Arquivo: <cad13> Título: “Do Gatt à OMC – Utopia do Livre Comércio” Autor: Moacyr de Franco Medeiros Professor Responsável: Prof. D.Sc. Murillo Florindo Cruz Filho Número de Páginas: 15 "Há mais coisas no céu e na terra do que sonha nossa vã filosofia." William Shakespeare, Hamlet. RESUMO Este trabalho tem por finalidade mostrar que o objetivo central dos Acordos e Tratados Internacionais, tanto Bi como Multilaterais de Comércio, em favor da liberalização do comércio e eliminação de barreiras protecionistas, com vistas a estimular o comércio mundial, constitui-se, na prática, numa falácia, tendo em perspectiva: a existência de barreiras naturais à entrada; o poder de mercado dos grandes grupos produtivos/financeiros; a ajuda governamental; normas técnicas e ambientais; concessões públicas em setores estratégicos; e direitos de propriedade industrial, isto é, regras jurídicas que conformam as concessões de patentes. INTRODUÇÃO Os Acordos e Tratados Internacionais, tanto Bi como Multilaterais de Comércio – discursivamente – fundamentam-se numa desejável e hipotética , embora falsa, argumentação: "a diminuição, ou mesmo a eliminação das barreiras protecionistas, tarifárias e não tarifárias é saudável pois tal liberalização comercial decorrente, estimula o comércio entre as partes, implicando no declínio dos custos, vantagens para os consumidores, etc". Tal argumentação configura-se claramente falsa tendo em perspectiva: a) a existência de barreiras naturais à entrada; 2 b) o poder de mercado dos grandes grupos produtivos/financeiros; c) ajuda governamental; d) normas técnicas, ambientais e outras; e) concessões públicas, principalmente em setores estratégicos; f) propriedade industrial, isto é, regras jurídicas que conformam as concessões de patentes, marcas e outros tipos de proteção. No desenvolvimento deste artigo busca-se argumentar sobre a impossibilidade da aplicação prática, teórica e jurídica da liberalização e da eliminação das formas de protecionismo do comércio mundial. Neste sentido, o discurso político liberalizante não passa de uma verdadeira utopia. DO GATT À OMC Antecedentes: Livre-cambismo e Protecionismo Denomina-se livre-cambismo (laissez-faire) a doutrina pela qual o governo limita-se à manutenção da lei e da ordem, removendo todos os obstáculos legais em relação ao livre comércio e aos preços. Adam Smith argumentava que uma política livrecambista permitiria a liberdade individual, a melhor utilização dos recursos e o crescimento econômico. Assim, o funcionamento da economia deveria ser entregue aos desígnios da "mão invisível". Teoricamente, a aplicação da política comercial livre-cambista na determinação da política de comércio externo dos diferentes países, compreendendo a especialização de produções e a eliminação de tarifas e outras restrições, permitiria a livre troca desses produtos no campo internacional os quais seriam vendidos a preços mínimos, num regime de mercado que bastante se aproximaria do da livre concorrência perfeita. Em conseqüência, haveria maior independência internacional, o que iria redundar em maior solidariedade da política entre as nações, bem como em um aumento do bem estar geral das populações do planeta. O economista clássico David Ricardo chega a resultados simetricamente benéficos para países importadores e exportadores por meio de três simplificações muito 3 distantes da realidade: competição perfeita nos mercados, equilíbrio do balanço de pagamentos e ausência de incerteza e risco. No entanto, caso tais simplificações sejam trocadas por hipóteses práticas de comércio, os resultados mudam completamente. Ou seja, na prática, a teoria é outra. No século XIX, o livre cambismo teve por defensores a Inglaterra e a França. Com o processo de industrialização, havia interesse dessas nações convencer os países produtores de artigos primários a se especializarem neste tipo de produção e não tentarem concorrer com as nações industrializadas. Os Estados Unidos, surdos aos apelos desses países e não levando em consideração os conselhos dos economistas clássicos, que afirmavam serem os Estados Unidos talhados por Deus para ser um país agrícola, refugiaram-se sob o manto de uma feroz política protecionista e promoveram um intensivo programa de industrialização. Nelson Brasil cita Alexandre Hamilton como autor do "Report on Manufactures" submetido ao Congresso Norte-Americano em 1791, projeto de política industrial onde foram apresentados os grandes conceitos dedicados ao apoio e desenvolvimento da indústria manufatureira no mercado interno, ao crescimento harmonioso da agricultura e da indústria, à abertura comercial paulatina e negociada com a Europa, e o incentivo à inovação tecnológica, idéias que foram responsáveis pelo expressivo crescimento econômico alcançado pelos Estados Unidos ao longo do século XIX, partindo do mesmo patamar econômico em que se encontrava o Brasil naquela ocasião. Ao mesmo tempo em que o Brasil, em 1808, abria integralmente, e sem ressalvas, seu mercado interno às nações amigas, os Estados Unidos fechavam sua economia, incentivavam o desenvolvimento tecnológico e industrial, protegiam seu mercado interno para viabilizar o crescimento do setor manufatureiro local para, somente então, após ser reduzida a assimetria econômica com o exterior, passar a competir com os europeus e, assim mesmo, em condições negociadas de trocas comerciais. 4 Contudo, após a crise de 1929, os Estados Unidos irá, aos poucos, desenvolvendo a tese livre-cambista, como medida de precaução contra possíveis crises de desemprego em massa que poderiam advir da ausência de um mercado mundial seguro para seus produtos. Com o término da II Grande Guerra e desejosos de tomar o lugar ocupado pela Inglaterra, vão desencadear um grande movimento para aplicação de uma política livre-cambista, empregando para tanto, os mesmos argumentos utilizados pelos economistas ingleses e franceses do século XIX. De modo oposto a atitude de Hamilton, é surpreendente constatar a liberdade com que a política governamental norte-americana permitiu o acesso a seu mercado, se comparada às políticas de muitos outros países. Parte desta liberdade é atribuída aos esforços do pós-guerra no sentido de ajudar as economias japonesas e alemães. O crescente e vulnerável déficit da balança comercial norte-americana é o produto desta política de abertura irrestrita ao seu mercado interno, concomitantemente a criação do GATT. AS ORIGENS DO GATT E DA OMC As origens do GATT remontam a 1946, quando o congresso norte-americano autorizou ao executivo negociar, por prazo limitado, reduções tarifárias (Fast Track). O governo norte-americano pressionou os demais países a negociarem um conjunto de normas preliminares de regulamentação dos fluxos de comércio, que seriam incorporadas no Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio - GATT. Este acordo, assinado sob a forma de protocolo provisório em 1947, serviria de base para a conferência sobre comércio e desenvolvimento que se realizaria no ano seguinte, em Havana, promovida pelas Nações Unidas. Entretanto o Congresso norte-americano não ratificou a criação de uma Organização para o Comércio Internacional. Como conseqüência, o que era um protocolo provisório tornou-se permanente, e acabou por se constituir na principal instituição regulamentadora das relações comerciais internacionais. A Organização Internacional do Comércio – OIC, seria o terceiro organismo de caráter permanente, como o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o BIRD (Banco Mundial), filiado às Nações Unidas. 5 A rodada do Uruguai do GATT, iniciada em 1986 e concluída em 1994 implicou na substituição do GATT, como mecanismo regulador do comércio internacional, pela criação da Organização Mundial do Comércio - OMC, oficialmente estabelecida em 1º de janeiro de 1995. O GATT/OMC: Objetivos e Princípios Básicos Segundo Renato Baumann o principal objetivo do GATT/OMC é a liberalização progressiva do comércio mundial, e o que se pretende é que essa meta seja atendida através da obediência a dois princípios básicos: o de não discriminação entre os signatários e o de reciprocidade. Formalmente, a OMC é uma instituição internacional que tem como objetivo a regulação do sistema mundial do comércio por meio de um conjunto de princípios, acordos, regras, normas, práticas e procedimentos. Conforme os próprios documentos oficiais da OMC, "não é uma instituição livre-cambista", sendo mais correto afirmar que a OMC envolve "um sistema de regras dedicadas à concorrência aberta, justa e não distorcida" do sistema mundial de comércio. O princípio fundamental é o da não-discriminação, instrumentalizado pela Cláusula da Nação Mais Favorecida. Tal princípio estipula que um país deve outorgar igual tratamento a todos os demais; assim, ao outorgar determinada concessão a um país, deverá estendê-la aos demais membros do sistema multilateral de comércio. No entanto, durante os cerca de 50 anos de aplicação do Princípio da Nação Mais Favorecida (GATT e OMC), verifica-se que são inúmeras as exceções possíveis de serem apresentadas a tal princípio. As exceções ao princípio da não discriminação, baseadas na formação de áreas de livre comércio e uniões aduaneiras, são as mais evidentes, permitindo que qualquer acordo de comércio preferencial e discriminatório seja entendido como estando em conformidade com os dispositivos da OMC, podendo perdurar indefinidamente. 6 Por outro lado, a criação do sistema de preferências permite que países em desenvolvimento recebam tratamento especial no que se refere ao acesso aos mercados dos países desenvolvidos. Este sistema foi aceito pelo GATT quando da conclusão da Rodada Tóquio, em 1979. Pelo princípio da reciprocidade espera-se que os membros da organização façam concessões em troca de benefícios obtidos dos outros parceiros. No antigo GATT os países em desenvolvimento estavam na prática isentos desse tipo de princípio porque se beneficiavam das concessões bilaterais realizadas entre os países desenvolvidos com a aplicação da cláusula da nação mais favorecida. Na OMC, a situação é diferente, porque o fato de qualquer país ser membro já o torna automaticamente signatário da maioria dos acordos, com todos os seus direitos e obrigações. As diversas Rodadas e a Dinâmica do Protecionismo No GATT, as concessões comerciais tiveram lugar através de negociações multilaterais ou bilaterais. De 1948 ao início da década de 70, essas negociações estiveram basicamente centradas em concessões tarifárias. Os países em desenvolvimento não foram particularmente forçados a fazer grandes concessões, ao mesmo tempo em que se beneficiaram das cláusulas multilaterais. Francisco Grieco relata que já na quinta rodada do GATT em Genebra (1956), surgiram as primeiras reações dos países em desenvolvimento contra barreiras tarifárias e não-tarifárias que gravavam as exportações de matérias primas procedentes desses países. Condições desfavoráveis haviam levado os países importadores de matérias e produtos básicos a adotarem práticas restritivas, de modo geral fitossanitárias, cotas e contingentes. Na Rodada Dillon (1960-1962), o Secretário de Estado norte-americano mostrou a preocupação de seu país contra o protecionismo agrícola da Comunidade Européia e que pautaria conflitos temporais permanentes. O cenário do GATT passou, a partir da Rodada Dillon, a dar destaque à confrontação entre os Estados Unidos e a Comunidade Européia, divididos em matéria de políticas agrícolas e unidos contra a renitência japonesa em não abrir seus mercados às exportações mundiais. 7 Em 1964, os países em desenvolvimento alcançaram êxito com a convocação da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), que se tornaria o foro de coordenação de políticas em favor da redução de tarifas e da eliminação de barreiras não-tarifárias prejudiciais ao intercâmbio entre os blocos industrializados e em desenvolvimento. Um dos principais objetivos dizia respeito à cláusula da nação mais favorecida, que impedia tratamento especial às exportações de produtos manufaturados do países em desenvolvimento. A vitória da Unctad concretizou-se (1970) na criação do Sistema Geral de Preferências (SGP) que garantia tratamento preferencial aos produtos manufaturados procedentes desses países, sem reciprocidade de concessões. A Rodada Tóquio (1973-1979) estabeleceu um novo enfoque, ao incluir negociações sobre medidas de política que afetaram o comércio, além das alíquotas de importações. Essa Rodada ocorreu num período em que o sistema monetário internacional foi afetado pelas medidas adotadas pelo governo norte-americano, em que as conseqüências da crise do petróleo eram sentidas em todas as partes do mundo e em que os fluxos do comércio apresentaram participação crescente das exportações de produtos provenientes dos países recém-industrializados. Esses fatos novos, direta ou indiretamente, levaram a adoção generalizada de medidas protecionistas e, pela primeira vez, as negociações multilaterais passaram a incluir barreiras não-tarifárias. A Rodada Uruguai propôs incluir no quadro do GATT os "novos temas" de investimentos, serviços financeiros e proteção intelectual: tendo em vista que até aquela época, a organização tratara basicamente do comércio internacional de mercadorias. As reações à essa ampliação partiram dos países em desenvolvimento, em condições limitadas de competição e com seus programas de pesquisa e desenvolvimento defasados pela carência de recursos. A questão do protecionismo agrícola da comunidade européia faria igualmente, com que várias rodadas finais fossem adiadas, levando as conversações sete anos para serem concluídas. 8 No que concerne a reunião de Seattle, segundo o embaixador Celso Amorim, o quadro preparatório das posições dos membros da OMC pode ser assim sintetizado: temas relativos às negociações e revisões mandatadas pelos acordos da Rodada Uruguai, como agricultura e serviços; temas relativos a implementação dos acordos existentes (que na visão dos países em desenvolvimento poderia incluir a revisão, mais ou menos profunda, de tais acordos); e "novos temas". As principais questões em pauta das "negociações mandatadas" eram as seguintes: Agricultura – tema de interesse dos grandes exportadores de produtos agrícolas, como os membros do "Grupo de Cairns", que tinham por objetivo liberalizar o comércio agrícola em mercados fortemente protegidos como os da Comunidade Européia e Japão e eliminar ou reduzir os impactos de medidas distorcivas ao comércio, sobretudo os subsídios as exportações. Conceito polêmico introduzido pela Comunidade Européia foi o de "multifuncionalidade", segundo o qual a agricultura deveria ser estendida não apenas como atividade econômica mas também como instrumento para proteger o meio ambiente, preservar as características da vida do agricultor no campo e, até mesmo, assegurar o bem estar dos animais! Tal conceito foi duramente criticado pelo Grupo de Cairns, que percebeu a tentativa de legitimar e perpetuar o protecionismo agrícola. Serviços – tema de maior interesse dos países desenvolvidos, que são exportadores dessas atividades econômicas. A nova etapa de liberalização deveria incluir, entre outros, as áreas de finanças, telecomunicações, serviços de consultoria e transportes, bem como o início das negociações do segmento dos transportes marítimos. Aos países em desenvolvimento interessava, sobretudo, manter a gradualidade e a arquitetura flexível do Acordo de Serviços provenientes da Rodada Uruguai ( GATS ). No caso da "implementação" de acordos existentes, de grande interesse para os países em desenvolvimento, incluíam-se os acordos sobre têxteis, antidumping, subsídios, TRIMs (medidas relacionadas ao investimento) e TRIPs (medidas relacionadas à propriedade intelectual), dentre outros. 9 Nos temas "novos" incluía-se o acesso a mercados de bens, tema de interesse, sobretudo, dos países desenvolvidos, que viam numa nova etapa de barreiras tarifárias oportunidade de expansão de suas exportações de produtos industriais. Investimento – de interesse do Japão e da Comunidade Européia e mesmo de alguns em desenvolvimento (Coréia e Chile), mas não dos Estados Unidos. Um dos objetivos seria o de compatibilizar numerosos acordos bilaterais sobre investimentos já existentes com as regras da OMC, bem como das um maior grau de proteção aos investidores internacionais. Concorrência – de interesse da comunidade européia, mas não dos Estados Unidos. O grande interesse era o impacto que um acordo internacional sobre concorrência poderia ter na eliminação da aplicação de direitos anti-dumping, principalmente por parte dos Estados Unidos. Meio Ambiente – de grande interesse dos países desenvolvidos, que procuravam satisfazer pressões de setores da opinião pública. Do ponto de vista dos países em desenvolvimento tratava-se de uma nova forma para aumentar a margem de medidas protecionistas, em detrimento da importação de produtos em que esses países seriam competitivos. Trata-se, em princípio, de grande hipocrisia, tendo em vista que os países desenvolvidos são os maiores poluidores da terra. Os Estados Unidos, por exemplo, é o campeão mundial da poluição atmosférica e recentemente foi o único país que não assinou o tratado de Kyoto. Por outro lado, o Japão, por exemplo, assinou o tratado, a partir da obtenção de concessões para reduzir a sua cota de redução da poluição ambiental. Padrões Trabalhistas – de grande impacto político para os países desenvolvidos, era ardorosamente defendido pelos seus sindicatos, que alegavam que o não cumprimento dos direitos básicos dos trabalhadores por parte dos países em desenvolvimento seria uma ameaça aos postos de trabalho nos países ricos. Para os países em desenvolvimento tratava-se de justificar mais uma forma de medidas protecionistas. Para Celso Amorim, o impasse deve ser buscado nos interesses contraditórios dos membros da OMC em relação aos setores econômicos a serem liberalizados, bem como nas percepções distintas sobre a oportunidade e a maneira de negociar cada um desses seus temas. 10 Para Reinaldo Gonçalves , tanto os Estados Unidos como a União Européia não tinham interesse no lançamento da rodada do milênio, tanto por razões de política interna como externa. A União Européia tem um histórico de resistência quanto à liberalização comercial e não tem interesse em fazer maiores concessões na área agrícola e, por outro, os Estados Unidos estão em uma situação econômica e política inapropriada a uma maior liberalização comercial. O déficit comercial norteamericano dobrou nos últimos cinco anos, de US$ 150 bilhões, em 1994, para US$ 300 bilhões em 1999. Adicionalmente, o bloqueio à obtenção do fast track mostra a existência de uma pressão protecionista nos Estados Unidos. O desempenho favorável da economia norte-americana, no governo Clinton, tendeu a arrefecer as pressões norte-americanas para melhores condições de acesso ao mercado internacional. A União. Ressalte-se que uma das principais funções da OMC é servir de foro de negociação e solução de conflitos. No que concerne à arbitragem de conflitos, nota-se que a OMC não tem poder efetivo para fazer com que suas decisões sejam cumpridas. De fato, a OMC tem poucos meios de pressionar os governos que não estão dispostos a cumprir as suas decisões. Na prática, o poder da OMC resulta do fato de que ela pode legitimar o uso de práticas retaliatórias pelos seus membros prejudicados contra aqueles que violam os termos dos acordos, com base na avaliação do órgão de solução de conflitos. O CASO ALCA: AMEAÇA OU OPORTUNIDADE. Os debates atuais sobre a questão da Área de livre comércio das Américas – ALCA, sem dúvida, tem sido importantes no sentido de revelar os diversos meandros da realidade do comércio internacional. O ex-ministro Delfin Netto, por exemplo, argumenta que os Estados Unidos tem transmitido aos seus parceiros do continente americano o seguinte: "eu quero a ALCA porque somos a favor do livre comércio, justo". A palavra "justo", ao final, permite diversas interpretações quanto à forma de fazer negócios. No entanto, a realidade é que o processo a ALCA é político. A urgência na criação da ALCA é parte de um 11 processo de consolidação da influência dos Estados Unidos sobre toda a América Latina. Essa é uma causa que começou no século XIX, com a Doutrina Monroe, e é parte dos objetivos estratégicos de uma nação no auge do poder. No Congresso americano, os "lobbies" empresariais falam mais alto na defesa de seus interesses. O Executivo é praticamente proibido de discutir a política agrícola protecionista. É vigiado de perto pelas corporações do setor que ajudaram a eleger Bush. Neste sentido, americanos "enrolam" o nosso pessoal com o argumento de que essa política tem que ser debatida antes no âmbito da OMC, envolvendo outros campeões do protecionismo, como o Japão e a Comunidade Européia. Quando o presidente Bush obtiver autorização do Congresso para o Trade Promotion Authority, o TPA, que é o novo nome do Fast Track, irá negociar os acordos comerciais na conformidade de interesses bem explícitos dos "lobbies" parlamentares e daqueles que lhe deram decisivo suporte eleitoral. Daí não se pode esperar nenhum tipo de facilidade ou composições trabalhadas no âmbito diplomático. Mercadante e Maria da Conceição Tavares argumentam que ao contrário do que tem ocorrido nos Estados Unidos, onde sindicatos, ambientalistas e congressistas pressionam para evitar iniciativas do governo de promover uma liberalização sem controle (fast-track), no Brasil a opinião pública tem sido mantida na ignorância e o Congresso tem permanecido omisso. O Brasil tem uma estrutura industrial e agrícola não complementar à dos Estados Unidos e com níveis de integração produtiva, desenvolvimento tecnológico e escalas de produção substancialmente menores, o que nos coloca numa clara posição de inferioridade para competir com a indústria norte-americana. Uma liberalização do comércio hemisférico, antes de chegar à eliminação total de tarifas e outras barreiras não tarifárias, teria um impacto altamente destrutivo sobre a nossa indústria. Sobreviverão, provavelmente, algumas filiais norte-americanas com plantas de menor escala e óbvias vantagens locais, decorrentes de um rearranjo na divisão regional do trabalho intrafirma, depois de fortes deslocamentos nas correntes de comércio e investimento desfavoráveis à posição do Brasil na economia internacional. A questão maior se refere à incompatibilidade da ALCA, com a preservação da nossa capacidade e autonomia para construir o nosso próprio futuro, tendo como referência 12 as necessidades e preferências econômicas, sociais, políticas e culturais do nosso povo. Os que defendem o acordo como grande atrativo o acesso ao mercado norteamericano e os ganhos de comércio que isso propiciaria – mas isso é um falso brilhante. Em realidade, quase 50% do nosso comércio externo já se realizam dentro da zona ALCA, sendo que no caso dos manufaturados, essa taxa de participação alcança 66%. O problema do comércio com os Estados Unidos não é com as tarifas, estas são baixas. Mas sim as barreiras não tarifárias, incluindo a legislação anti-dumping e a complexa rede de subsídios não explícitos que constituem a espinha dorsal do sistema de proteção comercial norte-americano. E os resultados da reunião de Buenos Aires indicam que os Estados Unidos não estão dispostos a abrir mão desses instrumentos, que apoiados numa legislação detalhada e complexa e em instituições consolidadas dão ao país uma enorme margem de manobra para "ajustar" a liberdade de comércio aos seus interesses e necessidades conjunturais. Esta análise se aplica a outras dimensões da ALCA, como é o caso das compras governamentais, dos investimentos, das patentes e dos serviços. Para o embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, ex-presidente do Instituto de Pesquisas em Relações Exteriores do Itamaraty, a ALCA significará a incorporação gradual e subordinada do Brasil ao território econômico e à esfera de influência política dos Estados Unidos, levando ao fim o anseio histórico de construção de uma sociedade democrática, justa e próspera no Brasil. Os Estados Unidos poderão até acenar com a redução de algumas barreiras não tarifárias, porém, nada garante que outras barreiras não tarifárias não possam surgir, reproduzindo situação semelhante a que ocorreu com a OMC. Na ocasião, argumentou-se que a vantagem da OMC para o Brasil seria que os Estados Unidos não mais utilizariam medidas unilaterais, não aplicariam de forma desleal sua legislação anti-dumping e anti-subsídios e que se submeteriam ao sistema de solução de controvérsias. Todavia, os Estados Unidos continuam a agir unilateralmente quando bem entendem, aplicam de forma ilegal sua legislação anti-dumping e não se submetem às decisões da OMC. 13 Sobre a abertura da economia brasileira o embaixador argumenta que a negociação internacional pressupõe sempre uma troca de concessões e no caso brasileiro o que se viu foi uma série de extensas concessões a outros Estados em diversas áreas, sem nada obter ou solicitar em troca, em busca de uma ilusória credibilidade junto à comunidade financeira internacional, isto é, junto aos mega bancos privados e às instituições financeiras internacionais, cujo interesse no desenvolvimento sustentado do Brasil é infinitamente menor do que seu, natural e justo, interesse em maximizar seus lucros. Para João Paulo Almeida Magalhães, o importante não é o acesso livre a grandes mercados, mas a mercados de atividades de rápido crescimento e elevado valor adicionado por trabalhador. A experiência demonstra (Japão, EUA, Alemanha, e emergentes asiáticos) que a melhor forma de conquistar este tipo de mercado é através da fase protecionista inicial. Com a ALCA, essa fase protecionista inicial ficará inviabilizada, nos impedindo a penetração nos únicos mercados capazes de nos proporcionar o pleno desenvolvimento econômico. CONCLUSÃO Apesar do discurso político do "livre comércio", o que se tem constatado, no período de vigência do GATT à OMC, é a prática do crescente protecionismo. A existência de barreiras naturais à entrada; o poder de mercado dos grandes grupos produtivos/financeiros; a ajuda governamental; normas técnicas, ambientais e outras; concessões públicas, principalmente em setores estratégicos; e propriedade industrial; configuram o panorama das barreiras que engessam a idéia utópica do livre comércio. Como afirma a economista Lauro Vieira Faria , do Instituto Brasileiro de Economia (IBRE/FGV), falar em livre comércio constitui uma falácia, tendo em vista que as grandes potências como Estados Unidos, a União Européia e o Japão, subsidiam diversos setores da produção doméstica, inclusive a agricultura. Os EUA têm evitado a intervenção direta na produção de bens e serviços mas utiliza instrumentos de subsídios tradicionais: gastos diretos, incentivos fiscais, seguros subsidiados e empréstimos favorecidos. No livre comércio coexiste, por exemplo, a 14 "ajuda governamental" nas grandes potências mundiais. No orçamento federal dos EUA (1999), houve investimentos de US$ 38 bilhões em ciência e tecnologia, US$ 21 bilhões em programas de estabilização da renda agrícola (cerca de 30% da renda líquida no campo), US$ 42 bilhões em transportes e US$ 37 bilhões em international affairs, setor que objetiva promover as exportações norte americanas. A economia privada norte-americana teve sua tarefa ainda mais facilitada por gastos diretos do Estado de US$ 410 bilhões em educação, saúde e apoio aos incapacitados. E mais US$ 277 bilhões em defesa, setor que lideram e que traz enorme vantagem em termos de progresso técnico, em relação ao resto do mundo. O Brasil não teria outra alternativa senão implementar políticas ativas de incentivo às exportações e à produção doméstica que substitua importações, porque, mesmo após a desvalorização cambial de janeiro de 1999, a economia brasileira continua a vivenciar vulnerabilidade externa. Ao mesmo tempo, os números nacionais apontam para um déficit em conta corrente da ordem provável de US$ 25 bilhões (correspondente a 3,6% do PIB) e remessas ao exterior de juros, lucros e dividendos de cerca de US$ 20 bilhões e um passivo externo líquido de US$ 310 bilhões (53% do PIB). O livre comércio e a própria ALCA outros imperativos categóricos poderiam ser desejáveis a longo prazo, mas, nas condições atuais, a melhor maneira de substituir as importações e incrementar as exportações é adotar uma política comercial estratégica, que favoreça efetiva mudança estrutural na economia do país. É o que os outros países estão fazendo nesse momento, com impactos benéficos em suas economias. O caso da China merece reflexão. Desde a conferência de Marrakesh/1994, preparatória da criação da OMC, duas são as exigências básicas para ingresso na entidade: abertura das importações e redução das taxas aduaneiras. Sem a obrigação de seguir os acordos do GATT/OMC, o comércio exterior chinês apresentou os melhores índices mundiais de crescimento nos últimos vinte anos. As vendas externas chinesas elevaram-se a US$ 249 bilhões em 2000, crescendo cerca de vinte vezes em relação a 1978. O PIB alcançou US$ 1,1 trilhão. Se calculado pela paridade do poder de compra da moeda o PIB chinês é equivalente a US$ 5 trilhões, inferior apenas ao norte-americano. 15 Finalmente , com relação ao ambiente internacional do comércio, o embaixador Celso Amorim demonstra toda a sua indignação: "Demonstrar a amplos setores de opinião que a OMC não é um agente das multinacionais, nem um mecanismo cego de defesa de uma globalização selvagem implica mais que um exercício de relações públicas. Pressupõe uma nova barganha ( um new deal ) em que as aspirações e interesses dos países em desenvolvimento sejam tratados com seriedade, da mesma forma que legítimas preocupações dos consumidores onde quer que estejam com a segurança com que comem e vestem. O imperativo de que o livre comércio contribua para a erradicação da pobreza não pode continuar sendo uma promessa vã". REFERÊNCIAS AMORIM, Celso. A OMC Pós-Seattle. Revista Política Externa, v. 8, n. 4, mar/abr/maio 2000. BAUMANN, Renato. O GATT e a Política Comercial Brasileira. Brasília: Texto para Discussão n 1, IPEA, 1988. CORRÊA, Luís Fernando Nigro. O Mercosul e a OMC: Regionalismo e Multilateralismo. São Paulo: LTr, 2001. FARIA, Lauro Vieira. Livre Comércio é uma balela. Rio de Janeiro: Tribuna da Imprensa, 28.ago.2000. GONÇALVES, R., BAUMANN, R., CANNUTO, O. A Nova Economia Internacional: Uma Perspectiva Brasileira. Rio de Janeiro: Campus, 1999. GONÇALVES, Reinaldo, O Brasil e o Comércio Internacional: Transformações e Perspectivas. São Paulo: Contexto, 2000. GRIECO, Francisco de Assis. O Brasil e a Nova Economia Global. São Paulo: Edições Aduaneiras, 2001. LAFER, Celso. A OMC e a Regulamentação do Comércio Internacional: uma Visão Brasileira. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998. OLIVEIRA, Carlos Tavares. Por que a China não entra na OMC. Rio de Janeiro: Jornal "O Globo", 2001. OLIVEIRA, Nelson Brasil. Cairu e Hamilton. Rio de Janeiro: Jornal "O Globo", 16.fev.2001. FONSECA, Renato. Barreiras externas às exportações brasileiras – 1997. Rio de Janeiro: CNI : FUNCEX, 1997.