5 ARTIGOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS DO CONHECIMENTO MATEMÁTICO Carloman Carlos Borges Prof. Titular do Dep. de Ciências Exatas Doutor em Matemática pela Université des Sciences et Techniques du Languedoc. RESUMO − Diversos problemas pertinentes à Filosofia da Matemática são aqui mencionados − seguidos de respostas parciais. Restringe-se este ensaio quase inteiramente à abordagem construtivista corrente, também, designada por alguns autores por intuicionismo, cujo líder máximo foi o matemático holandês L.E.J. BROUWER. A finalidade do artigo é abordar questões de um modo bem informal, a fim de que um número maior de pessoas sem treinamento técnico tenha acesso a elas. ABSTRACT − Problems related to the Philosophy of Mathematics are discussed in this article − They are partially answered. This essay is centered almost completely in the current constructive theory, which is also called “intuitionism’’ whose greatest leader was L.E.J. Brouwer a Dutch mathematician. This article aims at focusing on informal questions so that more people without technical practice reach them. I CIÊNCIA E FILOSOFIA A reflexão metacientífica é encarada em alguns meios científicos com desdém, e, às vezes, com uma agressividade menos encoberta. A racionalidade filosófica, globalizante e problematizante por natureza, incomoda principalmente àqueles especialistas adeptos da visão de um mundo repartido em pedaços que devem e podem ser estudados indefinidamente, ignorando-se a relação profunda entre as partes e o todo, entre a análise e a síntese. Observamos que a pesquisa científica possui uma base filosófica que é constituída pelos pressupostos ou conjecturas antecipadas admitidos pelos cientistas. Na penumbra de todo trabalho científico existe, muitas vezes de maneira implícita, esse suporte filosófico. Assim, por exemplo, nas ciências naturais admite-se, sem maiores questionamentos, a cognoscibilidade do mundo, sua objetividade e, no processo do conhecimento humano, muitos cientistas aceitam o caráter racional da realidade, a prevalência da razão sobre a emoção e a vontade, não se problematizando sequer esse racionalismo metafísico e psicológico. Sitientibus, Feira de Santana, n.11, p.5-13, jan./jun. 1993 6 Os problemas atinentes aos fundamentos da Matemática, em nosso caso particular, os assim chamados problemas metalógicos e metamatemáticos, embora gerados no desenvolvimento científico, encontram maior ressonância no campo da Filosofia, que possui um instrumental mais adequado para o seu estudo. II SINGULARIDADE DO CONHECIMENTO MATEMÁTICO No estudo atento do conhecimento matemático, podemos distinguir singularidades; tais singularidades e generalidades são típicas de qualquer parte do conhecimento humano. Assim, tanto o conhecimento proveniente da Física, como da Química, da Biologia ou de outra ciência qualquer apresenta suas singularidades e generalidades. Quais são, pois, as singularidades do conhecimento matemático? Reportamo-nos aos Elementos de Euclides. Lá estão ‘verdades matemáticas’ demonstradas de uma maneira tão convincente que, ainda hoje, passados mais de 2 000 anos, são aceitas pela unanimidade da comunidade matemática. Apesar do imenso desenvolvimento da Matemática durante todos esses séculos, nenhuma daquelas ‘verdades matemáticas’, tão convincentemente demonstradas foi ‘destruída’ por esse desenvolvimento. Vejamos o “triângulo de Euclides”; nele a soma das medidas de seus três ângulos internos mede invariavelmente 180 o ; no entanto ninguém é capaz de materialmente construir um “triângulo de Euclides”, isto é, um triângulo no qual a soma das medidas de três ângulos internos seja 180 o. Apesar dessa impossibilidade material, essa ‘verdade’ é aceita unanimemente pelos matemáticos e, em virtude do Magister dixit, pelos nossos sofridos alunos. Em seguida, analisamos a “duplicação dos objetos da Matemática”: de um lado as figuras imperfeitas feitas por nós no papel, (círculos onde nem todos os raios são iguais, triângulos cujas medidas dos ângulos internos jamais medem 180 o, etc.) e, do outro lado, a perfeição dos círculos de todos os raios iguais, a perfeição dos triângulos, todos com 180 o . Na geometria euclidiana clássica o ponto não tem dimensão, a reta possui apenas uma dimensão que é o comprimento, e, no entanto, a sua linguagem, que é formal, descreve suficientemente bem o mundo que nos rodeia, dentro de um entorno suficientemente próximo. Como pode um ente sem dimensão − o ponto mesmo em um número infinito, gerar um ente dimensional como a reta, por exemplo? O eminente matemático francês René Thom, ‘platonista’ confessa em sua admirável obra Stabilité Structurelle et Morphogénese (deuxime édition, p.11) escreve: “a geometria euclidiana clássica pode ser considerada como uma magia”. Neste sentido, um ente sem dimensão produz magnificamente um ente dimensional. A Aritmética também oferece uma série de problemas à nossa reflexão: a origem e a natureza dos números transfinitos, dentre outros, são questões que nos levam a indagar em qual nível de realidade opera a Matemática. Vista da perspectiva histórica, das suas aplicações ou dos seus fundamentos, a Matemática Sitientibus, Feira de Santana, n.11, p.5-13, jan./jun. 1993 7 sempre oferece-nos questões à meditação. Naturalmente que a abstração é um de seus traços marcantes, porém não o é apenas dessa ciência, embora nela pareça atingir patamares mais elevados. Todavia, o processo do pensamento se caracteriza pela análise e a síntese, pela abstração e generalização e, ao que parece, as leis reguladoras destes processos compõem as leis internas básicas do pensar. Assim, em todo pensar não--matemático nos defrontamos com tais processos, contudo, é na Matemática que eles abundam, tanto horizontal como verticalmente e, nesse sentido, eles podem ser considerados como singularidades do conhecimento matemático. Ao longo do período histórico, esse processo tem se configurado como um instrumento cujo poder explicativo, antecipativo e preditivo constitui aquilo que se conhece como a fecundidade da Matemática, a qual se origina em grande parte de seu poder de generalização. Dessa forma, a concepção tautológica dessa ciência - perante a sua fecundidade durante mais de duas dezenas de séculos − não passa de “parolagem flácida para dormitar bovinos”, isto é, “conversa mole para boi dormir”. III PROBLEMAS FILOSÓFICOS DA MATEMÁTICA Com tantas singularidades, não é de admirar que em torno de sua fundamentação surjam alguns problemas filosóficos. Na raiz desses problemas, ora de maneira explícita, ora de maneira implícita, encontra-se sempre a idéia pertubadora e fascinante do infinito. O comprimento de segmentos de retas extensíveis arbitrariamente, preocupação constante de Euclides e dos demais matemáticos gregos da antiguidade, leva-nos diretamente ao conceito de infinito potencial, isto é, a possibilidade de uma construção mental ilimitada. Este mesmo conceito encontra-se subjacente na bela demonstração desse matemático grego de que existe uma infinidade de números primos, a qual vale a pena repetir: 1 - Seja p 1 , p 2, ... , p n um conjunto finito qualquer de números primos. 2 - Vamos construir o número: p 1 . p 2. ... .p n+1 , o qual claramente não é divisível por nenhum dos números p 1 . p 2. ... .p n: logo, este número é primo ou é divisível por outro número primo p. 3 - Em qualquer uma das hipóteses mencionadas, deve existir um número primo que não pertence ao conjunto p 1, p 2, ... , p n ; conseqüentemente, o conjunto dos números primos é infinito. Desse modo, pelo conceito de infinito potencial, podemos passar ao conceito de infinito acabado (atual) que é a tomada de consciência simultânea de todos os elementos de um conjunto infinito. Com esse intuito, relembramos o axioma de Peano “Toda parte A de N tal que 1 pertença a A e s(A) esteja contido em A, onde s é uma aplicação injetora de N em N − a sucessão mostra que as duas formas mencionadas de compreender o infinito estão interligadas, compondo uma unidade dialética. A infinidade do mundo material Sitientibus, Feira de Santana, n.11, p.5-13, jan./jun. 1993 8 não como posssibilidade, porém, como realidade, exemplifica o infinito acabado, enquanto que o seu desenvolvimento incessante, encerrando em si novas e ilimitadas transformaçoes, exemplifica o infinito potencial e a sua unidade com o infinito atual. Todavia, os famosos paradoxos de Zenão de Elea (450 a.C.), bem com os “infinitamente pequenos” e os “infinitamente grandes”, dois conceitos empregados amplamente no Cálculo Diferencial e Integral, criaram entre os matemáticos uma certa desconfiança em relação ao infinito atual. A querela em torno dos infinitamente pequenos, os famosos infinitésimos, vem desde o tempo de Euclides, pelo menos. Este matemático rejeitava tanto o infinito acabado como o ‘infinitésimo’. Arquimedes (287-212, a.C.) afirmava que todo número satisfaz ao postulado em que, dados dois números, existe sempre um múltiplo do menor que supera o maior. Essa é uma das formas do famoso postulado arquimediano que se encontra no prefácio do livro sobre a quadratura da parábola onde aquele matemático escreve: “dados dois espaços desiguais, o excesso do maior sobre o menor somado consigo mesmo um certo número de vezes pode ultrapassar um espaço dado finito”. Os estudantes de Álgebra de nossas universidades conhecem este axioma sob a forma mais elaborada. Vejamos: para todos os números a e b de R*+, existe um inteiro natural n pertencente a N tal que a.n é maior que b. Dessa forma, embora Arquimedes não admitisse a existência de infinitésimos, fazia uso dos mesmos (talvez como engenheiro...) para resolver problemas de geometria.No século XIX, Weierstrass e seus discípulos expulsaram (ou assim pensaram) os métodos infinitesimais da Matemática. Seguindo esta orientação, surgiram vários livros de Cálculo nos quais tais grandezas não eram nem mencionadas e, quando o faziam, como acontece com Richard Courant em seu Cálculo Diferencial e Integral (provavelmente um dos maiores livros de cálculo escritos no século XX), a eles se referiam como ”nefastas quantidades infinitamente pequenas ou infinitésimos”. Toda essa rejeição era feita em nome do rigor matemático e foi, igualmente, com sólida fundamentação lógica que o lógico e matemático Abraham Robson (1918 − 1974) tornou preciso o conceito de infinitésimo... libertando-o de ”netastas associações metafísicas”. A controvérsia multissecular em torno do 5º Postulado de Euclides envolve em seu cerne o conceito de infinito. Tomemos o seu enunciado: “Se A é um ponto qualquer e a uma reta qualquer, que não contém A, então existe uma e única reta passando por A, situada em um mesmo plano que a, e que não encontra a”. Por ele constatamos que o infinito se encontra presente através da idéia que informa que por mais que se prolonguem ambas as retas, elas jamais se encontrarão. A transformação de problemas inerentes à fundamentação da Matemática para o campo da Filosofia, numa tentativa de busca de sua solução, parece mostrar, por um lado, um retrocesso metodológico, pois representa o abandono de um instrumental preciso e rigoroso para outro com menor precisão e rigor. Mas o retrocesso apontado é aparente, pois a ajuda dada pela Filosofia não pode ser subestimada, o que mostra a fragilidade de algumas teses positivistas. O surgimento, no século XIX, tanto das Geometrias Não-Euclidianas como da Sitientibus, Feira de Santana, n.11, p.5-13, jan./jun. 1993 9 Teoria dos Conjuntos levantou uma série de problemas metamatemáticos, embora ambas as teorias tenham servido para o esclarecimento de problemas outros que vinham se arrastando nas brumas da confusão desde os tempos da antiguidade clássica. Mas, como é comum em tais casos, essas teorias suscitaram o aparecimento de novos problemas com a criação de seus novos conceitos em novos níveis de abstrações. Nada há de estranho, pois a primeira das teorias mencionadas sacudiu violentamente o conceito de ‘verdade matemática’, como que revirandoo pelo avesso e, como conseqüência logicamente necessária, colocou em primeiro plano o problema das relações entre Matemática e Realidade, enquanto a Teoria dos Conjuntos, que poderia muito bem designar-se por Teoria Matemática do Infinito, trouxe à baila velhas questões sobre os infinitos potencial e acabado. Ambas as teorias podem servir como fonte de grande motivação estética e epistemológica, quando ensinadas adequadamente. Infelizmente, porém, nossos professores preferem recalcar nos alunos que o conjunto de cabelos nas suas próprias unhas é um bom exemplo para o conjunto vazio. Entretanto, futilidades desse tipo complicam ainda mais o ensino da Matemática. As Geometrias Não-Euclidianas, juntamente com a Euclidiana, indicam excelentes oportunidades para o professor apontar ao aluno os diversos níveis de organização do universo, dando--lhe uma lição de não-dogmatismo e um desvelamento das questões históricas que habitam, de fundo, as contendas acerca dos fundamentos da Matemática. O surgimento das Geometrias Não-Euclidianas mostra que o conceito de ‘verdade matemática’ deve ser aprofundado e a Teoria dos conjuntos de Cantor com as suas famosas “demonstrações de absurdo” coloca na pauta o problema da ‘existência matemãtica’. Os paradoxos surgidos como conseqüência da Teoria dos Conjuntos levaram os lógicos e alguns matemáticos a refletirem sobre os fundamentos da Matemática. IV AS RESPOSTAS AOS DIVERSOS PROBLEMAS FILOSÓFICOS DA MATEMÁTICA As respostas a esses problemas deixam de ser unívocas e as três concepções principais do ponto de vista de alguns filósofos são: o logicismo, o intuicionismo e o formalismo. Essas três escolas se esforçam em oferecer à Matemática sólidos fundamentos para os problemas apontados, e todas as três fracassaram em seus objetivos. Esse fracasso foi denominado por alguns filósofos de “as três crises da Matemática”. Neste trabalho estamos interessados apenas na escola conhecida como intuicionismo ou construtivismo. Como já foi sugerido acima, as “demonstraçöes por absurdo”empregadas por Cantor escandalizaram alguns matemáticos, entre eles, Kronecker. O que é uma “demonstração por absurdo”? Para os lógicos ainda fiéis a Aristóteles, a razão é guiada por três princípios: Sitientibus, Feira de Santana, n.11, p.5-13, jan./jun. 1993 10 o da identidade, o da contradição, (ou da não-contradição) e o princípio do terceiro excluído. Algebricamente eles podem ser formulados, respectivamente, como seguem: 1 − a ⊂ a (todo a é a ou seja, uma classe a qualquer está contida nela mesma); 2 − aa’ = 0 (as classes a e a’ têm intersecções vazias, isto é, nenhum elemento é simultaneamente a e não-a); 3 − a + a’ = 1 (as classes a e a’, reunidas, formam a totalidade, isto é, todo elemento é a ou não-a). Pela lei do terceiro excluído, se p é uma proposição, então p ou sua negação −p é verdadeira; em outras palavras, a proposição p v −p é uma tautologia. Esta validade não é devida ao conteúdo de p, que pode ser físico, matemático, etc., mas, é devida a sua forma sintática. Nas chamadas “demonstrações por absurdo” emprega-se a tautologia (ou outra que lhe seja equivalente): (H ⇒ T) ⇔ [ (H ∧ −T) ⇒ f ] na qual H, T e f representam, respectivamente, a hipótese, a tese do teorema e f significa falsidade. Ora, esta tautologia é logicamente justificada pelo terceiro excluído; portanto, qualquer demonstração que emprega a tautologia em questão tem por fundamento o terceiro-excluído. Com Cantor, os conjuntos se transformaram em objetos fundamentais da Matemática e o infinito acabado assumiu papel predominante. Para compreender a rejeição escandalizada de Kronecker ao método de demonstração empregado por Cantor, é conveniente lembrar que, para aquele matemático, a existência de um “objeto matemático” está associada a um método que permita a construção desse objeto. Já vimos, anteriormente, um exemplo de uma demonstração construtiva (aquela dada por Euclides para mostrar que existem infinitos números primos). É interessante colocar que Euclides considera inicialmente, os números 2 e 3 como primos e, com eles, constrói novos números primos; como tal operação poderá ser repetida ilimitadas vezes, conclui então ser a série dos números primos constituída de infinitos números, ou melhor, conclui que a série dos números primos pode ser prolongada indefinidamente tal como os segmentos de reta podem ser estendidos indefinidamente. Assim Euclides procedeu exemplificando e continuando: N 1 = 2.3 + 1 = 7 (novo número primo) N 2 = 2.3.7 + 1 = 43 (novo número primo) Quando Ni não for primo, evidentemente ele conterá entre seus divisores, pelo menos um número primo não achado anteriormente. O principal membro da escola intuicionista foi L.E.J. Brouwer (1881−1966). Outros intuicionistas foram Heyting, Borel, H. Weyl, dentre outros. Eis algumas de suas teses: a) a aceitação de “intuição primordial” ou “intuição primitiva”; b) rejeição, pura e simples, do infinito acabado; Sitientibus, Feira de Santana, n.11, p.5-13, jan./jun. 1993 11 c) aceitação do terceiro-excluído somente em domínios finitos. A “intuição primitiva”, de puro sabor Kantiano, existe em todas as mentes pensantes e é independente da experiência. O pilar inicial da Matemática está nos números naturais: 1, 2, 3, 4 ..., os quais percebemos em virtude de uma “intuição primeira”; aliás, a frase de um de seus adeptos, Kronecker, é bem elucidativa: “Deus criou os números naturais; o resto é obra dos homens”. Desse modo a Matemática é, para eles, uma atividade mental; os “objetos matemáticos” são criações livres da mente do matemático; não se ‘descobre matemática’ e sim ‘inventa-se matemática’. A existência de qualquer “objeto matemático”está associada a um método que permita a sua construção. A rejeição do infinito acabado implica em sérias conseqüências. A teoria dos Conjuntos de Cantor é liminarmente rejeitada, uma vez que não existem conjuntos infinitos acabados. O “último teorema de Fermat” (para um expoente inteiro positivo n > 2, inexistem soluções inteiras e positivas de equação a n + b n = c n onde a, b, c são inteiros) e a “conjectura de Goldbach” (todo número par maior que 2 pode ser escrito como a soma de dois números primos) não foram demonstrados ou refutados pelos matemáticos. Porém, para os intuicionistas, são proposições que possuem significado, mesmo não sendo nem verdadeiras nem falsas. Isso acontece porque para os intuicionistas a verdade de uma proposição é identificada com a sua própria demonstração construtivista; são as chamadas proposições indecidíveis. Dessa forma, a lógica dessa escola é um exemplo de lógica trivalente. A chamada “propriedade da tricotomia” (“se a pertence ao conjunto R dos reais, então se verifica precisamente uma das seguintes relações: a é igual a zero, a é maior que zero, a é menor que zero”) é igualmente rejeitada por eles, o que significa que pode existir um número real sobre o qual não podemos afirmar que seja nulo, maior ou menor que zero. O próprio Brouwer, citado por DAVIS (1985), constrói um exemplo famoso que passamos a descrever. Inicialmente, ele exibe um excluído da seguinte maneira: seja P a proposição “no desenvolvimento decimal de pi ocorre eventualmente uma sucessão de 100 zeros consecutivos”; a proposição −P diz que: no desenvolvimento decimal de pi não ocorre em nenhum ponto uma sucessão de 100 zeros consecutivos”. Observamos que estas duas proposições estão bem construídas, e, se, eventualmente, ocorrer o aparecimento de 100 zeros consecutivos na proposição P, substitui-se simplesmente esta quantidade por outra maior... Nestes termos a pergunta que se coloca é a seguinte: “a proposição P ou −P é verdadeira”? Para os matemáticos clássicos a resposta é imediata: claramente, a proposição "P ou −P” é verdadeira. Mas, quem nos assegura que ela é verdadeira? A resposta é simplesmente: o terceiro-excluído. Ora, para o intuicionista, esta lei não se aplica a conjuntos infinitos e, conseqüentemente, a proposições “P ou −P” não pode ser aceita como verdadeira: ela é ‘indecidível’ . Em seguida Brouwer constrói o número pi chapéu da seguinte maneira: Sitientibus, Feira de Santana, n.11, p.5-13, jan./jun. 1993 12 1) se no desenvolvimento decimal de pi não ocorrer o aparecimento de 100 zeros consecutivos, então pi chapéu será igual a pi; 2) se no desenvolvimento de pi aparecem 100 zeros consecutivos começando no n-ésimo algarismo, temos dois casos: a) se n for ímpar, pi chapéu termina em seu n-ésimo algarismo; b) se n for par, pi chapéu terá o algarismo 1 no (n + 1) ésimo primeiro algarismo e aí termina. Então cabe a seguinte pergunta: o número N oriundo da diferença entre pi chapéu e pi é positivo, zero ou negativo? A maioria dos matemáticos não hesitaria em responder: o número N não viola a Lei da Tricotomia, com o que os construtivistas discordam sob a alegação da não-aplicabilidade do ‘terceiro-excluído’ em domínios infinitos. As famosas “demonstrações por absurdo” são igualmente rejeitadas pelos intuicionistas, pois empregam o ‘terceiro excluído’ . Vejamos a seguinte demonstração da proposição: “existem números irracionais a e b tais que o número a b é racional”. Abaixo a demonstração: i) o número 2 é irracional e o número ( 2 ) 2é racional ou irracional (aplicação do “terceiro-excluído). ii) se ( 2 ) 2 é racional, a demonstração está terminada; iii) se ( 2 ) 2é irracional, nós consideramos a = ( 2 ) 2e b = 2 quando, então, vem: (( 2 ) 2 ) 2 = 2 e a demonstração aqui termina. Esta demonstração não é aceita pelos construtivistas, em virtude do item i) (aplicação do ‘terceiro-excluído’). Ela seria aceita por essa escola, se existisse uma maneira construtiva de afirmar que ( 2 ) 2 é racional ou irracional. Em 1967, com a publicação do livro d’Errett Bishop, Les Fondements de L’Analyse Constructive, o construtivismo recebeu novas forças. Suas idéias se distanciam, em alguns pontos, daquelas postuladas por Brouwer e por outros intuicionistas. Seu objetivo é o de construir e não o de fundamentar a Matemática: seu ponto de partida são os números racionais, munidos das operações usuais de adição e multiplicação que o tornam um corpo. Tampouco rejeita a Teoria dos Conjuntos de Cantor e introduz nela algumas modificações, como, a operação de pertinência de um elemento a um conjunto. Uma função do conjunto A no conjunto B faz corresponder a todo elemento de A um elemento de B, porém deve haver a possibilidade da construção da imagem f(a) = b de todo elemento a de A pela função f; dessa forma, o construtivista afirma, como teorema, a seguinte proposição, tão estranha aos ouvintes do matemático contemporâneo: “Toda função real definida para todos os números reais é contínua”. Para finalizar, retornemos ao matemático Brouwer, ou melhor, ao seu teorema do ponto fixo. Em Topologia, diz-se que x é um ponto fixo para a aplicação A, se Ax = x, isto é, os pontos fixos são as soluções da equação Ax = x. Isso é rejeitado pelos intuicionistas, uma vez que ele não pode ser construído, e a sua existência é deduzida de uma “demonstração por absurdo”. Assim, podemos excrever: Brouwer foi um intuicionista, pois defendeu as teses principais dessa escola, e não foi Sitientibus, Feira de Santana, n.11, p.5-13, jan./jun. 1993 13 intuicionista, pois elaborou teorema de ponto fixo cuja demonstração escapa aos métodos construtivistas. Com essa assertiva, marginalizamos a lógica bivalente e adotamos a lógica paraconsistente. V CONSIDERAÇÕES FINAIS Acabamos de ver como alguns problemas filosóficos surgidos pelo conhecimento matemático podem ser interpretados. A interpretação dada foi a da escola intuicionista ou construtiva. Claramente, ela não exaure toda a problemática filosófica suportada pela pesquisa matemática. Há outras interpretações, a saber: o logicismo, o formalismo, o materialismo dialético, etc. As diversas interpretações, muitas vezes, não são apenas divergentes; muitas vezes, elas são mesmo conflitantes, o que nos leva a indagar: onde se encontra a verdade? As concepções apontadas aqui não são aceitas por todos os matemáticos. O intuicionismo, por exemplo, é rejeitado quase por unanimidade pela comunidade matemática, e as demais concepções longe estão de um consenso geral. ‘É interessante acrescentar que a rejeição do intuicionismo não oferece qualquer razão científica. Embora os matemáticos tenham entre suas metas aquela de um rigor cada vez mais fino, eles parecem, nessa rejeição, ser contraditórios, pois os padrões de rigor da escola intuicionista são superiores aos adotados por eles, o que parece confirmar as razões afetivas da repulsa mencionada. Os professores de Matemática que exigem dos alunos uma compreensão exata dos conceitos matemáticos ensinados, devem meditar sobre esta proposição: “É uma sorte para a humanidade que seja possível possuir conhecimentos sem ter uma idéia clara do que seja o conhecimento”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DAVIS, J. Philip. A experiência Matemática. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1985, 481p. SNAPPER, E. What is Mathematics? American Math., Monthly. V. 7, n. 86, p.551-557, 1977. BORGES, Carloman C. A Matemática: suas origens, seu objetivo e seus métodos. Feira de Santana, UEFS, 1980. Ponte 1 (mimeo). MANNO. A. Giacomo. A Filosofia da Matemática. Lisboa: Edições 1970, 303 p. RUSSELL, Bertrand. Los Principios de La Matemática. Buenos Aires: Kapeluz, 1948, 644 p. COLERUS, Egnont. De Pythagore à Hilbert. Paris: Flammarion, 1947, 311 p. Sitientibus, Feira de Santana, n.11, p.5-13, jan./jun. 1993