RECURSO ESPECIAL Nº 538.832 - RS (2003/0090662-9) RELATOR RECORRENTE ADVOGADO RECORRIDO ADVOGADO : : : : : MINISTRO CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO BANCO ABN AMRO REAL S/A SIRLEI MARIA RAMA VIEIRA SILVEIRA E OUTROS VERA BEATRIZ TERRA E OUTRO ODILON MARQUES GARCIA JUNIOR E OUTROS EMENTA Ação de anulação de fiança por falta de outorga uxória. Natureza da garantia. Precedentes da Corte. Indenização. Inscrição na SERASA. 1. Na forma de precedentes da Corte, o "interveniente garantidor solidário" não se confunde com o avalista nem com o fiador, sendo inaplicável, portanto, a disciplina positiva sobre a fiança, com o que se afasta a necessidade de outorga uxória (REsp nº 6.268/MG, julgado em sessão de 15/4/91; no mesmo sentido, do mesmo Relator: REsp nº 3.238/MG, DJ de de 19/11/90). 2. Se a inscrição foi feita em função de processo executivo movido pelo banco, refletindo a realidade, não há como identificar conduta ilícita. 3. Recurso especial conhecido e provido. ACÓRDÃO Vistos, relatados e discutidos os autos em que são partes as acima indicadas, acordam os Ministros da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, conhecer do recurso especial e dar-lhe provimento. Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Castro Filho, Antônio de Pádua Ribeiro e Humberto Gomes de Barros votaram com o Sr. Ministro Relator. Brasília (DF), 10 de fevereiro de 2004 (data do julgamento). MINISTRO CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO Relator Documento: 453703 - Inteiro Teor do Acórdão - Site Certificado- DJ: 12/04/2004 Página 1 de 8 RECURSO ESPECIAL Nº 538.832 - RS (2003/0090662-9) RELATÓRIO O EXMO. SR. MINISTRO CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO: Banco ABN Amro S.A. interpõe recurso especial, com fundamento nas alíneas a) e c) do permissivo constitucional, contra acórdão da Décima Quinta Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, assim ementado: "FIANÇA. OUTORGA UXÓRIA. INSCRIÇÃO NO SERASA. DANOS MORAIS. Ingressando a esposa do fiador com ação para pedir anulação do ato jurídico por falta de outorga uxória, é de ser acolhido o pleito, nos exatos termos do art. 235, III, do Código Civil Brasileiro, combinado com os arts. 239 e 248, III, do mesmo diploma legal. Cabível e oportuno fixar-se indenização equivalente a dez salários mínimos para cada um dos apelantes, dado o caráter punitivo e reparador desta, mas sem esquecer o princípio da moderação, tendo em vista o curto espaço de tempo decorrido entre a atitude de os demandantes resolverem se insurgir em juízo e a suspensão liminar daquela inscrição indevida. Apelo provido" (fl. 136). Opostos embargos de declaração (fls. 144 a 146), foram rejeitados (fls. 149 a 152). Sustenta o recorrente violação dos artigos 458, inciso II, e 535 do Código de Processo Civil, haja vista que não foram sanadas as omissões do acórdão, ainda que interpostos embargos declaratórios. Aduz negativa de vigência dos artigos 896 e 904 do Código Civil de 1916, na medida em que "o instituto da solidariedade não obriga a outorga uxória" (fl. 166) e que, "por não existir o instituto da fiança nos negócios jurídicos em exame, por certo que não se aplicam as disposições dos artigos 235, III c/c art. 239 e 248, III, do Código Civil Brasileiro, equivocadamente utilizados pelo v. acórdão, em detrimento das disposições" (fl. 167) dos artigos em referência. Alega ofensa aos artigos 46 e 47 do Código de Defesa do Consumidor, tendo em vista que não se aplicam "na operação em debata, por não se revestir de uma operação de consumo" (fl. 167). Argúi contrariedade ao artigo 159 do Código Civil de 1916, porquanto "não ocorreu dano suscetível de reparação, já que não se vislumbra qualquer conduta contrária a lei que pudesse violar direito de outrem" (fl. 168). Documento: 453703 - Inteiro Teor do Acórdão - Site Certificado- DJ: 12/04/2004 Página 2 de 8 Aponta dissídio jurisprudencial, trazendo à colação julgados, também, desta Corte. Contra-arrazoado (fls. 190 a 197), o recurso especial (fls. 156 a 171) não foi admitido (fls. 204 a 210), tendo seguimento por força de decisão proferida em agravo regimental (fls. 201/202 anexo). Houve recurso extraordinário (fls. 173 a 188) não admitido (fls. 204 a 210), decisão contra a qual foi interposto agravo de instrumento (fl. 212). É o relatório. Documento: 453703 - Inteiro Teor do Acórdão - Site Certificado- DJ: 12/04/2004 Página 3 de 8 RECURSO ESPECIAL Nº 538.832 - RS (2003/0090662-9) EMENTA Ação de anulação de fiança por falta de outorga uxória. Natureza da garantia. Precedentes da Corte. Indenização. Inscrição na SERASA. 1. Na forma de precedentes da Corte, o "interveniente garantidor solidário" não se confunde com o avalista nem com o fiador, sendo inaplicável, portanto, a disciplina positiva sobre a fiança, com o que se afasta a necessidade de outorga uxória (REsp nº 6.268/MG, julgado em sessão de 15/4/91; no mesmo sentido, do mesmo Relator: REsp nº 3.238/MG, DJ de de 19/11/90). 2. Se a inscrição foi feita em função de processo executivo movido pelo banco, refletindo a realidade, não há como identificar conduta ilícita. 3. Recurso especial conhecido e provido. VOTO O EXMO. SR. MINISTRO CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO: Os recorridos ajuizaram ação declaratória de nulidade de fiança, cumulada com pedido de reparação de danos morais, alegando que são casados pelo regime da comunhão universal de bens, prestando o cônjuge varão fiança em contrato de renegociação de operações de crédito em que eram partes Loiva Maria Pimentel Lopes e o Banco Real S.A., sem que tenha havido a devida outorga uxória, sendo o casamento de conhecimento do banco; que o banco iniciou execução forçada contra o autor, ademais de levar seu nome ao registro na SERASA, sem qualquer espécie de comunicação, como estabelece o art. 43, § 2º, do Código de Defesa do Consumidor. Pedem a procedência da ação para que seja decretada a nulidade da fiança e seja condenado o banco a pagar indenização por danos morais. A sentença julgou improcedentes os pedidos. Considerou o Juiz que, no caso, trata-se de devedor solidário que assume a mesma posição do devedor principal e que houve registro regular da existência de ação executiva contra o varão, trazendo o banco comprovação de que o autor foi advertido das providências que seriam tomadas em razão do débito. O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul proveu a apelação. Considerou o voto do Desembargador Manuel Martinez Lucas que no “presente caso se deve levar em conta que a expressão 'interveniente garantidor solidário', que constou no instrumento Documento: 453703 - Inteiro Teor do Acórdão - Site Certificado- DJ: 12/04/2004 Página 4 de 8 celebrado entre o segundo apelante e o apelado, só quer dizer que uma pessoa intervém no contrato para prestar garantia de pagamento como devedor solidário. Inexiste a figura jurídica 'interveniente garantidor solidário', restando definir-se, então, se a garantia é de aval ou fiança” (fl. 138). Concluiu que a garantia dada é fiança, porque aval é garantia própria de título cambial. Para o acórdão recorrido, “se não agiu o banco com a clareza conveniente ao elaborar o contrato, redigindo o instrumento de modo a dificultar a compreensão de seu sentido e alcance, a interpretação das cláusulas deste deve ser a mais favorável ao consumidor (arts. 46 e 47 do CDC)” (fl. 138). No caso, sendo fiança, é nula pela falta de outorga uxória. Daí que procede o pedido também quanto aos danos morais sofridos em razão da inscrição em cadastro negativo, fixando a indenização em 10 salários mínimos para cada autor. Os embargos de declaração foram rejeitados. Não vislumbro violação dos artigos 458, II, e 535 do Código de Processo Civil. O acórdão recorrido, com claridade, mostrou que se tratava de fiança, não de aval, nem, tampouco, relevou a natureza da intervenção do devedor como devedor solidário. O mesmo se diga com relação ao dano moral que impôs. Entendo prequestionado o tema relativo à natureza da intervenção do varão no contrato celebrado com o banco réu. Há precedente desta Terceira Turma, Relator o Ministro Waldemar Zveiter, entendendo que na “posição de devedor solidário, pouco importando o nomen juris que lhe tenham atribuído no pactuado, sendo casado o mutuário, inexistente a outorga uxória no contrato, segundo iterativa jurisprudência, nula é tal garantia por infringência do art. 235, III, do Código Civil” (AgRgAg nº 2.798/RS, DJ de 11/6/90). A questão é saber se a intervenção do varão no contrato configura ser ele "garantidor solidário" ou fiador. O acórdão recorrido assentou que “o fiador também pode ser devedor solidário, desde que nesta condição figure expressamente no contrato, como é o caso dos autos” (fl. 139). Ora, o que se tem, de fato, é que o varão aparece no contrato como "interveniente garantidor solidário". Se assim é, é necessário que haja a outorga uxória, porque se trata de fiança? O acórdão recorrido entendeu que a garantia prestada era fiança, daí que a ausência da outorga uxória, tornava-a nula, nos termos dos artigos 235, III, do Código Civil, c/c os artigos 239 e 248, III, do mesmo Código. No precedente antes mencionado há notícia de que o acórdão recorrido refutou o argumento de que a fiança não se presume, “quando ela não a presumiu, mas tão somente a flagrou no contrato, rotulada sob outro nome (garante solidário)". Todavia, outro precedente da Corte, Relator o Ministro Sálvio de Figueiredo Documento: 453703 - Inteiro Teor do Acórdão - Site Certificado- DJ: 12/04/2004 Página 5 de 8 Teixeira, reproduzindo voto proferido em outros precedentes, considerou que a "figura do 'garante solidário', que não se confunde com o avalista e com o fiador, sujeitar-se-á à execução se o título em que obrigar se enquadrar no elenco do art. 585 do Código de Processo Civil" (REsp nº 6.268/MG, DJ de 20/5/91). No mesmo sentido, do mesmo Relator, REsp nº 3.238/MG, DJ de de 19/11/90, merecendo reproduzido o trecho que se segue: "Em face de tais premissas, seria de indagar-se como situar a figura do rotulado 'garante solidário', para o qual se invocam os arts. 896 e 904 do Código Civil. Fiador, a meu sentir, não seria. Não, ressalve-se, por faltar, muitas vezes, a assinatura da mulher, uma vez que sem a impugnação dessa a obrigação subsistiria; mas pela circunstância de que, nos termos do art. 1.483 do Código Civil, a fiança não admite interpretação extensiva, 'jamais se presume', segundo salienta Washington de Barros Monteiro ('Curso', Saraiva, 20ª ed., 1985). Existiria uma nova modalidade de garante, ao lado do avalista e do fiador? Pode o aval ter ampliação com simples declaração em pacto adjeto, em cláusula contratual? Vejo a problemática sob outro prisma, dentro de uma exegese na qual os institutos de um mesmo sistema não podem atritar-se, impondo-se interpretação que os harmonize. Assim, vê-se que a execução, no sistema processual civil brasileiro, a exemplo do que ocorre hoje no melhor direito comparado, se assenta em títulos executivos judiciais e extrajudiciais. Outrossim, ao elencar, em numerus clausus, os títulos extrajudiciais, proclama o inciso II do art. 585 do Código de Processo Civil ter eficácia executiva 'o documento público, ou o particular assinado pelo devedor e subscrito por duas testemunhas, do qual conste a obrigação de pagar quantia determinada, ou de entregar coisa fungível'. Ora, se o contrato está devidamente formalizado, nos termos do art. 585, II, CPC, constitui título executivo o documento particular através do qual alguém se responsabiliza por um determinado débito, não podendo constituir-se em óbice a circunstância do valor não estar expresso em cruzeiros no documento, mesmo porque, em anômalo regime inflacionário como o nosso, já assentou esta Corte da validade de títulos lançados não em nosso padrão monetário-cruzeiro, mas em outros padrões, formulados e oficializados pelo próprio sistema econômico, e como indiscutíveis o conhecimento e a aceitação dos mesmos pelo mercado financeiro e pela própria comunidade. Ademais, impende aduzir que eventual imprecisão no rotular essa obrigação repercussão alguma pode ter na esfera jurídica, inclusive por força do disposto no art. 85 do Código Civil, segundo o qual 'nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da linguagem'. Por fim, é de acrescentar-se que, não obstante as cautelas de que precisa munir-se o Judiciário para evitar que os mais poderosos esmaguem ou enfraqueçam ainda mais os hipossuficientes, especialmente na área econômica, não menos certo também é que o Direito, 'cette toujours et jeune chanson' , não pode omitir-se ante uma realidade que reclama novas Documento: 453703 - Inteiro Teor do Acórdão - Site Certificado- DJ: 12/04/2004 Página 6 de 8 formas de proteção jurídica, sob pena de deixar de cumprir sua missão normativa de disciplinar a vida social. Do exposto, chega-se à conclusão que, na real verdade, o pretenso 'garante solidário' não passa de um devedor (CPC, art. 568, I) e como tal obrigado, e de forma ainda mais ampla que o fiador, quer por dispensar a anuência do cônjuge (embora incidente a Lei 4.121/62), quer por não dispor do benefício de ordem, com o qual é contemplado o fiador por força de lei (CPC, art. 595; CC, art. 1.491)". Em outro precedente, de minha relatoria (AgRgAg nº 197.214/SP, DJ de 22/2/99), considerando que o acórdão recorrido afirmou que o então embargado assumiu no contrato a condição de garantidor solidário pelo total do débito, votei no sentido de que não haveria como identificar na relação firmada a figura da fiança. Ora, neste feito, vale ainda uma vez repetir, há a figura do 'garante solidário', tanto que o acórdão recorrido assim reconheceu a solidariedade, apenas afirmando que haveria necessidade de outorga uxória, porque se tratava de garantia e esta só poderia ser aval ou fiança, ou seja, segundo o acórdão recorrido no contrato a que se refere este processo (fls. 20/21), "há que se entender que a garantia prestada é de fiança, se a outra modalidade não se referir o contrato" (fl. 139). Assim, entendo que a figura do 'garante solidário' não se confunde nem com o aval nem com a fiança, sendo incabível, portanto, a nulidade por falta de outorga uxória, exigida na fiança, de que não cuida este processo. Com relação à indenização, também, com razão o banco recorrente. A questão era a natureza da intervenção do varão, que aparece no contrato como garante solidário. Como bem posto na sentença, o banco não agiu com culpa "ao dirigir a inscrição do nome do requerente ao cadastro da SERASA, pois contra ele se voltou processo executivo" (fl. 109). Não existe, em tal cenário, nenhuma conduta ilícita, porque a inscrição foi relativa à existência do processo executivo, o que não contradita a realidade. Com tais razões, eu conheço do especial e lhe dou provimento para restabelecer a sentença. Documento: 453703 - Inteiro Teor do Acórdão - Site Certificado- DJ: 12/04/2004 Página 7 de 8 CERTIDÃO DE JULGAMENTO TERCEIRA TURMA Número Registro: 2003/0090662-9 RESP 538832 / RS Números Origem: 200201059749 70000113654 PAUTA: 10/02/2004 JULGADO: 10/02/2004 Relator Exmo. Sr. Ministro CARLOS ALBERTO MENEZES DIREITO Presidente da Sessão Exmo. Sr. Ministro ANTÔNIO DE PÁDUA RIBEIRO Subprocuradora-Geral da República Exma. Sra. Dra. ARMANDA SOARES FIGUEIREDO Secretária Bela. SOLANGE ROSA DOS SANTOS VELOSO AUTUAÇÃO RECORRENTE ADVOGADO RECORRIDO ADVOGADO : : : : BANCO ABN AMRO REAL S/A SIRLEI MARIA RAMA VIEIRA SILVEIRA E OUTROS VERA BEATRIZ TERRA E OUTRO ODILON MARQUES GARCIA JUNIOR E OUTROS ASSUNTO: Civil - Contratos - Bancário - Fiança CERTIDÃO Certifico que a egrégia TERCEIRA TURMA, ao apreciar o processo em epígrafe na sessão realizada nesta data, proferiu a seguinte decisão: "A Turma, por unanimidade, conheceu do recurso especial e deu-lhe provimento." Os Srs. Ministros Nancy Andrighi, Castro Filho, Antônio de Pádua Ribeiro e Humberto Gomes de Barros votaram com o Sr. Ministro Relator. O referido é verdade. Dou fé. Brasília, 10 de fevereiro de 2004 SOLANGE ROSA DOS SANTOS VELOSO Secretária Documento: 453703 - Inteiro Teor do Acórdão - Site Certificado- DJ: 12/04/2004 Página 8 de 8