é o intercâmbio. A redução do
valor produzido pela dádiva à própria natureza do doador elimina a reciprocidade como matriz
deste valor; e instaura a propriedade.
É precisamente por ter interpretado o espírito da dádiva como produto da reciprocidade, como o
eu do doador (como a sua propriedade) que Marcel Mauss (1924), o principal teórico que se
preocupou com a reciprocidade das dádivas, pensou que doando, dava-se de si próprio. Defende
logo que a dádiva do seu não pode ser definitiva, que é, em realidade inalienável, e que o retorno
do símbolo para o seu lugar de origem sendo inelutável, esse caráter inelutável seria o motor do
intercâmbio. Mauss interpreta assim a dádiva como um simples empréstimo. E vê na vingança a
prova da sua interpretação: a vingança viria para restaurar a integridade do doador quando o
empréstimo não for restituído. Fala de intercâmbio arcaico, e como tudo lhe parece ser misturado
- almas e coisas -, tira disto a idéia do intercâmbio simbólico. Bastaria separar as coisas do seu
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valor simbólico para que possam ser cambiadas segundo critérios objetivos. Desencaminhada
nesse beco sem saída, a teoria da reciprocidade ficou, muito tempo, inexplorada, deixando
espaço para aquela do intercâmbio.
O feiticismo da honra
Da reciprocidade de vingança nasce o sentimento de honra, mas a mesma inversão feiticista pode
acontecer, como no caso da reciprocidade das dádivas: a honra torna-se então um princípio
motor, o Deus da vingança: é o que propõe o Antigo Testamento: "
Como o Farão se obstinava em não nos deixar ir embora, Yahweh fez que todos os primogênitos
morressem no país do Egito, desde os primogênitos dos homens até aqueles dos animais ". O
espírito da vingança é transformado em princípio de vingança, em autor da vingança. O sacrifício
é desde logo instaurado como ritual para alimentar o Deus da vingança: " É por isso que
ofereceu em sacrifício à Yahweh todo macho primogênito dos meus animais e que posso redimir
todo primogênito dos meus filhos ".( A Bíblia, )
O feiticismo do sagrado
Pode-se também considerar o feiticismo na palavra de união; a oferenda é então confundida com
o homicídio. Farão, por exemplo, representa para Moíses a palavra de união totalitária; e a fuga
do Egito a relativização da palavra de união. Em princípio o sacrifício lembra a necessária
relativização da natureza biológica e física para gerar o sagrado. Significa aqui a relativização da
palavra de união sob a pena que ela se torne totalitária para gerar seu próprio além (a terra
prometida). Porém, se o sagrado for hipostasiado num princípio (Deus), então o sacrifício pode
também se substituir à reciprocidade, em outras palavras, a matriz pode esquecida, e o ritual
tomado por matriz: é a origem das religiões. Reencontra-se o dilema entre o que chamamos de
não-contraditório e contraditório. Aqui, é mais precisamente entre o imaginário necessário para
dar conta e proclamar o fundamento dos valores adquiridos, e o simbólico que procede a uma
relativização do imaginário no seio de uma nova reciprocidade para gerar um valor superior.
O problema do mal e o feiticismo
A hipóstase pela não-reciprocidade do valor produzido pela reciprocidade marca a inversão
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feiticista: não é mais a reciprocidade do homicídio que gera a honra, é a divindade da vingança
quem dita o homicídio. Não é a reciprocidade das dádivas que produz o prestígio, mas o prestígio
que ordena a dádiva. O ciclo da reciprocidade é revertido numa relação inversa da reciprocidade,
uma relação duplamente unilateral, uma competição de poder, um intercâmbio. Ele não produz
nenhum valor espiritual, mas o valor espiritual está postulado. Logo a liberdade gerada pela
reciprocidade torna-se sujeição, portanto obediência ao governo que detêm a palavra.
Na tradição judaica, o feiticismo é chamado de Tentação. A Tentação é uma representação nãocontraditória do sagrado. Ora bem, essa concepção não-contraditória implica que toda
relativização dessa não-contradição seja denunciada como o Mal.
A reciprocidade não conhece o Mal, porque é a não-reciprocidade que inventa o Mal: a nãoreciprocidade chama de Mal tudo o que poderia corromper a sua representação do sagrado como
não-contraditório. Paradoxo! Porque é precisamente o que parecia ser a exaltação da consciência
que é doravante chamada de Mal. Em realidade, é quem inventa o Mal que deve ser chamado de
Maligno. Sempre o mesmo dilema: o não-contraditório enfrenta o contraditório.
7. A contradição dos sistemas de reciprocidade
Examinamos o paradoxo: Tudo o que se opõe a palavra de união que se torna totalitária é
declarado obra do Mal. Mas, se for considerado o ponto de vista da palavra de oposição, é a
mesma coisa: um índio Guarani do Paraguai, chamado pelos missionários de Nesus, (tal vez uma
negação de Jésus), que defendia a reciprocidade generalizada segmentada contra a reciprocidade
generalizada centralizada respondeu ao fundador jesuíta das missões guarani, Antonio Ruiz de
Montoya (1639): "A liberdade se perde a discutir de bosques e vales quando vocês nos obrigam
a residir em grandes aldeias". A sujeição da vontade e da inteligência que é chamada de fé,
característica da reciprocidade centralizada (a Igreja de Montoya no coração da aldeia) parecia a
Nesus uma escravidão. Mas, segundo o próprio Montoya, o mesmo Nesus se tornava escravo do
prestígio que lhe assegurava a reciprocidade segmentada. Referia-se, de fato, ao prestígio da
palavra que era avaliada pelas homenagens das mulheres (a poligamia dos Guarani). E Montoya
lhe respondia que era um filho de Satanás porque vivia no pecado da carne. Montoya rebaixava a
reciprocidade de aliança e de filiação que obedecem a palavra de oposição à uma lei da natureza,
e contestava assim ao seu interlocutor de ser criador de qualquer valor. Uma tal cegueira mútua
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mostra ate que ponto essas duas palavras são excludentes uma com a outra: cada uma pretende
ser a única capaz de dar conta da verdade; o que é proclamado libertação numa é declarado
escravidão na outra e reciprocamente.
O sucesso das seitas (confessionais ou laicas) e o retorno do integrismo, tanto no Cristianismo
como no Islã, como o renascer das ideologias nacionalistas e xenófobas, indicam a permanência
deste fenômeno hoje. De uma maneira geral, toda pessoa que atua em nome de valores
constituídos vive um problema difícil quando é confrontada com a reciprocidade. Suas
referências, muitas vezes enfeitiçadas num imaginário particular ou arcaico, se opõem a
modernidade, e têm que enfrentar a gênese de valores novos para as gerações mais jovens. A
palavra que não se realiza em termos de reciprocidade, ou que não reproduz a reciprocidade ao
seu próprio nível, aquele da linguagem, e se reduz assim, a significação de valores constituídos
(ideologias, religiões e messianismos), não é criadora de novos valores. No pior dos casos pode
tornar-se totalitária.
8. O intercâmbio entre os Ocidentais
Explicamos que fazer do espírito da dádiva um primeiro doador é típico do feiticismo. No
sistema religioso, este primeiro doador torna-se Deus e é a Deus que é devida toda glória. Essa
alienação atinge o seu paroxismo na Europa do Norte à partir do século XVII. O Deus cumula
um tal poder que o homem se reduz ao estado de natureza: é até predestinado... Todo o que tem a
ver com o espiritual é, de fato, reservado ao Deus.
Desde logo, uma economia reduzida às leis naturais parece legítima para construir a cidade
terrestre. É a hora do intercâmbio, doravante escolhido como referente. Realize a igualdade das
coisas entre elas, uma igualdade que se entende como sua complementaridade em vista de uma
eficiência superior. Em suma, mede sua utilidade. Aqui temos uma nova potência que substitui a
honra, o prestígio e o sagrado: a utilidade (Temple, 1997).
Os capitalistas sustentam que seu princípio é universal, porque objetivo e de certa maneira
racional, se reduzimos a razão ao cálculo. Uma noção da razão e do universal especifico dessa
sociedade. Ora, mais matriz, mais gênese. O espírito não é mais alimentado, ele enfraquece.
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Quem diz utilidade aproxima-se do dilema entre o contraditório e o não contraditório. Será que a
utilidade se concebe para o beneficio privado ou para aquele da sociedade inteira?
O intercâmbio, de fato é neutro, mas faz o jogo da utilidade em termos de forças, e, portanto pelo
maior proveito do poder. Faz o jogo do unidimensional contra o relativo. Não é o demônio, mas
é o seu companheiro. Se o intercâmbio, de fato, pode ser chamado de cego, não é o caso do
interesse ao qual está subordinado, seja interesse privado ou coletivo.
A sociedade é então obrigada de inventar o contrato social para dominar o retorno da violência
primitiva, contrato que implica a reciprocidade entre os homens, e que tem em vista o
intercâmbio, o que faz a sua ambigüidade. A democracia política na sociedade ocidental é um
corretivo necessário ao livre-câmbio, mas ela supõe indivíduos dotados de um ideal do bem
predestinado.
De um lado, o intercâmbio liberta cada um das obrigações, sujeições da honra, do prestígio ou do
sagrado. Por outro lado, o intercâmbio obriga a separação entre o profano e o religioso. O melhor
que possa fazer o crente para honrar o divino é fazer funcionar a economia utilitarista tão bem
como pode (Weber, 1905). O intercâmbio liberta o espiritual de todo compromisso com o
material. Deus pode ser chamado de puro espírito. Existe aqui um paradoxo bem identificado por
Weber (1905) : de um lado, uma sujeição reduzida à um princípio (Deus) que suprime todos os
intermediários, príncipes e bispos, sujeição absoluta ; e, do outro lado, a saída da sujeição pelo
materialismo econômico. A conjunção dessas duas alienações maiores, porém antagonistas,
aquela do poder espiritual absoluto e aquela do poder da natureza (os dois não-contraditórios)
representam o triunfo do sistema capitalista e muito cristão no Ocidente. Sistema que
dificilmente consegue limitar seus vieses mortais, como o racismo, o fascismo, o nacionalsocialismo ou o terrorismo. O perigo da redução do trabalho humano ao trabalho da maquina está
lá: na força bruta, no poder biológico, na discriminação social ou racial, deportações e
genocídios, enfim, a solução final para a consciência revelada.
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9. Consciência objetiva e consciência afetiva
Será que se o Puritano não tinha triunfado no Norte e o Jesuíta no Sul, o processo de acumulação
material a partir do intercâmbio não teria ocorrido de qualquer modo? Será que este processo não
se estende hoje, apesar do declínio rápido da religião?
A palavra parece ter expressado primeiro o sentimento de pertencer à uma humanidade comum.
"Nos os verdadeiros homens", é o nome que se dão inúmeras comunidades humanas. A
humanidade parece ter se apaixonado primeiro para a consciência mais afetiva. Sua primeira
ambição foi, em todos lugares, de se libertar da natureza, e de se afirmar pelos seus cantos, suas
danças e seus adornos. A preocupação do conhecimento do mundo vem, aparentemente, com a
ciência, muito mais tarde. Ora bem, na experiência afetiva, a consciência se volta para o
contraditório; na experiência do conhecimento volta-se para o não-contraditório, como um navio
no mar que primeiro toma o largo e logo se dirige para o litoral.
Logo, é tentador tomar a direção escolhida pela consciência como a realidade do observado, e
crer que toda coisa denominada é não-contraditória, que a denominação das coisas não faz se não
reconhecer a não-contradição nas coisas. Um modo de conhecimento (a lógica de nãocontradição), e de comunicação entre os homens é transferido para o mundo: a luz, por exemplo,
é finalmente interpretada no século XIX como um sistema de ondas (quer dizer, como a
propagação de um campo exclusivamente contínuo), e a matéria, ao contrário, como um sistema
de átomos (partículas elementares, exclusivamente descontinuas).
10. A hora h
A ciência clássica tentou imaginar o mundo à partir da idéia de não-contradição e quis excluir o
contraditório do seu campo. A lógica ocidental é de fato fundada no princípio de identidade, no
princípio de não-contradição e no princípio do terceiro excluído. Este “terceiro” que era antes
objeto de todos os desejos é logo banido no século XVIII e no século XX. A ciência positivista é
então um auxiliar ativo da teoria utilitarista até uma data precisa: 1900. Um sismo! Um físico
que nunca teve a ousadia de crer na sua própria descoberta, Max Planck, mostra que a irradiação
é continua ou descontinua segundo o processo experimental com o qual é apreendida. Ela é,
portanto ao mesmo tempo contraditória (hv) (h é um valor descontinuo, v o valor continuo,
contraditoriamente associados). A interação com o aparelho de medição atualiza uma não13
contradição dada (contraditória ou não), mas, a partir de uma entidade indecifrável em termos de
não-contradição. Vinte anos mais tarde, toda energia, toda matéria do universo, será reconhecida
segundo a mesma nova perspectiva (quântica, quer dizer contraditória). A Física não acabou com
a apreensão do mundo em termos de não-contradição, nem tampouco a idéia que a força seria
uma lei da natureza física e biológica, nem tal vez a idéia que possa ser útil organizar certa parte
da vida material segundo relações de força (Marx). Mas a experiência desmente os postulados da
ciência positivista do Século XIX. Mesmo se as idéias novas devem enfrentar uma forte inércia
das idéias recebidas, o contraditório é doravante reconhecido em muitas circunstâncias no
coração do que é não contraditório, e o não-contraditório revela se ser um ou outro dos dois
pólos do contraditório.
Desde logo, a ciência muda de atitude. Ela não é mais sujeitada pela não-contradição lógica dos
princípios que organizaram a sociedade. Ela não pensa mais o mundo em termos somente
matérias. Ela se preocupa das dimensões próprias ao homem porque estão já inscritas no coração
da natureza. A ciência fica ainda francamente hostil a todo feiticismo, a todo imaginário, mas ela
aceita que seu olhar sobre o mundo seja associado à um olhar sobre o homem, e ela entende essa
antinomia. Ela respeita os valores éticos como parte integrante dos seus fundamentos ao lado do
conhecimento.
11. A reciprocidade simétrica nos tempos modernos
Mas, as conseqüências vão mais longe. A metamorfose do caos das origens em energia espiritual
(das trevas em luz) é, temos dito, a chegada (a elevação) da consciência. Temos interpretado o
sacrifício original como a representação deste consumo das forças físicas e biológicas da
natureza no berço da reciprocidade para gerar o espiritual. Desde logo, a eficiência dessa
consciência (o verbo) denomina as coisas, impondo uma definição e uma ordem segundo uma
lógica de não-contradição, com o princípio de oposição ou com o principio de união. Ora bem, a
partir de Planck, esta intuição encontrou a experiência: as dinâmicas de polaridade não
contraditória, mas antagonistas entre elas podem se aniquilar para gerar algo contraditório e, este
mesmo contraditório pode gerar o não contraditório (o vazio quântico pode gerar a matéria e a
energia). Para fazer o quê? Criar informação útil para o desdobramento da sua própria dinâmica
como dizem os neurobiólogos?
Hoje, é pelo menos possível dominar três sistemas de informação: a informação física, a
informação biológica (o código genético), e logo, se não a informação quântica, pelo menos sua
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matriz que colocará ao serviço da humanidade sua própria matéria psíquica. Aqui, reside talvez
um novo degrau ou uma nova ruptura: o psíquico, ou o quântico quem é sua fonte, não é
redutível a qualquer coisa objetiva. É subjetivo por natureza e a gênese dessa subjetividade é um
desafio para a humanidade. Libertada de qualquer entrave física ou biológica, essa energia
psíquica é a consciência do homem.
Ora bem, participamos todos da criação da rede mundial dessa informação imaterial, palavra de
todos dirigida para todos e disponível para todos de maneira permanente e gratuita. Essa
gratuidade da palavra de cada um para todos e de todos para cada um é a forma moderna da
reciprocidade simétrica, uma reciprocidade libertada dos imaginários que a encarceravam na
propriedade e a sujeitavam no poder.
A reciprocidade escapa-se do segundo círculo, aquele do imaginário, e se constrói num terceiro
círculo. Ela torna se essa noosfera imaginada por Teilhard de Chardin, halo por em quanto único
entre todos os halos dos planetas, um halo de luz espiritual, fundado nos valores da ética
(Aristóteles).
12. A atualidade da reciprocidade
Todos os dias, recebemos o outro, o convidamos a compartilhar nossa mesa, oferecemos a
hospitalidade e a nossa prolação, de maneira privada ou coletiva (cobertura médica universal,
pensões, alocações e bolsas familiares, seguros sociais). Praticamos a reciprocidade no real
porque somos parte do real, e mais da metade da nossa atividade produtiva é destinada à essa
reciprocidade, sem que o saibamos, porque interpretamos tudo segundo o paradigma dominante
do intercâmbio.
Tentamos de viver socialmente e somos preocupados da destruição da relação social (da
sociabilidade) sem saber o quê é a “relação social”, uma palavra vaga que cobre de fato os
valores produzidos pela reciprocidade simétrica, os sentimentos de responsabilidade, de
liberdade, de justiça, de confiança (segundo as estruturas de reciprocidade em jogo mas que
ignoramos).
Lá onde essas estruturas estão quebradas, somos conscientes que a relação social se desfaz:
alguns fogem na natureza, outros na Máfia, no Extasy, outros na religiosidade, nas seitas, outros,
no que eles chamam de economias alternativas. Economias chamadas de paralelas, subterrâneas,
solidárias, etc, todas são pré-capitalistas.
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Mas essa defesa nos permite reencontrar o outro na proximidade, na solidariedade, na cidadania,
sem saber tampouco qual é o segredo dessas noções e práticas elementares. Excluídos do
primeiro círculo, nos reencontramos porem, no segundo círculo, aquele da palavra e da
comunicação. E, por falta de competências sobre o tema, lá também o paradigma do intercâmbio
é invocado e nos impõe sua lei. Fala se sempre de intercâmbios: de intercâmbios culturais, de
intercâmbios de saberes e de competências! Assim, a própria competência torna-se objeto de
interesses, e às vezes de interesses recíprocos! A reciprocidade dos interesses não é senão o
intercâmbio, quer dizer o contrário da reciprocidade das dádivas, mais precisamente, uma
reciprocidade voltada contra si.
A confusão leva sempre ao mesmo beco sem saída e a desilusão aumenta. Portanto, é necessário
refletir e, perguntarmos o que queremos produzir: quê tipo de valores, valor de intercâmbio, de
justiça, de responsabilidade, de confiança, de fé?
Os homens respondem geralmente: "primeiro a liberdade!". “ É o primeiro valor que propõe a
Revolução. Logo é a "igualdade” (outubro!). Todas as estruturas de reciprocidade são geradoras
da liberdade, porque todas acabam com os determinismos da natureza. Mas, é preciso entender
aqui por liberdade o repudio de toda sujeição, inclusive da sujeição a honra, ao prestígio e ao
sagrado. Ninguém de bom senso, hoje, gostaria de voltar aos tempos de Carlos Quinto. Ora bem,
essa liberdade é também aquela de poder ser justo ou injusto.
Desde muito tempo os liberais perguntam-se como conciliar a liberdade e a igualdade? Mas
como conciliar essa liberdade com a justiça? John Rawls (1971 e 1993), campeão do liberalismo
contemporâneo, ao termo de uma reflexão de várias dezenas de anos, concede que o indivíduo
racional não pode ser considerado um indivíduo completo, e que nem pode atingir os princípios
de justiça por si só. Ele teria ademais de ser razoável, quer dizer viver em reciprocidade com
outros para adquirir o que Charles Taylor (1989 e 1997) descreve como capacidades que somente
podem aparecer a partir da participação de cada um a uma comunidade. Ora bem, a comunidade
universal que se liberta de todos os limites práticos ou imaginários se constrói pela reciprocidade
generalizada.
Outro debate, tão importante, apesar de ter ficado ultimamente suspenso, é de saber como
conciliar a igualdade e a responsabilidade. Existe, pois, duas formas de reciprocidade
generalizada: uma que promove a responsabilidade, a outra que promove a confiança (e na sua
alienação, como vimos, a submissão). A dificuldade vem de que essas duas formas são
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exclusivas uma da outra. O desconhecimento das matrizes desses dois valores fundamentais e da
sua exclusão mútua é o obstáculo contra o qual se quebrou a economia comunista.
Como resolver esses enigmas, a não ser dominando as estruturas de produção dos valores
humanos? E isto não basta, porque o imaginário se apodera, de fato, desses valores e os sujeita.
Portanto, é necessário agregar ao reconhecimento das estruturas de reciprocidade (e das suas
próprias formas de alienação), o conhecimento dos diferentes círculos (o real, o imaginário) onde
essas estruturas são construídas.
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As origens antropológicas da reciprocidade