O PAPEL DOS RITUAIS MILITARES NA FORMAÇÃO DO ESPÍRITO DE CORPO
E COLETIVIDADE NOS ALUNOS DA ESCOLA DE ADMINISTRAÇÃO DO
EXÉRCITO
Adélia Carolina Alves de Lima1
Resumo: O presente trabalho tem por finalidade estabelecer uma relação entre as instruções
ministradas aos alunos do Curso de Formação de Oficias (CFO) do Quadro Complementar (QCO) da
Escola de Administração do Exército (EsAEx) – em especial as de Ordem Unida e de Treinamento
Físico Militar (TFM) – e o conceito de rituais, com base no pensamento antropológico. Rituais são
elementos presentes no dia-a-dia e que, seguindo certo ritmo e seqüência, produzem sentido e
função determinados. A partir desse raciocínio, o objetivo é mostrar de que forma a prática dos rituais
militares contribui para a formação do Espírito de Corpo dentre os alunos da EsAEx. O Espírito de
Corpo dá ao grupo o sentimento de unidade para que todos os membros, juntos, possam realizar
qualquer missão e suportar as maiores dificuldades. A pesquisa foi desenvolvida com base na
observação e participação nas instruções militares do curso durante o ano de 2007, além de revisão
bibliográfica acerca dos assuntos abordados.
Palavras-chave: Rituais, Espírito de Corpo, Coletividade.
Abstract: The current paper aims to establish a relationship between the instructions given to the
students of the “Curso de Formação de Oficiais (CFO) do Quadro Complementar (QCO) da Escola de
Administração do Exército (EsAEx)” – mainly the ones called “Ordem Unida” and “Treinamento Físico
Militar (TFM)” – and the concept of rituals, based on the anthropological thought. Rituals are
elements that are present in the daily routine and, following a certain rhythm and sequence, produce
determined meaning and function. For this reason, the objective is showing how the practice of military
rituals contributes to the formation of the “Team Spirit”, amongst the students of EsAEx. The “Team
Spirit” provides the group with the feeling of unity so that all the members, together, can go any
mission and bear the biggest difficulties. The research was carried out during the year of 2007,
besides the bibliographical review concerning the mentioned issues.
Keywords: Rituals, Team Spirit, Collectivity.
1 Introdução
Dentre
os
estudos
desenvolvidos pelas Ciências Sociais estão
as pesquisas sobre os rituais, como algo
que está presente no dia-a-dia, mas que
nem sempre é perceptível. Esta sutileza se
dá nos aspectos relacionados à seqüência e
à repetição de gestos que, seguindo certo
1
ritmo, correspondem a necessidades
essenciais. Os rituais fazem parte da
maneira de vestir, de caminhar, de tratar
com os demais que o cercam, dentre outras
coisas. Toda profissão, também, tem os
seus próprios rituais.
Bacharelado em Comunicação Social. Escola de Administração do Exército. (EsAEx), Salvador/BA.
[email protected].
2
A profissão militar, calcada
nos princípios de disciplina e respeito à
hierarquia, possui características que lhe
são próprias, além de valorizar aspectos
que são a ela imprescindíveis. O VadeMécum de Cerimonial Militar do Exército
(EXERCITO
BRASILEIRO,
2002b)
enfatiza que
valores, deveres e ética militares são
conceitos
indissociáveis,
convergentes e que se complementam
para a obtenção de objetivos
individuais e institucionais.
Em sequência, diz ainda que os
valores militares são “referenciais fixos,
fundamentos imutáveis e universais”,
como o patriotismo, o civismo, fé na
missão do Exército, amor à profissão,
espírito de corpo e aprimoramento técnicoprofissional. Já os deveres militares
“emanam de um conjunto de vínculos
morais e jurídicos que ligam o militar à
Pátria e à Instituição”, quais sejam:
dedicação e fidelidade à pátria; respeito
aos símbolos nacionais; probidade e
lealdade; disciplina e respeito à hierarquia;
rigoroso cumprimento dos deveres e
ordens; trato do subordinado com
dignidade, urbanidade e bondade. A ética
militar, ainda, é “o conjunto de regras ou
padrões que levam o militar a agir de
acordo com o sentimento do dever, a honra
pessoal, o pundonor militar e o decoro da
classe”.
Os valores militares atuam, de
forma consciente ou não, sobre o
comportamento e conduta de cada membro
da Instituição. Eles contribuem para o
reconhecimento da importância dos
Símbolos Nacionais, da História Militar e
daqueles que desta participaram; a
defender a Pátria e garantir a lei e a ordem;
a vibrar com as missões desenvolvidas
pelo
Exército,
exteriorizando
este
sentimento com a dedicação ao trabalho e
tendo a satisfação do dever cumprido; a
orgulhar-se de ser militar e de fazer parte
de uma “vontade coletiva”, inserindo-se no
grupo e influenciando positivamente os
demais
companheiros;
a
buscar
continuamente o aprimoramento técnicoprofissional.
Para efeitos deste trabalho, será
dado ênfase a um aspecto do conceito
“espírito de corpo”. O interesse pelo tema
surgiu a partir da vivência e experiência,
nas instruções de Ordem Unida e de
Treinamento Físico Militar – TFM, durante
o Curso de Formação de Oficiais da Escola
de Administração do Exército (EsAEx), de
como um indivíduo pode mudar a sua
maneira de pensar e de agir quando ele está
imbuído do espírito de coletividade. A
Ordem Unida não tem apenas a finalidade
de fazer com que a apresentação uniforme
dos membros da tropa desperte entusiasmo
naqueles que a vêem, mas também
desenvolver a disciplina e a coesão. Os
treinamentos físicos, costumeiramente
feitos com os militares em forma dentro de
grupamentos,
vão
consolidando
o
sentimento de união e camaradagem da
tropa, bem como o de preocupação com
cada ente da mesma.
Este trabalho pretende fazer
uma analogia entre as instruções citadas
acima e o conceito de rituais fornecido
pelas Ciências Sociais – mais precisamente
pela Antropologia – analisando de que
forma os rituais militares praticados no
Curso de Formação de Oficiais da EsAEx
contribuem para a criação de um espírito
de corpo.
A pesquisa realizada será de
revisão bibliográfica. A técnica de coleta
de dados utilizada será da observação, com
base nas experiências vivenciadas durante
o Curso de Formação de Oficiais do
Quadro Complementar (CFO-QC/2007) da
Escola de Administração do Exército
(EsAEx).
2 Os ritos e suas funções
A princípio, exprimir o
conceito de rituais não é uma tarefa das
3
mais árduas. Basta dizer que eles estão
presentes em todos os momentos de nosso
cotidiano. Ao acordar, fazer a higiene,
tomar o desjejum, existe toda uma
seqüência a ser seguida para que as
atividades ocorram em conformidade com
o objetivo de cada uma. Em termos gerais,
este encadeamento, ou seja, a ordem na
qual cada atividade é perfeitamente
executada, constitui-se no que se conhece
como ritual.
Pode-se definir rito como uma seqüência
de
gestos
que
correspondem
a
necessidades essenciais, gestos que devem
ser executados seguindo uma determinada
euritmia.
Segundo
sua
etimologia
sânscrita, esta palavra designa aquilo que é
conforme à ordem (rita) (BENOIST, 1975,
p. 87).
Os rituais, portanto, devem
seguir não só uma determinada
ordem/seqüência, mas também certo ritmo.
Estes
dois
elementos
interferem
diretamente no que vem a constituir um
rito específico. Mesmo que exista alguma
alteração no desenvolvimento da seqüência
de gestos, isto não descaracteriza o rito,
mas sim cria um novo ritual para o mesmo
fim.
Ao que se percebe, a
dificuldade maior não está em encontrar
um conceito para o termo, mas dizer
claramente quando um ritual teve início,
como também quem o executou pela
primeira vez. As ações seguem um roteiro
com base em observações inconscientes do
que foi feito anteriormente, ou seja, os
indivíduos, ao executarem um ritual, nem
mesmo se dão conta de onde viram aquela
seqüência ter sido feita pela primeira vez.
Além disso, os ritos sofrem alteração no
tempo – a exemplo de hábitos antigos que
hoje se encontram em desuso, como tirar o
chapéu para cumprimentar alguém – e no
espaço – um ritual está intimamente ligado
com o modo de viver de cada indivíduo – o
que dificulta ainda mais estimar com
precisão a sua origem.
A sua origem perde-se na noite dos
tempos e permanece desconhecida
mesmo para aqueles que o praticam,
embora dele tenham guardado uma
memória hereditária (BENOIST,
1975, p. 87).
Se levado em consideração o
acontecimento como um todo, cada
movimento realizado durante um ritual tem
sentido e função determinados. Estes
aspectos servem para manter a confiança
dos indivíduos que executam os
movimentos, de modo que saibam
reconhecer onde cada ação está localizada
no contexto daquele rito. A importância
disto se dá na concepção de que o ritual
serve, acima de tudo, para confirmar e
reatualizar as estruturas de plausibilidade
nas quais os indivíduos estão inseridos e
com as quais ele interage: “os ritos
estabelecem simbolicamente um laço entre
as unidades sociais e seu sujeito” (PROSS,
1980, p. 91).
Em síntese, o ritual é um meio
de
comunicação
voltado
para
a
espetacularização da ação. Ele envolve
uma série de elementos que o transformam
em um momento singular: o ritmo, no que
concerne ao processo como um todo; a
regularidade da ação; a idéia de repetição
que dá sentido ao rito – o seu significado e
forma estão contidos no rigor da
reprodução contínua de sua estrutura – e
funciona como uma maneira de justificar a
ação; a sedução que o ritual em si produz
sobre as pessoas que o realizam ou que
estão de alguma maneira ligadas a ele.
3 A formação do espírito de corpo
dentro do convívio militar
A aproximação de indivíduos
em prol da formação de um grupo está
calcada nos interesses comuns que eles
compactuam. Sejam nos hábitos, práticas
corriqueiras, gostos e opiniões, os pares
tendem a se unir em torno de suas
4
aspirações e igualdade de desejos. Da Viá
(1983) afirma que essa maneira de
integração é reflexo de um processo no
qual um indivíduo se vê no seu
semelhante, ou seja
através da interpretação psicológica,
as relações sociais são estruturadas
através
do
mecanismo
de
identificação. Esse mecanismo se
apresenta como introjeção, que é a
atribuição ao outro de suas próprias
características (DA VIÁ, 1983, p. 30)
A similaridade entre os
membros de um grupo torna-os solidários
entre si, de modo que, juntos, passam a
lutar “na direção do que convém aos
impulsos
de
uma
só
vontade”
(SCHIRMER, 1987, p. 65). Nas Forças
Armadas, quando os ânimos estão todos
voltados para os mesmos ideais, o todo
sobrepõe-se ao individualismo e as atitudes
dos membros do grupo emanam respeito e
estima de uns pelos outros, diz-se que
todos estão imbuídos de “espírito de
corpo” ou de coletividade. Segundo
Schirmer (1987), este “valor militar” é
preponderante para estabelecer, de forma
sólida, a harmonia plena entre os
integrantes de um grupo em torno de um
pensamento único.
Por melhor que sejam as qualidades
individuais dos componentes de uma
Força Armada e por mais modernos e
eficientes que sejam os seus meios
materiais, esta Força só conseguirá a
plenitude do seu desempenho se os
seus
componentes
estiverem
impregnados de um sentimento de
amor à coletividade na qual
convivem, labutando com vistas aos
mesmos ideais. A isto se chama
Espírito de Corpo (SCHIRMER,
1987, p. 65).
Nessas
condições,
a
coletividade é uma força coesiva, ou seja,
um elemento que dá ao grupo “condições e
atitudes altivas” para enfrentar obstáculos
antes considerados instransponíveis. Os
sentimentos de camaradagem e de afeição
criam o prazer de compartilhar com o
grupo os momentos de dificuldades e
dúvidas, perigos e incertezas, ao mesmo
tempo em que desenvolvem “ações de
defesas de seus membros frente a
estranhos” (SCHIRMER, 1987, p. 65). A
camaradagem
estabelece o sadio relacionamento
entre os componentes de uma Força
Armada, cria a união e a confiança,
fortalece as tradições, solidificando
os ideais comuns para dar vida ao
aforismo ‘a união faz a força’. Torna
a instituição um bloco monolítico em
que as aspirações ou ambições
pessoais ilegítimas deixam de existir
(SCHIRMER, 1987, p. 71).
A formação do espírito de
corpo de uma tropa é de fundamental
importância para a atividade-fim do
Exército. Se entre os militares existir um
sentimento que os une e os torna coesos,
tendo a mente voltada para o
desenvolvimento de suas atribuições com
vistas a um bem comum, qualquer objetivo
que lhes seja imposto será mais fácil de ser
alcançado. No entanto, mesmo que já
esteja estabelecido um contato mais
próximo, as ações que cultivam a
coletividade e o espírito de corpo devem
ser rotineiramente trabalhadas, de modo
que, cada vez mais, o grupo esteja
plenamente integrado.
O desenvolvimento do espírito de
corpo obtém-se com a prática
diuturna das virtudes militares e do
estímulo ao amor ao trabalho e à
Pátria. [...] Uma tropa dotada de
Espírito de Corpo estará apta a
cumprir com sucesso qualquer
missão, sempre que lhe for exigida a
entrada em ação (SCHIRMER, 1987,
p. 66).
4 A experiência através da vivência
militar
A Escola de Administração do
Exército (EsAEx) tem suas atribuições
5
voltadas para os alunos do Curso de
Formação de Oficiais (CFO), com a
missão de formá-los e capacitá-los dentro
do Quadro Complementar de Oficiais
(QCO) para exercer atividades de natureza
complementar, nas áreas de interesse da
Força. Neste intuito, são ministradas
diversas instruções que englobam tanto a
formação específica dos alunos – em
distintas áreas do conhecimento, cada um
dentro da sua área de formação superior –
como também a formação militar. Desta
última, dentre as diversas atividades
desenvolvidas durante o curso, estão o
Treinamento Físico Militar (TFM) e as
instruções de Ordem Unida.
O TFM, de acordo com o
Manual
de
Campanha
C
20-20
Treinamento Físico Militar (EXERCITO
BRASILEIRO, 2002a), visa promover a
aptidão física necessária para a realização
da função dos militares dentro de suas
áreas de atuação, além de melhorar a saúde
e estimular a prática de desportos. O
exercício físico, ainda,
desenvolve atributos da área afetiva
que, estimulados e aperfeiçoados,
irão atuar eficazmente sobre o
comportamento, exercendo papel
fundamental sobre a personalidade.
São
eles:
resistência-tolerância,
cooperação,
autoconfiança,
dinamismo, liderança, espírito de
corpo,
coragem,
decisão,
camaradagem e equilíbrio emocional.
(EXÉRCITO BRASILEIRO, 2002a,
p. 1-3).
No programa de treinamento
voltado para o CFO, é dada ênfase à
prática da corrida, atividade esta realizada
dentro de grupamentos cujos membros
possuem aptidão física semelhante. Cada
grupo deve percorrer uma dada distância –
determinada pela Seção de Treinamento
Físico (STF) com base no nível de preparo
e capacidade física dos membros do grupo,
demonstrados nos índices alcançados no
Teste Aptidão Física (TAF) – em um
tempo previamente estipulado. Durante a
corrida, exige-se que todos os militares
estejam na mesma cadência, para que um
não se sobressaia aos demais, observandose o todo. Além disso, é importante
encontrar o ritmo do grupamento, para não
deixar que ocorra um distanciamento entre
os membros, evitando que alguém fique
para trás e não cumpra o objetivo da
atividade. No decorrer do percurso, são
entoados diversos hinos e canções
militares, de modo a elevar a moral da
tropa e, assim, estimulá-los durante a
corrida até que cheguem até o ponto final.
É importante destacar que o grupamento
não só deve conseguir completar o
percurso dentro do tempo estabelecido,
mas sim que todos os militares cumpram
juntos a missão.
Nessa divisão por frações,
observa-se claramente como o TFM pode
desenvolver dois dos atributos da área
afetiva citados anteriormente: “espírito de
corpo” e “camaradagem”. Na intenção de
realizar o exercício dentro dos objetivos da
instrução, os elementos de cada grupo
necessitam pensar na coletividade e em
como todos, unidos, podem lograr êxito.
“Nessas condições, o Espírito de Corpo é
uma força sadia capaz de sobrepujar
obstáculos considerados intransponíveis”
(SCHIRMER, 1987, p. 66).
Portanto, a atividade física,
sob esta ótica, vem como um meio de
alicerçar as relações estabelecidas entre os
militares que fazem parte do grupo,
tornando-os mais solícitos frente às
necessidades dos demais, cooperando e
estimulando aqueles que encontrarem
dificuldades durante a jornada; tolerantes
com as incapacidades e limitações de cada
um; líderes para manter o grupo unido e
coeso; autoconfiantes para superar os seus
próprios limites. Dessa forma, a
individualidade é preterida frente ao
resultado do todo, pois
os deveres e as responsabilidades
giram em torno dos mesmos ideais do
grupo [...] A camaradagem estruturase na ajuda e na solidariedade
recíproca (SCHIRMER, 1987, p. 71).
6
Em consonância com os
aspectos evidenciados no TFM, estão as
instruções de Ordem Unida. No CFO, elas
são executadas, com maior freqüência,
com todos os alunos em forma, dentro do
mesmo grupamento (formação emassada).
Basicamente, o objetivo dessa instrução,
de acordo com o Manual de Campanha C
22-5 Ordem Unida (2000, p. 1-16), é
desenvolver e manter “a disciplina e a
atitude militar”, trabalhando a habilidade e
o automatismo dos membros da tropa na
execução de determinados movimentos,
buscando a padronização e a uniformidade.
Dentro
das
organizações
militares, a Ordem Unida está presente
“desde o início dos tempos” (EXÉRCITO
BRASILEIRO, 2000, p. 1-1), quando as
lutas eram travadas de forma rústica,
valorizando o embate corpo a corpo. O rei
da Prússia Frederico II, no século XVIII,
ordenava que suas tropas executassem
movimentos a pé firme (tropa parada) e em
marcha (tropa em deslocamento) como
uma forma de “desenvolver a disciplina e o
espírito
de
corpo”
(EXÉRCITO
BRASILEIRO, 2000, p. 1-2). Os povos
que se preparavam para a guerra sentiam a
necessidade
de
padronizar
seus
“procedimentos, movimentos e formas de
combate,
disciplinando
homens”
(EXÉRCITO BRASILEIRO, 2000, p. 1-1).
Conceitualmente, a Ordem Unida se
caracteriza por apresentar
uma
disposição
individual
e
consciente altamente motivada, para
a obtenção de determinados padrões
coletivos
de
uniformidade,
sincronização e garbo militar. Deve
ser considerada, por todos os
participantes
–
instrutores,
instruendos,
comandantes
e
executantes – como um significativo
esforço para demonstrar a própria
disciplina militar, isto é, a situação de
ordem e obediência que se estabelece
voluntariamente entre militares, em
vista da necessidade de eficiência na
guerra (EXÉRCITO BRASILEIRO,
2000, p. 1-2).
Contudo, o objetivo da Ordem
Unida não se finda na apresentação de uma
tropa cujos elementos se movimentam de
forma padronizada e uniforme. Conforme
o Manual de Campanha C 22-5 Ordem
Unida (2000, p. 1-5), suas atribuições
também têm vistas na formação moral dos
militares – “pela superação das
dificuldades e determinação em atender os
comandos”; no estabelecimento da
disciplina – “pela presteza e atenção com
que se obedece aos comandos”; na
proeficiência – “pela manutenção da
exatidão na execução” e na coesão da
tropa – “espírito de corpo, pela boa
apresentação coletiva e pela uniformidade
na prática dos exercícios que exigem
execução coletiva”.
Deste último, extrai-se que,
quanto mais integrados estejam os
militares, melhor será a forma como eles se
apresentarão. Essa resposta do grupo é
evidenciada através de um conjunto de
fatores, dentre os quais estão o respeito
pelos companheiros, na tentativa de acertar
fazer o que lhe é cobrado, e a obediência a
seus superiores, por meio do esforço físico
continuado. Fica claro, portanto, que
o espírito de corpo fomenta e enrijece
o valor das virtudes militares, traduz
confiança na competência de seus
chefes, na coragem dos companheiros
e na solidariedade dos subordinados
(SCHIRMER, 1987, p. 65).
5 Conclusão
No decorrer desta pesquisa,
foram levantados dois conceitos básicos:
ritual e espírito de corpo. O primeiro,
como uma seqüência de ações e gestos
com funções determinadas e que, seguindo
um determinado ritmo, servem para dar
confiança ao indivíduo que o executa,
confirmando-o como pertencente a uma
unidade social. O segundo, um “valor
militar”, traz consigo uma relação de
7
camaradagem entre os indivíduos que
compõem um grupo, fazendo com que os
ideais do todo sejam prioritários frente ao
objetivo de cada um.
Na seqüência, foram analisadas
duas práticas recorrentes no Curso de
Formação de Oficiais da EsAEx: as
instruções de Ordem Unida – na qual os
alunos realizam movimentos baseados na
repetição, ritmo e regularidade – e o
Treinamento Físico Militar – cujo foco é o
exercício
da
corrida
dentro
de
grupamentos, divididos pelo critério de
aptidão física, e com objetivo principal de
que todos juntos alcancem o índice
proposto.
Analisando as práticas e os
conceitos dados, observa-se que eles estão
intimamente relacionados. Dentro da
perspectiva da Antropologia, as instruções
militares podem ser caracterizadas como
rituais, pois envolvem ações cujos
elementos são, a eles, próprios.
A execução dos movimentos
de Ordem Unida segue um determinado
ritmo e seqüência, além da regularidade
que lhe é peculiar. Da mesma forma que
um ritual, caso esta seqüência sofra alguma
alteração, a ação em si não é deixa de
existir, mas sim dá margem para a criação
de algo novo.
Cada ação dentro do ritual tem
função determinada, o que faz com que,
tanto quem executa como quem assiste ou
presencia, saiba reconhecer e entender o
que está acontecendo – de fato, o
reconhecimento só se dá se o ritual fizer
parte do contexto em que o espectador
esteja inserido, ou seja, se o ritual for, a
ela, familiar ou de seu convívio habitual.
Dessa forma, pode-se depreender que um
ritual caracteriza e insere o sujeito em um
determinado grupo. No caso da instrução
de Ordem Unida, todos os movimentos e
ações indicam e são próprias da atividade
militar e, por conseqüência, os indivíduos
que os executam são assim identificados.
Seguindo este raciocínio, vê-se
que um ritual também serve como um
meio de comunicação entre aqueles que o
executam e quem a ele assiste. Como já foi
dito, uma das funções da Ordem Unida é
demonstrar, ao espectador, a ordem, a
obediência e a disciplina militar através de
uma apresentação motivada de seus
membros, seguindo “padrões coletivos de
uniformidade, sincronização e garbo
militar” (EXÉRCITO BRASILEIRO,
2000, p. 1-2).
Voltando-se para as atividades
desenvolvidas durante as sessões de TFM,
em especial à corrida dentro dos
grupamentos, vê-se que o que foi
apresentado até o presente momento é
também a elas aplicável. A maneira como
ela se dá, ou seja, o ritual, é a própria
justificativa da ação: todos os membros do
grupamento correm na mesma cadência,
entoando canções e hinos militares, de
modo que a tropa permaneça sob estímulo
continuado e possa, todos os membros
juntos, completar o percurso.
Os rituais citados, ainda,
proporcionam ao grupo uma maior
identificação e aproximação entre seus
membros, tendo em vista que o interesse
individual é recalcado em função das
aspirações comuns. Este sentimento tornase uma verdadeira força de coesão, que
impele cada ente a alcançar o objetivo do
grupo. Os percalços que existirão no
caminho serão transpostos com menor
dificuldade, tendo em vista o apoio mútuo
que permeia as relações interpessoais.
Evidencia-se, portanto, que as
atividades desenvolvidas durante as
instruções de TFM e Ordem Unida,
ministradas aos alunos do CFO, dentro do
contexto militar, podem ser consideradas
como rituais. Sua prática contribui
efetivamente para a formação do espírito
de corpo dentre os que dela participam,
pois criam um ambiente propício para que
se instaure a camaradagem e o sentimento
de coletividade.
8
Referências
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Download

o papel dos rituais militares na formao do esprito de corpo