Publicações sobre o aborto na revista ESTUDOS1
Os Estudos incorporam-se convictamente nesse bom combate pela causa da Vida. A forma
como agora o fazem – dando aliás coerente sequência, própria da Igreja militante, ao
precedente espaço consagrado ao debate teórico-científico sobre as origens da vida – releva do
cuidado de acompanhar as manifestações presentes de cada problemática.
Apresentamos aqui alguns textos de referência sobre a matéria publicados na Revista
ESTUDOS:
Descriminalização do aborto? .............................................................................. 1
“Mais Vida Mais Família” – Memória e mágoa de uma missão .................................. 5
Medicina e Maternidade amoris causa ................................................................ 12
Pela Vida, contra o Aborto. Respostas e Argumentos............................................ 14
A Vida Humana em Questão.............................................................................. 28
Madre Teresa. Excerto do discurso de Madre Teresa de Calcutá nas Nações Unidas.. 38
Descriminalização do aborto?
Por Cristina Líbano Monteiro, Assistente da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
Publicado na Revista ESTUDOS NS 2 (Junho de 2004).
O texto que agora se publica corresponde, sem alterações, a uma comunicação oral feita pela
autora, a 15 de Abril último, no Auditório da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra,
inserida num Colóquio com o mesmo título. Aliás, o próprio estilo da escrita e a ausência das
costumeiras indicações bibliográficas denunciam que nasceu na oralidade e dela não foi
depurado.
1. A questão que aqui nos traz, a questão do aborto e da sua eventual descriminalização,
constitui matéria controversa, mas sobretudo dolorosa; matéria que corta transversalmente a
sociedade portuguesa — para falarmos agora só de nós —; matéria que representa um desafio
para o direito, talvez melhor, um desafio para os juristas. E, embora sem exclusivismos, um
repto para os penalistas.
Estou convencida de que ainda não tivemos a criatividade necessária, a ousadia indispensável,
se calhar, para lidar com ele (com o problema do aborto) de um modo adequado.
Tenho para mim que o direito penal é sobretudo protector, não penalizador. Que o essencial
radica na protecção dos bens comunitariamente mais valiosos que atravessam a história da
nossa concreta civilização. Que as penas se tornam necessárias tão-só pela nossa imperfeição.
Numa comunidade de justos, de pessoas dotadas das virtudes da convivência interpessoal, as
penas tornar-se-iam inúteis, por jamais usadas; mas nem por isso os valores deixariam de
valer, nem por isso deixariam de ter vigência aquelas normas de comportamento essenciais,
que todos — nessa utopia — respeitariam com grande naturalidade.
Dizia: o problema do aborto desafia-nos e responsabiliza-nos.
Obriga-nos a repensar o modo de sermos juristas. As categorias em que às vezes vasamos a
realidade, forçando-a a entrar em moldes nos quais talvez já não caiba. O sistema de sanções
de que dispomos, que porventura tenha deixado, nalgum dos seus aspectos, de fazer sentido
neste momento da evolução histórica da consciência ético-jurídica do povo a que pertencemos.
Julgo que, na problemática recente, são muitos mais os que se revoltam contra a possibilidade,
remota embora, de uma pena de prisão ser aplicada a uma mulher que aborta, do que aqueles
que consideram que a descriminalização do aborto a pedido constitui solução adequada para o
problema.
A regra de três simples em que o problema se converteu, pode enunciar-se como segue:
− a mulher que aborta deve ir para a prisão? Não!
− o aborto crime pode dar lugar a prisão? Sim
− logo: o aborto deve deixar de ser crime.
Bem sabemos que o silogismo é falacioso. Bem sabemos que a prisão figura em todos os tipos
legais de crimes (menos um) da Parte Especial do Código Penal, como pena principal, ao menos
tempo que todo o sistema de penas da parte geral procura que, na prática, o tribunal se decida,
1
Fonte : http://www.cadc.pt/Abortoedefesadavida.htm
1
quando em causa está uma pena de prisão de curta ou de média duração, pela substituição da
prisão por uma pena não privativa da liberdade.
Bem sabemos, por isso, que será raro que a condenação de uma mulher por crime de aborto se
concretize na imposição de uma pena detentiva.
Bem sabemos, pois, que o essencial do problema — doloroso, repito — do aborto escapa a este
tipo de raciocínios.
É certo. Mas, entretanto, porque não pensar que talvez este sistema sancionatório assente na
privação da liberdade, ainda que como ameaça última, se mostra talvez desaquado, não apenas
para o crime de aborto, mas para outros muitos delitos da parte especial. Com pena de prisão
até três anos, tal como o aborto, é punida a generalidade dos crimes fundamentais contra o
património. Fará sentido? Privação da liberdade (ainda que só por excepção passe da abstracção
da moldura penal) por um pequeno ou médio desfalque na propriedade ou no património
alheio? Não seremos capazes de encontrar novas penas principais?
2. Deixando de lado a questão das penas, atentemos no núcleo do problema.
Defendo — avanço-o desde já — a manutenção da proibição criminal do aborto a pedido ou
aborto livre. Explicarei brevemente porquê.
2.1. Não se trata de uma sacralização da vida humana biológica, por outro lado qualificada em
relação a outras espécies; de erigir em intocável um bem físico, ainda que especialmente
valioso (também quanto ao potencial das células que o formam).
Tal como vejo as coisas, a questão mais funda está em manter intacta a proibição do arbítrio na
disponibilidade por cada um, por mim, de uma vida humana que não seja a minha (e sem que
seja eu própria a dispor dela). Mais: em resistir a aceitar que o bem jurídico vida humana intrauterina possa chegar a merecer uma protecção zero por parte da ordem jurídico-penal. O aborto
a pedido traz consigo um verdadeiro esvaziamento, uma aniquilação do bem jurídico vida
humana pré-natal. Não discuto, neste momento, qual o peso dessa vida no confronto com
outros bens jurídicos pessoais, nomeadamente a vida ou a saúde da mãe. Olho para ela, para
essa vida humana incipiente e pergunto-me se deve ser reduzida a um nada jurídico, se o
direito lhe deve negar toda e qualquer protecção. Dito de outro modo: se deve proteger não a
vida humana intra-uterina, na sua objectividade valiosa, mas a gravidez voluntária de uma
mulher. Se o bem jurídico vida humana intra-uterina, em si mesmo considerada, deve deixar de
figurar como um daqueles que contribui ainda para a nossa identidade cultural.
Não dramatizo.
Interrogo-me apenas.
2.2. Dir-me-ão: a descriminalização não abrangeria todo o arco da vida humana pré-natal.
Apenas as primeiras doze semanas.
Permitir o aborto a pedido até às doze semanas — i.é: a descriminalização da conduta abortiva
até essa etapa do desenvolvimento do embrião — supõe uma radical mudança no tratamento
jurídico-penal do problema.
Não significa juntar mais uma causa de exclusão da ilicitude às já existentes. A lógica da
exclusão da ilicitude corresponde, como bem se vê, a retirar de determinados comportamentos,
em princípio proibidos, uma franja de casos que, pelo circunstancialismo que os rodeia, se
mostram em concreto toleráveis. Não se pune quem aborta em virtude de ser esse o meio
indicado para evitar perigo de morte para a mulher grávida, para invocar uma das indicações do
art. 142º.
É toda outra lógica a que preside à descriminalização do aborto até às doze semanas, por
exemplo. Equivale a retirar, em geral e abstracto, do tipo de ilícito do aborto uma fatia da vida
intra-uterina. Já não por um especial circunstancialismo que torna concretamente tolerável o
que em princípio o não era. É o mesmo que juntar ao capítulo dos crimes contra a vida intrauterina uma definição legal do seguinte teor: para efeito do disposto nos artigos seguintes,
considera-se vida intra-uterina a vida humana a partir das doze semanas e um dia de gestação
e até ao início do processo de nascimento.
Se assim fosse, tornar-se-ia necessário repensar todo o capítulo, sob pena de esse bocado de
lei penal passar a albergar — se é que não alberga já — notórias contradições.
Como explicar que quem fizesse abortar uma mulher, sem o seu consentimento, antes das doze
semanas de gestação, ficasse impune? Ou, se isso nos repugna, teria de nos repugnar tão-só
por essa mulher se ver porventura agredida na sua integridade física e certamente lesada na
sua liberdade. Porque até às doze semanas o embrião seria um nada jurídico-penal. Senão,
como fugir à contradição de um embrião ser protegido ou não enquanto tal, conforme a sua
morte seja ditada com ou sem a oposição da mulher que o traz em si?
A vida humana intra-uterina vale enquanto a grávida disser que vale e porque ela o diz,
deixando de valer sempre que o não diz e porque o não diz?
2
Parece clara a disjuntiva: ou se protege a vida intra-uterina em si mesma, como parece dar a
entender o CP ao autonomizar os ataques dirigidos contra essa vida dos crimes de ofensa à
integridade física de alguém ou contra a liberdade de uma pessoa, ou essa protecção
desaparece por completo e, em bom rigor, o crime de aborto deveria ser excluído do CP.
2.3. A pergunta crucial é esta: a que nos atemos para dividir as vidas humanas dignas de
protecção penal das que o não são, pensando agora apenas nas vidas pré-natais ou intrauterinas (com a consciência de que não estou a usar sinónimos)? Porquê aborto a pedido até às
dez ou às doze semanas e não até às treze, ou às vinte e quatro ou às trinta? Porquê proteger
um prematuro de vinte e quatro semanas e não esse mesmo ser humano quando ainda está in
utero? Depende do sítio em que vive: dentro ou fora do seio materno? Depende do tamanho já
alcançado? Depende de factores puramente emocionais, reais embora, como seja o de que faz
mais impressão esmagar um grande do que um pequenino? A dúvida volta sempre: qual a
racionalidade de um qualquer corte radical dentro do continuum do desenvolvimento
embrionário.
Duvido seriamente que exista alguma razão convincente que justifique a desprotecção total, i.é,
em todos os casos, da vida humana intra-uterina, assim como duvido da possibilidade de se
apontar um momento dentro do seu desenvolvimento antes do qual ela difira qualitativamente
do que será no dia seguinte e que justifique portanto a ausência absoluta de protecção anterior
e a cabal protecção logo a seguir.
E se dúvidas houver no estabelecimento dessa fronteira, de modo a não ser possível traçá-la
beyond any reasonable doubt, então a prudência jurídica, o princípio da precaução, manda que
se resolva a dúvida a favor da afirmação da vida. In dubio pro vita.
Racionalmente, só concebo duas hipóteses: ou riscar o aborto do número das incriminações
porque falece em absoluto ao direito a legitimidade para criminalizar um comportamento que dá
a morte a quem ainda não se reconhece personalidade jurídica, ou não é cidadão 'à luz do dia' e
pertence por isso ao âmbito de privacidade da mãe e está dependente do seu absoluto domínio
ou liberdade; ou defender a protecção sem hiatos da vida humana desde o seu princípio
(verificando-se depois, caso a caso, se algum conflito de bens ou situação de necessidade, ou
qualquer outra causa de exclusão do ilícito torna determinada conduta tolerável em concreto
face à ordem jurídico-penal).
Tudo o que passe daqui, já em rigor nada tem a ver com a vida intra-uterina em si mesma
considerada.
3. Passo agora a considerar este outro tipo de abordagem do problema, que não assenta em
prazos e pergunta simplesmente pela legitimidade do Estado para invadir a esfera de
privacidade da grávida. A questão é esta: pode o Estado cuidar da vida nascente em mim,
entrando sem pedir licença na minha intimidade? Não deveria o Estado cuidar apenas dos seus
cidadãos e deixar os que ainda o não são — ao menos plenamente — à liberdade de quem os
sustenta dentro de si, à minha liberdade de ser mãe? Não bastará ao Estado a protecção dos
membros da comunidade que o são visivelmente, por si próprios? Bem sei que a vida que
transporto não é parte do meu corpo. Não o reconhecer seria ignorância ou má fé. Mas, sendo
outra vida, não é verdade que só através do meu corpo pertence à comunidade, circula nela?
Poderá o Estado defendê-la apesar de mim? Contra mim?
Retorna o problema da fronteira. E aparece um outro: a da enorme mudança operada a nível da
visibilidade social, do conhecimento do que antes era o mistério da vida oculta no útero
materno.
O tempo escolhido para levantar com toda a veemência o problema da descriminalização do
aborto coincide, paradoxalmente, com a época histórica em que o embrião, o feto, deixou de
ser 'invisível'. Não haverá um certo anacronismo, um certo atraso na apreensão da realidade
individual e comunitária da vida intra-uterina? Não estaremos a desatender os avanços dos
tempos, da ciência, continuando apegados a conceitos velhinhos, de duzentos anos, feitos à
medida de um modelo pré-tecnológico e ultra-liberal de sociedade?
E, sobretudo, não será altura de ultrapassar tempos gloriosos, mas pretéritos, em que se
pensava que a lei, formalmente igual para todos, resolvia os problemas reais? Como
ironicamente disse alguém, reportando-se a essa época: a lei permite, tanto ao rico como ao
pobre, dormir debaixo de uma ponte.
4. Os ventos sopram, nos nossos dias, a favor de uma ética do cuidado, da solicitude, da
protecção, da responsabilidade, correspondente ao medo da decadência, da destruição, à
consciência da fragilidade, nossa, dos outros, de todos, da sociedade, à incerteza que paira
sobre os destinos individuais e colectivos.
E talvez se diga então que não estamos em alturas de usar a linguagem imperativa do poder,
não estamos em tempos de proibições terminantes como as do direito penal.
3
Não vejo as coisas assim. E há mais quem as não veja deste modo.
Precisamente a fragilidade invoca o cuidado, a responsabilidade que cada um não pode mais
sacudir dos seus ombros e que tão-pouco o direito pode afastar dos seus. Precisamente o
direito, que está em vez da força, que está ao lado dos frágeis, sempre que além de frágeis se
vejam injustamente oprimidos.
A legitimidade da criminalização do aborto tem aqui, em minha opinião, um dos seus pontos de
apoio.
A vida intra-uterina, a vida pré-natal, constitui precisamente o elo mais fraco do processo de
desenvolvimento de um ser humano. O cuidado do direito para com ele há-de ser atento, uma
vez que está totalmente à mercê dos outros: não apenas da mãe, do pai, da família; mas de
todos e de cada um, da comunidade a que pertence, afinal.
5. Vou ao último ponto. Depois de todas as considerações que teci, devo afirmar agora que o
direito penal não resolve a questão do aborto. Não o resolve a criminalização — se assim fosse
estaria ultrapassado em Portugal há muito tempo; nem o resolve a descriminalização, sob pena
de já dever estar solucionado nos países que há décadas o retiraram do número das infracções,
ao menos até um certo estádio da gravidez.
Não se trata de uma singularidade do crime de aborto. É que o direito penal nunca resolve os
problemas. As normas penais são essencialmente violáveis e a pena nunca repõe as coisas na
situação em que estariam se o crime não houvesse ocorrido.
Repito: o direito penal não resolve os problemas que estão na origem do recurso ao aborto. A
descriminalização não transforma em aproblemáticos e inócuos os abortos (mesmo os legais)
que se praticam. A criminalização não tem como consequência a redução a zero do número de
abortos praticados numa determinada comunidade.
A meu ver, a questão — neste seu aspecto pragmático — deve colocar-se do seguinte modo:
qual o enquadramento penal mais adequado para que as verdadeiras ajudas aos verdadeiros
problemas que por vezes levam ao aborto provocado possam actuar?
A experiência de outros países ajuda a equacionar a questão*. Diz-nos que o aborto clandestino
não desaparece com a descriminalização (talvez pelo desejo de anonimato de quem decide não
levar a gravidez a termo); que se dá uma tendencial multiplicação do número total de abortos,
multiplicando-se portanto em igual medida o risco de complicações para a saúde materna que
essa prática sempre implica; que a sociedade que oferece aborto não oferece com a mesma
generosidade apoio para que a mulher grávida possa confiar na expectativa de uma
maternidade digna. A manutenção da conduta como crime serve, portanto, de muro de
contenção para a sua prática generalizada e permite a paulatina actuação sobre as condições
sociais extremas que, por vezes, estão na sua base.
O direito penal não resolve o problema do aborto, insisto. Mas faz, mesmo no plano empírico,
parte da solução.
* As afirmações de natureza estatística — que hão-de ler-se sempre, como é sabido, com a
cautela de quem não desconhece que a multiplicidade de factores que estão na origem de um
certo resultado empírico nunca pode ser exaustivamente considerada — baseiam-se num
relatório internacional: Induced abortion: a world review (1990), publicado em Ibañez,
J.L./Velasco, G., La despenalización del aborto voluntario en el ocaso del siglo XX, 1992. Os
números que apresentam referem-se a cinco países e comparam, em termos absolutos e em
percentagem, a situação antes e depois de uma lei descriminalizadora. São os seguintes:
Inglaterra e Gales
Alemanha
Suécia
Dinamarca
EUA
Antes
19 157
8 386
18 794
7 680
146 678
Depois
81 443
60 900
33 029
25 071
958 800
Aumento
425%
726%
176%
326%
654%
4
“Mais Vida Mais Família” – Memória e mágoa de
uma missão
Por Tiago Afonso Lopes de Miranda, Procurador da República
Publicado na Revista ESTUDOS NS 2 (Junho de 2004).
I
No primeiro trimestre deste ano 2004 o edifício da sociedade e do Estado de Direito Portugueses
foi mais uma vez fustigadas por um vendaval que deixou à vista, no todo da comunidade
jurídica e no particular das consciências, estragos abundantes, uns já latentes, outros agora
provocados ou agravados.
Refiro-me à recidiva da questão da legalização do aborto a pedido. Com ela foi posta em causa,
deliberada e conscientemente por uma minoria militante e agressiva, e quiçá inconscientemente
por significativos sectores da sociedade, mesmo ilustrados e moralmente motivados, a
proscrição de condutas que atentam contra um princípio ético-jurídico que, por mais ofendido
que seja por esse mundo fora, não pode deixar de se considerar pedra angular do Estado de
Direito Ocidental moderno, tal como o conhecemos: a inviolabilidade da vida humana.
Digo isto não apenas porque a generalidade das constituições dos Estados e a declaração
Universal do Direitos do Homem consagram expressamente tal princípio.
Na verdade, não é necessário que o Estado de Direito positive numa qualquer lei fundamental a
sua estima por este sumo bem. Como é sabido, estados de direito houve e há que se não regem
por uma constituição escrita e votada, se não por normas ou princípios ético-jurídicos reputadas
constituintes, umas porque a sua origem se perde na bruma da História de um povo, outros
porque relevam do Direito em si mesmo, seja este entendido como Direito Natural, seja como
um conjunto de axiomas ético-jurídicos fundamentantes de todo o Direito de determinada
civilização. Quer dizer, além das normas constituintes positivadas numa lei fundamental, outras
há que o são antes de positivadas.
Assim é que podemos dizer que quando a Constituição da República de 1976 dispõe, no art.º
70º - primeiro artigo do título II (direitos liberdades e garantias) – que “A vida humana é
inviolável”, não está a constituir do nada um princípio fundamental da ordem jurídica
portuguesa, está antes a receber no seu texto um dos fundamentais princípios da Constituição
Material do Portugal de aqui e de agora: ao menos enquanto a civilização em que Portugal se
integra for esta que poderemos designar por Ocidental, de matriz judaico-cristã.
Decorre daqui uma ideia que me apraz realçar: se Estado de Direito é aquele que se não
fundamenta no poder de coacção – Estado de Policia – mas no Direito, começará a deixar de o
ser aquele que, mesmo a coberto de um sufrágio democrático, seja representativo ou directo,
aqui se incluindo o referendo, legisle constitucional ou ordinariamente em violação dos
princípios axiológico-jurídicos que materialmente o constituem.
Pode, pois, dizer-se com toda a acuidade que é o próprio Estado de Direito Português que se
degrada cada vez que o bem jurídico da vida humana nascitura é ofendido pelo Legislador.
Sei que uma afirmação desta contundência tomará proporções de blasfémia em alguns ouvidos.
Mas pergunto: é alguma novidade dizer que o Estado de Direito democrático se subverte se não
respeitar os Limites do Direito, enquanto ordem axiológico-normativa, ainda que pelo processo
democrático? Não foi pelas regras de uma democracia sem o limite do Direito que Sócrates foi
iniquamente condenado à morte? E que o fascismo, o nazismo e alguns socialismos totalitários
ascenderam no século XX ao poder, convertendo Estados de Direito em Estados de Polícia ou de
terror? Ora, se é legitimo e necessário conceber limites ao poder democrático nestes casos, em
que estaria em causa a liberdade da pessoa humana e outras condições da sua dignidade,
porque não quando o que se ofende é a condição suprema do respeito dessa dignidade, o valor
mais estimável, a saber, o da inviolabilidade da vida humana, posto que no ser humano mais
frágil e indefeso?
II
Em matéria deste direito fundamental que é o direito à vida, muito se tem degradado em todo o
mundo o Estado de Direito Ocidental, desde a subversão do crime do aborto em direito social a
abortar, até permissão da eutanásia.
Também importa lembrar o quanto já se degradou em Portugal a defesa da vida humana na
ordem jurídico-legal, a começar pelo vazio legislativo relativamente à procriação in vitro, vazio
mediante o qual o legislador ordinário, em violação dos imperativos constitucionais, tem
assistido, omisso, desde há mais de vinte anos à instrumentalização, ao congelamento e,
obviamente, à morte a prazo de milhares de embriões excedentários (não implantados),
5
passando pela difusão e promoção, como contraceptivos, de artefactos ou drogas
potencialmente abortivos, ao ponto de se pretender negar ao farmacêutico o direito à objecção
de consciência na venda dos que o são.
A própria alteração ao nosso Código Penal introduzida pela Lei 6/84 de 11/5, de que resultou o
então art.º 140º do referido Código com a epígrafe “exclusão da ilicitude do aborto” e os
sucessivos “melhoramentos” que esta norma, entretanto transitada para o art.º 142º [1], foi
recebendo até ao presente, integram-se já claramente nesta espiral de degradação do zelo da
nossa ordem jurídico-legal pelo bem fundamental da Vida Humana, posto que no limita da
fragilidade.
Difundiu-se a ideia de que aquela alteração veio apenas contemplar situações excepcionais em
que não seria eticamente sustentável proibir e, logo, tornar punível a prática de aborto.
Salvo melhor opinião trata-se de uma ideia para consumo acrítico de uma opinião pública tão
desprovida de conhecimentos jurídicos como propensa ao facilitismo, implementada com
sucesso pelos promotores do direito ao aborto, de modo a encurralar os defensores da proibição
pura e simples numa incómoda aparência de extremismo. E há que reconhecer que essa ideia
veio e venceu: de tal maneira que os próprios partidos que então votaram contra a dita Lei
(PSD e CDS) hoje aprovam uma recomendação ao Governo em ordem ao seu rigoroso
cumprimento pelos profissionais do Serviço Nacional de Saúde, com laivos, até, de alguma
intimidação a quem for escrupuloso [2]. É claro que rigoroso cumprimento da lei, desta feita,
significa o contrário disso mesmo, ou seja, uma aplicação o mais permissiva possível dos
conceitos indeterminados ou cláusulas abertas que abundantemente a integram, por forma a
que as estatísticas do aborto legal e pago pelo Estado aumentem...
E no entanto trata-se de uma ideia infundamentada.
Na verdade o nosso, como a generalidade dos códigos penais, contém na sua parte geral uma
exaustiva previsão de circunstâncias em que a prática de todo e qualquer facto integrante de
um tipo de crime não é punível, seja por ficar excluída a ilicitude da conduta – é o caso v.g. da
legítima defesa e do estado de necessidade justificante, do conflito de deveres (art.ºs 31º, 32º
e 34º e 36º), seja por se considerar não haver culpa, apesar da ilicitude objectiva do facto – é o
caso do estado de necessidade desculpante (art.º 35º). Além disso, prevêem-se, quer em geral
quer quanto a muitos crime em especial, múltiplas circunstâncias atenuantes da culpa que
podem ir até à isenção de pena.
Aquelas normas que prevêem a exclusão da ilicitude e da culpa tem de comum resolverem
conflitos concretos de valores ou de direitos subjectivos penalmente protegidos ponderando a
importância desses valores ou direitos subjectivos numa escala hierárquica e a maior ou menor
intensidade ou actualidade da ofensa dos mesmos no caso concreto. E nesta ponderação
relevam de uma dogmática ético-juridica amplamente consensual, cujos critérios normativos,
em boa verdade, se descobrem inscritos em qualquer consciência normalmente formada. Basta
lê-las atentamente para percebermos como abrangem potencialmente todas as situações em
que a prática de um aborto se justificaria eticamente, ou em que não seria justo perseguir ou
condenar os seus autores. [3]
Praticado em alguma daquelas circunstâncias, e se a notícia do facto tiver ab origine tais
contornos, o aborto, como qualquer outro crime, não dá lugar sequer ao processo criminal, pois
crime para efeitos de procedimento criminal “é o conjunto de pressupostos de que depende a
aplicação ao agente de uma pena ou de uma medida de segurança criminais” [4]. Se tais
contornos justificantes ou desculpantes se apurarem já no decurso da fase investigatória do
processo, ou até se suscitar apenas uma dúvida razoável sobre se terão ou não ocorrido, não
haverá lugar ao julgamento. Com efeito, o Ministério Público (Mº Pº) só pode deduzir acusação
e o Juiz de Instrução, quando for requerida, só pode proferir despacho de pronúncia,
determinando se proceda a julgamento, quando houver indícios suficientes de que se ter
verificado crime, [5] sendo certo que se consideram suficientes os indícios apenas “quando
deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido ser aplicada, por força deles, em
julgamento, uma pena ou uma medida de segurança” [6]. E se vierem a lume tais
circunstâncias, ou a lume vier apenas aquela dúvida sobre a sua verificação, já no decurso do
julgamento, impor-se-á a absolvição, seja porque se provou não ter ocorrido crime, naquele
sentido supra, seja porque daquela dúvida só a absolvição pode decorrer, segundo a regra de
ouro de todo o julgamento em matéria de facto nos estados de direito ocidentais: in dubio, pro
reo.
Por aqui se vê como o sistema penal português já é bem cuidadoso no sentido de evitar que as
pessoas sejam molestadas com o procedimento criminal sem de facto haverem dado lugar à sua
justa intervenção.
A Lei do aborto de 84, porém, veio introduzir no Código Penal, e as que a retocaram e
“melhoraram” – Leis 48/85 de 17/3 e 90/97 de 30/7 – vieram desenvolver e alargar, um regime
especial de exclusão da ilicitude penal do aborto para além daquelas circunstâncias, aditando
especificamente para este crime circunstâncias “justificantes” “especiais” de natureza diversa.
6
Vejamos em primeiro lugar os casos das al.ªs c) e d) do nº 1 do hoje art.º 142º do Código
Penal. O que preside à eleição destas circunstâncias objectivas justificantes – que excluem a
ilicitude - não é já uma ponderação entre dois valores e direitos de antemão considerados
dignos de tutela penal, mas sim a opção legislativa pelo sacrifício do único valor disso
considerado digno – a vida do nascituro – mediante um juízo em que se considera inexigível à
mulher deixá-lo vir ao mundo. Será assim quando houver “seguros motivos para prever que o
nascituro virá a sofrer de forma incurável, de doença grave ou malformação congénita;” e será
também o caso de o nascituro ter sido concebido em resultado de um crime contra a liberdade e
a autodeterminação sexual – não apenas a violação [7] - circunstância esta, note-se, certificada
por atestado médico (!) tal como as demais.
Note-se que desta feita, do lado do agente, não há um direito subjectivo com o qual a gestação
e o nascimento do nascituro conflituem. Claro que a mulher violada ou vítima de outro crime
contra a autodeterminação sexual tinha direito à sua integridade física e sexual. Mas esse
direito subjectivo não se confunde com o por enquanto irreconhecido direito subjectivo a não ter
um filho concebido por via de relação sexual que por motivo de crime não foi livre ou
autodeterminada... Depois, apesar do drama humano que é o nascimento de um filho
gravemente doente ou deficiente, está também por reconhecer o direito a não deixar nascer tal
filho...
Tanto assim é que o legislador não pôde deixar de estipular – aleatoriamente – o número de
semanas de gestação a partir do qual o nascituro concebido em crime contra a liberdade e a
autodeterminação sexuais ou gravemente doente ou deficiente - tudo conforme atestado
medico - já não poderá licitamente ser eliminado: 16 e 24 semanas, respectivamente.
Por sua vez, os termos das alíneas a) e b), embora pareçam não fazerem mais do que
contemplar, respectivamente, situações justificantes e – eventualmente - desculpantes já
contempladas na parte geral, vão bem mais além. Com efeito são integradas, estas alíneas, por
proposições de significado de tal modo aberto ou indeterminado, e o processo de comprovação
dos pressupostos da legalidade aí previsto é tão inconsistente, que quase tudo poderá ser
sancionado pelos seus termos, designadamente no que diz respeito ao perigo para a saúde
psíquica da mulher. Uma depressão causada por uma gravidez indesejada poderá caber aqui...
No fundo, a ratio legis que subjaz à eleição deste regime especial de exclusão da ilicitude é a
adesão, pelo próprio Legislador penal - aquele que está incumbido de velar pela tutela dos
valores etico-jurídicos mais valiosos de uma comunidade - a um relaxamento no cumprimento
do imperativo da salvaguarda da vida dos seres humanos nascituros, a resultar numa sensível
desclassificação do correspondente valor ético enquanto bem jurídico merecedor de protecção
penal.
III
Desde 1998, porém, é bem mais o que pretendem uma poderosa oligarquia instalada nos media
e alguns actores da política portuguesa, quer das esquerdas maoista, comunista e socialista
quer de uma direita liberal, no sentido económico da palavra, tão arrojada nas privatizações
como no derrubar das referências éticas do Estado, e também algum loby económico.
Com um argumentário que, de tão apregoado e glosado nos media me dispenso de repetir, mas
que tem de comum o eclipsar total da vida do ser humano não nascido, sem voz e indefeso,
para trazer à luz apenas a figura da mulher nascida, adulta ou adolescente, a braços com uma
gravidez imprevista e em situações muito vezes dramáticas, o que se tem pretendido e
obstinadamente propugnado, contra o próprio resultado de um referendo, é a desclassificação
enquanto facto ilícito e a classificação enquanto direito subjectivo, de qualquer aborto, posto
que voluntariamente praticado nos hospitais até determinado período de gestação do nascituro,
período que os projectos Lei dos diversos partidos que partilham a honra de tamanho passo em
direcção à modernidade situam em 10, 12 e 14 semanas.
Continuando a observar o fenómeno do ponto de vista do Estado de Direito, direi que com a
aprovação de tal legislação, enfim, para descanso de alguns actores do poder democrático e
gáudio dos detentores da oligarquia dos media, acertaria Portugal o passo com o pior que a
àquela preciosa instituição se tem feito “lá fora”.
IV
Contra esta e muitas outras manifestações de desumanização e diluição das referências éticas
da ordem jurídica e da sociedade portuguesas tem o Magistério da Igreja em Portugal – em
conformidade com o da Igreja Universal e à luz da Doutrina Social da Igreja - levantado
oportunamente a voz, denunciando os excessos de uma recidiva neo-liberal, clamando a
necessidade da manutenção de legislação e serviços do Estado que protejam os mais
desfavorecidos, pugnando por uma real liberdade religiosa e de ensino, criticando políticas e
legislações civis e fiscais que potenciam ou ao agravam a crise da família, etc. E tem-no feito,
muitas vezes, em cima do acontecimento, isto é, quando a sua voz vem contribuir com
7
actualidade para o debate, na defesa do bem comum, dirigindo-se quer aos fieis católicos, quer
à sociedade, quer mesmo à classe política em geral, antecipando-se mesmo, por vezes, à
discussão de tais temas no Parlamento.
Para só ficarmos por dois documentos claramente ilustrativos do que vai dito, referirei dois:
Na Carta Pastoral da Conferência Episcopal Portuguesa intitulada “A Igreja e a Sociedade
Democrática”, de 15 de Maio de 2000, os nossos Bispos, além de exercerem o Magistério sobre
uma pluralidade de situações então prementes como a nova concordata, a liberdade de ensino,
a laicidade do Estado versus a liberdade religiosa, as leis sobre a família e sobre a vida humana,
apontando erros e injustiças cometidos ou prestes a serem-no, nestas matérias, concluem
reiterando a sua disposição de virem a pronunciar-se sobre essas e outras áreas da realidade
portuguesa, na medida em que as circunstâncias o sugerirem ou exigirem (n.º 23).
Em plena consonância com essa anunciada disposição, a Carta Pastoral intitulada
“Responsabilidade Solidária Pelo Bem Comum” de 15/9/2003, veio abordar questões de
extrema actualidade na opinião pública portuguesa, como sejam, entre outras, a educação, as
reformas fiscal, do Serviço Nacional de Saúde, da Segurança Social, da legislação laboral, a
defesa da vida humana desde concepção até à morte natural.
Estas como outras intervenções do Magistério acerca da vida política portuguesa, de acordo com
os próprios decretos do concílio Vaticano II (cfr. Gaudium et Spes GS, 42 e 74) não incidem
sobre opções e medidas circunstanciais da governação - à guisa de cerrada marcação de uma
oposição política – nem relevam de quaisquer modelos de sociedade e de Estado - ao modo de
um partido político. Surgem incidindo sobre as realidades social e cultural em geral, ou então
sobre opções legislativas relevantes para a preservação e progresso do Estado de Direito, tendo
como ponto consensual de partida a Declaração Universal dos Direitos do Homem, seja
aprovando as que os respeitam e promovem, seja denunciando as que os ofendem, ainda que
os seus mentores as proponham em nome desses direitos, como bastas vezes acontece... [8]
Por outro lado, nestas como noutras notas e cartas pastorais, e sempre secundando a Doutrina
do Magistério da Igreja Universal e os últimos papas, apelam os nossos bispos a que os fiéis
para tanto capacitados se envolvam activamente no exercício da cidadania e da política, por
forma a que a sociedade e as leis se conformem cada vez mais com os Valores do Evangelho,
mormente nos que se tornaram património irrenunciável da nossa civilização, a começar pela
dignidade da pessoa humana.
V
São estes os pressupostos e o contexto da perplexidade experimentada tanto por mim, como
pela generalidade dos fieis católicos que, uns na actividade política, outros na criação e
sustentação de um movimento cívico massivo de recusa da legalização do aborto a pedido, de
novo se esforçaram por afastar de Portugal esse vento de morte.
Dispõe o parágrafo 3 do cânone 212º do Código de Direito Canónico: “Os fiéis, segundo a
ciência e a proeminência de que desfrutem, têm o direito e mesmo o dever de manifestar aos
sagrados pastores a sua opinião acerca das coisas atinentes ao bem da Igreja e de a exporem
aos restantes fiéis, salva a integridade da Fé, dos costumes, a reverência devida aos pastores, e
tendo em conta a utilidade comum e a dignidade das pessoas.”
Pois é nessa atitude, posto que com a ciência e a proeminência mínimas, como fiel leigo no
exercício desse dever e desse direito, que solto o desabafo que segue:
O meu ponto de vista é, por um lado, o de um “antigo combatente” do Referendo de 98, hoje
membro da direcção de uma IPPS cujo objecto, “no terreno” e “em tempo de paz” consiste em
apoiar toda e qualquer mãe grávida ou puérpera em dificuldades – Associação de Defesa e
Apoio da Vida – Coimbra (ADAV – Coimbra); por outro lado, e “em tempo de guerra”, o de um
“miliciano” não qualificado que, ao toque a rebate, larga pelo tempo possível e estritamente
necessário as tarefas quotidianas, profissionais, de pai de família, de leigo pastoralmente
empenhado, para ir da Missa do Padre A para a Missa do Padre B, desta para o santuário do
Monsenhor C, e daqui para o centro comercial e para o estádio de futebol, de caneta e baixo
assinado na mão, tudo para numa total precaridade de meios, explicar o mais simpática e
sinteticamente possível o objecto da petição e arrecadar o maior número possível de
assinaturas e números de bilhetes de identidade.
Refiro-me, claro está, à petição “Mais Vida Mais Família”, essas 200 000 assinaturas, colhidas
em apenas quatro semanas, que pelo menos quebraram a fervura de uma aparente
unanimidade social em torno da inevitabilidade da legalização do aborto a pedido. Mas não só:
serviram também quer como moção de apoio aos deputados que numa pluralidade de partidos
são e se manifestam pela vida, quer de aviso eleitoral às diversas forças eleitas do parlamento,
no sentido de que os eleitores “anti direito ao aborto” não são em número desprezível....
Deixou-nos perplexos, desde logo, o modo como praticamente surgiram os primeiros tiros deste
último assalto, já se vê porquê: pela parte que nesse modo tomou a entrevista do Senhor Bispo
do Porto ao Jornal “Expresso”, no decorrer da qual aquele terá afirmado, ser contra a
8
penalização das mulheres que pratiquem o aborto e não se imaginar a condenar uma mulher
por tal crime.
Perplexos continuámos, mas agora também desiludidos e magoados, quando o esclarecimento
que o sr. bispo emitiu relativamente àquela entrevista veio desenganar a esperança de que as
suas declarações tivessem sido descontextualizadas e assim adulteradas no significado...
Mas sobretudo ficámos e continuamos preocupados com a indiferença, a falta de apoio ou a
tibieza de bastantes párocos e ou responsáveis por comunidades ou lugares de culto,
inclusivamente a hostilidade de um ou outro, relativamente a esta campanha, atitudes que nos
surpreenderam, tanto mais que, sem embargo da discrição do episcopado, não foram regra
entre os párocos na campanha do referendo de 1998; e o texto da petição, se pecava era por
ser demasiado “light” na parte em que abordava a protecção da vida do nascituro, embora fosse
acompanhado de um manifesto mais claro pela manutenção da previsão do crime... [9].
Há muito que me interrogo, e como eu muitos dos católicos que, entre outras frentes, militam
nos movimentos de defesa e apoio à vida humana, sobre o porquê de certos modos de agir e de
não agir dos nossos pastores no exercício seu munus, no que diz respeito ao tratamento desta
causa, tanto ad intra como ad extra.
Uma interrogação já antiga é esta: porque é que militantes assumidos do direito ao aborto a
pedido, uns a título individual, outros a esse título mas também enquanto militantes
proeminentes da força partidária que mais accirradamente tem preconizado não só aquele “antidireito” como a proscrição das ultimas reminiscências cristãs da nossa ordem jurídica e a sua
substituição pelos respectivos contra-valores – v.g. casamento e adopções de crianças por pares
homossexuais – são frequentemente convidados para formadores de leigos, conselheiros de
padres, religiosos e religiosas e dos próprios bispos? Porque é que se lhes entregam tarefas e
cargos da confiança da conferência episcopal ou do bispo diocesano, que lhes conferem
visibilidade, inclusivamente mediática, e proeminência entre os fiéis? Será preciso tanta
contraproducência para que esses irmãos sintam que mesmo assim são acolhidos e que há
lugar para eles na Igreja? E porque não dar voz, ao menos ao lado deles, aos fiéis que aceitam
e defendem a doutrina do Magistério – que também os há, brilhantes, empenhados e piedosos?
E que dizer da Emissora Católica Portuguesa, que chegou a parecer participar de um pacto de
silêncio dos media relativamente ao movimento “Mais Vida Mais Família” e que recentemente
confiou um programa apto a criar um líder de opinião a um conhecido psiquiatra que deu a face
como promotor, entre outros, da petição por um novo referendo com vista à legalização do
aborto a pedido?
Por fim, como justificar a também recente substituição integral dos elementos da Comissão
Nacional Justiça e Paz – organismo nomeado pela conferência episcopal - por uma nova equipa
integrada pelo menos por alguns daqueles leigos, que limpou do respectivo sítio na Internet
toda a documentação anteriormente produzida e, sintomaticamente, não abriu ainda a boca em
defesa da vida humana nascitura, valor e direito que não mereceram qualquer referência na sua
prolixa mensagem de quaresma?[10]... A omissão é flagrante e faz pensar numa negação do
direito à vida do nascituro, a contrario sensu sobretudo no parágrafo 18: ”Ser luz, sal ou
fermento é estar na primeira linha de quem defende ou promove direitos fundamentais: a
dignidade e o valor de toda a pessoa humana, de cada mulher e de cada homem, das criança e
do jovem, do adulto ou da pessoa idosa;”
Por fim, e falando mais do que nunca em meu exclusivo nome, confessarei o seguinte:
A “Meditação Sobre a Vida” [11], título da carta pastoral com que Conferência Episcopal poderia
ter intervindo na crise foi tardia. Na verdade, quando publicada já a votação dos projectos de
Lei legalizadores tinha ocorrido, e a página mediática da actualidade nacional fora virada – por
enquanto - sobre o assunto. Ora estou convicto que se emitida e divulgada antes, não seriam
apenas os adeptos da legalização a ocupar os ouvidos e as mentes dos fiéis e dos padres de
doutrina menos firme. Os próprios políticos da área democrática não seriam insensíveis às
posições aí assumidas.
Mas além disso esta carta pastoral, tal como a nota da comissão permanente, que em boa hora
se demarcou das declarações infelizes do Sr. Bispo do Porto, contém uma fragilidade.
Refiro-me à parte em que, num como noutro documento, sem embargo de se reafirmar a
inadmissibilidade de que a prática do aborto se torne de crime contra uma vida indefesa, em um
direito social e que “o caminho não é despenalizar” se parece admitir a possibilidade da
despenalização sem legalização, contanto que os peritos do utroque jure achem compatíveis
uma coisa e outra.
Com o devido respeito, esta sugestão, além de lembrar outras circunstâncias, de que a Igreja
se não orgulhará, em que o mais odioso do processo se entregava ao “braço secular”, fragiliza
desnecessariamente a doutrina e a sua defesa.
Não é necessária muita ciência e reflexão para se perceber que o proibido só o é se for punível:
se não for punível é permitido, pelo menos juridicamente. A sanção – sanctio - quer dizer, a
previsão da pena, é que confere à norma a sua relevância jurídica. Por outro lado, violada a
9
norma, a pena aplicada reintegra a norma na condição de norma jurídica, devolve-lhe a
sanctitas. E afinal: se ninguém pensa na hipótese de proibir o homicídio ou o simples crime de
ofensa á integridade física que é uma bofetada, sem lhe cominar uma punição, porque se
haveria de fazê-lo com o aborto?
Não quero, contudo, fazer passar deixar uma ideia demasiado negativa do Estado da Igreja em
Portugal relativamente a esta questão da defesa da Vida Humana na ordem jurídica.
Graças a Deus foi nas igrejas e junto dos sacerdotes e religiosos e por acção directa ou indirecta
deles no terreno, que se anunciou em Portugal, de Norte a Sul, a boa doutrina e se recolheram
em tempo record as sobreditas 200 000 assinaturas. Não posso esquecer o conforto e estímulo
para a luta que foram as mensagens a esse ou também a esse propósito, que em cima do
acontecimento emitiram a comissão permanente da Conferência Episcopal e alguns bispos
diocesanos.
E é claro que, onde vimos grassar a dúvida, o desinteresse ou até a oposição entre o clero, as
mesmas não se referiam ao mal moral do aborto mas sim à questão da defesa da vida do
nascituro mediante a sua proibição e punibilidade legal.
VI
A relativa abundância deste tipo de atitudes no clero poderá dever-se a um deficiente
investimento da Igreja na formação contínua teológica dos seus ministros. A maior parte deles
deixaram de estudar teologia, ciências humanas, doutrina social da Igreja, documentos mais
recentes do Magistério Petrino, etc. desde que foram ordenados. De tal maneira que,
desprevenidos, se deixam impressionar por todo o argumentário pela despenalização, que só
esse é aflorado, e com que intensidade e aparente unanimidade, nos media. A ponto de eu ter
ouvido de um pároco, por sinal já idoso, que nisto do aborto, tal como relativamente ao
divórcio, a Igreja não pode reclamar que a lei do Estado se adeqúe à sua “opinião”; há que
deixar o Estado legislar como lhe aprouver, e tentar apenas educar as consciências... Como se
as questões do divórcio e do aborto tivessem a mesma ou similar gravidade ética e jurídica,
como se o crime de aborto não implicasse a morte provocada de um ser humano...
Outra explicação poderá ser esta: Todos eles são pastores, e bons pastores: a sua missão é
confessar e absolver no foro religioso, para o que, além do mais, estão onerados com o poder
dever do segredo perpétuo de confissão.
Por isso é natural que, tal como o Sr. Bispo do Porto, não se imaginem a julgar ou a condenar
qualquer mulher que se tenha feito abortar. Mas atenção: não é a eles que a sociedade comete
a árdua missão de julgar! Transpor esse sentimento legítimo e louvável para a esfera de um
hipotético legislador ou julgador civil, de modo a admitir-se a não proscrição legal do crime, é
que já não é natural. Antes é um logro que resulta na denegação de Justiça – já não digo
misericórdia - aos mais indefesos dos seres humanos.
[1] Art.º 142º do Código Penal:
1. Não é punível a interrupção voluntária da gravidez efectuada por médico ou sob a sua
direcção em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido e com o
consentimento da mulher grávida quando, segundo o estado dos conhecimentos e da
experiência da medicina:
a) Constituir o único meio de remover perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o
corpo ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida;
b) Se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e duradoura lesão para o corpo
ou para a saúde física ou psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 12 semanas
de gravidez;
c) Houver seguros motivos para prever que o nascituro virá a sofrer, de forma incurável, de
doença grave ou malformação congénita, e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez,
comprovadas ecograficamente ou por outro meio adequado, de acordo com as leges artis,
exceptuando-se as situações de fetos inviáveis, caso em que a interrupção poderá ser praticada
a todo o tempo;
d) A gravidez tenha resultado de crime contra a liberdade a autodeterminação sexual e a
interrupção for realizada nas primeiras 16 semanas.
2 A verificação das circunstâncias que tornam não punível a interrupção da gravidez é
certificada em atestado médico, escrito e assinado antes da intervenção por médico diferente
daquele por quem, ou sob cuja direcção, a interrupção é realizada.
3. O consentimento é prestado:
a) Em documento assinado pela mulher grávida ou a seu rogo e, sempre que possível, com a
antecedência mínima de três dias relativamente à data da intervenção; ou
b) No caso de a mulher grávida ser menor de 16 anos ou psiquicamente incapaz, respectiva e
sucessivamente, conforme os casos, pelo representante legal, por ascendente ou descendente
ou, na sua falta, por quaisquer parentes da linha colateral
10
4. Se não for possível obter o consentimento nos termos do número anterior e a efectivação da
interrupção da gravidez se revestir de urgência, o médico decide em consciência face à
situação, socorrendo-se sempre que possível, de outro ou outros médicos.
[2] Resolução da AR nº 28/2004, in DR I-A de 19/3
[3] Art.º 34º do Código Penal:
Não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace
interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os
seguintes requisitos:
a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de
proteger interesse de terceiro
b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse
sacrificado e
c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor
do interesse ameaçado
Art.º 35º do Código Penal:
1. Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual e não
removível de outro modo que ameaçe a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do
agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir-lhe, segundo as circunstâncias do caso,
comportamento diferente.
2. Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior e se
verificaremos restantes pressupostos ali mencionados, pode a pena ser especialmente atenuada
ou, excepcionalmente, o agente ser dispensado da pena”.
Art.º 36º nº 1 do CP:
“Não é ilícito o facto de quem, em caso de conflito de deveres jurídicos (...) satisfizer dever (...)
de valor igual ou superior ao do dever (...) que sacrificar”.
[4] Art.º 1º nº 1 alª a) do Código de Processo Penal.
[5] Art.ºs 283º nº 1 e 308º do CPP.
[6] Art.º 283º nº 2 do CPP.
[7] Os crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual são múltiplos e revestem
gravidades diversas. Grande parte das gravidezes de adolescentes, pode atribuír-se a esta
espécie de crimes, posto que o progenitor seja imputável criminalmente (maior de 16
anos).Vejam-se os Art.º 163º e sgs. do CP.
[8] “Por isso a I greja (...) proclama os direitos do homem (...). Este movimento, porém, deve
ser penetrado pelo espírito do Evangelho, e defendido de qualquer falsa autonomia. Pois
estamos sujeitos à tentação de julgar que os nossos direitos pessoais só são plenamente
assegurados quando nos libertamos de toda a norma divina.” Gaudium et Spes (GS) nº 4.
[9] Texto da Petição:
Nós abaixo assinados pedimos que a Assembleia da República e o Governo, cada um dentro da
sua específica competência legislativa e regulamentar aprovem:
a) O reforço da protecção da vida e dignidade de cada ser humano no decorrer da actual revisão
constitucional.
b) Um regime legal de protecção Jurídica de cada ser humano na sua fase embrionária.
c) Iniciativas legislativas de promoção da família nos domínios fiscal, laboral, habitacional, de
segurança social, de saúde e educação.
d) Medias concretas de defesa da vida e da dignidade de cada ser humano, em particular da
mulher, muito em especial de apoio à mãe grávida em dificuldade, bem como ao recém nascido.
[10] Publicada no boletim semanal da Agência Ecclesia de 12/3/2004 e em
www.agencia.ecclesia.pt
[11] Fátima, 5 de Março de 2004. Disponível numa Edição do secretariado Geral da Conferência
Episcopal Portuguesa, campo dos Mártires da Pátria, 43, 1150 – 225 – Lisboa.
11
Medicina e Maternidade amoris causa
Por Margarida Miranda e Isaías A. Hipólito, Professores da Fac. de Letras da Univ. de
Coimbra e Univ. Católica Portuguesa.
Publicado na Revista ESTUDOS NS 3 (Dezembro de 2004).
Aos olhos da razão dominante, pão nosso de cada dia servido por uma comunicação social
vertiginosamente uníssona, narcísica e global, subsistem dois corpos irredutivelmente rebeldes
ao projecto pós-moderno de família humana saído das entranhas do Estado de Direito moderno.
De um lado o corpo estranho – questão fracturante, no dizer das nossas mais altas instâncias –
do feto indesejado. E, do mesmo lado, a Igreja Católica, com o seu corpus doutrinal em prol da
vida humana não nascida.
A situação a que chegámos tem sido qualificada como “absolutamente trágica” por um autor
francês muito citado. Saíram recentemente do seu punho estas palavras pungentes:
a atitude da Igreja Católica, ou, melhor dizendo, a do Vaticano, desconsiderada por uma
boa parte do seu clero, ridicularizada pelo universo inteiro, bode expiatório quase oficial
dos media e de toda a intelligentsia mundial, tem algo de heróico, tanto mais quanto
esse heroísmo nem sequer é reconhecido. Somos cada vez menos capazes de saudar,
ou mesmo de respeitar as verdadeiras dissidências. No fundo, o que encoleriza o mundo
é o facto de que, longe de provar a hipocrisia que sempre se reprova nela, longe de
enveredar por uma atitude política, neste ponto [o aborto] a Igreja agarra-se com toda
a firmeza à sua doutrina de sempre. Ao proceder desse modo, a Igreja permanece fiel à
sua atitude fundamental, que consiste em colocar uma certa definição de graça e de
pecado acima de todos os imperativos puramente mundanos[1].
Vem este preâmbulo a propósito de, no passado dia 16 de Maio de 2004, ter sido solenemente
proclamada Santa pelo Papa João Paulo II (1922-1962) a médica pediatra e ginecologista,
esposa e mãe de quatro filhos, Gianna Beretta Molla, natural da Arquidiocese de Milão.
O decreto em que a Santa Sé anunciava a canonização de Santa Gianna apresenta
sucintamente o perfil (muito ao arrepio da tal razão dominante, conforme se verá) da sua vida
cristã. “Amadureceu a sua fé na família, na Acção Católica e na profissão médica, que exerceu
com competência e atenção aos doentes”; “viveu o matrimónio e a maternidade com alegria,
generosidade e absoluta lealdade à sua missão”. O documento salienta, a encerrar, a razão
ética subjacente à morte prematura de Gianna: “na quarta gravidez, livremente, decidiu
sacrificar a sua vida para salvar a da menina que levava no ventre”.
Com efeito, no dia 21 de Abril de 1962, uma sexta-feira santa, nasceu Gianna Emanuela,
perfeitamente sã. Mas para a mãe, minada por um tumor uterino que se desenvolvera a partir
do segundo mês de gravidez, não havia qualquer esperança. Gianna Beretta Molla faleceria a 28
de Abril. Ainda não havia completado quarenta anos.
Graças aos bons serviços das Edições Paulinas, os leitores lusófonos que desejem saborear os
meandros de uma existência comum extraordinariamente saturada de graça divina, já dispõem
de uma biografia – PELUCCHI, Giuliana – Santa Gianna Beretta Molla : o Amor Maior. [Prior
Velho] : Paulinas, 2004. Testemunhas e profetas. ISBN 972-751-611-4.
Sem prejuízo dos méritos da autora, uma jornalista de Milão, devemos salientar os limites da
obra, tanto mais dignos de nota quanto, para todos os efeitos, o leitor está perante o género
hagiográfico. Por conseguinte – eis o primeiro limite – não deveria faltar a referência à
aprovação eclesiástica. No tocante às ideias subliminarmente propugnadas pela autora, verificase uma tendência – inconsciente, em nosso entender – para desligar a decisão heróica de
Gianna Molla da sua componente conjugal. Apesar das referências invariavelmente abonatórias
ao marido (Pietro Molla), o leitor desta biografia fica praticamente desguarnecido de dados para
julgar a posição activa deste pai e marido perante o drama terrível que batera à porta da sua
família. E nem sequer se afigura válido o argumento de que quem é biografado é Gianna e não
Pietro. Levado às últimas consequências, tal argumento admite implicitamente o estafado tópico
segundo o qual a bioética da gravidez não é assunto de maridos ou de pais biológicos; é
assunto exclusivo da mulher “dona do seu corpo”…
Deverá, portanto, ser lida cum grano salis a obra de Giuliana Pelucchi. Foi o que procurámos
fazer, e disso damos conta nas reflexões que se seguem.
12
1. Caso raro na tradição hagiológica da Igreja, o processo de canonização de Gianna B. Molla
teve um desenvolvimento fulgurante, ao ponto de, na gloriosa cerimónia, em São Pedro, terem
comparecido numerosos peregrinos com quem Santa Gianna privara em vida. Desde logo, toda
a família Molla – o marido com quem partilhou escassos sete anos de vida conjugal, seus filhos
(entre eles, Gianna Emanuela), e seus irmãos (um deles missionário capuchinho no Brasil, e
uma irmã religiosa missionária na Índia). Mas não faltaram também numerosos devotos de todo
o mundo, a começar pelos da diocese ambrosiana; uns que com ela se haviam cruzado no
apostolado da Acção Católica e das Conferências Vicentinas, e muitos outros provenientes das
zonas em que Gianna se tinha prodigalizado durante muito tempo para tratar os seus meninos,
para amparar as mães em risco de recorrerem ao aborto, para levar a sua preparação médica e
a sua dedicação aos anciãos que haviam aprendido a considerá-la quase como filha.
2. A vida de Santa Gianna, concluída com aquele gesto bem discernido de doação, já se tornou
um património de fé cristã. A tal ponto que, ao longo dos últimos 42 anos, tem impressionado
profundamente, em todo o mundo, católicos, protestantes e muitíssimos homens e mulheres
comuns.
É particularmente surpreendente que os acontecimentos miraculosos atribuído à intercessão de
Gianna tenham ocorrido no Brasil, o primeiro dos quais a uma parturiente de 28 anos, de
confissão protestante. O segundo milagre atribuído a Gianna, e reconhecido pela Igreja, é o
nascimento justamente de uma menina brasileira, após uma gravidez com grave trauma, sem
depois deixar vestígios, facto que até agora não tem antecedentes na história. O caso foi
experimentado por Elisabete Arcolino Comparini. No início do ano 2000, o terceiro bebé que
havia concebido começou a experimentar sérios problemas. No terceiro mês, a jovem mãe
perdeu totalmente o líquido amniótico. O feto, sem a protecção natural, deveria ter perdido a
vida. Mas, sem explicação científica, em Maio daquele ano nasceu, saudável, a menina.
O Brasil… Quão importante foi este grande país para Gianna Molla, durante os anos anteriores
ao seu casamento! As missões no grande sertão brasileiro, onde militava um seu irmão
capuchinho – também ele médico – representaram durante anos a fio, uma séria alternativa ao
casamento, um campo imenso para o exercício da sua profissão em chave missionária.
Mas Santa Gianna é também património da humanidade. Além do relevo dado pela comunicação
social à nova santa, o heróico testemunho de Gianna Beretta Molla como mãe de família, como
mulher profissional e socialmente empenhada, cheia de alegria de viver, pronta a aceitar a
vontade de Deus no quotidiano, tornou-se uma referência constante e segura, perante a qual se
curvam hoje comunidades inteiras.
Causa espanto quantas igrejas, escolas, “centros de ajuda à vida” (mais de 230), associações
médicas, praças, ruas, placas, medalhas e até composições musicais lhe têm sido dedicadas;
quantos vitrais de templos e quantas pinturas reproduzem o seu luminoso sorriso.
Realçaremos, por todos, o Progetto Gemma, uma iniciativa nascida num pequeno grupo de
amigos, que desde sempre se atormentavam pensando que poderiam prestar o auxílio
necessário às mães que ponderassem o recurso ao aborto. Os fundadores do projecto (escassas
três pessoas) propuseram-se oferecer a adopção pré-natal, à distância, às mães em risco de
aborto, e não hesitaram em confiar, desde a primeira hora, a Gianna B. Molla, os seus esforços
por salvar vidas humanas em risco de aborto. A oito anos de distância, em 2002, os voluntários
que mantinham o projecto de pé faziam um balanço ao mesmo tempo jubiloso e inquietante: o
Progetto Gemma respondera a centenas de pedidos provenientes dos Centros de Ajuda de toda
a Itália, e assegurara os meios, muitas vezes decisivos, para salvar mais de seis mil crianças.
3. A magnanimidade que Gianna Beretta Molla encontrou para, num ímpeto de amor imprevisto
e generoso, salvar a criatura que trazia dentro de si, não pode ser desligada de uma tensão
espiritual contínua e sincera que caracterizou toda a sua existência.
Santa Gianna será recordada – e com toda a justiça – pela opção angustiante com que coroou,
em odor de santidade, a sua existência terrena. Mas essa decisão de heroísmo maternal não
deve ser desligada de uma opção fundamental por Cristo, interiorizada desde muito nova.
Ainda adolescente, durante os Exercícios Espirituais de 1938, Gianna exprime um propósito a
cuja luz deverão ser interpretados, seja os gestos mais simples e humildes da vida quotidiana,
seja o nobre exemplo que nos deixou. Escreveu:
Jesus, prometo-te submeter-me a tudo o que permitires que aconteça.
Dá-me só a conhecer a tua vontade.
Com estas palavras interpretou toda a sua vida como vocação, seguimento, resposta
responsável.
A nossa felicidade terrena e eterna depende de seguirmos bem a nossa vocação
– acrescentará mais tarde. E o nosso olhar poderia alargar-se para incluir a moldura do quadro
de santidade que unificou a existência de Gianna Molla, um quadro de adesão a Cristo e à Sua
13
Igreja, tanto no ambiente do seu lar, como em toda a envolvente familiar em que Gianna
Beretta nascera e crescera.
A Igreja, pela voz dos prelados de Milão (desde o Cardeal G. Montini, futuro Papa Paulo VI, ao
Cardeal Carlo Martini) e do Papa João Paulo II, não cessa de exaltar a virtude heróica de Santa
Gianna e de a ligar, quer a um quotidiano de santidade que viria a culminar na sua doação
suprema, quer à nuvem de santos anónimos que a nova Santa representa. Na homilia da
beatificação, em 24 de Abril de 1994, o Papa concluiu a homilia dizendo,
ao exaltarmos a figura da nova Beata, estamos a exaltar todos os sacrifícios, toda a
generosidade, todo o élan heróico de muitas mães, isto é, exaltamos uma figura para exaltar
muitas outras que conhecemos, com quem já contactámos.
É uma beatificação que diz respeito a muitas outras mulheres e não apenas a uma só pessoa.
“Mostrar a santidade é mais que nunca uma urgência da Pastoral” – afirmará também o Santo
Padre na Novo millenio ineunte, 30 – uma urgência, em particular, para uma Europa e um País
como o nosso, desejoso de riscar do seu património humanista palavras transmitidas há quase
dois mil anos pelos autores da Didaché (2,2): “não assassinarás o filho por aborto, nem o
matarás quando nascido”.
[1] GIRARD, René - Quand ces choses commenceront. [Paris]: Arléa, cop. 1994. ISBN
2869592000 (pbk.)
Pela Vida, contra o Aborto. Respostas e
Argumentos
Por Pedro Vaz Patto, Magistrado Judicial (CEJ). Membro da Comissão Nacional de Justiça e Paz.
Publicado na Revista ESTUDOS NS 4 (Junho de 2005).
«Há, antes de mais, o direito fundamental do nascituro, aquele direito a nascer em
relação ao qual, na minha opinião, não se pode transigir. É o mesmo princípio em nome
do qual me oponho à pena de morte (...) Gostaria de perguntar porque é que será
surpreendente que um laico considere válido em sentido absoluto, como um imperativo
categórico, o “não matarás”. E, por outro lado, espanto-me que os laicos deixem aos
crentes o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar»
Norberto Bobbio
É minha convicção profunda a de que na questão da ilegalização, ou legalização, do aborto se
joga um princípio civilizacional da máxima importância: a tutela da vida de seres humanos
inocentes e indefesos. Também acredito firmemente que a causa da defesa da vida contra o
aborto só tem a ganhar com o debate de ideias lúcido, profundo, esclarecido e sereno. Quanto
mais um debate de ideias com essas características (para além dos slogans, frases feitas ou da
argumentação superficial e inconsistente) ocorrer, melhor será para essa causa.
Por isso, procurei dar as minhas respostas fundamentadas às questões que habitualmente se
suscitam para defender a legalização do aborto.
Baseio-me na reflexão, minha e de várias pessoas, sobre esta questão, e também, nalguma
medida, na sensibilidade que me vem da experiência de dezassete anos de exercício da
magistratura judicial na área criminal.
Não pode equiparar-se o aborto à supressão da vida de uma pessoa já nascida. O
embrião é um simples aglomerado de células ou parte do corpo da mulher. O embrião e
o feto não são pessoas, são apenas um projecto de vida, pessoas em potência ou em
formação, e, por isso, não merecem a protecção dos seres humanos já nascidos. O
estatuto de pessoa humana, e a protecção respectiva, supõem a existência de
qualidades que o embrião e o feto não possuem, ou não possuem na sua plenitude: a
consciência, a actividade racional, a capacidade de sentir dor ou a capacidade de
interagir socialmente.
Temos de partir dos dados actuais da biologia. Encarar o embrião e o feto como parte do corpo
da mulher seria recuar às concepções do direito romano (segundo as quais, seriam parte “das
14
vísceras da mulher”). Também na antiga Grécia se considerava que só com o nascimento se
saberia se o feto era humano ou monstro (é claro que não havia, então, ecografias...).
Os dados da biologia são inequívocos: a partir da concepção estamos perante um novo ser da
espécie humana (obviamente não de qualquer outra espécie animal), com um património
genético próprio (único e irrepetível, distinto da mãe e do pai), dotado de capacidade de evoluir,
conservando sempre a mesma identidade (é sempre o mesmo até à idade adulta e à morte),
através de um processo autónomo e coordenado, sem qualquer quebra de continuidade, de
acordo com uma finalidade presente desde o início (um processo sumamente organizado e
inteligente, pois, muito longe de um simples amontoado de células). No fundo, o embrião é
aquilo que cada um de nós já foi e nenhum de nós teria atingido a fase da vida que hoje
atravessa se não tivesse passado por essa fase inicial da vida, ou se tivesse sido impedido
nessa fase tal processo de evolução natural.
Trata-se de um processo contínuo, sem saltos de qualidade. Isto significa que a dignidade da
pessoa existe desde a concepção, não se adquire a partir de determinado momento (as dez ou
doze semanas de gestação, o nascimento ou a idade adulta), nem se vai adquirindo
progressivamente. A dignidade própria da pessoa humana ou se tem, ou não se tem. É a
mesma antes ou depois do nascimento, como é a mesma na infância, na juventude, na idade
adulta ou na velhice. Porque se trata de um processo contínuo, é arbitrário estabelecer qualquer
fronteira (a actividade racional, a auto-suficiência, a capacidade de sentir dor ou de interagir
socialmente) só a partir da qual se possa falar em dignidade de pessoa. Qualquer destas
qualidades já existe em “germe” desde a concepção, vai sendo adquirida progressivamente e
vai evoluindo antes e depois do nascimento. Algumas delas não existem na sua plenitude antes
do nascimento, mas também não existem na sua plenitude até à idade adulta. Um recémnascido não é, no que se refere à auto-suficiência ou às capacidades de inteligência e vontade,
substancialmente diferente de um feto e nem por isso se advoga (geralmente, porque também
já há quem o faça) a sua morte, o infanticídio. Essas qualidades também podem perder-se com
a idade avançada e a doença e nem por isso a pessoa perde o seu estatuto de pessoa e a
dignidade que lhe é própria. Um doente mental ou um doente na fase terminal da sua vida
podem estar tão limitados, quanto a essas e outras capacidades, como um feto, e nem por isso
se torna legítimo, como é óbvio, suprimir as suas vidas.
A partir da concepção, não pode falar-se em “projecto de vida” ou “pessoa em potência”. A vida
já existe, a pessoa já existe, não são simples projectos ou potencialidades (como eram, sim,
antes da concepção). Devemos falar, antes, em pessoa com potencialidades que ainda não se
actualizaram (não se efectivaram), mas que se actualizarão no futuro se nada o impedir. E é
assim não apenas no momento da concepção, também é assim ao nascer (também nesta fase o
novo ser tem potencialidades que virão a desabrochar apenas no futuro) e ao longo de toda a
vida.
Em suma, desde a concepção, o novo ser tem a dignidade de pessoa humana e, como tal, é
merecedor de protecção. «Toda a gente é pessoa». Negar a qualidade de pessoa a seres
humanos na fase inicial da sua vida é tão inaceitável como negar essa qualidade a certas
categorias de seres humanos (a escravatura ou o racismo).
Pode ser oportuno recordar as discussões filosóficas e teológicas que surgiram na época das
Descobertas a respeito da natureza humana de povos de raças até então desconhecidas, e
confrontar essas discussões com as que hoje giram em torno da natureza do embrião e do feto.
Nessa época, de pouco valia proclamar as exigências da moral cristã no confronto com qualquer
ser humano se, depois, desta categoria se excluíam arbitrariamente seres de determinada raça.
Hoje, também de pouco valerá proclamar direitos humanos se, depois, se excluem
arbitrariamente do estatuto de pessoa humana (“desumanizando-os”) determinados seres por
não terem atingido determinada fase da sua evolução natural.
A questão do aborto tem a ver com a consciência de cada um. Ilegalizar ou criminalizar
o aborto é impor aos outros uma determinada concepção moral. Numa sociedade
pluralista há visões diferentes a respeito do estatuto do embrião e do feto. Deve ser a
mulher a decidir de acordo com a sua consciência. A legalização e a descriminalização
do aborto são exigências da tolerância. Com a legalização do aborto, quem o rejeite
moralmente não é obrigado a praticá-lo. Mas também quem não o rejeite não deverá
ser impedido pelo Estado de o praticar.
Poderíamos falar em tolerância se a questão do aborto fosse uma questão moral sem reflexos
nos direitos de outrém (como poderá ser a questão da licitude moral dos vários métodos de
regulação da natalidade não abortivos, por exemplo). Se assim fosse, o Estado poderia aceitar
que a prática do aborto dependesse da consciência de cada um. No entanto, o aborto envolve a
supressão do direito à vida de uma outra pessoa. Não basta dizer que ninguém é obrigado a
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abortar, porque o embrião e o feto são sempre obrigados a sofrer o aborto, sem que alguém
solicite o seu consentimento e a sua opinião...
Não pode depender da consciência (bem ou mal formada) de cada um a supressão da vida de
outra pessoa, a prática de um homicídio ou de qualquer outro crime. Um terrorista poderá, em
consciência, entender que “os fins justificam os meios” e que a causa que defende justifica a
morte de inocentes. O Estado e a sociedade não poderão, obviamente, deixar de qualificar como
crimes, em nome da tolerância própria de uma sociedade pluralista, os actos terroristas.
O Estado nunca pode ser neutro a respeito do estatuto de embrião e do feto. Ao admitir o
aborto livre, ou ao permitir que a sua vida dependa da decisão de outra pessoa (mesmo que
seja a mãe), está a considerar que não têm o estatuto de pessoas, mas o estatuto de coisas. A
vida de uma pessoa nunca pode depender da decisão livre de outra pessoa. Se assim fosse,
estaria a ser tratada como coisa, e não como pessoa. Era assim na antiga Roma, quando o pai
podia decidir livremente a respeito da vida dos filhos já nascidos. E era assim num regime de
escravatura. É óbvio que não poderá ficar dependente da consciência do proprietário o tipo de
tratamento que é dado aos escravos. Como pessoas humanas, a sua vida nunca poderá
depender da decisão livre de quem quer que seja.
De qualquer modo, nunca poderá esquecer-se um critério ético fundamental: em caso de
dúvida, há que seguir um princípio de precaução. Se não é unânime ou certo que o embrião e o
feto são pessoas humanas, devem ser sempre tratados, na dúvida, como se fossem. Do mesmo
modo que quando alguém pretende disparar sobre um vulto que não sabe se corresponde a
uma pessoa, um animal ou uma coisa, deve abster-se de disparar apenas porque pode ser uma
pessoa. Também não se deixa de procurar entre os escombros enquanto não há a certeza de
que lá não possam encontrar-se pessoas vivas (basta que haja alguma dúvida a esse respeito).
Se não se tratar de vidas que possam ser salvas, nenhum prejuízo significativo daí advém. Se
se tratar, não é admissível que deixem de ser salvas.
Por outro lado, ao legalizar o aborto, o Estado também não está a tomar uma atitude
ideologicamente neutra porque está a colaborar mais ou menos activamente na sua prática,
colocando ao serviço dessa prática recursos públicos (financeiros ou outros), ou simplesmente
dando-lhe cobertura legal. O Estado não se limita, pois, a uma atitude passiva de
descriminalização. Ao legalizar o aborto, também está a canalizar para a prática deste, directa
ou indirectamente, recursos obtidos junto de pessoas que rejeitam essa prática como contrária
aos seus valores mais preciosos. Estas pessoas não são «obrigadas a abortar», mas, mesmo
quando se admite a objecção de consciência dos profissionais de saúde, são obrigadas a ter
alguma forma de colaboração, através dos impostos que pagam, na prática do aborto.
O nosso é Estado laico e não confessional, neutro em matéria religiosa. A questão da
ilicitude do aborto decorre de convicções religiosas que não podem ser impostas a quem
não as perfilha.
Os fundamentos da ilicitude do aborto não decorrem de qualquer opção religiosa. Derivam,
antes, das exigências de tutela do primeiro dos direitos fundamentais, o direito à vida. O direito
à vida decorre, antes de mais, da Lei natural, isto é, da lei que está inscrita no coração de
qualquer ser humano e que este pode captar com a luz da razão, independentemente de
qualquer fé religiosa. A inviolabilidade da vida humana é um princípio fundamental,
estruturante, de civilizações das épocas e lugares mais variados. O direito à vida está
consagrado em todas as declarações internacionais de direitos humanos e a consagração do
princípio da inviolabilidade da vida humana encabeça os preceitos da Constituição portuguesa
relativos aos direitos fundamentais (artigo 24º, nº 1).
A Revelação judaico-cristã («Não matarás») só vem reforçar o que já decorre da Lei natural.
Mas, como é óbvio, não é preciso ser cristão para reconhecer que não se deve matar. A este
respeito, será oportuno citar um conceituado filósofo italiano, laico e socialista, Norberto
Bobbio: «Há, antes de mais, o direito fundamental do nascituro, aquele direito a nascer em
relação ao qual, na minha opinião, não se pode transigir. É o mesmo princípio em nome do qual
me oponho à pena de morte (...) Gostaria de perguntar porque é que será surpreendente que
um laico considere válido em sentido absoluto, como um imperativo categórico, o “não
matarás”. E, por outro lado, espanto-me que os laicos deixem aos crentes o privilégio e a honra
de afirmar que não se deve matar» (Corriere della Sera, 8/5/1981).
O embrião e o feto não têm personalidade jurídica. Esta, de acordo com o Código Civil
(artigo 66º, nº 1,) só se adquire com o nascimento completo e com vida, sendo que os
direitos que a ordem jurídica reconhece ao nascituro dependem do nascimento (nº 2 do
mesmo artigo). Por isso, o embrião e o feto não são titulares do direito à vida.
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É contestável, no plano da política legislativa (para além do direito vigente), o princípio de que a
personalidade jurídica se adquire com o nascimento. Tal princípio reflecte concepções de tempos
remotos que desconheciam o que hoje se conhece a respeito da vida anterior ao nascimento. E
que desconheciam, por outro lado, possibilidades que hoje ocorrem de manipulação genética,
clonagem ou destruição de embriões, Por isso, há quem justificadamente defenda que a
personalidade jurídica deveria adquirir-se a partir do momento da concepção.
Mas essa questão não é decisiva para o que nos interessa. É óbvio que não pode a tutela dos
direitos fundamentais constitucionalmente imposta ficar dependente de uma decisão do
legislador que arbitrariamente atribua ou negue personalidade jurídica a determinados seres
humanos. Isso poderia levar a aceitar até a escravatura. Os escravos não seriam titulares dos
direitos fundamentais porque lhes seria negada a personalidade jurídica. É que qualquer pessoa
humana, antes de ter personalidade jurídica, tem direito a adquirir personalidade jurídica. E se
a personalidade jurídica se adquire com o nascimento, qualquer pessoa, ainda antes de ter
personalidade jurídica, tem direito a adquirir essa personalidade, tem direito a nascer, pois. E,
como é óbvio, o direito a nascer não depende do nascimento, como poderão depender outros
direitos que a ordem jurídica reconhece aos nascituros (artigo 66º, nº 2, do Código Civil).
O facto de não serem punidos nos mesmos termos o aborto e o homicídio (as penas
relativas ao primeiro são substancialmente menos graves do que as relativas ao
segundo) significa que para a nossa ordem jurídica não têm o mesmo valor a vida intrauterina e a vida depois do nascimento, sendo que, por isso, o princípio da inviolabilidade
da vida humana pode, no que se refere à primeira, ceder perante outros valores,
mesmo que tal cedência não seja admissível em relação à segunda.
Não é aceitável que o princípio da inviolabilidade da vida humana tenha um peso diferente
consoante se trate da vida anterior ou posterior ao nascimento. Na consagração deste princípio
(artigo 24º, nº 1, da Constituição) não se faz qualquer distinção. E essa distinção será contrária
aos princípios constitucionais da igualdade e da não discriminação (artigo 13º da Constituição).
Será tão inaceitável dizer que não têm o mesmo valor a vida humana anterior e posterior ao
nascimento como dizer que não têm o mesmo valor a vida humana na infância, na idade adulta
ou na velhice, ou dizer que não têm o mesmo valor a vida de pessoas deficientes, de certa raça
ou etnia ou de certa condição social.
Aliás, se fosse admissível alguma distinção, poderia até dizer-se que exige uma protecção
reforçada a vida na sua fase inicial, ou porque é mais fraca e indefesa precisamente nessa fase,
ou porque a sua supressão nessa fase impede a realização de um maior número de
potencialidades que se abrem precisamente a quem tem toda a vida pela frente. Este raciocínio
faz-se muitas vezes em relação às crianças já nascidas e será lógico fazê-lo também em relação
às crianças não nascidas. De qualquer modo, tal nunca poderá significar que há vidas que valem
mais do que outras, pois a vida dos idosos também não vale menos do que a vida das crianças.
Mas se a vida anterior ao nascimento não tem menos valor do que a vida posterior ao
nascimento, dir-se-á, então, que, em coerência, o aborto deveria ser punido nos mesmos
termos que o homicídio. Não é assim, porém. Há que distinguir a avaliação objectiva da
gravidade de uma conduta e a avaliação da responsabilidade subjectiva da pessoa que a pratica
(o erro e a pessoa que erra). Se não pode ignorar-se que, objectivamente, o bem jurídico
atingido com o aborto (a vida intra-uterina, anterior ao nascimento) não tem menor valor do
que o bem jurídico atingido pelo homicídio (a vida depois do nascimento), também não pode
ignorar-se que a consciência desse facto, a consciência da gravidade da conduta em questão, a
“malícia”, não é, em regra e na grande maioria dos casos, obviamente, a mesma num homicida
e na mulher grávida que pratica um aborto. O Código Penal, ao distinguir as penas relativas a
cada um desses crimes, reflecte isso. E, por isso, advogar a criminalização do aborto como
forma de tutelar a vida do embrião e do feto não significa, de modo algum, advogar que as
penas relativas ao crime de aborto se aproximem das penas relativas ao crime de homicídio.
Noutro aspecto, já seria de aproximar o regime vigente de punição do crime de aborto do
regime de punição do crime de homicídio. Actualmente, e em geral, não é punido o aborto
negligente, o aborto praticado contra a vontade da mulher grávida por negligência, como
resultado de um erro médico ou de um acidente de viação, por exemplo. Deveria sê-lo, como o
são o homicídio negligente, ou as ofensas à integridade física negligentes, em atenção aos
direitos e interesses do nascituro, da mãe e do pai. Por razões puramente ideológicas (mas em
coerência com o princípio de que a vida anterior aos nascimento não é merecedora de tutela), e
contra os direitos e interesses da própria mulher grávida, os partidários da legalização do aborto
têm-se oposto à criminalização do aborto negligente.
O aborto deve ser considerado um “crime sem vítima”, como seriam a prostituição e o
homossexualismo, cuja punição em épocas passadas decorria apenas da imposição de
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juízos de natureza moral. Aos crimes sem vítima (e é isso que se verifica em relação ao
aborto, precisamente porque não há vítimas que se queixem) correspondem um elevado
número de “cifras negras” (a perseguição penal atinge apenas uma ínfima percentagem
dos crimes efectivamente praticados) e uma prática clandestina generalizada com todos
os inconvenientes e disfunções daí decorrentes.
O aborto não é um “crime sem vítima”, como poderiam ser a prostituição e o homossexualismo.
O aborto tem uma vítima: o embrião ou o feto, a criança não nascida. Trata-se de uma vítima
particularmente indefesa, tão indefesa que, como se vê nestas discussões, até há quem ignore
ou despreze a sua existência. E uma vítima que não pode apresentar queixa. Quem (como
sucede em relação a vítimas menores ou por outro motivo incapazes) poderia apresentar queixa
em sua representação (os pais) é normalmente agente do próprio crime. Não há, como em
relação a outros crimes, uma identificação espontânea da generalidade dos cidadãos com a
vítima. Esta, e o seu sofrimento, são normalmente invisíveis (apesar de os meios técnicos cada
vez mais permitirem visualizar a vida do embrião e do feto). É difícil (ao contrário do que se
verifica com outros crimes) imaginarmo-nos na posição da vítima do aborto. Não recordamos
essa fase da vida e sabemos que nessa situação já não voltaremos a estar (como poderemos
estar na situação de vítimas de qualquer outro crime).
Por tudo isto, o caracter particularmente indefeso da vítima do aborto não enfraquece, antes
acentua, a necessidade da sua protecção.
As dificuldades da perseguição penal do aborto são evidentes, mas isso não significa que não
haja vítimas. São, antes, consequência do caracter particularmente indefeso dessas vítimas. A
este respeito, pode aproximar-se o aborto dos chamados “crimes de vítima inconsciente” ou
“abstracta”, como os crimes de fraude fiscal ou grande parte dos crimes contra a economia e a
saúde pública. Nestes casos, porque não há vítimas concretamente determinadas, também não
há uma colaboração espontânea dos cidadãos que facilite a perseguição penal. Mas esta não
deixa, por isso, de se justificar. Todos sabemos como é generalizada a fraude fiscal, mas
ninguém advoga, por isso, a descriminalização desta prática.
A criminalização do aborto é ineficaz. Sendo tão reduzido o número de condenações,
estas não contribuem para a dissuasão da sua prática. Ninguém deixa de praticar um
aborto por este ser crime. Esta ineficácia contribui, além do mais, para o desprestígio do
Direito Penal.
Deve, antes de mais, esclarecer-se que não é só em relação ao aborto que se verifica um
número elevado de “cifras negras”, uma grande desproporção entre a prática efectiva do crime
em questão e um número reduzido de condenações (ver, sobre esta questão, António Almeida
Costa, “Aborto e Direito Penal”, in Revista da Ordem dos Advogados, ano 44, pgs. 600 a 603).
De resto, nunca a criminalização de uma conduta a elimina em absoluto. Não é por o homicídio
ou o roubo serem criminalizados que, em absoluto, deixa de haver homicídios ou roubos.
Também a criminalização do tráfico de droga, por si só, não elimina esta prática. Mas, como é
óbvio, se qualquer destas condutas não fosse criminalizada, muito mais difundida seria a sua
prática. Não se trata, pois, de eliminar em absoluto a prática do crime, mas de a limitar na
medida do possível. Ir mais longe do que isso não depende fundamentalmente do sistema penal
(nem a este deve ser pedido), mas de questões culturais, de mentalidade, de educação, de
políticas sociais, etc. Desse modo é que se ataca a raiz do problema, as causas do crime. Isso
verifica-se em relação a qualquer crime e, de modo especial, ao consumo e tráfico de droga e,
também, ao aborto.
Mas, em relação ao aborto, será que a criminalização cumpre mesmo essa função de limitação
da sua prática? Sim. Demonstram-no inquéritos realizados em vários países, depois da
legalização e descriminalização, donde resulta que uma percentagem muito significativa de
mulheres (em torno dos 70%) que praticam o aborto não o teriam feito se essa prática não
fosse legal e descriminalizada (ver David Reardon, Aborted Womem: Silent No More; Loyola
University Press, Chicago, 1987, e também estudos realizados pelo Movimento Pela Vida
italiano).
É que essa função de limitação da prática do aborto não depende apenas do número de
condenações. Independentemente destas condenações, a simples definição solene do aborto
como atentado à vida, e por isso crime, exerce uma importante função pedagógica. A Lei é para
muitos um guia moral. Através da definição dos crimes, o Estado transmite uma mensagem
cultural que põe em relevo a importância para a vida social de bens jurídicos como o da vida
humana. Hoje é cada vez mais posta em relevo, no que se refere às funções do sistema penal,
já não tanto a função de prevenção geral negativa (a dissuasão da prática de crimes através da
intimidação dos potenciais criminosos com a ameaça da pena), mas a função de prevenção
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geral positiva (o reforço pedagógico da consciência comunitária quanto à importância dos
valores fundamentais que estruturam e orientam a vida social).
É verdade que há outros crimes (como a fraude fiscal) em que se verifica uma grande
desproporção entre o número de condenações e o número efectivo de ocorrência desses
crimes. Nesses casos, advoga-se uma maior intensificação da perseguição penal. Não se
verifica isso em relação ao aborto, nem mesmo por parte dos defensores da
criminalização. Há alguma hipocrisia, da parte destes, em defender a manutenção da lei
e não pretender que esta seja efectivamente aplicada, ou nada fazer para que o seja.
Em relação ao aborto, como talvez não se verifique em relação a qualquer outro crime, há uma
grande desproporção entre a sua gravidade objectiva e a avaliação da responsabilidade
subjectiva da mulher grávida que o pratica (o erro e a pessoa que erra). Esta não tem
normalmente a consciência dessa gravidade ou é levada a abortar por pressões externas ou
condições dramáticas de existência. Daí que a função do Direito Penal seja, neste caso, mais
acentuadamente pedagógica, de afirmação de valores, do que repressiva, dirigida não tanto a
quem já cometeu crimes, mas a quem vê na Lei um guia moral capaz de o orientar. Esta função
não depende estritamente do número e severidade das condenações e, nalguma medida,
também se cumpre com a simples manutenção em vigor da lei.
De qualquer modo, não há que temer a aplicação da lei. Esta contempla (ou pode contemplar
mais claramente com ajustamentos que não a descaracterizem) a possibilidade de conciliar a
condenação firme do crime enquanto tal e a indulgência (a tolerância ou a misericórdia, como
se lhe queira chamar) para com a mulher grávida que aborta. A suspensão da execução da pena
de prisão evita o cumprimento efectivo desta em caso de não repetição da prática do crime,
mantendo a referida função pedagógica de esclarecimento e advertência. A suspensão
provisória do processo evita até o julgamento, dá-se numa fase secreta do processo e supõe a
imposição de injunções ou regras de conduta (formas de colaboração com instituições de
solidariedade social, por exemplo) também numa perspectiva pedagógica de esclarecimento e
advertência.
Também nada há a opor a que se intensifique a perseguição penal de quem da prática do
aborto faz profissão ou actividade lucrativa.
De qualquer modo, os defensores da criminalização do aborto sabem que não é o recurso ao
sistema penal o caminho mais eficaz para o combater. A criminalização limita a difusão da
prática do aborto, mas não a elimina, porque não atinge o problema na sua raiz. É normal, pois,
que se privilegiem outro tipo de acções, dirigidas à raiz do problema, ao combate às causas do
aborto e, por isso, à educação e ao apoio a mulheres grávidas em dificuldade.
É verdade que o aborto é censurável. Mas não é aceitável a criminalização das mulheres
grávidas que o praticam. É desumana a condenação em prisão dessas mulheres. E
mesmo o estigma e a humilhação de um julgamento públicos são desumanos, tendo em
conta todos os dramas por que passam normalmente essas mulheres. Esse julgamento
só vem agravar os seus sofrimentos.
Antes de mais, deve dizer-se que quando normalmente se fala em descriminalização do aborto
(como se verifica nas perguntas submetidas a referendo em Portugal), não é só a
descriminalização que está em causa, mas também a legalização. Uma conduta pode ser
descriminalizada sem ser legalizada: deixa de ser crime, mas continua a ser proibida
(eventualmente objecto de sanções não penais). Verificou-se isso com o consumo de droga em
Portugal: não é crime (é uma contraordenação, infracção menos grave, não punível com
prisão), mas a droga não passou a ser de livre acesso ou fornecida pelo Estado. Não é isso que
se pretende em relação ao aborto. Este não só deixará de ser crime em determinadas
condições, mas também passará a ser legal, realizado com autorização do Estado e com a sua
colaboração, nos hospitais públicos e com recursos públicos.
Por outro lado, nunca se advoga a descriminalização do aborto em termos absolutos. Só haverá
descriminalização quando o aborto for praticado nas primeiras dez ou doze semanas de
gestação e em estabelecimento de saúde legalmente autorizado. Fora destas situações,
continuaria a ser crime e, portanto, continuariam a ser possíveis julgamentos pela prática de
aborto quando este fosse realizado fora desse prazo e fora desses estabelecimentos..
A respeito da “prisão das mulheres que abortam”, há que desmascarar uma bandeira de
propaganda que não tem correspondência com a realidade e que se aproveita da ignorância
dessa realidade. Não há, na verdade, na prática, condenações em pena de prisão de mulheres
grávidas que abortam. É certo que a lei prevê essa possibilidade. Mas também a prevê em
relação a crimes de injúrias ou condução sem carta (crimes que não atingem bens de tão
grande relevo como o da vida humana), e também são praticamente inexistentes (sobretudo
19
quando se trate de uma primeira condenação) as condenações em pena de prisão pela sua
prática. Revela uma grande ignorância dos princípios que orientam o sistema penal associar
automaticamente a criminalização à pena de prisão. De acordo com esses princípios, a prisão é
sempre um último recurso, a ela se deve recorrer apenas quando nenhuma outra pena cumpre
as finalidades do sistema.
A criminalização do aborto impõe-se por uma questão de coerência do sistema. Se são
qualificados como crimes atentados a bens como os da honra (as injúrias), a integridade física
(uma simples bofetada) ou a propriedade (furtos de bens de pequeno valor, como o furto de
uma pastilha elástica num supermercado), seria incoerente que não o fosse um atentado à vida
humana, o bem que é o pressuposto de todos os outros (sem a salvaguarda da vida, não é
possível a salvaguarda de quaisquer outros dos direitos fundamentais, desde a liberdade, à
saúde ou o acesso à educação e à cultura). Se não é a vida humana um bem fundamental e
estruturante para o regular e harmonioso funcionamento da sociedade (o que define os bens
jurídicos merecedores de tutela penal), qual o será?
De qualquer modo, o sistema penal oferece possibilidades de tratamento humano da mulher
grávida que aborta.
Em relação ao aborto, como talvez não se verifique em relação a qualquer outro crime, há uma
grande desproporção entre a sua gravidade objectiva (pela relevância do bem jurídico da vida
humana) e a avaliação da responsabilidade subjectiva da mulher grávida que aborta (o erro e a
pessoa que erra). Esta não tem normalmente a consciência dessa gravidade e é muitas vezes
levada a abortar por pressões externas ou condições dramáticas de existência.
O sistema permite conciliar a condenação clara do aborto na sua objectividade e a compreensão
e tolerância para com a mulher grávida que aborta. Permite a opção por penas de multa e
prestação de trabalho a favor da comunidade. Permite a suspensão da execução da pena de
prisão evitando o cumprimento efectivo desta pena em caso de não repetição da prática do
crime, mantendo uma função pedagógica de esclarecimento e advertência.
Quanto aos julgamentos pela prática de aborto, deve dizer-se, antes de mais, que, na
perspectiva dos interesses das mulheres que a eles são sujeitas, seria preferível que os mesmos
decorressem com o recato com que todos os dias decorrem julgamentos pela prática de crimes
de muito menor gravidade, e que deles não se fizesse a publicidade e exploração mediática, ao
serviço da propaganda da descriminalização do aborto, que normalmente se faz. Esta só
contribui para reforçar a estigmatização dessas mulheres.
De qualquer modo, o sistema vigente também permite evitar esses julgamentos. A suspensão
provisório do processo, que ocorre numa sua fase secreta, evita o julgamento e supõe a
imposição de injunções e regras de conduta (formas de colaboração com instituições de
solidariedade social, por exemplo), também numa perspectiva pedagógica de esclarecimento e
advertência.
Legal ou ilegal, o aborto continuará a fazer-se sempre. A legalização do aborto não
contribui para o aumento da sua prática. A experiência revela até que essa prática vai
diminuindo ao longo dos anos. Isso pode até explicar-se pelo facto de a prática do
aborto nos hospitais públicos facilitar um maior acesso à informação sobre planeamento
familiar.
É destituída de qualquer lógica a ideia de que a legalização do aborto não contribui para o
aumento da sua prática, ou até a diminui. Se se pretende combater uma determinada prática,
não se facilita essa prática colocando ao seu serviço os recursos públicos. Quando isto acontece,
uma razão lógica leva a concluir que o aborto é facilitado e tenderá a aumentar.
A ideia de que o número de abortos diminui com a legalização surge porque se comparam as
estatísticas oficiais posteriores à legalização com números de abortos clandestinos, sem
qualquer fiabilidade, avançados no âmbito da propaganda da legalização do aborto. Entre nós já
se tem avançado números que oscilam entre as poucas dezenas de milhar e várias centenas de
milhar (esta tão acentuada oscilação já revela bem a pouca fiabilidade destes números). Em
Itália, a partir de números desses, chegou a falar-se de redução a metade (!) do número de
abortos depois da legalização (ver Luigi Ferrajoli, “A Questão do Embrião entre o Direito e a
Moral”, in Revista do Ministério Público, ano 24, Abril-Junho de 2003, nº 94, pg. 19).
Em França, antes da legalização avançavam-se números que oscilavam entre os 300.000 e os
2.500.000. Segundo um estudo (este oficial e credível) do Institut National d´Études
Démographiques (in Population et Société, nº 407), esse número era de 50.000 a 60.000.
Depois da legalização, o número de abortos anuais ronda os 200.000.
Não há, pois, dados seguros quanto ao número de abortos clandestinos antes da legalização. Já
terão outra segurança dados que indicam que, depois da legalização, uma percentagem elevada
(cerca de 70%) de mulheres que abortam declaram que não o teriam feito se o aborto não
20
fosse legal (ver David Reardon, Aborted Womwm: Silent No More, Loyola University Press,
Chicago, 1987).
As estatísticas oficiais depois da legalização (incontestáveis, pois) revelam que, apesar da
difusão do planeamento familiar, o número de abortos se mantém muito elevado, a ponto de se
poder falar em verdadeira banalização desta prática. A percentagem de abortos legais em
relação aos nascimentos atinge 34,8% na Suécia, 26,5% no Reino Unido, 22,6% na França,
26,8% na Dinamarca e 26,6% em Itália (Famiglia Cristiana, nº 28/2002, pg. 21). Em Espanha,
uma em cada seis gravidezes termina em aborto provocado (ver o relatório do Instituto de
Política Familiar em www.ipfe.org).
As estatísticas revelam também que o número de abortos vai crescendo, e não diminuindo. No
Reino Unido, desde a legalização do aborto, o seu número triplicou (Avvenire, 1/7/2005). Em
Espanha (onde, apesar de vigorar uma lei restritiva como a que vigora entre nós, o aborto está
liberalizado na prática), o crescimento do número de abortos foi de 75,3% entre 1993 e 2003 e
de 48,2% entre 1998 e 2003 (ver o relatório do Instituto de Política Familiar em www.ipfe.org)
Quando não se verifica esse aumento, isso pode facilmente explicar-se pela difusão do
planeamento familiar. Mas esta difusão não depende, como é óbvio, da legalização do aborto.
Pode verificar-se, como se tem verificado entre nós, sem essa legalização. O que a legalização
do aborto provoca é que o aborto passe a ser um recurso mais frequente em caso de falhas dos
métodos de planeamento familiar. A este respeito, a experiência da França é elucidativa. O
número de abortos mantém-se elevado apesar da maior difusão do planeamento familiar,
porque o recurso mais frequente ao aborto em caso de falhas dos métodos de planeamento
familiar compensa a diminuição do número de gravidezes indesejadas resultante da difusão do
planeamento familiar (La Croix, 10/1/2000). Um estudo do Institut National d’ Études
Démographiques (ver Population et Société, nº 407) revela que o número de gravidezes
imprevistas desceu de 46% em 1975 (ano da legalização do aborto) para 23% em 2004. O
número de abortos em caso de gravidez imprevista subiu no mesmo período de 41% para 60%.
Em conclusão, a legalização do aborto impede até que a difusão do planeamento familiar
contribua para a diminuição da sua prática.
Verifica-se, por outro lado, que a situação inversa, de limitação legal da prática do aborto
depois da liberalização faz diminuir significativamente a sua prática, mesmo que não a elimine e
se mantenha a prática do aborto clandestino. É o que se tem verificado na Polónia, onde,
durante o regime comunista, a liberalização conduziu a uma verdadeira banalização do aborto
que hoje já não se verifica com a vigência de uma lei restritiva semelhante à que está em vigor
em Portugal (La Croix, 22/10/1996).
Deve salientar-se, também, que os números oficiais não incluem normalmente os abortos
clandestinos que continuam a praticar-se. E ignoram também o recurso, cada vez mais
generalizado, à chamada pílula do dia seguinte, considerada como método de contracepção,
quando é certo que muitas vezes actua já depois da concepção, tendo, pois, efeitos abortivos.
Diante destes números (independentemente das leituras que deles se possam fazer), espanta
que haja quem se resigne ou fale em “contenção” do número de abortos. Cada um destes
números representa uma vida que se perdeu, um ser único e irrepetível, um dom inestimável.
Nunca pode dizer-se que são poucos. E nunca pode dizer-se que não vale a pena evitar que se
perca uma qualquer destas vidas, através da limitação legal ou, sobretudo, através do apoio à
maternidade.
O aborto clandestino é um grave problema de saúde pública. São em grande número as
mulheres que sofrem danos na sua saúde devido às deficientes condições sanitárias em
que são praticados muitos abortos e há mesmo mulheres que morrem por isso. A
prioridade é acabar com o aborto clandestino e a legalização do aborto permite-o.
Importa, antes de mais, reduzir às suas devidas proporções os malefícios do aborto clandestino
na perspectiva da saúde da mulher. Hoje, em Portugal, o aborto clandestino é muitas vezes
praticado por médicos nas mesmas condições em que seria praticado se fosse legal. Dados da
Direcção-Geral de Saúde dão conta de 2073 internamentos em dez anos (123 em 2003) na
sequência de complicações de saúde derivadas de abortos clandestinos (Diário de Notícias,
15/9/2004). Estamos longe daquilo que poderia esperar-se das centenas de milhar de abortos
clandestinos propaladas pela propaganda da legalização do aborto.
De qualquer modo, não há que minimizar, certamente, os problemas de saúde pública
decorrentes do aborto clandestino. Só que a solução não passa por legalizar o aborto. Desde
logo porque este, mesmo quando legal, pode sempre causar danos físicos à mulher e,
sobretudo, como cada vez mais se demonstra, com frequência provoca na mulher graves danos
psíquicos. Não há, pois, aborto “seguro”.
Por outro lado, a experiência de outros países demonstra que a legalização do aborto não põe
termo ao aborto clandestino, quer porque há sempre situações que não se enquadram na lei
21
(designadamente por ter sido ultrapassado o prazo de gestação dentro do qual o aborto é
legal), quer porque as situações que conduzem à prática do aborto muitas vezes exigem um
secretismo que o aborto legal não garante da mesma forma que o aborto clandestino, quer
porque um clima geral de maior permissivismo para com o aborto em geral se traduz num
maior permissivismo para com o aborto clandestino (é muito menos provável a perseguição
penal deste quando o aborto passa a ser legal em grande número de situações).
É óbvio que quem combate a legalização do aborto há-de pretender também combater o aborto
clandestino, com todos os malefícios que deste decorrem. Para tal, há que lançar mão dos
mecanismos legais de perseguição penal contra quem faz do aborto clandestino profissão ou
actividade lucrativa (e que não beneficia das circunstâncias atenuantes de que normalmente
beneficiarão as mulheres grávidas que abortam). A incoerência está em quem diz combater o
aborto clandestino e reage contra a condenação penal destas pessoas. Diga-se, por outro lado,
que, no actual contexto português, a legalização do aborto beneficiará em primeira linha clínicas
que já praticam abortos ilegais, que poderão suprir, com financiamento estatal, como sucede
em Espanha (onde cerce de 90% dos abortos legais são praticados por clínicas privadas
lucrativas), as insuficiências da rede de hospitais públicos.
Mas mais importante e eficaz do que a perseguição penal, para combater o aborto clandestino
importa atacar na raiz os problemas que conduzem à sua prática, designadamente através do
apoio à maternidade.
Há, pois, que atender aos malefícios do aborto clandestino na perspectiva da saúde da mulher e
há que combater o aborto clandestino sem o legalizar. É que esta atenção à saúde da mulher
não pode levar-nos a esquecer a vida do embrião e do feto, que, com o aborto, é sempre
sacrificada. É de lamentar a morte de uma mulher devido à prática do aborto clandestino (uma
morte nunca é pouco). Mas são igualmente de lamentar todas as mortes de crianças não
nascidas que o aborto, clandestino ou legal, acarreta sempre. Mortes que a legalização do
aborto faz aumentar de forma significativa.
A legalização do aborto é uma exigência de igualdade e justiça social. É injusta a
desigualdade entre a situação das mulheres com rendimentos que lhes permitem
deslocar-se ao estrangeiro e aí praticar um aborto “seguro” e as situações das mulheres
que não têm esses rendimentos e se vêem forçadas a recorrer cá ao aborto clandestino
em precárias condições sanitárias.
Este tipo de argumentação levaria a que qualquer opção de descriminalização de uma conduta
(o aborto, a eutanásia, a clonagem, o consumo e tráfico de droga, o que quer que seja) tomada
por um qualquer país devesse ser necessariamente seguida por todos os outros países. Porque
é sempre possível (e cada vez mais fácil) a deslocação a um país estrangeiro para a prática de
uma conduta que aí está liberalizada, nenhum país seria soberano e poderia decidir por si se
essa prática deve, ou não, ser legalmente admitida. Não pode negar-se a qualquer Estado esta
sua faculdade soberana. Este também não pode – é certo – impedir a deslocação ao estrangeiro
dos seus cidadãos. Pode apenas impedir que, como também por vezes sucede em Portugal, no
seu território se faça publicidade ou se pratiquem actos de cumplicidade (recolha de fundos a tal
destinados, por exemplo) da prática de condutas que na sua ordem jurídica são crimes e num
país estrangeiro estão legalizadas.
De qualquer modo, há que atender, sobretudo, ao seguinte.
O que nos deve chocar não é a desigualdade relativa ao acesso à prática do aborto, pois este
nunca é um bem para a mulher e para o seu filho. O que nos deve chocar é a desigualdade no
que se refere às condições de exercício da maternidade (esta sim um bem para a mulher e o
seu filho). É contra esta desigualdade que o Estado deve mobilizar todos os seus esforços. O
que o Estado deve garantir não é que todas as mulheres tenham acesso ao aborto, mas que
todas as mulheres tenham condições dignas de exercício da maternidade. O facto de o Estado
garantir o acesso ao aborto pode facilmente servir de pretexto para o mesmo se demitir do seu
dever de garantir o exercício da maternidade em condições dignas (é mais fácil ajudar a mulher
a abortar do que ajudá-la a criar os seus filhos; porque está garantido o aborto, não é preciso
garantir condições dignas do exercício da maternidade).
A legalização do aborto é uma causa das mulheres e a sua ilegalização uma causa
contra as mulheres. Só as mulheres deveriam decidir a esse respeito (só elas deveriam
votar em referendos ou deliberações parlamentares sobre tal matéria). Se assim fosse,
o aborto há muito estaria legalizado.
A questão do aborto diz respeito a toda a sociedade (homens e mulheres), pois se liga ao valor
da vida humana, que é um valor fundamental e estruturante de toda a organização comunitária.
22
A geração de uma criança envolve um homem e uma mulher, um pai e uma mãe. É legítimo
que qualquer deles tenha uma palavra a dizer a respeito do seu nascimento. Se for negado este
direito ao pai, facilmente este também se demitirá dos seus deveres como pai, o que só
prejudicará a mãe, que se vê assim sozinha com o seu filho. É este o maior perigo da afirmação
de que o aborto diz respeito apenas à mulher: deixá-la sozinha com o drama que pode ser uma
maternidade difícil, sem o apoio do pai da criança, apoio que muitas vezes seria suficiente para
afastar essas dificuldades.
O aborto é o caminho mais fácil para o pai que não quer assumir as suas responsabilidades. È
ele que muitas vezes pressiona a mulher a abortar, contra os desejos mais profundos desta e
indiferente às sequelas psíquicas que nela o aborto pode provocar.
Cada vez mais se vão conhecendo os malefícios do aborto para a saúde psíquica da mulher. O
aborto não é um violência apenas para a criança não nascida, é também uma violência contra a
mulher e a feminilidade. Vem sendo estudado o síndroma pós-aborto como uma patologia que
se caracteriza por depressão, angústia, sentimentos de culpa, insónias, pesadelos, incapacidade
para manifestar afecto, dificuldades no relacionamento com crianças, auto-lesionismo,
disfunções sexuais e até intenções suicidas (podem ver-se, sobre estas questões, os
testemunhos recolhidos em Mulher...Porque Choras?; Paulus Editora, Apelação, 2001, e Sara
Martín García e Associación de Víctimas de Aborto, Yo Aborté, Voz de Papel , Madrid, 2005). Por
isso, têm surgido várias organizações de apoio à mulher como vítima do aborto (ver
www.vozvictimas.org, www.rachelvineyard.org e www.silentnomore awareness.org).
Pouca consideração terão perante os dramas das mulheres confrontadas com as dificuldades da
maternidade a sociedade e o Estado que, diante desses dramas, a essas mulheres oferecem
apenas o aborto, como se este fosse sequer um bem para elas, como se este fosse uma
fatalidade ou como se a única alternativa ao aborto clandestino fosse o aborto legalizado, e não
antes, precisamente, o apoio à maternidade. Só este apoio, na verdade, respeita a vocação
mais profunda da mulher, pois se muitas mulheres se arrependeram de ter praticado um
aborto, nenhuma alguma vez se terá arrependido de assumir a maternidade.
Num outro aspecto, a causa da legalização do aborto revela-se contra a causa da dignidade e
dos interesses das mulheres. Actualmente, e em geral, não é punido o aborto negligente
(também por vezes chamado “interrupção involuntária da gravidez”), o aborto praticado por
negligência, contra a vontade da mulher, em caso de acidente de viação ou erro médico, por
exemplo. Deveria sê-lo em atenção aos direitos e interesses do nascituro, da mãe e do pai. Por
razões puramente ideológicas (apenas para não reconhecer que a vida do nascituro é
merecedora de tutela), os partidários da legalização do aborto, claramente contra os interesses
da mulher grávida, têm-se oposto à criminalização do aborto negligente.
Impor à mulher uma maternidade não desejada é uma violência. Nenhuma mulher pode
ser obrigada a ser mãe contra a sua vontade.
É verdade que nenhuma mulher pode ser obrigada a ser mãe contra a sua vontade. Por isso,
deve ter acesso ao planeamento familiar. Mas, depois da concepção, a mulher já é mãe. Já não
se trata de prevenir uma maternidade não desejada, mas antes de continuar uma maternidade
já iniciada. Depois da concepção, há que considerar a vida de um filho que também não pediu
para viver e não pode ser sacrificado como se tivesse culpa de um facto eventualmente
acidental a que é alheio em absoluto.
Se a mulher não quer levar até ao fim uma maternidade não desejada, há sempre a
possibilidade de recurso à adopção. De qualquer modo, a experiência dos centros de apoio à
vida e a experiência de muitas mães também revelam a felicidade que pode trazer uma
maternidade inicialmente imprevista, ou mesmo indesejada. Quantas mulheres depressa
esquecem, logo após o nascimento do seu filho que a sua gravidez não foi inicialmente
desejada? E quantas pessoas não são fruto de gravidezes não inicialmente desejadas, sem que
alguma vez tenham notado, por isso, menos amor por parte dos seus pais? Se muitas mulheres
se arrependeram de ter praticado um aborto, nenhuma alguma vez se terá arrependido de ter
assumido a maternidade.
O aborto pode ser um bem para a própria criança. Mais vale que uma criança não nasça
do que nasça para ser infeliz, sem ter uma vida digna. A vida não é apenas a vida
biológica e há que atender à qualidade de vida. O primeiro direito da criança é o de ser
desejada.
Não pode aceitar-se a ideia de que há “vidas indignas de ser vividas” (conceito que serviu de
base à prática da eutanásia involuntária pelo regime nazi). O princípio da dignidade da pessoa
humana, em que, de acordo com o artigo 1º da Constituição, se baseia a República Portuguesa,
impõe que se rejeite em absoluto essa ideia. A vida de cada pessoa humana é um dom, para si
23
e para os outros, nenhuma pessoa humana está a mais ou deixa de ser bem-vinda na
comunidade, de ninguém se pode dizer que valeria mais não ter nascido.
Também ninguém pode substituir-se ao juízo de outra pessoa sobre a sua felicidade ou a sua
qualidade de vida. Só esta poderia fazer esse juízo. E esse juízo dependerá, mais do que tudo,
da forma como essa pessoa for acolhida e amada. Não é, pois, fatal que tenha de ser infeliz.
É verdade que não basta garantir o direito a nascer. É necessário criar condições de vida dignas.
Não basta assegurar a vida biológica, há que assegurar a qualidade de vida. Mas a qualidade de
vida supõe a vida biológica. O direito à vida é o pressuposto de todos os outros direitos, e
também do direito a crescer num ambiente saudável e harmonioso. Se não estão assegurados
estes direitos, há que lutar por que o estejam, não negar o direito à vida, que é pressuposto
desses direitos. Há que combater a pobreza, não evitar que os pobres nasçam.
Não é, obviamente, com o aborto que se resolvem os problemas sociais que tornam indignas as
condições de vida de muitas pessoas. Com o aborto, permanecem sempre as injustiças sociais.
Pode até dizer-se que a legalização do aborto serve de fácil pretexto para deixar de combater
essas injustiças, ou de desincentivo para as combater: é mais fácil evitar que os pobres nasçam
do que combater a pobreza (ideia que, por vezes, tem servido de fundamento de campanhas de
limitação da natalidade nos países pobres); para quê o esforço de eliminar condições de vida
indignas se pode evitar-se o nascimento de pessoas sujeitas a essas condições?
É verdade que a criança tem o direito a ser desejada. Mas, como é óbvio, esse direito não se
torna efectivo com a prática do aborto. Com este, a criança é rejeitada, não passa a ser
desejada. Passará a ser desejada se for acolhida (como tantas vezes acontece, ou pode
acontecer) como um dom e uma riqueza, mesmo que a sua geração tenha sido imprevista, não
tenha sido planeada, ou o seu nascimento acarrete dificuldades.
Não pode, também, esquecer-se que nos casos extremos de falta de condições para criar e
educar uma criança no seio da família biológica, há sempre a possibilidade de recurso à
adopção, para a qual, em Portugal, não faltarão candidatos.
Não basta proteger o direito à vida das crianças não nascidas, importa proteger com
igual força o direito à vida e todos os outros direitos fundamentais das crianças e
adultos já nascidos. Há, a este respeito, incoerência em muitos dos opositores à
legalização do aborto. Não haveria tantos abortos se não houvesse essa incoerência e
mais vigorosamente se combatessem as injustiças sociais que podem conduzir à sua
prática.
É verdade que se impõe a coerência na defesa da vida e da dignidade da pessoa humana em
todas as fases da sua existência. A causa da defesa da vida não pode limitar-se à oposição à
legalização do aborto, importa alargá-la a outras ameaças à vida, como a guerra, a doença ou a
fome. E não basta ilegalizar o aborto, importa combater as injustiças sociais que muitas vezes
conduzem à sua prática.
Pode apontar-se a incoerência de alguns defensores da ilegalização do aborto. Mas também há
quem não mereça essas acusações de incoerência. Podem mencionar-se, a este respeito, duas
referências da causa da defesa da vida pré-natal: João Paulo II e Madre Teresa de Calcutá.
Ambos situavam o aborto no âmbito da defesa global dos direitos humanos e da paz. Davam
particular relevo à vida das crianças não nascidas porque se trata da vida dos mais inocentes e
indefesos e porque a prática do aborto assumiu dimensões gigantescas em todo o mundo. Mas
não limitavam a este aspecto a sua acção de defesa da paz e dos direitos humanos. Basta
lembrar os incessantes apelos de João Paulo II em favor da paz e da justiça social. E o
testemunho da vida de Madre Teresa de Calcutá, sempre ao serviço dos “mais pobres de entre
os pobres”.
Afirmou João Paulo II na encíclica Evangelium Vitae (n.5): «Como, há um século, a classe
operária era oprimida nos seus direitos fundamentais e a Igreja com grande coragem tomou a
sua defesa, proclamando os sacrossantos direitos da pessoa do trabalhador, assim, agora,
quando outra categoria de pessoas é oprimida no direito fundamental à vida, a Igreja sente que
deve, com igual coragem, dar voz a quem não a tem. O seu grito é sempre o grito evangélico
em defesa dos pobres do mundo, de quantos estão ameaçados, desprezados e oprimidos nos
seus direitos humanos.»
No discurso por ocasião da atribuição do prémio Nobel da Paz, afirmou Madre Teresa de
Calcutá: «Cada um de nós está aqui, hoje, porque foi amado por Deus, que nos criou, e pelos
nossos pais que nos aceitaram e se preocuparam em dar-nos a vida. A vida é o mais precioso
dos dons de Deus (...) Nós fomos criados por Deus para as coisas maiores: amar e ser amados
(...), mas hoje, em muitos lugares do mundo, a vida é destruída deliberadamente pela guerra,
pela violência e pelo aborto. O maior destrutor da paz no mundo, hoje, é o aborto. Se uma mãe
pode matar o seu filho, o que é que nos impedirá, a ti e a mim, de nos matarmos uns aos
outros? (...) Deus criou um mundo suficientemente grande para todos aqueles que Ele quer que
24
nasçam. São os nossos corações que não são suficientemente grandes para os querer e os
aceitar. Se todo o dinheiro que é gasto na busca dos modos de matar estas criaturas fosse
usado para as nutrir, alojar, vestir, educar, como seria bonito!» (ver Pier Giorgio Liverani, Dateli
a Me – Madre Teresa e l’Impegno per la Vita, Città Nuova, Roma, 2003, pg. 93).
A legalização do aborto é uma causa progressista e “de esquerda” e a sua ilegalização
uma causa retrógrada e conservadora.
A questão da protecção da vida, e da protecção da vida na sua fase inicial, é uma causa
universal, que não se restringe a qualquer convicção particular, religiosa ou ideológica, que
deve congregar crentes e não crentes e pessoas de diferentes facções políticas. Não é uma
causa “de direita” ou “de esquerda”.
Muito pobre será a “esquerda” que fizer da causa da legalização do aborto um questão de
identidade, como se só com a implementação dessa legalização pudesse afirmar os seus valores
característicos. Coloca-se, assim, do lado da cultura de morte contra a cultura da vida. Mas é
isso que parece suceder entre nós...
Há muitas pessoa “de esquerda” que não aceitam que assim seja. Quem considere que os
valores “de esquerda” se caracterizam pela defesa dos mais fracos e desprotegidos poderá
facilmente reconhecer na vítima do aborto o mais fraco e desprotegido dos seres humanos. O
filósofo italiano Norberto Bobbio, socialista e laico, considerava a causa da defesa da vida, antes
e depois do nascimento, uma “causa progressista, democrática e reformista” (Corriere della
Sera, 8/5/81). Os movimentos espanhóis “de esquerda” Solidariedade e Autogestão Socialista,
Colectivo Autogestão e Movimento Cultural Cristão declararam, num comunicado, em Maio de
2004, que o aborto é «uma contradição absoluta com os valores que toda a esquerda deve
defender». E ainda: «Não há nos nossos dias afirmação mais reaccionária – contra tudo o que
se diga – do que a de que há direito de uma pessoa sobre o filho não-nascido. É o direito de
propriedade mais absoluto concebível, para além do direito do amo sobre o escravo. E é uma
vergonha para a esquerda que esta levante a bandeira desse pretenso direito» ( Zenit,
27/5/2004).
Apresentar o aborto como resposta aos problemas de injustiça social é expressão de um nítido
conformismo, isto é, de resignação perante essas injustiças, como se nada mais houvesse a
fazer senão impedir que nasçam crianças em contextos socialmente injustos. Afirmou Jorge
Miranda: «...a atitude de esquerda e de progresso não deve ser a vontade de transformação da
realidade, e não uma atitude de resignação e aceitação? (...) O que é mais fácil, o que serve
mais os interesses dominantes: criar postos de trabalho, construir casas, mudar as relações
económicas e sociais ou legalizar o aborto?» (Público, 27/5/98).
E não será a legalização do aborto uma forma de facilitar os inqualificáveis abusos de que são
vítimas as mulheres trabalhadoras ameaçadas de despedimento devido à sua gravidez? Se é
legal o recurso ao aborto, o empregador sem escrúpulos sempre poderá dizer que a mulher
pode abortar para evitar esse despedimento.
A legalização do aborto é uma exigência da “modernidade”. Estamos na “cauda da
Europa” nesta matéria, pois somos dos poucos países com uma legislação tão restritiva
neste âmbito.
Um país com oito séculos de História e de cultura humanista, pioneiro na abolição da pena de
morte, não tem que receber lições, em matéria de direito à vida, dos outros países da Europa
(alguns deles conheceram a pena de morte até há não muito tempo), nem tem que assumir
qualquer atitude seguidista (fazermos tudo aquilo que fazem os outros) a esse respeito. Além
do mais, isso seria contrário à nossa soberania e orgulho nacionais. Até um pequeno país como
Malta deixou claro ao aderir à União Europeia, numa declaração anexa ao Tratado de Adesão,
que nunca aceitaria uma limitação de soberania nesse campo. Se tivéssemos assumido tal
posição seguidista, nunca teríamos sido pioneiros na abolição da pena de morte. Também então
estávamos isolados no contexto europeu e mundial.
Deve salientar-se, de qualquer modo, que não estamos tão isolados como isso no contexto
europeu e mundial no que se refere à ilegalização do aborto. Quanto à Europa, na Irlanda e em
Malta vigoram leis mais restritivas do que a nossa e na Polónia vigora uma lei tão restritiva
como a nossa (o aborto só é permitido em casos de perigo para a vida ou saúde da mãe,
malformação do feto e violação). Este país já conheceu a liberalização do aborto e, depois da
queda do comunismo, adoptou tal lei restritiva, que uma votação parlamentar em 2005
confirmou (isto demonstra também que não é irreversível a tendência para uma cada vez maior
permissividade em relação ao aborto, e que também pode haver evoluções em sentido
contrário). Na generalidade dos países da América Latina vigoram leis mais restritivas do que a
nossa.
25
Não temos que cometer hoje os erros que outros países cometeram há vinte ou trinta anos.
Podemos, e devemos, aprender com esses erros, fazendo um balanço destes vinte ou trinta
anos. E tendo em consideração aquilo que hoje se conhece e se desconhecia então. O que hoje
se conhece e então se desconhecia, ou não se conhecia tão bem, aponta no sentido da
ilegalização do aborto, não da sua legalização.
Há vinte ou trinta anos não se conhecia tão bem como hoje as características da vida pré-natal.
De ano para ano, são cada vez mais aprofundados esses conhecimentos e mais perfeitos os
meios tecnológicos que permitem visualizar essa vida. É incompreensível que, face a estes
progressos, ainda haja quem afirme que o embrião e o feto são simples aglomerados de células
ou parte do corpo da mulher, como se não conhecêssemos mais do que se conhecia nos tempos
da antiga Roma (quando o feto era considerado “parte das vísceras da mulher”) ou da antiga
Grécia (quando se pensava que só com o nascimento se saberia se o nascituro era humano ou
monstro). Onde está a “modernidade”? Conhecemos hoje muito mais do que se conhecia nessa
época, mas também mais do que se conhecia há vinte ou trinta anos. È por isso que se discute
hoje no Reino Unido a redução dos prazos dentro dos quais é lícito o aborto (Avvenire,
1/7/2005). Se já há vinte ou trinta anos os dados científicos permitiam claramente afirmar que
a vida humana existe desde a concepção, de então para cá cada vez mais esses dados reforçam
tal conclusão.
Há vinte ou trinta anos não se conheciam, como se conhecem hoje, os graves danos que o
aborto provoca na saúde psíquica da mulher. Vem sendo estudado o síndroma pós-aborto como
uma patologia que se caracteriza por depressão, angústia, sentimentos de culpa, insónias,
pesadelos, incapacidade para manifestar afecto, dificuldades no relacionamento com crianças,
auto-lesionismo, disfunções sexuais e até intenções suicidas (podem ver-se, sobre estas
questões, os testemunhos recolhidos em Mulher... Porque Choras?; Paulus Editora, Apelação,
2001, e Sara Martín García e Associación de Víctimas de Aborto, Yo Aborté, Voz de Papel ,
Madrid, 2005). Por isso, têm surgido várias organizações de apoio à mulher como vítima do
aborto (ver www.vozvictimas.org, www.rachelvineyard.org e www.silentnomoreawareness.org).
Temos que aprender com esta experiência ao fazer o balanço das consequências da liberalização
do aborto nestes últimos vinte ou trinta anos.
Quando o aborto foi liberalizado na generalidade dos países europeus, os partidários dessa
liberalização afirmavam que o aborto seria uma prática cada vez mais rara à medida que se
difundisse mais o planeamento familiar. Isso não se verificou. A percentagem de abortos legais
em relação aos nascimentos atinge 34,8% na Suécia, 26,5% no Reino Unido, 22,6% na França,
26,8% na Dinamarca e 26,6% em Itália (Famiglia Cristiana, nº 28/2002, pg. 21). No Reino
Unido, desde a legalização do aborto, o seu número triplicou (Avvenire, 1/7/2005). Em Espanha
(onde, apesar de vigorar uma lei restritiva como a que vigora entre nós, o aborto está
liberalizado na prática), o crescimento do número de abortos foi de 75,3% entre 1993 e 2003 e
de 48,2% entre 1998 e 2003 (ver o relatório do Instituto de Política Familiar em www.ipfe.org).
Apesar da difusão do planeamento familiar, o número de abortos mantém-se elevado. Um
estudo do Institut National d’ Études Démographiques (ver Population et Société, nº 407) revela
que, em França, o número de gravidezes imprevistas desceu de 46% em 1975 (ano da
legalização do aborto) para 23% em 2004, mas o número de abortos em caso de gravidez
imprevista subiu no mesmo período de 41% para 60%, donde se pode concluir que o recurso
mais frequente ao aborto em caso de falhas dos métodos de planeamento familiar compensa a
diminuição do número de gravidezes indesejadas decorrente da difusão do planeamento familiar
e que, portanto, a legalização do aborto impede até que essa difusão contribua para a
diminuição da sua prática. Também não podemos ignorar, hoje, este dado.
Os partidários da ilegalização do aborto demonstram fanatismo e intolerância quando
associam os seus adversários à morte de inocentes, ou equiparam o aborto ao homicídio
ou ao genocídio nazi. Ofendem as mulheres grávidas que praticam abortos e os
partidários da legalização do aborto tratando-os como assassinos.
Importa distinguir o erro e a pessoa que erra. Há que condenar firmemente o erro, sem deixar
de ser compreensivo e tolerante para com a pessoa que erra.
No plano do juízo objectivo sobre o aborto não podemos deixar de associar este à morte da
mais inocente e indefesa das criaturas. Porque é disso que efectivamente se trata: da morte da
mais inocente e indefesa das criaturas. É precisamente por isto que empenhamos os nossos
esforços e energias no combate ao aborto em várias frentes. A difusão gigantesca à escala
mundial do aborto, e o facto de este se praticar com a cobertura e cooperação activa do Estado,
também permite comparar este flagelo a outros atentados graves aos direitos humanos.
Quando se fazem estas afirmações (e não seríamos honestos e transparentes se não as
fizéssemos), importa ter o cuidado de distinguir o erro e a pessoa que erra. Não podemos
atribuir às pessoas que praticam abortos (muitas vezes sem a consciência clara da gravidade do
26
que fazem, desorientadas pela confusão de ideias a que hoje assistimos), ou aos partidários da
sua legalização, a malícia de um homicida ou de um nazi. Isto deve ficar sempre claro.
Também neste âmbito, onde se jogam questões cruciais e decisivas, onde se joga a vida e a
morte, não podemos deixar de partir do pressuposto da boa fé dos nossos adversários. Vale
aqui a advertência evangélica: «Não julgueis para não serdes julgados» (Mt, 7, 1-5). E só um
debate sereno pode contribuir para iluminar as consciências.
27
A Vida Humana em Questão
Por Henrique Vilaça Ramos, Professor Catedrático da Faculdade de Medicina da Universidade de
Coimbra
Publicado na Revista ESTUDOS NS 6 (Junho de 2006).
«Um país que aceita o aborto não está a ensinar os seus
cidadãos a amar, mas a usar a violência para obterem o que
querem. É por isso que o maior destruidor do amor e da paz é o
aborto»
Madre Teresa de Calcutá
A vida, valor fundamental da pessoa humana e fonte de todos os outros valores do homem,
está de novo em questão na sociedade portuguesa. O problema recorrente do aborto, a
perspectiva que a comunicação social e outros agentes vão abrindo para a prática legal da
eutanásia, a procriação medicamente assistida, a clonagem e outros temas com profundas
implicações éticas e sociais aí estão para demonstrar a acuidade do tema. Como denunciou o
Papa João Paulo Magno, está em desenvolvimento avançado uma cultura de morte que permeia
toda a sociedade, contaminando mesmo aqueles que, pela sua informação superior, inclusive na
área da saúde, deveriam ser os primeiros a defender a vida [1].
Face à gravidade do que está em questão, não serão excessivas todas as reflexões, explicações
e comentários que se puderem produzir em defesa daquele valor fundamental. Esta é a
justificação do presente texto que não tem a pretensão de produzir pensamento original, mas
deseja tão só situar e sublinhar alguns aspectos que, numa procura de orientações, não podem
ser olvidados. Abordarei, assim, algumas das múltiplas perspectivas envolvidas na análise dos
problemas ligados à vida humana. Dada a polémica em curso sobre o aborto, não se estranhará
que estas reflexões estejam marcadas, sobretudo, por este ângulo do problema da defesa da
vida.
1 – A VIDA HUMANA
A defesa da vida humana, qualquer que seja a sua qualidade, é a defesa do homem e da
civilização. É por isso que diversos diplomas afirmam o seu valor de forma bem expressiva. Cito
alguns:
Na Declaração Universal dos Direitos do Homem pode ler-se:
Art. 3º - Todo o indivíduo tem direito à vida (…)
Na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia diz-se:
Art. 1º - A dignidade humana é inviolável. Ela deve ser respeitada e protegida.
Art. 2º - 1. Todos têm direito à vida.
Na Constituição da República Portuguesa afirma-se:
Art.º 24º – 1. A vida humana é inviolável
Com efeito, a vida humana é o “bem fundamental e condição de todos os outros” [2]. A vida
humana realiza-se e frui-se de forma multímoda de indivíduo para indivíduo, numa história
pessoal única e irrepetível. Na verdade, “a vida concreta realiza-se diversamente, na linha da
normalidade e da deficiência, de eficácia e improdutividade, consumista e produtora, capaz de
questionar sobre o sentido da vida, de ser egoísta ou aberta à fraternidade complementar” [3].
Mas qualquer que seja a forma como se realiza no homem, ela é inviolável. O reconhecimento
da sua inviolabilidade “constitui a fronteira que uma sociedade pluralista não pode ultrapassar
sem destruir as raízes culturais que deram origem a essa sociedade” e “é a ideia chave da
história política e legal da liberdade nos tempos modernos” [4]. De facto, a história mostra que,
onde a vida humana não é considerada o bem fundamental, a organização social torna-se
opressiva do homem sob diversas formas, nomeadamente quando o Estado assume cariz
totalitário.
28
2 – A DIGNIDADE DA VIDA HUMANA
O respeito pela vida humana anda associado ao valor que atribuímos à dignidade dessa mesma
vida, como aliás se verifica na nossa lei fundamental que a erige em fundamento da própria
comunidade:
Art.º 1º – Portugal é uma República soberana, baseada na dignidade da pessoa
humana (…)
Porém, “dignidade” é um vocábulo usado e abusado, especialmente quando se refere à vida
humana. Convém, por isso, situar bem o que se entende quando se fala de dignidade humana,
como valor. A reflexão sobre a dignidade da vida humana lato sensu envolve as áreas da
psicologia, da filosofia e da teologia e repercute-se em muitos outros campos, desde a biologia
ao direito.
Podem assinalar-se no pensamento filosófico concepções várias sobre a dignidade da pessoa
humana, de que foram paradigmas Kant, Pico della Mirandola e S. Tomás de Aquino, este último
afirmando a origem e a grandeza dessa dignidade no facto de o homem ter sido criado à
imagem e semelhança do próprio Deus. Embora partindo de perspectivas diferentes, todos três
coincidem na relação entre a dignidade humana e a liberdade [5]. “Relacionar a dignidade
humana com a liberdade equivale a pô-la na dependência da posse, por parte de cada homem,
de uma alma espiritual e imortal, dotada de entendimento e vontade” [6].
Na perspectiva de Habermas, deve-se distinguir dignidade humana, que considera no âmbito
das relações entre os indivíduos enquanto detentores de direitos e deveres, e dignidade da vida
humana que “remonta a estágios pré-pessoais, em que os indivíduos estão ainda em formação,
e a condições em que a vida se esvaiu” [7]. Para quem aceite tal dualidade, o presente texto
interessa-se sobretudo pelo que ele chama dignidade da vida humana.
A dignidade humana decorre, em grande parte, daquilo que separa o homem dos restantes
seres vivos, sobretudo na sua capacidade de abstracção e de auto-conhecimento, de
consciência de si, de que a cultura é uma das suas manifestações privilegiadas. É, pois, no
campo cognitivo que melhor se afirma a diferença de ser humano. Pode-se, então, negar a
dignidade da pessoa, se tais capacidades de abstracção e de consciência não se verificarem?
Ora, tais capacidades surgem progressivamente no ser humano, sem hiatos, num processo que
se continua muito para além do nascimento, o que torna artificioso, para não dizer inadmissível,
estabelecer nessa base um critério capaz de reconhecer ou recusar a dignidade ao ser humano.
Por outro lado, não é impossível no adulto em coma e, portanto, sem dispor daquelas
capacidades, que as mesmas venham a ser recuperadas, por vezes após muitos anos de
inconsciência. Estes dados biológicos tornam assim aparente que a dignidade que atribuímos à
pessoa não decorre exclusivamente da sua função cerebral, antes radica nela
independentemente da situação em que se encontra. Afinal, para usar uma fórmula feliz contida
num documento de trabalho do Conselho Nacional de Ética para as Ciências da Vida [8], a
dignidade do ser humano “não se baseia em nada mais que não seja no ser-se humano”. Por
isso, a pessoa humana, que “tem início no seio materno e permanece pessoa humana até ao
seu último suspiro” deve “ser sempre respeitada como pessoa humana” [9]. Ou, numa
perspectiva bem mais profunda, repetir com Cardona que o homem, enquanto pessoa, é
“alguém diante de Deus e para sempre” [10].
A dignidade humana tem uma dimensão ética individual e também uma dimensão ética social
que pedem harmonização entre si. No mesmo documento do CNECV, cita-se o seguinte passo
de John Stuart Mill: “Não é procurando reduzir à uniformidade o que é individualidade, mas
cultivando esta, dentro dos limites impostos pelos direitos e interesses de terceiros, que os
seres humanos de tornam dignos da sua condição”. Na verdade, importa que nunca a
harmonização das duas dimensões éticas da dignidade humana possa violar o valor da pessoa
considerada individualmente, ainda que na simples perspectiva kantiana de que o ser humano é
“um fim em si mesmo” [11] e que merece, por isso, todo o respeito. Esta ideia do respeito pela
pessoa e, afinal, pela sua dignidade, articula-se com a afirmação de Schockenhoff de que “a
dignidade da vida humana não é um objectivo, não pode ser ‘realizada’ ou ‘encorajada’, mas
somente respeitada” [12]. Na mesma linha, a Conferência Episcopal Portuguesa afirma, em
nota recentíssima [13], que “a vida humana é um valor absoluto”, pelo que “não é
referendável”.
29
Por fim, importa salientar que a dignidade da vida humana não reside no seu substrato
biológico, antes é “a dignidade do homem e a unidade da família humana” [14] que conferem
àquele substrato o seu valor.
Mas mais do que as frias considerações que a racionalidade nos permite elaborar, são sobretudo
os poetas que captam profundamente todo o sentido das coisas grandes. Muito recentemente,
tive ocasião de ouvir uma excelente intervenção de Prof. Pinto Machado [15] que, a terminar,
recitou um célebre poema-exortação de Madre Teresa de Calcutá. Como não posso encontrar
melhor explanação da dignidade da vida humana, aqui a deixo entregue nas mãos santas de
Madre Teresa.
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vida
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VIVA A VIDA
uma oportunidade, aproveite-a...
beleza, admire-a...
felicidade, deguste-a...
um sonho, torne-o realidade...
um desafio, enfrente-o...
um dever, cumpra-o...
um jogo, jogue-o...
preciosa, cuide dela...
uma riqueza, conserve-a...
amor, goze-o...
um mistério, descubra-o...
promessa, cumpra-a...
tristeza, supere-a...
um hino, cante-o...
uma luta, aceite-a...
aventura, arrisque-a...
alegria, mereça-a...
vida, defenda-a...
3 – A QUALIDADE DE VIDA
Actualmente, uma noção que tem vindo progressivamente a ser equacionada, quando de
discute a problemática da dignidade da vida humana, é a qualidade de vida.
É claro que uma boa qualidade de vida é um objectivo desejável no plano ético e bioético [16].
Mas até que ponto se compagina a defesa da vida humana com a promoção da qualidade de
vida? Parece óbvio que, devendo respeitar-se a vida humana – reconhecendo que a vida é o
bem fundamental e o primeiro direito da pessoa – a promoção da qualidade de vida não pode
pôr em causa estes valores. Infelizmente, porém, vem-se assistindo a uma deriva ética que
pretende erigir a qualidade de vida como aferidora do valor da própria vida ou, dizendo de outro
modo, que só vale a vida se tiver qualidade. Que qualidade?
Muitos pretendem que a qualidade de vida pode ser aferida externamente ao sujeito, através de
indicadores de vária índole. Sirva de exemplo a avaliação da capacidade da pessoa para cuidar
de si mesma (designadas ADL, da expressão activities of daily living) – lavar-se, vestir-se,
alimentar-se, usar a sanita, sentar-se, levantar-se, deitar-se e andar – ou actividades mais
elaboradas designadas IADL (instrumental activities of daily living), relativas à capacidade de
vida independente – cozinhar e fazer outras tarefas domésticas, usar o telefone, passear na rua,
gerir o dinheiro e fazer compras. Neste contexto emergiu, no âmbito das ciências da saúde, o
conceito QALY (acrónimo de quality adjusted lyfe year) para medir o valor das intervenções
terapêuticas em função do número de anos acrescentados (ou retirados) à pessoa e em função
da qualidade de vida proporcionada nesses anos, cotejada por um coeficiente que varia entre 1
(estado de saúde perfeito) e 0 (morte). Outros ponderam, e bem, que a qualidade de vida só
pode ser aferida pelo próprio, mesmo considerando que a subjectividade da pessoa pode
condicionar erro de avaliação, por exemplo, julgando a saúde pior do que ela efectivamente é
ou vice-versa. Esta avaliação subjectiva corresponde, pois, à apreciação positiva ou negativa
que a pessoa faz dos aspectos físicos, psicológicos, sociais e espirituais da sua vida.
Mas qualquer que seja a conclusão retirada da avaliação que cada um faz da qualidade da sua
vida, dela não podem ser extraídas consequências para a valorização da vida que o habita. Essa
é uma utilização abusiva do conceito qualidade de vida decorrente de uma leitura utilitarista,
que considera o valor da vida em função da produtividade e da eficiência do indivíduo, e de uma
30
perspectiva hedonista que leva a olha-la como simples meio para usufruir qualidades ou exercer
actividades que são gratificantes para a pessoa. A vida humana deixa então de ser um valor em
si e passa a ser um valor para alguma coisa[17]. É claro que a vida é um valor para o exercício
de todas as actividades humanas, maxime para a interacção moral, como quer Engelhardt, mas
a sua valia não se resume nisso, nem sobretudo isso. É esta a grande deriva ética: a de que há
vida com valor e vida sem valor. Trata-se, afinal, dum dualismo antropológico que estabelece
diferença entre ser pessoal (agente racional) e ser humano (o indivíduo biológico), não
reconhecendo a este a dignidade geralmente atribuída ao Homem. Ora, o respeito pela
“dignidade do homem comporta salvaguardar a identidade do homem corpore et anima unus,
como afirmava o Concílio Vaticano II” [18] Aceite a tese contrária, ela levaria a pôr em causa a
vida dos doentes terminais, dos doentes em coma, dos doentes mentais profundos e conduziria,
mesmo, às práticas eugénicas no âmbito da reprodução humana. Infelizmente, esse é um
caminho que a humanidade já tem percorrido com consequências terríveis e que assume cada
vez maior acuidade no mundo ocidental.
É com efeito contraditório que sejam as sociedades ocidentais, que se orgulham da defesa das
liberdades e dos direitos do Homem, aquelas onde hoje o valor da vida humana se encontra
mais ameaçado. A prática da eutanásia, a hecatombe do aborto e a desvalorização do idoso e
do deficiente são alguns exemplos do paradoxo em que o mundo ocidental está a cair.
Além das razões que obrigam a respeitar a vida humana, atenta a dignidade de todo o ser
humano, independentemente da qualidade da sua vida, há também uma razão operativa:
quando se procura definir as situações em que tal dignidade deve ser reconhecida daquelas em
que poderia ser-lhe negada, não se encontra possibilidade de consenso quanto às
características que permitiriam essa definição, pelo que são muito variadas e díspares as
propostas feitas neste campo, Esta falta de concordância é, como já o dissemos atrás, uma
prova adicional da falta de fundamentação para retirar valor à dignidade dos seres humanos em
situação deficiente.
4 – O INÍCIO DA VIDA HUMANA
Começo por um esclarecimento. Quando falamos de vida humana, o que significamos em
termos biológicos? Numa célula retirada da pele ou num espermatozóide recolhido do esperma
há vida e, nessa perspectiva, pode dizer-se até que há vida humana. Mas o que geralmente se
entende – e entende-se concretamente nas linhas que se seguem – por vida humana é a vida
de um organismo humano tomado no seu todo.
Entre os defensores do aborto encontram-se posições muito variadas, desde as mais
conservadoras, que só o admitem em fases muito precoces da gravidez, até às mais radicais
que o aceitam durante toda a gravidez e, mesmo, até durante o parto ou logo a seguir a ele (o
que nem sequer poderá ser rotulado de aborto!). Entre nós, as perspectivas radicais não
encontram eco significativo e o problema põe-se sobretudo em saber quando começa a vida e
em especial a vida humana, como limite que não deve ser ultrapassado quando se suprime a
gravidez [19]. Esta é, antes de tudo, uma questão científica, da área da biologia, e deve ser
encarada com espírito científico, isento de qualquer preconceito filosófico ou religioso.
É sabido que o zigoto (ou ovo) – célula original do novo ser – resulta da união do ovócito,
detentor da informação genética proveniente da mãe, armazenada nos seus 23 cromossomas, e
do espermatozóide, com os 23 cromossomas de origem paterna [20]. Esta célula é um
organismo vivo, contém os 46 cromossomas próprios da espécie humana e possui no seu ADN
toda a informação que a levará, em sucessivas multiplicações e diferenciações [21], à criança,
ao adolescente, ao adulto e finalmente ao velho. Não há, para o biólogo sério, qualquer dúvida
de que se está perante um ser vivo e de que esse ser pertence à espécie humana. Este
reconhecimento científico leva a concluir que “o projecto da pessoa diferente traça-se
quimicamente pelo ADN, instaurado desde o primeiro momento do indivíduo, qualquer que
venha a ser a sua história” [22]. Não existe, pois, fundamento científico para se falar de “ser
humano possível” ou “potencial”: é um ser humano, sem mais adjectivos. “Aceitar, portanto,
que depois da fecundação existe um novo ser humano, independente, não é uma hipótese
metafísica, mas uma evidência experimental” [23].
Há, contudo, quem, a propósito desta célula primordial, faça uma distinção. Quando o
espermatozóide penetra no ovócito, a união do material genético de um e outro, designada
singamia, não ocorre instantaneamente, mas ao fim de um período curto, de algumas horas
[24]. Alguns pretendem ver neste pequeno hiato temporal a possibilidade de realizar
31
manipulações da célula, com o argumento de que ainda não se está perante o verdadeiro
zigoto. Ora, a situação é completamente diversa da que se refere a um óvulo ou a um
espermatozóide antes da fertilização. Então são células independentes, sem que nenhum
mecanismo inexorável de formação humana tenha sido já desencadeado; depois, é uma
realidade celular totalmente distinta. É uma célula viva e indiscutivelmente da espécie humana,
dentro da qual está já em curso uma existência nova, um processo de formação progressiva do
ser humano até à fase adulta, sem qualquer interrupção.
Mas a questão de conhecer quando começa a vida humana não se debruça habitualmente sobre
esta célula fertilizada e ainda sem singamia, antes pretende saber se a vida humana já está
presente a partir da célula primordial ou se apenas surge num qualquer momento posterior.
Contudo, o peso dos dados científicos torna falaz a argumentação a favor de um início mais
tardio da vida humana. Outros, porém, insistem na autonomia como critério determinante. Para
estes, “embora aceitando os inegáveis dados da biologia e da genética, a autonomia pessoal só
posteriormente seria verdadeira” [25]. Uns e outros assumem posições muito variadas quanto
ao momento em que se deve reconhecer que há finalmente vida humana ou vida humana
autónoma, Vejamos as principais propostas destas teses.
Uns defendem que a vida humana só existe a partir do 4º ou 5º dia, quando as células
embrionárias perdem a totipotência, isto é, a capacidade de dar origem a outros embriões,
como sucede na geminação [26]. Tal concepção levou a falar-se de pré-embrião para
caracterizar esta primeira fase do desenvolvimento embrionário que só termina na formação do
blastocisto [27] e que coincide grosso modo com o período até à nidação (o processo que leva o
embrião a fixar-se na parede do útero materno). O facto de muitos óvulos fertilizados serem
eliminados espontaneamente é utilizado também como motivo para não usar o termo embrião,
pois este só o seria quando implantado no útero. A este propósito, a Academia Pontifícia para a
Vida acentuou que “do ponto de vista biológico a formação e o desenvolvimento humano
aparece como um processo contínuo, coordenado e progressivo desde o momento da
fertilização, formação com a qual se constitui um novo organismo humano, dotado da
capacidade intrínseca de se desenvolver com autonomia num individuo adulto” acrescentando
que “as mais recentes contribuições das ciências biomédicas trouxeram novas e preciosas
provas para suporte da tese da individualidade e continuidade do desenvolvimento do embrião.
Resulta, assim, incorrecta a interpretação dos dados biológicos quando se fala de ‘pré-embrião’
"[28]. Mas este termo não é inocente. Trata-se de outro desvio semântico que favorece a ideia
de que se pode manipular ou mesmo suprimir esta realidade biológica sem preocupações éticas,
porque ainda não seria um embrião. Porém, tal designação carece de fundamento científico e
retira ao embrião o estatuto que, desde sempre, a ciência embriológica lhe reconheceu.
Outra posição é a de que só há vida humana quando surge a chamada placa neural, que dá
origem ao sistema nervoso, facto que ocorre cerca do 14º dia. Como salientou o Conselho
Nacional de Ética para as Ciências da Vida [29], esta concepção permitiria manipular livremente
os embriões em cultura, uma vez que a capacidade do embrião para continuar a dividir-se in
vitro não costuma ultrapassar aquela data. Aliás, há quem utilize aqui o conceito de préembrião alargando, como mencionámos atrás, a sua margem temporal dos 5 dias para os 14
dias necessários para o aparecimento da placa neural, juntando assim a desvalorização
conseguida por aquele artifício semântico ao argumento igualmente menosprezador de que só
há vida humana a partir dos 14 dias quando surge o esboço de sistema nervoso.
Outras teses repousam na ideia de que é preciso haver formação de órgãos, como o cérebro ou
o coração, para que se possa falar de verdadeira vida humana e, em especial, de vida humana
autónoma. A ideia de que é o cérebro que constitui a marca humana do Homem, pois é ele que
permite a vida de relação que o caracteriza, não toma em consideração as múltiplas situações
clínicas em que tal vida de relação está suspensa ou suprimida de forma definitiva. O indivíduo
em coma irreversível, reduzido a uma vida vegetativa, ou aqueloutro sob o efeito de uma
anestesia, não deixam de ter vida humana, nem perdem a sua condição de seres humanos ou a
dignidade que lhe corresponde. Acresce que o cérebro ao nascer, apesar de já ter todo o capital
de células nervosas, não está ainda completamente formado, o que em boa lógica obrigaria os
que exigem um cérebro capaz de assegurar as funções de relação próprias do homem a ter de
considerar que só há pessoa humana muito tarde na vida extra-uterina, cerca dos 6 -7 anos.
Em defesa da concepção de que não há vida humana sem sistema nervoso funcionante,
adianta-se também o raciocínio de que se é legítimo suspender os meios de suporte da vida no
doente com paragem da actividade cerebral, também é licito terminar a gravidez se não há
actividade do sistema nervoso. A fragilidade deste juízo é notória. De facto, as duas situações
não se podem identificar. No primeiro caso, a actividade cerebral não pode ser recuperada, a
32
vida é mantida de forma artificial e a suspensão dos meios de suporte não pretende o efeito
directo de matar o doente, pelo que a morte surge naturalmente; no segundo, a actividade
cerebral irá surgir, a vida sustenta-se num processo natural – a gravidez – e a morte é
provocada por efeito directo e procurado do abortamento.
Outra orientação, como dissemos, decorre da ideia de que o coração é o órgão motor da vida do
ser humano e que, portanto, a verdadeira vida humana só começaria com os primeiros
batimentos cardíacos, o que ocorre ao fim de 3 semanas de gestação. Esta é uma perspectiva
que não atenta ao facto de poder suspender-se a actividade cardíaca, nomeadamente na esfera
cirúrgica, sem que isso signifique que deixou então de haver vida humana. O certo é que o
Homem não se resume a qualquer órgão, nem sequer ao conjunto dos seus órgãos, pois é
muito mais que a sua mera realidade biológica.
Há quem defenda uma tese que não se atém ao problema do desenvolvimento maior ou menor
do embrião, mas ao conceito de gravidez e considera que esta só se inicia quando se dá a
nidação, com o argumento de que até aí o embrião não tem qualquer ligação com o organismo
da mãe. Nesta óptica, o embrião é visto quase como um parasita, de que a mãe poderia
descartar-se antes que fosse parasitada. Naturalmente, tal perspectiva facilita a defesa da
supressão da gravidez antes da nidação, invocando-se que ainda não há gravidez. Mais uma
vez, este posicionamento não está de acordo com a visão científica clássica, nem com as
conquistas científicas recentes. A relação do filho com a mãe inicia-se desde logo, ainda na fase
de zigoto, portanto muito antes da nidação. Com efeito, o novo ser é um organismo que, pela
sua estrutura biológica diferente do da mãe, deveria suscitar da parte desta o mecanismo de
rejeição. Sabemos hoje que isto não sucede porque, desde que foi criado, o embrião emite
informações [30] que levam o sistema imunitário da mãe a não reagir à sua presença como
organismo estranho. Espera-se mesmo que “dentro de muito pouco tempo, dado o facto de o
embrião comunicar quimicamente com a mãe antes da nidação, vai ser possível fazer testes de
gravidez antes da implantação ocorrer” [31]. A ideia de que a gravidez tem início só com a
nidação não tem, pois, suporte científico. Bem pelo contrário, estes avanços científicos dizemnos que, se há um ser biologicamente distinto da sua mãe desde o seu início, ser que é
obviamente humano, a relação entre um e outro é estreita e precoce, praticamente desde a
fecundação. Na verdade, antes da nidação, “este novo ser humano já tinha uma identidade
genética própria, uma autonomia biológica, uma capacidade de diferenciação e uma capacidade
de diálogo com o organismo materno” [32]. A ciência, a filosofia e a teologia afirmam a
natureza do homem como ser de relação. Já alguém sublinhou que o primeiro mal, anterior ao
próprio pecado, é a solidão. Não é bom que o homem esteja só, decidiu Deus e deu-lhe uma
companheira. E assim Deus criou o homem para a relação. Relação com outros seres humanos
e relação com Ele. O facto de a ciência moderna nos mostrar que a vida de relação se inicia já
no zigoto diz muito acerca da existência do ser humano desde a fecundação. Quão perto a
ciência nos está trazendo para a realidade expressa por Jeremias (1,5): “antes de seres
formado no ventre de tua mãe, eu te conheci” !
Outra perspectiva é a dos que alegam não ter o embrião vida autónoma, pelo que só após o
nascimento se poderia considerar uma vida humana a defender. Ora, a autonomia biológica não
pode ser critério para afirmar que se está perante um ser humano, pois, a somar às outras
razões já anteriormente aduzidas, há que reconhecer que a dependência biológica do ser
humano se prolonga muito além do nascimento.
Pode-se, do ponto de vista biológico, distinguir vida humana de ser humano. Quando falamos
do zigoto, estamos a falar de vida humana, o que quase sempre coincide com um ser humano.
Mas um zigoto pode dar origem espontânea a um par de gémeos e temos então que aquela vida
humana inicial deu lugar a dois seres humanos. Esta possibilidade biológica não pode ser usada
para retirar ao zigoto a dignidade que concedemos ao ser humano. A capacidade de nascerem
dois seres humanos de um só zigoto poderia, pelo contrário, acrescentar motivo de respeito
pelo zigoto, se a dignidade humana pudesse ser vista, por absurdo, sob a óptica quantitativa.
Inversamente, dois embriões podem, numa fase muito precoce do seu desenvolvimento, gerar
por fusão um único ser humano. Mutatis mutandis, essa possibilidade também não retira a
dignidade que merecem aqueles embriões.
Como vemos, desde a sua fase mais inicial estamos perante um ser da espécie humana.
O seu desenvolvimento é um contínuo, pois não há fronteiras perfeitamente marcadas que
distingam as sucessivas fases da sua evolução. Se existisse um tal momento biologicamente
bem definido, que assinalasse a separação entre uma fase em que o embrião ainda não é um
ser humano e outra em que passasse a sê-lo, não haveria diversas teses a fixar em diferentes
33
momentos essa pretensa viragem, o que bem atesta o artificialismo que lhes subjaz. É que,
como diz Lejeune [33], “se um óvulo fecundado não é por si só um ser humano, ele não poderia
tornar-se num, pois nada lhe é acrescentado” ou, numa sua fórmula porventura mais
expressiva, “logo que é concebido, um homem é um homem”.
Gostaria de encerrar esta incursão na biologia do ser humano nascente referindo um tema de
índole mais médica. Face à existência de uma gravidez indesejada, o aborto é clinicamente uma
solução mais adequada que o parto a termo?
Infelizmente, são escassos os estudos comparativos sérios sobre tema tão importante. A
literatura médica está repleta de estudos contrastantes nesta matéria. Na sua maioria, tais
estudos apresentam erros metodológicos de vários tipos que desqualificam as suas conclusões
e, não raramente, parecem ser conduzidos mais por motivações ideológicas – tanto a favor,
como contra a benignidade do aborto provocado – do que pela preocupação científica de
encontrar a verdade, de que é exemplo a polémica sobre a relação entre aborto provocado e
cancro da mama [34]. As paixões nesta matéria têm dado azo a episódios bem pouco
dignificantes, como sucedeu com o Royal College of Obstetricians and Gynecologists [35]
quando, baseado em dados científicos que considerou correctos, alertou os médicos e as
pacientes para a relação entre o aborto provocado e o cancro, e depois deu o dito por não dito
face à campanha de protestos da BBC e do jornal Guardian.
Não obstante, começam a acumular-se provas de que o aborto pode ser mais traumatizante que
o prosseguimento da gravidez até ao parto a termo. Designadamente, há indícios sérios de que
o aborto provocado acarreta um maior risco de depressão, de toxicodependência, de doença
mental e de suicídio [36],[37], e também de incidência ulterior de partos prematuros (tanto
mais quanto maior o número de abortos e quanto mais precocemente se tenha interrompido a
gravidez) [38].
5 – EMBRIÃO E DIGNIDADE HUMANA
A posição da Igreja Católica é clara e bem conhecida: “o ser humano deve ser respeitado como
pessoa, desde o primeiro instante da sua existência” [39]. O respeito pela vida humana
nascente tem raízes muito antigas. No juramento de Hipócrates, entre as suas diversas
afirmações éticas, importa sublinhar neste contexto sobretudo dois compromissos:
- Não darei a nenhuma mulher uma substância abortiva.
- Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento, nunca para
causar dano ou mal a alguém.
Por um lado, Hipócrates faz a defesa intransigente da vida humana e, em particular, da vida em
desenvolvimento no seio materno, porque lhe reconhece a dignidade de ser humano; por outro,
assevera que o médico dispõe de saber e poder para atentar contra a própria vida do seu
semelhante e afirma-se contrário ao uso abusivo desses saber e poder.
Na presente fase do conhecimento médico, o saber e o poder são incomensuravelmente maiores
que no tempo do Pai da Medicina, o que ainda mais responsabiliza os médicos. Mas a questão
do reconhecimento da dignidade do ser humano in utero não responsabiliza só os médicos,
compromete igualmente toda a sociedade. Com efeito, se estamos hoje a assistir à denegação
dos princípios éticos fundamentais da medicina, quando ela se permite a prática do aborto ou da
eutanásia, temos também que responsabilizar uma sociedade que, recusando ao embrião a
dignidade de ser humano, lhe exige tornar-se no seu braço armado. Cabe aos profissionais de
saúde exercer o seu direito de objecção de consciência e respeitar a vida indefesa do ser
humano nascente. Proceder de outro modo, alegando o “interesse da sociedade”, vazado na lei
ilegítima, é o mesmo argumento que em Nuremberga foi usado por médicos que assim
pretendiam justificar o silenciamento da sua consciência e os terríveis crimes que cometeram. O
que está hoje em jogo, e assim esteve então, é um problema de direitos fundamentais, tal
como sublinha a Conferência Episcopal Portuguesa, a que nenhuma consciência pode furtar-se.
Outra perspectiva da questão do embrião e da sua dignidade é a dos que pretendem contrapor
a vida humana do embrião à dignidade da mãe afirmando que são dois valores por vezes em
conflito. Por exemplo, K. Tagliaferro, procurador federal no Brasil, ilustra esta posição ao
entender que, na circunstância de “antecipação terapêutica em casos de anomalias congénitas
irreversíveis” se verifica uma “tensão entre dois direitos fundamentais … o direito à vida e o
direito à dignidade” e afirma: “não basta viver, é necessário viver com dignidade”. Mais do que
pela indevida alusão a uma “antecipação terapêutica” – que de terapêutica não tem nada, pois
34
se trata de retirar a vida a um ser que a tem no seio materno, além de que, se deixado nascer
normalmente, não seria provavelmente objecto de qualquer terapêutica e, portanto, esta não
seria passível de antecipação – o raciocínio peca por supor que a dignidade da mãe reside em
abortar e não, pelo contrário, em deixar a natureza seguir o seu curso natural, sem atentar
contra a vida de um ser humano indefeso. Nunca a dignidade de qualquer pessoa pode ser
afirmada produzindo a morte violenta de outro ser humano.
É esta mesma linha de uma pretensa defesa da dignidade da mulher e da sua autonomia que
subjaz ao projecto de liberalização do aborto – que é afinal o que está em causa no projecto do
referendo – alegando que a mulher tem o direito de abortar. Argumentos como “a mulher tem
direito a decidir sobre o seu corpo”, escamoteiam o ponto fulcral que é o de a decisão ser,
afinal, sobre o destino de outro ser humano. Por isso, a Conferência Episcopal Portuguesa
afirma que “o aborto não é um direito da mulher”, pois “ninguém tem o direito de decidir se um
ser humano vive ou não vive, mesmo que seja a mãe que o acolheu no seu ventre [40]”.
O drama vivido pela grande maioria das mulheres que se deparam com uma gravidez
indesejada não pode ser minimizado. Mas, como já alguém disse, o aborto é uma resposta falsa
a um problema verdadeiro. A solução é outra: proporcionar todos os apoios que as gestantes
precisam para poder levar até ao fim a sua gravidez. Pouco se tem dito (quando não se nega…)
sobre a multiplicidade de iniciativas que, desde a data do último referendo, se vêm registando
em Portugal, numa magnífica mobilização a favor das mulheres nesta situação e das crianças
que nelas habitam. Mas estas iniciativas devem-se à sociedade civil e muito pouco ao Estado
que, em vez de defender a vida, como lhe prescreve a Constituição, pretende solucionar o
problema pelo lado da violência e da facilidade. Com efeito, eliminar embriões humanos é muito
mais fácil e menos dispendioso do que proporcionar condições para que estes seres humanos
possam continuar a viver e a desenvolver-se.
6 – A CONCLUIR
É a noção do alto valor da dignidade humana que permite afirmar: “todo o ser humano, por o
ser, é o maior valor, e este sobressai quando é mais agredido, violentado, ignorado ou negado”
[41]. Dificilmente se encontra situação em que a negação e a violência possam ser mais
ofensivas do que a destruição voluntária da vida humana na sua fase mais incipiente e inerme,
a de embrião. A palavra de Cristo “tudo o que fizerdes a um dos meus irmãos mais pequeninos,
a Mim o fizestes” (Mat 25,40) adquire neste âmbito “uma ressonância nova e particular”[42].
O preceito “não faças aos outros o que não queres que te façam a ti”, mínimo ético do agir
humano, basta para impor respeito total pelo ser humano que, no seio materno, vive, cresce e
se desenvolve. O mandamento “não matarás” (Êxodo 20:13) assume ainda maior força
impositiva quando a potencial vítima não tem quaisquer meios para conhecer a violência a que
vai ser sujeito e menos ainda para se defender.
Pudesse o embrião saber o perigo mortal que sobre si impende e pudesse falar, que nos diria
ele? E, sobretudo, que diria à sua mãe? Concluo dando novamente espaço à sensibilidade
poética para, de forma mais certeira, penetrar a realidade do aborto, através de um poema que
o Monsenhor Dr. Leal Pedrosa me facultou para este fim.
MÃE, DEIXA-ME VIVER
Mãe,
Não levantes o cutelo
Para me despedaçar,
Enfrenta esse duelo
Que faz a lei matar.
Deixa meus olhos abrir
Para contemplar os céus
E te dizer, a sorrir,
Que outros não há como os teus!
Quero dormir sossegado
No berço do teu amor,
Onde vivo aconchegado
Sem sobressalto ou temor!
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Deixa minhas mãos formar,
Ó mãe do meu coração,
Para teu rosto afagar
Na dor e na solidão!
Dizem-te que não existo,
Mas sou semente a crescer,
Por isso peço e insisto
Que não me faças morrer!
Mãe,
Quero sonhar e viver,
Cantando como ninguém
A beleza do teu ser.
Obrigado, minha mãe!
(Fátima Malça)
[1] Momentos antes de escrever o que se segue, ouvia eu, numa emissora rádio de grande
difusão, um médico com responsabilidades afirmar que a morte, em consequência de um
acidente vascular cerebral, seria melhor que ficar com um membro paralisado ou com a fala
comprometida!
[2] Roque Cabral – Vida, Teol.Mor., Enc. Verbo
[3] Frei Bernardo Domingues - Quando principia e termina a vida? Associação dos Médicos
Católicos Portugueses. [online].
[4] E. Schockenhoff – Human dignity and the biological factor. In: Biological Nature and Dignity
of the Human Person. Proceedings of the 17 World Congress of Fédération Internationale
des Associations Médicales Catholiques (FIAMC).
[5] Granados TM – La dignidad de la persona in Manual de Bioética General, Polaino-Lorente A,
RIALP 1997
[6] Granados TM – ibidem
[7] Andrade Th - A crise da autocomprensão espécie humana. Ambient. soc. [online]. 2005, vol.
8, no. 1
[8] CNECV Reflexão ética sobre a dignidade humana, 1999
[9] S.S. Papa Bento XVI – Entrevista à Bayerischer Runfunk, Setº 2006. (Cit. D. Rafael L.
Cifuentes, Conferência Nacional dos Bispos do Brasil)
[10] Granados TM – ibidem
[11] Roque Cabral – A dignidade da pessoa humana, Actas do IV Seminário do CNECV, 1998.
[12] E. Schockenhoff – ibidem
[13] Conferência Episcopal Portuguesa – Nota Pastoral do Conselho Permanente sobre o
referendo ao aborto, 2006
[14] Santa Sé – Observações a respeito da declaração universal sobre o genoma humano e os
direitos do homem, 1997
[15] Pinto Machado – O fim da vida no ensino médico. Congresso dos Médicos Católicos
Portugueses, Porto, 10 e 11 de Novembro, 2006
[16] Não deixa de ser curioso verificar que Potter (V.R. Potter - Bioethics: bridge to the future,
1971), ao utilizar pela primeira vez a designação de bioética, se referia precisamente à
utilização das ciências biológicas de modo a obter a melhor qualidade de vida. Muito embora
a bioética tenha percorrido desde então muitos outros caminhos além daquele, é revelador
o facto de estes dois conceitos – bioética e qualidade de vida – terem estado no centro da
concepção fundadora de Potter.
[17] Num outro sentido, a vida pode e deve ser considerada “um bem para um Bem”, como
ensina Polaino-Lorente, um bem parcial para alcançar o Bem absoluto. (Vide Los
fundamentos de la Bioética In: Manual de Bioética General, Polaino-Lorente A, RIALP 1997)
[18] Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé – Instrução sobre o respeito à vida humana
nascente e à dignidade da procriação. Santa Sé, 1987
[19] - A perspectiva liberalizante do aborto tem sido promovida de muitos modos,
nomeadamente no campo semântico, usando uma terminologia mais suave que promove a
sua mais fácil aceitação. Com efeito, falar de interrupção voluntária da gravidez retira muita
da carga pejorativa que o vulgo associa – e bem – à palavra aborto. A manobra foi tão bem
conseguida que a designação ganhou foros de cidadania, inclusive no mundo médico, onde
é conhecida geralmente pelas respectivas iniciais: IVG.
36
[20] - Tanto no ovócito, como no espermatozóide, a informação genética que transportam já
não é uma cópia fiel da que existe no organismo de cada progenitor, mercê do mecanismo
de recombinação homóloga.
[21] - A diferenciação celular é o mecanismo com que uma célula se especializa pela aquisição
de capacidades funcionais específicas. No corpo humano há mais de duas centenas de
células diferentemente especializadas.
[22] Frei Bernardo Domingues – ibidem
[23] S.S. Papa Bento XVI – ibidem
[24] Na fertilização do ovócito pelo espermatozóide processam-se sucessivamente três fases: a
fase inicial que é a do designado embrião primordial, a fase intermédia, dita do embrião
pronuclear e, por fim, a fase da singamia ou do embrião singâmico que surge, no embrião
inseminado in vitro, cerca de 20 horas após o início da fertilização. Alguns autores só usam
a designação de zigoto para o embrião singâmico.
[25] Frei Bernardo Domingues – Ibidem
[26] Uma célula dita totipotente não revela esta totipotência quando isolada; é preciso um
grupo de 3 ou 4 células para poder originar um novo embrião.
[27] Os que assim discorrem incluem, portanto, no que chamam fase pré-embrionária: o
zigoto; a mórula, constituída por uma massa celular sólida; e o blastocisto, em que já se
formou uma cavidade no interior da massa celular.
[28] Academia Pontifícia para a Vida - Comunicado final da sessão de Fevereiro de 1997
[29] CNECV - Parecer sobre a experimentação no embrião, 1995
[30] O zigoto produz uma proteína, designada “factor precoce da gravidez”, que actua como
imunossupressor.
[31] Vítor Neto – Pílula do dia seguinte. In: Aldeia[online].
[32] Vítor Neto – ibidem
[33] O Prof. Jerôme Lejeune tornou-se conhecido no mundo científico pelas sua investigação
sobre a síndrome de Down (mongolismo) que foi o ponto de partida para a citogenética,
ciência de que foi, assim, um dos principais fundadores e à qual deu depois múltiplas
contribuições de grande relevo.
[34] Fulton EJ – Editorial: The corruption of science by ideology. Ethics and Medics, 2004, Dec.
[35] Evidence-based Guideline No. 7: The Care of Women Requesting Induced Abortion”, 2000
RCOG Press
[36] Coleman PK, Reardon DC, Rue VM, Cougle JR. – State-funded abortions vs. deliveries: A
comparison of outpatient mental health claims over five years. American Journal of
Orthopsychiatry, 2002; 72: 141.
[37] Reardon DC, Cougle JR – Depression and unintended pregnancy in the National
Longitudinal Survey of Youth: a cohort study. Brit Med Journal, 2002; 324: 151.
[38] Ancel P-Y et al. - History of induced abortion as a risk factor for preterm birth in European
countries: results of the EUROPOP survey. Human Reproduction, 2004; 19:734.
[39] Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé - ibidem
[40]Conferência Episcopal Portuguesa - ibidem
[41] CNECV – ibidem
[42] Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé - ibidem
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Excerto do discurso de Madre Teresa de Calcutá nas
Nações Unidas
“Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento”, realizada no Cairo entre 5 e 13
de Setembro de 1994.
O principal objectivo dos países ocidentais que participaram nessa conferência era o de
pressionar os países em desenvolvimento a liberalizar o aborto para combater a superpopulação.
Estou aqui hoje a falar-vos do fundo do coração – a cada uma das pessoas de todas as nações do mundo,
às pessoas que têm o poder de tomar grandes decisões bem como a todas as mães, pais e crianças das
cidades e aldeias.
Cada um de nós está aqui hoje porque fomos amados por Deus que nos criou e pelos nossos pais que nos
aceitaram e gostaram suficientemente de nós para nos darem a vida. A vida é o maior dom de Deus. É por
isso que me causa tanta mágoa ver o que está a contecer hoje em tantos lugares do mundo: a vida está a
ser deliberadamente destruída pela guerra, pela violência e pelo aborto. E nós fomos criados por Deus para
propósitos mais elevados: para amarmos e sermos amados.
[...]
Deus criou um mundo suficientemente grande para todas as vidas que ele deseja que nasçam. Só os nossos
corações é que não são suficientemente grandes para as desejar e aceitar. Como seria bonito se todo o
dinheiro utilizado para encontrar formas de matar pessoas fosse utilizado, em vez disso, para as alimentar,
acolher e educar. Temos demasiadas vezes receio dos sacrifícios que devemos fazer. Mas onde há amor, há
sempre sacrifício e quando amamos até nos fazer doer, há sempre alegria e paz.
[...]
Eu sinto que o maior destruidor da paz, nos dias de hoje, é o aborto, porque se trata de uma guerra contra
a criança, a morte imediata de uma criança inocente, o assassínio pela mão da própria mãe. Se admitirmos
que uma mãe possa até matar o seu próprio filho, como é que nós temos autoridade para dizer aos outros
que não se matem mutuamente?
Como é que convencemos uma mulher a não abortar? Como sempre, devemos convencê-la com amor e
convém lembrarmo-nos de que o amor significa estar disposto a dar até doer. Jesus deu a sua própria vida
por nos amar. Assim, a mãe que pensar em abortar deve ser ajudada a amar, isto é, a dar até que afecte os
seus planos ou o seu tempo livre, e a respeitar a vida do seu filho. O pai dessa criança, quem quer que ele
seja, também deve dar até doer.
Com o aborto, a mãe não aprende a amar, mas mata até o seu próprio filho para resolver os seus
problemas. Com o aborto, está-se a dizer ao pai que ele não precisa de assumir qualquer responsabilidade
pelo filho que trouxe ao mundo. E é muito provável que esse mesmo pai possa colocar outras mulheres
perante a mesma situação difícil. Assim, o aborto conduz a mais abortos. Qualquer país que aceite o aborto
não está a ensinar o seu povo a amar, mas ensina-o sim a recorrer a qualquer tipo de violência para
alcançar o que pretende. É por isto que o maior destruidor do amor e da paz é o aborto.
Vou-lhes dizer uma coisa bela. Estamos a combater o aborto pela adopção – cuidando da mãe e adoptando
a criança. Salvámos milhares de vidas.
[...]
Por favor, não matem o bebé. Eu quero esse bebé. Por favor, dêem-me esse bebé. Estou disposta a receber
qualquer bebé que pretendam fazer abortar e a entregá-lo a um casal que o amará e será amado por ele.
Só na nossa casa de Calcutá salvámos mais de 3000 crianças de abortos. Estas crianças trouxeram tal amor
e alegria aos seus pais adoptivos e, por sua vez, cresceram no meio de tanto amor e alegria.
Outras citações de Madre Teresa:
É uma pobreza decidir que uma criança deva morrer para que os seus pais possam viver segundo os seus
caprichos.
Para mim, as nações que legalizaram o aborto são as nações mais pobres.
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