Ontem cantou-se por novas políticas para a cultura e para a austeridade Era uma manifestação cultural, mas foi mais do que isso. Milhares juntaramse em Lisboa, à volta da música, para mostrarem a sua indignação pela situação política e social do país Manifestação Vítor Belanciano Foi uma acção de protesto, com cultura em fundo, mas as motivações eram mais alargadas, com milhares de pessoas a mostrarem, ontem, na Praça de Espanha, em Lisboa, descontentamento pelo contexto social e político do país. Apartidário, transgeracional, convocando gente da cultura, mas não só. Foi assim a acção “Que Se Lixe a Troika – Manifestação Cultural”, organizada pelo movimento “Que Se Lixe a Troika! Queremos as nossas vidas”. Dela constavam, em Lisboa, dezenas de actuações musicais (A Naifa, Deolinda, Chullage, Radio Macau, Camané, Dead Combo, Janita Salomé ou Quarteto Lopes Graça), entrecortadas por intervenções de profissionais da cultura como os actores André Gago e João Reis, a escritora Maria Teresa Horta ou a coreógrafa Vera Mantero. Vinte e duas cidades aderiram. “É mais uma forma das pessoas mostrarem indignação”, sintetizava o cineasta João Botelho. “As pessoas estão fartas do capitalismo selvagem e de pagar a desregulação financeira que não provocaram. Querem ser tratadas como pessoas e não como números.” Ideia semelhante era partilhada pelo músico Paulo Furtado (Legendary Tigerman e WrayGunn). “Este governo conseguiu reunir a larga maioria dos portugueses contra si. Nunca um governo fez tão mal em tão pouco tempo”, afirmou. “A minha insatisfação é mais vasta e aplica-se à maioria da classe política”, concluiu Paulo Furtado. A acção teve início pelas 17h, prolongando-se noite fora. Inicialmente subiu ao palco a Orquestra Sinfónica, com ambiente solene, secundada pelos Toca Rufar, gerando mais descontracção. Nos rostos, fechamento. Ou revolta. “Há um ano que participo em acções de protesto e nada muda. Não sei o que é preciso fazer para isto dar uma volta”, dizia o designer Francisco Malta. A noção de que os protestos se sucedem parece ter tomado conta dos pensamentos. “É um sinal de que as pessoas perderam o medo e estão responsáveis”, analisa a cantora Rita Redshoes. “As notas musicais podem contaminar as outras notas.” Para o programador cultural Fernando Pêra, uma “acção silenciosa” poderia ser mais eficaz e diluir o eventual efeito de banalização dos protestos. Paulo Furtado defende ser necessário “insistir e insistir”. Para o músico Luís Varatojo (A Naifa, Peste & Sida),“temos que nos fazer ouvir” até os políticos perceberem que a maioria está insatisfeita: “Se não for assim, como? Com violência? Ninguém quer isso”. Apesar de o protesto trasbordar a cultura, lá estão cartazes como “não matem a cultura”, “a cultura é resistência, que se lixe a Troika” ou “sem cultura não há passado, não há presente, nem futuro, nem desenvolvimento sustentado”. “Vivemos tempos em que só a linguagem dos números vinga”, diz a artista Vanda Rubia. “Estudei em Espanha, regressei porque quero aqui desenvolver a minha actividade, mas já percebi que vai ser difícil.” “A cultura é sempre um problema para os políticos, nunca faz parte do naipe de soluções, o que é pensamento errado”, reflecte a professora universitária Cláudia Semedo. “É à volta da cultura e da educação que as pessoas se humanizam e encontram caminhos comuns. Sem isso, é o caos. Sem isso, é aquilo que temos hoje”, diz. O cineasta João Botelho pensa semelhante. “Este é um tempo perigoso pelo vazio que pode criar – criticar toda a classe política pode fazer-nos desejar um salvador – mas também é estimulante. As pessoas podem não saber porque saem à rua, mas estão outra vez com vontade de fazer coisas juntas, em comunidade, e isso é bom.” Ontem, os artistas juntaram-se à vasta comunidade de insatisfeitos, ocupando a Praça de Espanha. “Isto é a expressão cultural da nossa insatisfação”, resumia Vanda Rubia. “Queremos outras respostas políticas para a cultura e para a austeridade.” Profissionais da cultura e cidadãos anónimos, juntos, na Praça de Espanha, em Lisboa CGTP apresenta medidas contra “massacre” orçamental Arménio Carlos quer fim das PPP e aumento do salário mínimo nacional M ilhares de pessoas responderam ontem ao apelo da CGTP e saíram à rua em protesto. A Marcha contra o Desemprego que percorreu o país terminou com um grito de guerra em frente à Assembleia da República: “Está na hora de o Governo se ir embora”. Arménio Carlos, secretáriogeral da CGTP, apresentou propostas para eliminar a “má despesa do Estado” e contrariar um orçamento que “constitui um massacre aos rendimentos dos trabalhadores”. O sindicalista defendeu o fim das Parcerias Público-Privadas e a renegociação dos contratos, poupando 500 milhões de euros, pois “são inaceitáveis estes contratos, onde os prejuízos vão todos para o Estado e os lucros para o privado”. Arménio Carlos propôs, ainda, que o Banco Central Europeu financie directamente a 0,75% os Estados e exigiu o fim dos benefícios fiscais “injustificados que conduzem à chamada despesa fiscal do IRC”. O dirigente da CGTP alertou para a necessidade do aumento do salário mínimo nacional, como “condição essencial para a melhoria das condições de vida, a dinamização da economia e a criação de emprego”. O sindicalista acrescentou ser “este o tempo de exercer o direito à resistência, contra medidas “As pessoas estão fartas do capitalismo selvagem” João Botelho realizador ENRIC VIVES-RUBIO Gritar em manifestações tira a dor que vai na alma e no peito Catarina Fernandes Martins ilegítimas que põem em causa direitos, garantias e liberdades”. O líder da CGTP afirmou que a marcha do desemprego foi “uma denúncia e um compromisso de luta pela mudança de política” . A iniciativa que ontem concluiu começou a 5 de Outubro, em Braga e Faro. Na capital, os manifestantes juntaram-se na Praça da Figueira, de onde partiram com lenços brancos e cartazes na mão. O desfile prosseguiu ao ritmo de um grupo de bombos, que na cabeça da marcha chamavam à atenção de quem saiu de casa num sábado à tarde para passear. Quando os manifestantes chegaram ao largo fronteiro às escadarias da Assembleia da República, Arménio Carlos garantiu que “a luta vai continuar”. Por isso, está marcado um novo protesto para 31 de Outubro. Recorda-se que a CGTP já convocou uma greve geral, para 14 de Novembro. Fabíola Maciel Há uma catarse atrás do palco, na manifestação da CGTP de 29 de Setembro, depois de os Homens da Luta actuarem e antes do líder Arménio Carlos discursar. Uma grade isola o espaço. Algumas pessoas estendem os braços e chamam por Jel e Falâncio. Querem tocar-lhes, tirar fotografias, pedir um autógrafo. Outros só querem desabafar. Para os especialistas, ir a uma manifestação pode ajudar a aliviar tensões. Há quem fale em terapia. Outros preferem falar num momento catártico. E há quem veja as manifestações como um sinal de felicidade. A 15 de Setembro, muitos portugueses saíram à rua para se manifestarem contra as medidas de austeridade e a subida da Taxa Social Única (TSU). Para Carlos Amaral Dias, psiquiatra e psicanalista, o protesto foi terapêutico. “A tristeza que não é expressa é patogénica, a tristeza falada é mais positiva”, explica. “É como no estado depressivo, quando a pessoa fala sobre esse estado, está a aliviá-lo”, refere. Isabel Cerca, 49 anos, esteve no 15 de Setembro e foi à manifestação da CGTP. Alivia a tristeza junto de Jel. Fala-lhe ao ouvido. Jel faz um sorriso triste. E abraça-a. Isabel começou a ouvir os Homens da Luta quando eles apareceram. Primeiro, viu aquilo como uma brincadeira que a deixava bem-disposta. Depois, começou a tomar atenção ao que diziam… Há muito tempo que Isabel não falta a nenhuma manifestação. É que gritar ajuda-a: “Dá para a gente tirar esta dor que vai na alma e no peito”. Luísa Figueira, vice-presidente da Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, não concorda com o termo terapêutico, “apenas deve ser usado para as doenças”, mas diz que as manifestações podem funcionar como catarse. “As pessoas ficam mais satisfeitas por exprimirem a sua opinião e emoções, há um sentimento colectivo de que o problema não é só delas, as pessoas estão unidas, solidárias, têm o mesmo objectivo”, precisa. Álvaro de Carvalho, psiquiatra e director do Programa Nacional de Saúde Mental afirma que as manifestações “são uma válvula de escape e um benefício das sociedades democráticas”. E adianta: “Se está numa manifestação em que as pessoas à sua volta têm as mesmas perspectivas, isso reforça a sua auto-estima, está a comungar um sentimento de júbilo ou de protesto com outras pessoas”. Sandro Amorim tem 23 anos. É do Porto e 29 de Setembro foi a primeira vez que esteve numa manifestação. Sandro percebeu o efeito catártico: “Aqui podemos expressar o que sentimos, a nossa angústia interna, aqui estamos todos juntos”. Para alguns, o 15 de Setembro representou o início de um movimento de cidadania. “Portugal mudou nesse dia”, disse o sociólogo Rui Brites. Seguiu-se a concentração em frente ao Palácio de Belém, durante a reunião do Conselho de Estado, a 21 de Setembro. Oito dias depois, a CGTP juntou no Terreiro do Paço milhares para uma manifestação que, para a central, foi a maior dos últimos anos. No estudo “Valores e felicidade no Século XXI: um retrato sociológico dos portugueses em comparação europeia”, Rui Brites apresenta valores que se considera terem impacto no bem-estar subjectivo, ou seja, na felicidade. Um desses valores está relacionado com o índice de participação cívica. Uma das conclusões é que Portugal tem o índice de participação cívica mais baixo da Europa. Os portugueses, de uma forma geral, “acham que devem ajudar os outros, a mobilizar-se, mas depois não o fazem...”, diz o sociólogo. A 15 de Setembro foi diferente. “Houve um novo estado anímico”, garante Rui Brites, que considera que esta manifestação foi um sinal de que os portugueses são felizes. Insatisfeitos, mas felizes. “O anúncio da subida da TSU foi uma medida que contribuiu para o aumento da felicidade dos portugueses”, ironiza. Para o sociólogo, o anúncio do primeiro-ministro aumentou a felicidade dos portugueses porque levou à mobilização. Segundo Rui Brites, quem luta por alguma coisa, está a fazê-lo em busca da felicidade. Protesto Farmacêuticos na rua “F armácias em Luto” foi o nome dado ao protesto dos farmacêuticos, que levou milhares de pessoas para as ruas de Lisboa e que terminou com a entrega de uma petição ao Ministério da Saúde com mais de 220 mil assinaturas recolhidas em todo o país. Em declarações aos jornalistas, João Cordeiro, presidente da Associação Nacional de Farmácias (ANF), uma das entidades promtoras desta iniciativa, lembrou que o sector está em “colapso” e propôs que o prazo de pagamento à indústria farmacêutica se alargue de 30 para 90 dias como “medida de emergência”. O alargamento do prazo do “relacionamento entre a indústria farmacêutica, os grossistas e as farmácias” iria possibilitar a “libertação de fundos para a reposição de stocks”, justificou o responsável no cortejo dos profissionais de farmácia. Num comunicado da ANF, Cordeiro acrescentou ainda que esta “medida de emergência” seria um balão de oxigénio urgente para evitar o colapso no acesso aos medicamentos pelas populações” e que o prazo de 9O dias pode vigorar apenas até o Governo tomar medidas. No mesmo documento, João Cordeiro sublinha ainda que este sector tem vindo a ser destruído através de “medidas arbitrárias sem avaliação prévia ou posterior”, que levaram a que a margem actual das farmácias não cubra os custos fixos, que 1.250 tenham fornecimentos suspensos, ruptura de stocks e à previsão de encerramento de 600 farmácias em 2013. Após a entrega da petição no Ministério da Saúde, os participantes na marcha deixaram também algumas chaves das farmácias em gesto simbólico de repúdio pela situação do sector. ENRIC VIVES-RUBIO PROTESTO ARTISTAS JUNTAM MILHARES EM MANIFESTAÇÃO ANTI-TROIKA Portugal, 18/19 Na Praça de Espanha, em Lisboa, juntaram-se ontem milhares de pessoas num protesto de artistas com muita música