Análise de obras literárias
macunaíma
mário Raul Morais
de andrade
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SumÁrio
1.
Contexto social e HISTÓRICO..................................................... 7
2.Estilo literário da época............................................................ 9
3.O AUTOR.................................................................................................. 12
4.
A OBRA..................................................................................................... 15
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5.Exercícios............................................................................................ 45
macunaíma
mário Raul Morais
de andrade
Macunaíma
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1. Contexto social e HISTÓRICO
Na História do Brasil, o período compreendido entre os anos de 1894 e
1930, aproximadamente, é chamado de República Velha, “a política do café com
leite”, porque ocupava a Presidência da República ora um governo mineiro,
ora um paulista, o que revela a importância dada à lavoura cafeeira somada à
pecuária. A manutenção desse regime dependia, sobretudo, do equilíbrio entre
a produção e a exportação de café. A elite agropecuária brasileira delegava ao
Estado o papel de comprador dos excedentes para garantir o preço em face das
oscilações de mercado. Exemplo típico dessa política foi o chamado Acordo de
Taubaté, em 1906, segundo o qual São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais se
comprometiam a retirar do mercado os excedentes da produção cafeeira para
garantir o nível dos preços.
A sociedade brasileira, no início do século XX sofreu transformações graças ao processo de urbanização e à vinda dos imigrantes europeus para a região
Centro-Sul do país. Entretanto, ao mesmo tempo em que principiou o processo de
industrialização na região Sudeste, a mão de obra desqualificada dos ex-escravos
foi marginalizada, deslocando-se para a periferia e para os morros; a cultura
canavieira do Nordeste entrou em declínio, pois esta não tinha como competir
com o apoio dado pelo governo federal à “política do café com leite”.
No final do século XIX e início do século XX, duas realidades coexistiam
no Brasil: de um lado, a urbanização da região Centro-Sul, com sua consequente
industrialização, e, de outro, o atraso das regiões Norte e Nordeste. E um terceiro fator, ainda mais grave, somava-se a este quadro: as oligarquias rurais com
seus arranjos políticos não representavam os novos extratos socioeconômicos.
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Mário Raul de Morais Andrade
O resultado disso foi o surgimento de um quadro caótico, que teve seu término
com a chamada Revolução de 30 e o Estado Novo, de Getúlio Vargas.
Na Bahia, ocorreu a chamada Guerra de Canudos; em Juazeiro, no Ceará,
o fenômeno do jagunço e a ação do Padre Cícero; os movimentos operários em
São Paulo; a criação do Partido Comunista; o tenentismo, que teve seu ápice na
Coluna Prestes, combatida por Arthur Bernardes e Washington Luís. É claro que
esses conflitos ocorreram em tempos e locais diversos, entre 1894 a 1930, parecendo exprimir, às vezes, problemas bem localizados. Entretanto, no conjunto,
revelavam a realidade de um país que se desenvolvia à custa de graves desequilíbrios. O estouro da Bolsa de Nova York em 1929 e o movimento tenentista
colocaram fim à República Velha, com a vitória na chamada Revolução de 1930,
dando início ao chamado Estado Novo ou Era Vargas.
Os intelectuais brasileiros da década de 1920 não ficaram alheios a essas
transformações. Em São Paulo e Rio de Janeiro, sobretudo, artistas e intelectuais,
em contato com as novas tendências do pensamento europeu, como o futurismo, o surrealismo, o dadaísmo, o expressionismo e o cubismo, prepararam um
evento, a chamada Semana de Arte Moderna, com o intuito de romper com a
mentalidade conservadora, representada na literatura pelos poetas parnasianos
e na política pelas oligarquias rurais.
De um modo geral, a maneira encontrada pelos artistas da década de 20 para
combater o formalismo parnasiano e a mentalidade acadêmica foi a valorização
do irracionalismo. Mário de Andrade, com a sua poética do “desvairismo”, publicada no “Prefácio interessantíssimo”, de Pauliceia desvairada, e Manuel Bandeira,
com sua teoria do “alumbramento”, a poesia como uma revelação, isto é, como
epifania, e toda a obra de Oswald de Andrade são três bons exemplos de atitude
artística e intelectual que procurava subverter a ordem existente.
Em 1927, Antônio de Alcântara Machado publica Brás, Bexiga e Barra Funda,
apresentando numa linguagem próxima à do jornalismo os contos e crônicas da
vida de um novo brasileiro, o imigrante italiano, e a sua inserção nas transformações da paisagem urbana paulista.
A década de 1930 marcou a ascensão dos grandes ditadores da primeira
metade do século: Hitler na Alemanha, Mussolini na Itália e, no Brasil, o governo
de Getúlio Vargas.
Na literatura, o período entre 1930 e 1945 foi o momento do posicionamento ideológico, político e social dos intelectuais brasileiros. A rebeldia estética da
primeira fase modernista cedeu lugar à literatura socialmente comprometida,
sobretudo no que diz respeito à prosa de ficção. É o momento do romance regionalista de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado e da poesia que se
ergue para defender a dignidade humana, como é o caso de A rosa do povo, de
Carlos Drummond de Andrade, publicado em 1945.
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2.Estilo literário da época
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Mário Raul de Morais Andrade
Em fevereiro de 1922, por sugestão do pintor Di Cavalcanti, um grupo
paulista, formado por Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Paulo Prado,
Guilherme de Almeida, Menotti del Picchia e outros, juntamente com escritores
mais jovens do Rio de Janeiro, como Ronald de Carvalho, Renato de Almeida e
alguns mais, promoveram no Teatro Municipal de São Paulo a chamada Semana
de Arte Moderna, com exposição de pintura e escultura, concertos, conferências
e declamações, inaugurando o movimento modernista brasileiro.
O modernismo brasileiro começou pelas artes plásticas. Em janeiro de 1917,
a pintora paulista Anita Malfatti realizou em São Paulo uma exposição de pintura,
na qual, além dos seus quadros, marcados por influências do expressionismo
alemão, apresentava também alguns quadros cubistas de pintores estrangeiros.
A exposição criou polêmica, ganhando a simpatia de uns e a antipatia de outros.
Monteiro Lobato escreveu um artigo cujo título era Mistificação ou paranoia?, negando valor artístico aos quadros. A exposição agradou, entretanto, a Mário de
Andrade e a Oswald de Andrade.
Em 1920, Oswald de Andrade conheceu o escultor Brecheret, cuja arte refletia a influência dos movimentos da vanguarda europeia, e em novembro desse
ano publicou um artigo intitulado O meu poeta futurista, citando versos de Mário
Andrade do livro Pauliceia desvairada, que só viria a ser publicado em 1922.
De um modo geral, a literatura dos modernistas, na chamada fase heroica do movimento ou Primeira Fase Modernista, entre 1922 e 1930, provocou a
subversão dos gêneros literários. A poesia aproximou-se da prosa e esta adotou
processos de elaboração da linguagem poética. Houve uma aproximação dos
diversos ismos europeus, os movimentos de vanguarda que procuravam romper
com as normas acadêmicas, como o expressionismo, o cubismo, o dadaísmo, o
futurismo, e o surrealismo.
A poesia abandonou as formas poéticas consagradas, como o verso com
métrica e rimas, exageradamente praticado pelos poetas parnasianos, e aderiu à linguagem coloquial, ao verso livre, aos temas do cotidiano, ao humor
e à ironia. Os modernistas desejavam provar que a poesia estava na essência
do que é dito e na sugestão ou no choque das palavras escolhidas, não nos
recursos formais.
Na fase mais combativa do modernismo brasileiro, de 1922 a 1930, a prosa
sofreu transformações significativas. Os períodos tornaram-se curtos, fragmentados, com espaços brancos na composição tipográfica e na própria sequência
do discurso, apresentando a realidade dividida em blocos sugestivos, cuja unificação exige do leitor uma adequação aos novos processos construtivos, uma
vez que dispensa a concatenação lógica (um bom exemplo é Brás, Bexiga e Barra
Funda, de Alcântara Machado). A aliteração (repetição dos sons das consoantes)
e a criação de neologismos passam a integrar a linguagem da prosa. O melhor
exemplo dessa técnica encontra-se em Memórias sentimentais de João Miramar, de
Oswald de Andrade.
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De 1930, data da publicação de Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade, a 1945, ano de morte de Mário de Andrade, temos o que se convencionou
chamar de a segunda fase do Modernismo. As grandes experiências técnicas com
a linguagem cederam importância aos temas sociais. Surge uma literatura que
procura denunciar certos aspectos da realidade brasileira, sobretudo na prosa.
Aí encontram-se os romances de Graciliano Ramos, como Vida secas (1938) e
S. Bernardo (1934), Jorge Amado, com Capitães da Areia (1937) e Terras do sem-fim
(1942), entre outros.
De 1945 em diante, temos a chamada terceira fase modernista. Alguns
estudiosos delimitam essa fase entre 1945, ano da morte de Mário de Andrade
e 1964, ano do Golpe Militar. A linguagem é empregada como instrumento da
busca do ser, sobretudo em João Guimarães Rosa, com Sagarana (1946), e Clarice
Lispector, com Perto do coração selvagem (1944), A paixão segundo G.H. (1964) e
A hora da estrela (1977).
Macunaíma – O herói sem nenhum caráter pertence à primeira fase do Modernismo. Mário de Andrade construiu uma narrativa fantástica, recriando
mitos indígenas e o folclore brasileiro, numa linguagem em tudo diferente da
linguagem literária dos períodos anteriores.
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Mário Raul de Morais Andrade
3.O AUTOR
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
As sensações renascem de si mesmas sem repouso,
Ôh espelhos, ôh! Pireneus! ôh caiçaras!
Si um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!
Abraço no meu leito as melhores palavras,
E os suspiros que dou são violinos alheios;
Eu piso a terra como quem descobre a furto
Nas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios beijos!
Eu sou trezentos, sou trezentos-e-cincoenta,
Mas um dia afinal eu toparei comigo...
Tenhamos paciência, andorinhas curtas,
Só o esquecimento é que condensa,
E então minha alma servirá de abrigo.
In: Remate de males, 1930.
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Macunaíma
Mário Raul de Morais Andrade nasceu e morreu em São Paulo (1893-1945).
Diplomado pelo Conservatório Dramático e Musical, onde foi catedrático de
História da Música, viveu como professor de piano, colaborador de jornais e,
mais tarde, funcionário público. Em 1917, estreou com versos insignificantes;
em 1920, escreveu o primeiro livro modernista, Pauliceia desvairada, publicado
em 1922, ano da famosa Semana de Arte Moderna, da qual foi uma das figuras
principais. Ao mesmo tempo, escreveu a teoria poética da renovação, A escrava
que não é Isaura, publicada em 1925. Em 1926, saiu Losango Cáqui, em que aplica
os princípios do livro anterior: simultaneísmo, elipse, valorização do cotidiano,
subversão dos temas tradicionais. A seguir, entra numa fase de nacionalismo
estético e pitoresco, com utilização do folclore e da etnografia, em busca de um
perfil brasileiro, do modo de ser brasileiro, o que obsedava [que se convertia em
ideia fixa] os renovadores. É o tempo em que publica, na poesia, Clã do jabuti;
na ficção, Macunaíma; em musicologia, Ensaio sobre a música brasileira. Mas simultaneamente ia buscando uma expressão menos exterior, uma língua menos
agressiva, uma manifestação mais sutil dos temas sociais e descritivos, cada
vez mais interiorizados pela meditação. É o que se torna patente com as obras
publicadas a partir de 1930. Em Remate de males, a sua poesia se desprende dos
maneirismos de primeira fase, do pitoresco externo e psicológico, revelando uma
tendência que será marcante nele: a capacidade de fundir, num movimento único, a pesquisa da sua alma e a pesquisa do seu país, como se fossem duas faces
da mesma experiência, irmanadas em certos símbolos de grande efeito: os ritos
primitivos, a terra sem males, a preguiça criadora, o caudal turvo e misterioso
dos grandes rios. Esta tendência irá aumentando até chegar ao seu último poema,
Meditação sobre o Tietê, em que alcança a fusão perfeita do coletivo e do pessoal,
numa articulação mágica de temas e imagens tirados de toda a sua obra anterior,
cuja coerência profunda é então revelada.
Essa evolução se manifestou também na prosa, de ficção e de ensaio.
É o caminho que vai de Primeiro andar à segura maturidade de Belazarte e à perfeição
quase clássica, para o gênero, dos Contos novos, revelando um contista soberano na
fixação do tema expressivo, na dosagem da emoção, na arte sutil da composição
literária e nos recursos de estilo. Esse estilo, muito pessoal e cada vez mais depurado, dá um toque inconfundível aos seus grandes livros de ensaios, dos mais altos
da nossa literatura, como os reunidos em Aspectos da literatura brasileira.
Em 1934 Mário de Andrade, foi chamado para dirigir o Departamento de
Cultura da Prefeitura de São Paulo, realizando, até 1937, uma obra notável nos
setores da educação infantil, da divulgação artística e da reforma musical. Em
1938, mudou-se para o Rio, onde foi crítico literário, professor de Estética na
Universidade do Distrito Federal e autor do plano da Enciclopédia Brasileira
do Ministério da Educação. Em 1940, voltou à cidade natal, como funcionário
do Serviço do Patrimônio Histórico, cuja ação orientou em São Paulo. Quando
morreu, estava em plena atividade de poeta, contista, crítico e pesquisador, deixando por publicar algumas das suas obras mais perfeitas.
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Mário Raul de Morais Andrade
Mário de Andrade foi, sem dúvida, o espírito mais vasto do Modernismo;
o mais versátil e culto, o que maior influência exerceu pelos escritos, pela atuação de homem público, pela irradiação pessoal e pela enorme correspondência.
Possuído pelo senso do dever, imprimiu à sua obra um caráter de missão, a serviço dos ideais de arte e pensamento que lhe pareciam adequados à renovação
do país. Ele próprio reconheceu, desde o início, que essa vocação participante
poderia dar à sua obra um cunho circunstancial, polêmico, comprometendo a
sua duração. Mas achava que o escritor tem deveres para com o momento e a
sociedade em que vive e aceitou o perigo, que de fato perturbou muito do que
fez, mas, em compensação, garantiu um alto valor de mensagem e de pesquisa
humana à maioria válida de sua vasta obra.
Bibliografia
Cronologia
a) Poesia: Há uma gota de sangue em cada poema, 1917; Pauliceia desvairada, 1922;
Losango Cáqui, 1926; Clã do jabuti, 1927; Remate de males, 1930; Poesias, 1941;
Lira paulistana seguida d’o carro da miséria, 1946; Poesias completas, 1945.
b) Ficção: Primeiro andar, contos, 1926; Amar, verbo intransitivo, romance, 1927;
Macunaíma, rapsódia, 1928; Belazarte, 1934; Contos novos, 1946.
c)Ensaio: A escrava que não é Isaura, 1925; O Aleijadinho e Álvares de Azevedo, 1935;
O baile das quatro artes, 1943; Aspectos da Literatura Brasileira, 1943; O empalhador
de passarinho, 1944.
d)Crônica: Os filhos da Candinha, 1943.
e) Musicologia e folclore: Ensaio sobre a música brasileira, 1928; Compêndio de história
da música, 1929; Modinhas imperiais, 1930; Música, doce música, 1933; Namoros com
a medicina, 1939; Música do Brasil, 1941; Danças dramáticas do Brasil, 3 volumes;
Música da feitiçaria no Brasil, 1963.
f) História da Arte: O padre jesuíno do monte Carmelo, 1946. (Além de um grande
número de opúsculos, folhetos etc., reunidos em volumes das obras.)
g) Cartas: Cartas a Manuel Bandeira, 1958; 71 cartas de Mário de Andrade, coligidas e anotadas por Lygia Fernandes, s/d.; Mário de Andrade escreve, Cartas
coligidas e anotadas por Lygia Fernandes, Rio de Janeiro, Editora do Autor,
1968.
CANDIDO, Antonio e CASTELLO, José Aderaldo. Presença da literatura brasileira: modernismo. 9. ed. v.3. São Paulo: Difel, 1983, p. 85-87.
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Macunaíma
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4.A OBRA
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Mário Raul de Morais Andrade
Segundo o próprio Mário de Andrade, Macunaíma foi escrito em apenas
seis dias, durante um período de férias, na Chácara da Sapucaia, em Araraquara,
interior de São Paulo, no ano de 1926. Grande pesquisador do folclore brasileiro e
da cultura indígena, Mário de Andrade afirmava: “Gastei muita pouca invenção
neste poema fácil de escrever (...). Este livro afinal não passa duma antologia do
folclore brasileiro.”
O livro que serviu de fonte para o autor colher lendas indígenas foi a obra
do alemão Koch Grumberg, intitulada Do Roaraima ao Orenoco, publicada entre
1916 e 1924. Entretanto, Mário também empregou outras fontes, tomada a outros
pesquisadores da cultura popular e indígena, mesclando-as e transformando-as
no que denominou de rapsódia. Rapsódia vem a ser uma miscelânea de histórias
amalgamadas e com um fio condutor. Macunaíma seria uma rapsódia porque
seu autor amalgamou diversas lendas, folclore e “causos populares” oriundos
de várias fontes, dando-lhes um fio narrativo condutor, que no caso é a perda
do amuleto que Ci, a Mãe do Mato, deu ao herói, o que o obrigou a deixar a
Amazônia e ir para São Paulo.
A maneira como o autor empregou as diversas fontes, selecionando-as e
utilizando-as conforme sua necessidade, aproxima-o daquilo que Oswald de
Andrade chamou de Antropofagia (utilização de diversas fontes, nacionais e
estrangeiras, que devem ser “devoradas” e recriadas pelos nossos autores, de
acordo com a necessidade brasileira).
O nome do herói da narrativa, Macunaíma, significa, segundo o crítico
Haroldo de Campos, o grande mau; Maku equivale a mau e Ima, a grande.
Estudioso que era da obra de Sigmund Freud, o criador da psicanálise,
Mário de Andrade imprimiu ao seu herói certos elementos da teoria freudiana,
apresentando Macunaíma como um ser que se move basicamente em função do
desejo e do medo, sem jamais absorver uma disciplina moral capaz de conter
seus impulsos mais primitivos. Exatamente porque não absorve nenhum valor
moral e nenhum valor cultural (nem do branco, nem do índio, nem do negro)
Macunaíma é “o herói sem nenhum caráter”. Ele é um pouco de tudo, por isso
não tem uma etnia e nem uma cultura capaz de lhe emprestar uma unidade, um
perfil de coerência às suas atitudes. Ou ainda melhor, a essa fusão de culturas,
a que Mário chamava de “caldo de cultura”, somada às três raças a presença
dos imigrantes do começo do século, teríamos um ser ainda indefinido a que
chamamos brasileiro. A esta ausência de caráter poderíamos atribuir aquilo a
que chamamos de “malandragem”, se entendermos por malandragem a transição entre a ordem e a desordem, a lei e a transgressão, enfim, a maneira de
agir e reagir, ante os fatos, sem nenhum sentimento de culpa. Macunaíma age
por desejo e por medo, procurando satisfazer seus instintos, jamais reprime
seus desejos em função de uma norma, de uma lei. Ele quebra todos os tabus
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Macunaíma
(gera inclusive um filho homem com uma guerreira amazona, a Ci, Mãe do
Mato), o que revela sua incapacidade de seguir e obedecer às normas vigentes.
A satisfação pessoal é a sua meta.
Da primeira à última página da narrativa, Macunaíma está em constante
metamorfose, inclusive se transformando na constelação da Ursa Maior, o que
alude às diversas facetas do herói e da cultura brasileira, pois a falta de unidade
propicia a multiplicidade. Assim, a marca da cultura brasileira é a sua falta de
unidade, o que lhe confere um caráter múltiplo; para Mário, a cultura brasileira
estaria em gestação.
O próprio Mário de Andrade chegou a escrever: O que me interessou por
Macunaíma foi incontestavelmente a preocupação em que vivo de trabalhar e descobrir
o mais que possa a entidade nacional dos brasileiros. Ora, depois de pelejar muito
verifiquei uma coisa que me parece certa: o brasileiro não tem caráter. Pode ser que
alguém já tenha falado isso antes de mim porém a minha conclusão é uma novidade
para mim porque tirada da minha experiência pessoal. E com a palavra caráter não
determino apenas uma realidade moral não, em vez entendo a entidade psíquica permanente, se manifestando por tudo, nos costumes na ação exterior no sentimento na
língua na História na andadura, tanto no bem como no mal. O brasileiro não tem
caráter porque não possui nem civilização própria nem consciência tradicional.
Os franceses têm caráter e assim os jorubas e os mexicanos. Seja porque a
civilização própria, perigo iminente, ou consciência de séculos tenham auxiliado, o
certo é que esses uns têm caráter. Brasileiro não. Está que nem o rapaz de vinte anos:
a gente mais ou menos pode perceber tendências gerais, mas ainda não é tempo de
afirmar coisa nenhuma.
Simbolicamente, Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, é um “modo
de ser brasileiro”, caracterizado como luxurioso, preguiçoso e sonhador. Ele
teria como “parentes” Leonardinho, o personagem de Memórias de um sargento
de milícias, de Manuel Antônio de Almeida, Serafim ponte grande, personagem
de Serafim ponte grande, de Oswald de Andrade, e até mesmo Brás Cubas, personagem de Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis.
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O estilo de Macunaíma
Assim como Mário de Andrade empregou diversas fontes na construção de
sua rapsódia, também empregou diversos modos de narrar. Há, em Macunaíma,
um estilo solene, como se percebe na abertura da obra: No fundo do mato-virgem
nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto retinto e filho do medo da noite.
Houve um momento em que o silêncio foi tão grande escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia. Essa criança é que chamaram
de Macunaíma.
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Mário Raul de Morais Andrade
Há um estilo cômico, leve, como se percebe na seguinte passagem:
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não
falando. Si o incitavam a falar exclamava:
– Ai! que preguiça!...
e não dizia mais nada.
(Repare: para o autor, o brasileiro já nasceu cansado.)
Há também um estilo de paródia do português castiço dos cronistas e
dos parnasianos: É São Paulo construída sobre sete colinas, à feição tradicional de
Roma, a cidade cesárea, “capita” da Latinidade de que provimos; e beija-lhe os pés
grácil e inquieta linfa do Tietê. As águas são magníficas, os ares tão amenos quanto os
de Aquisgrana ou de Anverres, e a área tão a eles igual em salubridade e abundância,
que bem a pudera afirmar, ao modo fino dos cronistas, que de três AAA se gera espontaneamente a fauna urbana.
A linguagem de Macunaíma
O leitor atual, não raramente, assusta-se com a linguagem de Mário de
Andrade. É importante saber que um dos principais projetos do autor era o
emprego da fala brasileira em nível culto. Mário provoca alterações na grafia e
na sintaxe da língua, procurando aproximá-la da fala popular. Daí grafar Si e
não Se, Ólio e não Óleo; evitar o emprego das vírgulas em conformidade com as
normas gramaticais e empregar diversas expressões da língua falada de diferentes
regiões do país, com o intuito de desregionalizar a obra, procurando atribuir à
“língua brasileira” um aspecto de unidade.
O foco narrativo
Em Macunaíma, predomina o foco narrativo em terceira pessoa.
Espaço e tempo
Em Macunaíma, o tempo e o espaço são fantásticos, não obedecendo às
regras da linearidade das narrativas tradicionais. Magicamente, Macunaíma
ora está em São Paulo, ora no Rio, ora em Mato Grosso, ora em Pernambuco,
percorrendo as distâncias num tempo próprio ao das narrativas fantásticas.
O passado e o presente se unem, o que possibilita a Macunaíma falar com João
Ramalho, histórica figura do século XVI.
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Macunaíma
O enredo
Macunaíma contém 17 capítulos e um epílogo.
Capítulo 1
No fundo do mato-virgem nasceu Macunaíma, herói de nossa gente. Era preto
retinto e filho do medo da noite. Houve um momento em que o silêncio foi tão grande
escutando o murmurejo do Uraricoera, que a índia tapanhumas pariu uma criança feia.
Essa criança é que chamaram de Macunaíma.
Já na meninice fez coisas de sarapantar. De primeiro passou mais de seis anos não
falando. Si o incitavam a falar, exclamava:
– Ai! que preguiça!...
E não dizia mais nada. Ficava no canto da maloca, trepado no jirau de paxiúba,
espiando o trabalho dos outros e principalmente os dois manos que tinha, Maanape já
velhinho e Jiguê na força de homem. O divertimento dele era decepar cabeça de saúva.
Vivia deitado mas si punha os olhos em dinheiro, Macunaíma dandava pra ganhar
vintém. E também espertava quando a família ia tomar banho no rio, todos juntos e
nus. Passava o tempo do banho dando mergulho, e as mulheres soltavam gritos gozados
por causa dos guaimuns diz-que habitando a água doce por lá. No mucambo si alguma
cunhatã se aproximava dele para fazer festinha, Macunaíma punha a mão nas graças
dela, cunhatã se afastava. Nos machos guspia na cara. Porém respeitava os velhos e frequentava com aplicação a murua a poracê o torcê o bacorocô a cucuicogue, todas essas
danças religiosas da tribo. [Repare como o autor dá os nomes e em seguida explica
seus significados.]
Quando era pra dormir trepava no macuru pequenininho sempre se esquecendo
de mijar. Como a rede da mãe estava debaixo do berço, o herói mijava quente na velha,
espantando os mosquitos bem. Então adormecia sonhando palavras feias, imoralidades
estrambólicas e dava patadas no ar.
Nas conversas das mulheres no pino do dia o assunto eram sempre as peraltagens
do herói. As mulheres se riam muito simpatizadas, falando que “espinho que pinica, de
pequeno já traz ponta”, e numa pajelança Rei Nagô fez um discurso e avisou que o herói
era inteligente.
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O capítulo de abertura apresenta o herói, ou melhor dizendo, o anti-herói da narrativa, pois, contrário a todo herói típico, Macunaíma já nasce cansado e pensa sempre
em agir em causa própria. Desde criança “brinca”, isto é, faz amor com Sofará, mulher
de seu irmão Jiguê, metamorfoseando-se num príncipe lindo. Macunaíma caça uma anta,
mas o irmão só lhe dá para comer as tripas.
Desconfiado, Jiguê descobre as brincadeiras de Macunaíma com Sofará e dá uma
surra, com rabo-de-tatu, no herói com rabo-de-tatu e devolve Sofará ao pai dela.
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Mário Raul de Morais Andrade
Capítulo 2
Jiguê era muito bobo e no outro dia apareceu puxando pela mão uma cunhã. Era
a companheira nova dele e chamava Iriqui. Ela trazia sempre um ratão vivo escondido
na maçaroca dos cabelos e faceirava muito. Pintava a cara com araraúba e jenipapo e
todas as manhãs passava coquinho de açaí nos beiços que ficavam totalmente roxos.
Depois esfregava limão-de-caiena por cima e os beiços viravam totalmente encarnados. Então Iriqui se envolvia num manto de algodão listrado com preto de acariúba
e verde de tatajuba e aromava os cabelos com essência de umiri, era linda.
Ora depois de todos comerem a anta de Macunaíma a fome bateu no mucambo.
Caça, ninguém não pegava caça mais, nem algum tatu-galinha aparecia! e por causa
de Maanape ter matado um boto pra comerem, o sapo canauru chamado Maraguigana
pai do boto ficou enfezado. Mandou a enchente e o milharal apodreceu. Comeram
tudo, até a crueira dura se acabou e o fogaréu de noite e dia não moqueava nada não,
era só pra remediar a friagem que caiu. Não havia pra gente assar nele nem uma
isca de jobá.
Então Macunaíma quis se divertir um pouco. Falou pros manos que inda tinha
muita piaba muito jeju muito matrinchão e jatuaranas, todos esses peixes do rio,
fossem bater timbó! Maanape disse:
– Não se encontra mais timbó.
Macunaíma disfarçando secundou:
– Junto daquela grota onde tem dinheiro enterrado enxerguei um despotismo
de timbó.
– Então venha com a gente pra mostrar onde que é.
Foram. A margem estava traiçoeira e nem se achava bem o que era terra o
que era rio entre as mamoranas copadas. Maanape e Jiguê procuravam procuravam
enlameados até os dentes, degringolando juque! nos barreiros ocultos pela inundação. E pulapulavam se livrando dos buracos, aos berros, com as mãos pra trás por
causa dos candirus safadinhos querendo entrar por eles. Macunaíma ria por dentro
vendo as micagens dos manos campeando timbó. Fingia campear também mas não
dava passo não, bem enxutinho no firme. Quando os manos passavam perto dele, se
agachava e gemia de fadiga.
– Deixe de trabucar assim, piá!
Então Macunaíma sentou numa barranca do rio e batendo com os pés n’água
espantou os mosquitos. E eram muitos mosquitos piuns maruins arurus tatuquiras
muriçocas meruanhas mariguis borrachudos varejas, toda essa mosquitada. [Repare
como Mário de Andrade cita os nomes e explica o que é. Repare também na
ausência de vírgulas.]
Quando foi de-tardezinha os manos vieram buscar Macunaíma tiriricas por
não terem topado com nenhum pé de timbó. O herói teve medo e disfarçou:
– Acharam?
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Macunaíma
– Que achamos nada!
– Pois foi aqui mesmo que enxerguei timbó. Timbó já foi gente um dia que
nem nós... Presenciou que andavam campeando ele e soverteu. Timbó foi gente um
dia que nem nós...
Os manos se admiraram da inteligência do menino e voltaram os três pra
maloca.
Macunaíma estava muito contrariado por causa da fome. No outro dia falou
pra velha:
– Mãe, quem que leva nossa casa pra outra banda do rio lá no teso, quem que
leva? Fecha os olhos um bocadinho, velha, e pergunta assim.
A velha fez. Macunaíma pediu para ela ficar mais tempo com os olhos fechados
e carregou tejupar marombas flechas piquás sapiquás corotes urupemas redes, todos
esses trens pra um aberto do mato lá no teso do outro lado do rio. Quando a velha
abriu os olhos estava lá e tinha caça e peixes, bananeiras dando, tinha comida por
demais. Então foi cortar banana.
– Inda que mal lhe pergunte, mãe, por que a senhora arranca tanta pacova
assim!
– Levar pra vosso mano Jiguê com a linda Iriqui e pra vosso mano Maanape
que estão padecendo fome.
Macunaíma ficou muito contrariado. Maginou maginou e disse pra velha:
– Mãe, quem que leva nossa casa pra outra banda do rio lá no teso, quem que
leva? Fecha os olhos um bocadinho, velha, e pergunta assim.
A velha fez. Macunaíma pediu pra ela ficar com os olhos fechados e levou todos os carregos, tudo, pro lugar em que estavam de já-hoje no mondongo inundado.
Quando a velha abriu os olhos tudo estava no lugar de dantes, vizinhando com os
tejupares de mano Maanape e de mano Jiguê com a linda Iriqui. E todos ficaram
roncando de fome outra vez.
Então a velha teve uma raiva malvada. Carregou o herói na cintura e partiu.
Atravessou o mato e chegou no capoeirão chamado Cafundó do Judas. Andou légua
e meia nele, nem se enxergava mato mais, era um coberto plano apenas movimentado
com o pulinho dos cajueiros. Nem guaxe animava a solidão. A velha botou o curumim
no campo onde ele podia crescer mais não e falou:
– Agora vossa mãe vai embora. Tu ficas perdido no coberto e podes crescer
mais não.
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A mãe de Macunaíma o abandonou no mato, pois o herói havia aprontado
muitas. Havia enganado os irmãos e havia se negado a compartilhar com eles o
alimento de que todos necessitavam.
21
Mário Raul de Morais Andrade
O herói, então, botou o pé na estrada e se deparou com o Curupira, que
comia um pedaço de carne. Macunaíma pediu-lhe um pedaço de carne para
comer. O Curupira cortou um pedaço da própria perna e deu para o herói. Por
fim, Macunaíma perguntou ao Curupira qual era o caminho de volta para casa.
Este lhe ensinou um caminho errado, que o herói, por preguiça, não seguiu.
Na sequência, Macunaíma se encontrou com a cotia e contou-lhe como havia
conseguido enganar o Curupira. A cotia, então, jogou uma calda de mandioca
envenenada no herói, que conseguiu apenas evitar que a calda lhe atingisse a
cabeça. Magicamente, Macunaíma virou adulto. (Eis uma ideia do autor: o brasileiro tem corpo de adulto e cabeça de criança.)
Adulto, o herói retornou à aldeia e “brincou” com a mulher de Jiguê, a bela
Iriqui. Durante uma caçada mágica, o herói matou uma viada, mas esta era a
própria mãe. Os manos enterraram a mãe, que virou um cerro macio, e partiram
os quatro, Macunaíma, Maanape, Jiguê e Iriqui, para o mundo.
Capítulo 3
Ci, a Mãe do Mato
Uma feita os quatro iam seguindo por um caminho no mato e estavam penando
muito de sede, longe dos igapós e das lagoas. Não tinha mesmo umbu no barro e Vei,
a Sol, esfiapando por entre a folhagem guascava sem parada o lombo dos andarengos.
Suavam como numa pajelança em que todos tivessem besuntado o corpo com azeite
de piquiá, marchavam. De repente Macunaíma parou riscando a noite do silêncio
com um gesto imenso de alerta. Os outros estacaram. Não se escutava nada porém
Macunaíma sussurrou:
– Tem coisa.
Deixaram a linda Iriqui se enfeitando sentada nas raízes duma samaúma e
avançaram cautelosos. Já Vei estava farta de tanto guascar o lombo dos três manos
quando légua e meia adiante Macunaíma escoteiro topou com uma cunhã dormindo.
Era Ci, Mãe do Mato. Logo viu pelo peito destro seco dela, que a moça fazia parte
dessa tribo de mulheres sozinhas parando lá nas praias da lagoa Espelho da Lua,
coada pelo Nhamundá. A cunhã era linda com o corpo chupado pelos vícios, colorido
com jenipapo.
O herói se atirou por cima dela pra brincar. Ci não queria. Fez lança de flecha
tridente enquanto Macunaíma puxava da pajeú. Foi um pega tremendo e por debaixo da
copada reboavam os berros dos briguentos diminuindo de medo os corpos dos passarinhos.
O herói apanhava. Recebera já um murro de fazer sangue no nariz e um lapo fundo de
txara no rabo. A icamiaba não tinha nem um arranhãozinho e cada gesto que fazia era
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Macunaíma
mais sangue no corpo do herói soltando berros formidandos que diminuíam de medo os
corpos dos passarinhos. Afinal se vendo nas amarelas porque não podia mesmo com a
icamiaba, o herói deitou fugindo chamando pelos manos:
– Me acudam que sinão eu mato! me acudam que sinão eu mato!
Os manos vieram e agarraram Ci. Maanape trançou os braços dela por detrás
enquanto Jiguê com a murucu lhe dava uma porrada no coco. E a icamiaba caiu sem
auxílio nas samambaias da serrapilheira. Quando ficou bem imóvel, Macunaíma se
aproximou e brincou com a Mãe do Mato. Vieram então muitas jandaias, muitas
araras vermelhas tuins coricas periquitos, muitos papagaios saudar Macunaíma, o
novo Imperador do Mato-Virgem.
E os três manos seguiram com a companheira nova. Atravessaram a cidade das
Flores evitaram o rio das Amarguras passando por debaixo do salto da Felicidade,
tomaram a estrada dos Prazeres e chegaram no capão de Meu Bem que fica nos cerros
da Venezuela. Foi de lá que Macunaíma imperou sobre os matos misteriosos, enquanto
Ci comandava nos assaltos as mulheres empunhando txaras de três pontas.
O herói vivia sossegado. Passava os dias marupiara na rede matando formigas
taioca, chupitando golinhos estalados de pajuari e quando agarrava cantando acompanhado pelos sons gotejantes do cotcho, os matos reboavam com doçura adormecendo
as cobras os carrapatos os mosquitos as formigas e os deuses ruins.
De-noite Ci chegava rescendendo resina de pau, sangrando das brigas e trepava
na rede que ela mesma tecera com fios de cabelo. Os dois brincavam e depois ficavam
rindo um pro outro.
Ficavam rindo longo tempo, bem juntos. Ci aromava tanto que Macunaíma
tinha tonteiras de moleza.
– Puxa! como você cheira, benzinho?
que ele murmuriava gozado. E escancarava as narinas mais. Vinha uma tonteira tão macota que o sono principiava pingando das pálpebras dele. Porém a Mãe
do Mato inda não estava satisfeita não e com um jeito de rede que enlaçava os dois
convidava o companheiro para mais brinquedo. Morto de soneira, infernizado, Macuanaíma brincava para não desmentir a fama só, porém quando Ci queria rir com
ele de satisfação:
– Ai! que preguiça!...
que o herói suspirava enfarado. E dando as costas pra ela adormecia bem. Mas
Ci queria brincar inda mais... Convidava convidava... O herói ferrado no sono. Então a
Mãe do Mato pegava na txara e cotucava o companheiro. Macunaíma se acordava dando
grandes gargalhadas estorcegando de cócegas.
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– Faz isso não, oferecida!
– Faço!
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Mário Raul de Morais Andrade
– Deixa a gente dormir, seu bem...
– Vamos brincar.
– Ai! que preguiça!...
E brincavam mais outra vez.
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Caminhando com os irmãos pelo mato, Macunaíma encontra uma guerreira amazona e tenta “brincar” com ela. Leva uma tremenda surra. Porém,
com o auxílio dos manos, consegue o que queria e acaba se transformando no
Imperador do Mato-Virgem.
As inúmeras “brincadeiras” com Ci resultam no nascimento de um curumim, que a Mãe do Mato deveria matar, porque, segundo a lenda, uma guerreira amazona só poderia deixar viver o filho do sexo feminino. Eles quebram
o tabu.
O filho, porém, morre muito cedo após mamar no único seio de Ci, envenenado pela Cobra Preta. Enterrado, o filho se transforma na planta do guaraná.
Ci sobe para o céu e vira a constelação de Beta do Centauro. Antes, porém, dera
ao herói um amuleto – a muiraquitã.
Capítulo 4
Boiúna Luna
Com muitas saudades de Ci, o Imperador do Mato Virgem despediu-se
das Icamiabas (as guerreira amazonas) e partiu em direção às matas misteriosas,
sempre acompanhado pelas araras vermelhas.
Macunaíma depara-se com o monstro Capei, que solta uma nuvem de
marimbondos pela goela. Vence o monstro, mas acaba perdendo a muiraquitã.
Na passagem a seguir, temos o momento em que o herói descobre que sua
muiraquitã está nas mãos de Venceslau Pietro Pietra, que mora em São Paulo,
e a decisão que ele toma de partir rumo à cidade grande. Os irmãos seguirão
com ele.
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Uma feita em que deitara numa sombra enquanto esperava os manos pescando,
o Negrinho do Pastoreio pra quem Macunaíma rezava diariamente, se apiedou do
panema e resolveu ajudá-lo. Mandou passarinho uirapuru. Quando sinão quando
o herói escutou um tatalar inquieto e o passarinho uirapuru pousou no joelho dele.
Macunaíma fez um gesto de caceteação e enxotou o passarinho uirapuru. Nem bem
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Macunaíma
minuto passado escutou de novo o bulha e o passarinho pousou na barriga dele.
Macunaíma nem se amolou mais. Então o passarinho uirapuru agarrou cantando
com doçura e o herói entendeu tudo o que ele cantava. E era que Macunaíma estava
desinfeliz porque perdera a muiraquitã na praia do rio quando subia no bacupari.
Porém agora, cantava o lamento do uirapuru, nunca mais que Macaunaíma havia
de ser marupiara não, porque uma tracajá engolira a muiraquitã e o mariscador que
apanhara a tartaruga tinha vendido a pedra verde pra um regatão peruano se chamando Venceslau Pietro Pietra. O dono do talismã enriquecera e parava fazendeiro
e baludo lá no São Paulo, a cidade macota lambida pelo iguarapé Tietê.
Dito isso o passarinho uirapuru executou uma letra no ar e desapareceu. Quando
os manos chegaram da pesca, Macunaíma falou pra eles:
– Ia andando por um caminho negaceando um catingueiro e vai, presenciei um friúme no costado. Botei a mão e saiu uma lacraia mansa que me falou toda a verdade.
Então Macunaíma contou o paradeiro da muiraquitã e disse pros manos que
estava disposto a ir em São Paulo procurar esse tal Venceslau Pietro Pietra e retomar
o temberá roubado.
...e cascavel faça ninho si eu não topo coma muiraquitã! Si vocês venham comigo muito que bem, si não, homem, antes só do que mal acompanhado! Mas eu tenho
opinião de sapo e quando encasqueto uma coisa aguento firme no toco. Hei de ir pra
tirar a prosa do passarinho uirapuru, minto! da lacraia.
Depois que discursou Macunaíma deu uma grande gargalhada imaginando na
peça que pregava no passarinho. Maanape e Jiguê resolveram ir com ele, mesmo porque
o herói carecia de proteção.
Capítulo 5
Piaimã
Na companhia dos irmãos, Macunaíma desce o Araguaia e segue em
direção a São Paulo. No caminho, encontra uma fonte mágica, banha-se nela e
fica branco. A chegada a São Paulo é um ponto alto da narrativa, pois Mário de
Andrade inverte todos os relatos dos viajantes e cronistas dos séculos XVI e XVII
e apresenta o modo como o índio vê a chamada vida urbana e civilizada.
Macunaíma descobre que Venceslau Pietro Pietra é na verdade o gigante
Piaimã, comedor de gente, que vivia na companhia de uma caapora velha de
nome Ceiuci. Na primeira tentativa de readquirir a posse da muiraquitã, o herói
morre; mas é magicamente ressuscitado por Maanape, o feiticeiro. Na sequência,
aparecem duas cenas: a irônica versão de Mário de Andrade sobre a origem das
raças e as primeiras impressões do herói sobre a cidade de São Paulo.
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Mário Raul de Morais Andrade
Uma feita a Sol cobrira os três manos duma escaminha de suor e Macunaíma
se lembrou de tomar banho. Porém no rio era impossível por causa das piranhas tão
vorazes que de quando em quando na luta pra pegar um naco de irmã despedaçada,
pulavam aos chopos pra fora d’água metro e mais. [Repare que Mário de Andrade
coloca propositadamente uma vírgula condenada pela sintaxe, pois separa
o sujeito do predicado. O objetivo da vírgula é aproximar o texto escrito da
fala popular.] Então Macunaíma enxergou numa lapa bem no meio do rio uma
cova cheia d’água. E a cova era que nem a marca dum pé gigante. Abicaram. O
herói depois de muitos gritos por causa do frio da água entrou na cova e se lavou
inteirinho.
Mas a água era encantada porque aquele buraco na lapa era marca do pezão do
Sumé, do tempo em que andava pregando o evangelho de Jesus pra indiada brasileira.
Quando o herói saiu do banho estava branco louro e de olhos azuizinhos, água lavara
o pretume dele. E ninguém não seria capaz mais de indicar nele um filho da tribo
retinta dos Tapanhumas.
Nem bem Jiguê percebeu o milagre, se atirou na marca do pezão do Sumé. Porém
a água já estava muito suja da negrura do herói e por mais que Jiguê esfregasse feito
maluco atirando água pra todos os lados só conseguiu ficar da cor do bronze novo.
Macunaíma teve dó e consolou:
– Olhe, mano Jiguê, branco você ficou não, porém pretume foi-se e antes fanhoso
que sem nariz.
Maanape então é que foi se lavar, mas Jiguê esborrifara toda a água encantada
pra fora da cova. Tinha só um bocado lá no fundo e Maanape conseguiu molhar só a
palma dos pés e das mãos. Por isso ficou negro bem filho da tribo dos Tapanhumas.
Só que as palmas das mãos e dos pés dele são vermelhas por terem se limpado na água
santa. Macunaíma teve dó e consolou:
– Não se avexe, mano maanape, não se avexe não, mais sofreu nosso tio Judas.
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Foi numa boca-da-noite fria que os manos toparam com a cidade macota de São
Paulo esparramada a beira-rio do igarapé Tietê. Primeiro foi a gritaria da papagaiada
imperial se despedindo do herói. E lá se foi o bando sarapintado volvendo pros matos
do norte.
Os manos entraram num cerrado cheio de inajás ouricuris ubussus bacabas
mucajás miritis tucumãs trazendo no curuatá uma penacha de fumo em vez de palmas e cocos. Todas as estrelas tinham descido do céu branco de tão molhado de garoa
e banzavam pela cidade. Macunaíma lembrou de procurar Ci. Êh! dessa ele nunca
poderia esquecer não, porque a rede feiticeira que ela armara pros brinquedos, fora
tecida com os próprios cabelos dela e isso torna a tecedeira inesquecível. Macunaíma
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Macunaíma
campeou campeou estrelas mas as estradas e terreiros estavam apinhados de cunhãs
tão brancas tão alvinhas, tão!... Macunaíma gemia. Roçava nas cunhãs murmurejando com doçura: “Mani! Mani! Filhinhas da mandioca...” perdido de gosto e tanta
formosura. Afinal escolheu três. Brincou com elas na rede estranha plantada no chão,
numa maloca mais alta que a Paranaguara. Depois, por causa daquela rede ser dura,
dormiu atravessado sobre os corpos das cunhãs. E a noite custou pra ele quatrocentos
bagarotes. [Repare que Macunaíma passou a noite com as prostitutas.]
A inteligência do herói estava muito perturbada. Acordou com os berros da
bicharia lá em baixo nas ruas, disparando entre as malocas temíveis. E aquele diacho
de sangui-açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho em que dormira...Que mundo
de bichos! que despropósito de papões roncando, amuaris juraparis sacis e boitatás
nos atalhos nas socavas nas cordas dos morros furados por grotões donde gentana
saía muito branquinha branquíssima, de certo a filharada da filha da mandioca!...
A inteligência do herói estava muito perturbada. As cunhãs rindo tinham ensinado
pra ele que o sagui-açu não era saguim não, chamava elevador e era uma máquina.
De-manhãzinha ensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadas sopros roncos
esturros não eram nada disso não, eram mas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo
era máquina. As onças pardas não eram onças pardas, se chamavam fordes hupmobiles
chevrolés dodges mármons e eram máquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de
curuatás de fumo, em vez eram caminhões bondes autobondes anúncios-luminosos
relógios faróis rádios motocicletas telefones gorjetas postes chaminés...Eram máquinas e tudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo calado. De vez em quando
estremecia. Voltava a ficar imóvel escutando assuntando maquinando numa cisma
assombrada. Tomou-o um respeito cheio de inveja por essa deusa de deveras forçuda,
Tupã famanado que os filhos da mandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira
que a Mãe-d’água, em bulhas de sarapantar.
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Então resolveu ir brincar com a Máquina pra ser também imperador dos filhos
da mandioca. Mas as três cunhãs deram muitas risadas e falaram que isso de deuses
era gorda mentira antiga, que não tinha deus não e que com a máquina ninguém
não brinca porque ela mata. A máquina não era deus não, nem possuía os distintivos femininos de que o herói gostava tanto. Era feita pelos homens. Se mexia com
a eletricidade com fogo com água com vento com fumo, os homens aproveitando as
forças da natureza. Porém jacaré acreditou? nem o herói! Se levantou na cama e com
um gesto, esse sim! bem guaçu de desdém, to! batendo o antebraço esquerdo dentro
do outro dobrado, mexeu com energia a munheca direita pras três cunhãs e partiu.
Nesse instante, falam, ele inventou o gesto famanado da ofensa: a pacova. [O gesto
de dar banana.]
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Mário Raul de Morais Andrade
Capítulo 6
A francesa e o gigante
Falhada a primeira tentativa de readquirir a muiraquitã, Macunaíma resolve se vestir de francesa para seduzir Venceslau Pietro Pietra e conseguir, desse
modo, a posse do objeto desejado. O mercador deixa claro para a francesa que
não emprestaria e não venderia a muiraquitã, mas poderia dar-lhe como presente
se a francesa “brincasse” com ele. Macunaíma, diante de tal situação, põe-se a
correr e nessa corrida percorre grande extensão do território brasileiro.
Então Macunaíma emprestou da patroa da pensão uns pares de bonitezas, a
máquina ruge, a máquina meia-de-seda, a máquina combinação com cheiro de cascasacaca, a máquina cinta aromada com capim cheiroso, a máquina de decoletê úmida
e patchuli, a máquina mitenes, todas essas bonitezas, dependurou dois mangarás nos
peitos e se vestiu assim. Pra completar inda barreou com azul de pau compeche os
olhinhos de piá que se tornaram lânguidos. Era tanta coisa que ficou pesado mas virou
numa francesa tão linda que se defumou com jurema e alfinetou um raminho de pinhão
paraguaio no patriotismo para evitar quebranto. E foi no palácio de Venceslau Pietro
Pietra. E Venceslau Pietro Pietra era o gigante Piaimã comedor de gente.
Saindo da pensão Macunaíma topou com um beija-flor com rabo de tesoura. Não
gostou da caguira não e pensou abandonar o randevu porém como promessa é dívida
fez um esconjuro e seguiu.
Lá chegando encontrou o gigante no portão, esperando. Depois de muitos salamaleques Piaimã tirou os carrapatos da francesa e levou-a pra uma alcova lindíssima com
esteios de acaricoara e tesouras de itaúba. O assoalho era um xadrez de muirapiranga e
pau-cetim. A alcova estava mobiliada com as famosas redes brancas do Maranhão. Bem
no centro havia mesa de jacarandá esculpido arranjada com louça branco-encarnada de
Breves e cerâmica de Belém, disposta sobre uma toalha de rendas tecidas com fibras de
bananeira. Numas bacias enormes originadas das cavernas do rio Gunani fumegava
tacacá com tucupi, sopa feita com um paulista vindo dos frigoríficos da Continental,
uma jacarezada e polenta. Os vinhos eram um Puro de Ica subidor vindo de Iquitos, um
Porto imitação, de Minas, uma caiçuma de oitenta anos, champanha de São Paulo bem
gelada e um extrato de jenipapo famanado e ruim como três dias de chuva. E inda havia
dispostos com arte enfeitadeira e muitos recortados de papel, os esplêndidos bombons
Falchi e biscoitos do Rio Grande empilhados em cuias dum preto brilhante de cumaté
com desenhos esculpidos a canivete, provindas de Monte Alegre.
A francesa sentou numa rede e fazendo gestos graciosos principiou mastigando.
Estava com muita fome e comeu. Depois tomou um copo de Puro pra rebater e resolveu
entrar no assunto de chapéu-de-sol aberto. Foi logo perguntando si o gigante era verdade que possuía uma muiraquitã com forma de jacaré. O gigante foi lá dentro e voltou
com um caramujo na mão. E puxou pra fora dele uma pedra verde. Era a muiraquitã!
Macunaíma sentiu um frio por dentro de tanta comoção e percebeu que ia chorar. Mas
disfarçou bem perguntando si o gigante não queria vender a pedra. Porém Venceslau
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Macunaíma
Pietro Pietra piscou faceiro dizendo que vendida não dava a pedra não. Então a francesa
pediu suplicando pra levar a pedra de emprestado pra casa. Venceslau Pietro Pietra mais
uma vez piscou faceiro falando que de emprestado não dava a pedra também não.
–Você imagina então que vou cedendo assim com duas risadas,
francesa?Qual?
–Mas eu estou querendo tanto a pedra!...
–Vá querendo!
–Pois tanto se me dá como se me dava regatão!
–Regatão uma ova, francesa! Dobre a língua! Colecionador é que é!
Capítulo 7
AOL-11
Macumba
Macunaíma não consegue reaver a muiraquitã, o que o deixa contrariado.
Resolve, então, apelar para poderes mágicos e vem para o Rio de Janeiro para
frequentar o terreiro de macumba da tia Ciata. Durante o ritual, Macunaíma
pede a Exu que castigue o gigante Piaimã.
Na cena abaixo, temos os castigos de Exu aplicados em Piaimã.
Então foi horroroso o que se passou. Exu pegou três pauzinhos de erva-cidreira
benta por padre apóstata, jogou pro alto, fez encruzilhada, mandando o eu de Venceslau
Pietro Pietra vir dentro dele Exu pra apanhar. Esperou um momento, o eu gigante veio,
entrou dentro da fêmea, e Exu mandou o filho dar a sova no eu que estava encarnado no
corpo polaco. O herói pegou uma tranca e chegou-a em Exu com vontade. Deu que mais
deu. Exu gritava:
–Me espanca devagar
Que isso dói dói dói!
Também tenho família
E isto dói dói dói!
Enfim roxo de pancada sangrando pelo nariz pela boca pelos ouvidos caiu desmaiando no chão. E era horroroso...Macunaíma ordenou que o eu do gigante fosse tomar banho
salgado e fervendo e o corpo de Exu fumegou molhando o terreno. E Macunaíma ordenou
que o eu do gigante fosse pisando vidro através dum mato de urtiga e agarra-compadre
até as grunhas da serra dos Andes pleno inverno e o corpo de Exu sangrou com lapos
de vidro, unhadas de espinhos e queimaduras de urtiga, ofegando de fadiga e tremendo
de tanto frio. Era horroroso. E Macunaíma ordenou que o eu de Venceslau Pietro Pietra
recebesse o guampaço dum marruá, o coice dum bagual, a dentada dum jacaré e os ferrões
de quarenta vezes quarenta mil ferroadas na pele já invisível, com a testa quebrada pelo
casco dum bagual e um furo de aspa aguda na barriga. A saleta se encheu de um cheiro
intolerável. E Exu gemia:
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Mário Raul de Morais Andrade
–Me chifra devagar
Que isto dói dói!
Também tenho família.
E isto dói dói dói!
Macunaíma ordenou muito tempo muitas coisas assim e tudo o eu de Venceslau
Pietro Pietro aguentou pelo corpo de Exu. Afinal a vingança do herói não pôde inventar
mais nada, parou. A fêmea só respirava levinho largada no chão de terra. Teve um silêncio
fatigado. E era horroroso.
Lá no palácio da rua Maranhão em São Paulo tinha um corre-corre sem parada.
Vinham médicos veio a Assistência todos estavam desesperados. Venceslau Pietro Pietra
sangrava todo urrando. Mostrava uma chifrada na barriga, quebrou a testa que parecia
coice de potro, queimado enregelado mordido e todo cheio de manchas e galos duma tremendérrima sova de pau.
Capítulo 8
Vei, a Sol
Ainda durante sua estada no Rio de Janeiro, Macunaíma reencontra Vei, a
Sol , que pretendia casar uma de suas três filhas com o herói. A deusa-sol impõe
uma única condição: Macunaíma deveria permanecer fiel à sua futura esposa.
O herói jura fidelidade, mas ao cair da noite trai a palavra empenhada e “brinca” com uma portuguesa. Como punição, surge para devorar o casal o monstro
Mianiquê-Teibê, que possui garras enormes, olhos no lugar dos peitos e duas
bocarras nos pés. Mas o herói foge e o monstro devora apenas a portuguesa.
Ali mesmo na beira d´água tinha um cerradão comprido cheinho da árvore
pau-brasil e com palácios de cor nos dois lados. E o cerradão era a avenida Rio Branco. Aí
que mora Vei a Sol com suas três filhas de luz. Vei queria que Macunaíma ficasse genro
dela porque afinal das contas ele era um herói e tinha dado tanto bolo-de-aipim pra ela
chupar secando, falou:
– Meu genro: você carece de casar com uma das minhas filhas. O dote que dou pra
ti é Oropa França e Bahia. Mas porém você tem que ser fiel e não andar assim brincando
com as outras cunhãs por aí.
Macunaíma agradeceu e prometeu que sim jurando pela memória da mãe dele.
Então Vei saiu com as três filhas pra fazer o dia no cerradão, ordenando mais uma vez
que Macunaíma não saísse da jangada pra não andar brincando com as outras cunhãs
por aí. Macunaíma tornou a prometer, jurando outra vez pela mãe.
Nem bem Vei com as três filhas entram no cerradão que Macunaíma ficou cheio
de vontade de brincar com uma cunhã. Acendeu um cigarro e a vontade foi subindo. Lá
por debaixo das árvores passavam muitas cunhãs cunhé cunhé se mexemexendo com
talento e formosura.
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AOL-11
Macunaíma
–Pois que fogo devore tudo! Macunaíma exclamou. Não sou frouxo agora pra
mulher me fazer mal!
E uma luz vasta brilhou no cérebro dele. Se ergueu na jangada e com os braços
oscilando por cima da pátria decretou solene:
– POUCA SAÚDE E MUITA SAÚVA, OS MALES DO BRASIL SÃO!
Pulou da jangada no sufragante, foi fazer continência diante da imagem de Santo
Antônio que era capitão de regimento e depois deu em cima de todas as cunhãs por aí.
Logo topou com uma que fora varina [vendedora de peixes] lá na terrinha do compadre
chegadinho-chegadinho e ainda cheirava nomais! Um fartum bem de peixe. Macunaíma
piscou pra ela e os dois vieram na jangada brincar. Fizeram. Bastante eles brincaram.
Agora estão se rindo um do outro.
Quando Vei com suas três filhas chegaram do dia e era a boca-da-noite as moças
que vinham na frente encontraram Macunaíma e a portuguesa brincando mais. Então
as três filhas se zangaram:
–Então é assim que se faz herói! Pois nossa mãe Vei não falou pra você não sair
da jangada e não ir brincar com outras cunhãs por aí?!
–Estava muito tristinho! O herói fez.
–Não tem que tristinho nem mané tristinho, herói! Agora que você vai tomar um
pito de nossa mãe Vei.
E viraram muito zangadas para a velha:
–Veja nossa mãe Vei, o que vosso genro fez! Nem bem a gente foi pro cerradão que
ele escapuliu, deu em cima de uma boa, trouxe ela na nossa jangada e brincaram até mais
não! Agora está se rindo um pro outro!
Então a Sol se queimou e ralhou assim:
–Ara ara, meus cuidados! Pois não falei pra você não dar em cima de nenhuma
cunhã não!... Falei sim! E ainda por cima você brinca com ela na jangada minha e agora
estão se rindo um pro outro!
–Estava muito tristinho!Macunaíma repetiu.
–Pois si você tivesse obedecido casava com uma das minhas filhas e havia de ser
sempre moço e bonitão. Agora você fica pouco tempo moço talqualmente os outros moços
e depois vai ficando mocetudo e sem graça nenhuma.
Macunaíma sentiu vontade de chorar. Suspirou:
–Si eu subesse...
–O “si eu subesse” é santo que nunca não valeu pra ninguém, meus cuidados!
Você o que é mais é muito safadinho, isso sim! Não te dou mais nenhumas das milhas
filhas não!
Daí Macunaíma pisou nos calos também:
– Pois eu nem queria nenhuma das três, sabe! Três, diabo fez!
31
Mário Raul de Morais Andrade
Então Vei com as três filhas foram pedir pouso em um hotel e deixaram Macunaíma
dormir com a Portuga na jangada.
Quando foi ali pela hora antes da madrugada, veio a Sol com as moças darem o
passeio na baía e encontraram Macunaíma com a portuguesa inda pegados no sono. Vei
acordou os dois e fez presente da pedra Vató pra Macunaíma. E a pedra Vató dá fogo
quando a gente quer. E lá se foi a Sol com as três filhas de luz.
Macunaíma inda passou esse dia brincando com a varina pela cidade. Quando foi
de-noite eles estavam dormindo num banco do Flamengo quando chegou uma assombração
medonha. Era Mianiquê-Teibê que vinha para engolir o herói. Respirava com os dedos,
escutava pelo umbigo e tinha os olhos no lugar das mamicas. A boca era duas bocas e
estavam escondidas na dobra interior dos dedos dos pés. Macunaíma acordou com o cheiro
da assombração e jogou no diabo Flamengo fora.
Então Mianiquê-Teibê comeu a varina e se foi.
No outro dia Macunaíma não achou mais graça na capital da República. Trocou a
pedra Vató por um retrato no jornal e voltou pra taba do igarapé Tietê.
Capítulo 9
Carta pras Icamiabas
De volta a São Paulo e com saudades das guerreiras amazonas, Macunaíma
resolve escrever uma carta para as suas súditas, contando como era a vida na
grande cidade. O herói parodia o estilo beletrista do início do século XX, ironizando o estilo que valorizava sobremaneira o vocabulário e a sintaxe elitistas,
descrevendo a cidade de São Paulo com seus arranha-céus, com seu dia a dia
agitado e suas ruas tumultuadas, seus cinemas, estátuas e jardins, casas de moda,
ônibus e (ao que o herói dá ênfase) com as mulheres que gostam de “brincar” mas
exigem em troca o vil metal. Macunaíma tece também uma crítica aos paulistas
locomotivas, assim chamados porque se consideravam os propulsores do país.
Ao final da carta, o herói enfatiza uma particularidade desse povo, que é a de
falar numa língua e escrever em outra. Termina a carta pedindo dinheiro para
as suas súditas, para que ele possa “brincar” com as paulistanas.
As mui queridas súbditas nossas, Senhoras Amazonas.
Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis.
São Paulo.
Senhoras:
Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta missiva.
Cumpre-nos, entretanto, iniciar essas linhas de saudade e muito amor, com desagradável
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Macunaíma
nova. É bem verdade que na boa cidade de São Paulo – a maior do universo, no dizer
de seus prolixos habitantes – não somos conhecidas por “icamiabas”, voz espúria, sinão
que pelo apelativo de Amazonas; e de vós, afirma, cavalgardes ginetes ginetes belígeros
da Hélade clássica; e assim sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperador vosso, tais
dislates da erudição porém heis de convir conosco que, assim ficais mais heroicas e mais
conspícuas, tocadas por essa plátina respeitável da tradição e da pureza antiga.
Mas não devemos desperdiçarmos vosso tempo fero, e muito menos conturbarmos
vosso entendimento, com notícias de mau calibre; passemos, pois, imediato, ao relato de
vossos feitos por cá.
Nem cinco sóis eram passados que de vós nos partíramos [Repare que trata-se
de uma paródia do episódio do Gigante Adamastor, do canto V de Os lusíadas],
quando a mais temerosa desdita pesou sobre Nós. Por uma bela noite dos idos de maio do
ano translato, perdíamos o muiraquitã; que outrém grafara muraquitã, e, alguns doutos,
ciosos de etimologias esdrúxulas ortografam muyrakitan e até mesmo muraqué-itã, não
sorriais! Haveis de saber que este vocábulo, tão familiar a vossas trompas de Eustáquio,
é quais desconhecido por aqui. Por estas paragens mui civis, os guerreiros chamam-se
polícias, grilos, guardas-cívicas, boxistas, legalistas, mazorqueiros etc. sendo que alguns
desses termos são neologismos absurdos – bagaço nefando com que os desleixados e petimetres conspurcam o bom falar lusitano. Mas já não nos sobra já vagar pra discretearmos “sub tegmine fagi”,[(descansando) à sombra da faia, verso do poeta Virgílio] sobre
a língua portuguesa, também chamada lusitana. O que vos interessara mais, por sem
dúvida, é saberdes que os guerreiros de á não buscam mavórticas damas para o enlace
epitalámico; mas antes as preferem dóceis e facilmente tocáveis por pequeninas e voláteis
folhas de papel a que o vulgo chamara dinheiro – o “curriculum vitae” da Civilização, a
que fazemos ponto de honra em pertencermos. Assim a palavra muiraquitã, que fere já
nos ouvidos latinos do vosso Imperador, é desconhecida pelos guerreiros, e de todos por
em geral que por estas partem a respiram. Apenas alguns “sujeitos de importância em
virtude e letras”, como já dizia o bom velhinho e clássico frei Luís de Souza, citado pelo
doutor Rui Barbosa, ainda sobre as muiraquitãs projectam as suas luzes, para aquilatá-las
de medíocre valia, originárias da Ásia e não de vossos dedos, violentos no polir.
Estávamos ainda abatido por termos perdido a nossa muiraquitã, em forma de
saúrio, quando talvez por algum influxo metapsíquico, ou, qui lo sá, provocado por algum
libido saudoso, como explica o sábio tudesco, doutor Sigmund Freud (lede Fróide), se
nos deparou em sonho um arcanjo maravilhoso. Por ele soubemos que o talismã perdido
estava nas dilectas mãos do doutor Venceslau Pietro Pietra, súbdito do Vice-Reinado do
Peru, e de origem francamente florentine, como os Cavalcântis de Pernambuco. E como
o doutor demorasse na ilustre cidade anchietana, sem demora nos partimos para cá, em
busca do velocino roubado. As nossas relações actuais com o doutor Venceslau são as mais
lisonjeiras possíveis, e sem dúvida mui para breve recebereis grata nova de que hemos
reavido o talismã: e por ela pediremos alviçaras.
Porque, súbditas dilectas, é incontestável que Nós, Imperator vosso, nos achamos
em precária condição. O tesouro que daí trouxemos, foi-nos de mister convertê-lo na
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Mário Raul de Morais Andrade
moeda corrente do país; e tal conversão muito nos há dificultado o mantenimento, devido
às oscilações do Câmbio e à baixa do cacau.
Sabereis mais que as donas de cá não se derribam a pauladas, nem brincam por brincar, gratuitamente, senão que as chuvas do vil metal, repuxos brasonados de champagne,
e uns monstros comestíveis, a que vulgarmente, dão o nome de lagosta. E que monstros
encantados, senhoras Amazonas!!! Duma carapaça polida e sobrosada feita a modo de
casco de nau, saem braços, tentáculos e cauda remígeros, de muitos feitios; de modo que
o pesado engenho, deposto num prato de porcelana Sêvres, se nos antoja qual velejante
trirreme a bordeisjar água de Nilo, trazendo no bojo o corpo inestimável de Cleópatra.
Capítulo 10
Pauí-Pódole
Após receber a surra de Exu, Venceslau Pietro Pietra ficou vário meses
deitado numa rede. Macunaíma, sem poder encontrar sua muiraquitã, passou
a se dedicar ao aperfeiçoamento das duas línguas da terra: o “brasileiro falado”
e o “português escrito”.
Num domingo, que era dia do Cruzeiro, “feriado novo inventado pros
brasileiros descansarem mais”, Macunaíma interrompe um mulato que fazia um
discurso para explicar o que era o Cruzeiro do Sul, dizendo para o tal mulato que
aquelas quatro estrelas eram Pauí-Pódole, o Pai do Mutum, e relata aos ouvintes
a lenda indígena.
Na cena a seguir, Macunaíma emprega maliciosamente uma palavra e a
moça (cunhatã), que não sabia o que significava, acreditou no herói e passou a
utilizá-la sem saber que era palavra indecente.
Venceslau Pietro Pietra ficara muito doente com a sova e estava todo envolvido
em rama de algodão. Passou meses na rede. Macunaíma não podia nem dar passo pra
conseguir a muiraquitã agora guardada dentro do caramujo por debaixo do corpo do gigante. Imaginou botar formiga cupim no chinelo do outro porque isso traz morte, dizem,
porém Piaimã tinha pé pra trás e não usava chinelo. Macunaíma estava muito contrariado
com aquele chove-não-molha e passava o dia na rede mastigando beiju membeca entre
codórios longos de restilo. Nesse tempo veio pedir pousada na pensão do índio Antônio,
santo famoso com a companheira dele, Mãe de Deus. Foi visitar Macunaíma, fez discurso
e batizou o herói diante do deus que havia de vir e tinha forma nem bem de peixe nem
bem de anta. Foi assim que Macunaíma entrou pra religião Caraimonhaga que estava
fazendo furor no sertão da Bahia.
Macunaíma aproveitava a espera se aperfeiçoando nas duas línguas da terra, o
brasileiro falado e o português escrito. Já sabia nome de tudo. Uma feita era dia de Flor,
festa inventada pros brasileiros serem caridosos e tinha tantos mosquitos carapanãs que
Macunaíma largou do estudo e foi na cidade refrescar as ideias. Foi e viu um despropósito
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Macunaíma
de coisas. Parava em cada vitrina e examinava dentro dela aquela porção de monstros,
tanto que até parecia a serra do Ererê onde tudo se refugiou quando a enchente grande
inundou o mundo. Macunaíma passeava passeava e encontrou uma cunhatã com uma
urupema carregadinha de rosas. A mocica fez ele parar e botou uma flor na lapela dele,
falando:
– Custa milréis.
Macunaíma ficou muito contrariado porque não sabia como era o nome daquele
buraco da máquina roupa onde a cunhatã enfiara a flor. E o buraco chamava botoeira.
Imaginou escarafunchando na memória bem, mas nunca não ouvira mesmo o nome daquele buraco. Quis chamar aquilo de buraco porém viu logo que confundia com os outros
buracos deste mundo e ficou com vergonha da cunhatã. “Orifício” era a palavra que a
gente escrevia mas porém ninguém não falava “orifício” não. Depois de pensamentear
pensamentear não havia meios mesmo de descobrir o nome daquilo e pôs reparo que da rua
Direita onde topara com a cunhatã já tinha ido parar adiante de São Bernardo, passada a
moradia de mestre Cosme. Então voltou, pagou a moça e falou de venta-inchada:
– A senhora me arrumou com um dia-de-judeu! Nunca mais me bote flor neste...
neste puíto, dona!
Macunaíma era desbocado duma vez. Falava uma bocagem muito porca, muito! A
cunhatã não sabia que puíto era palavra-feia não e enquanto o herói voltava aluado com o
caso pra pensão, ficou se rindo, achando graça na palavra. “Puíto...” que ela dizia. E repetia
gozado: “Puíto...Puíto”...Imaginou que era moda. Então se pôs falando pra toda a gente
si queriam que ela botasse uma rosa no puíto deles. Uns quiseram outros não quiseram,
as outras cunhatãs escutaram a palavra, a empregaram e “puíto” pegou. Ninguém mais
não falava em boutonière por exemplo; só puíto, puíto se escutava.
Capítulo 11
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A velha Ceiuci
Macunaíma resolve enganar seus dois irmãos, Maanape e Jiguê, dizendo-lhes
que havia encontrado “rasto fresco de tapir” próximo à bolsa de Mercadorias de
São Paulo. A atitude dos irmãos desperta a atenção dos transeuntes, que auxiliam
Maanape e Jiguê na procura pelo rasto de tapir. Quando as pessoas descobrem
que era tudo invenção, pensam em brigar com os irmãos de Macunaíma. Um
estudante subiu na capota de um automóvel e fez discurso contra eles. Macunaíma, então, decide ajudar os irmãos, e enfrenta a manifestação dando cabeçadas
e rasteiras, até ser preso por um policial. Mas o herói conseguiu fugir e resolveu
saber como estava Venceslau Pietro Pietra. Acaba por fazer e perder uma aposta
com o curumi Chuvisco, para ver quem conseguia assustar o gigante Piaimã. Em
seguida, resolve fazer uma pescaria e como não tivesse anzol, transforma-se numa
piranha e corta a linha de um inglês que pescava por ali. A velha Ceiuci, mulher
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Mário Raul de Morais Andrade
de Piaimã, também costumava pescar no Tietê e acaba prendendo o herói. Ao
ser capturado pela velha feiticeira, Macunaíma transforma-se em pato. Acaba
“brincando” com uma das filhas da feiticeira e realiza uma fuga surrealista, indo
de Manaus a Mendonza, na Argentina, em poucos instantes.
A passagem abaixo transcrita é a cena na qual Macunaíma faz a aposta
com Chuvisco.
Venceslau Pietro Pietra já principiava convalescendo da sova apanhada na macumba. Fazia um calorão dentro da casa porque era hora de cozinharem a polenta e fora a fresca
era boa por causa do vento sulão. Por isso o gigante com a velha Ceiuci as duas filhas e
a criadagem pegaram cadeiras e vieram sentar na porta da rua pra gozar a frescata. O
gigante ainda não saíra do algodão e estava talequal um fardo caminhando. Sentaram.
O curumi Chuvisco andava librinando pelo bairro e encontrou Macunaíma negaceando da esquina. Parou e ficou olhando o herói. Macunaíma virou-se:
–Nunca viu não!
–Que que você está fazendo aí, conhecido!
–Estou assustando o gigante Piaimã com sua família.
Chuvisco debicou:
–Qual! não vê que gigante tem medo de ti!
Macunaíma encarou o curumi empalamado e teve raiva. Quis bater nele porém
lembrou de-cor. “Quando você estiver embrabecendo conta três vezes os botões de vossa
roupa”, contou e ficou manso de novo. Então secundou:
–Quer apostar?Eu faço e aconteço e garanto que Piaimã vai pra dentro com medo
de mim. Esconde lá perto pra escutar só o que eles falam.
Chuvisco avisou:
–Oi, conhecido, tome tento com gigante! Você já sabe do que ele é capaz. Piaimã
está fraco, está fraco porém canudo que teve pimenta guarda o ardume...Si você não tem
medo mesmo, aposto.
Virou uma gota e pingou rente de Venceslau Pietro Pietra com a companheira as
filhas e a criadagem. Então Macunaíma pegou na primeira palavra feia da coleção e jogou
na cara de Piaimã. O palavrão bateu rijo porém Venceslau Pietro Pietra nem se incomodou,
direitinho elefante. Macunaíma chimpou outra bocagem mais feia na caapora. A ofensa
bateu rijo porém se incomodar é que ninguém se incomodou. Então Macunaíma jogou
toda coleção de bocagens e eram dez mil vezes dez mil bocagens. Venceslau Pietro Pietra
falou pra velha Ceiuci, bem quieto:
–Tem algumas que a gente não conhece inda não, guarda pra nossas filhas.
Então Chuvisco voltou pra esquina. O herói garganteou:
–Tiveram medo ou não tiveram!
–Medo nada, conhecido! Até o gigante mandou guardar as bocagens novas pras
filhas brincarem. De mim que eles tem medo, ocê aposta? Vá lá perto e escute só.
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Macunaíma
Macunaíma virou num caxipara que é o macho da formiga saúva e foi se enroscar
na rama de algodão acolchoando o gigante. Chuvisco amontou numa neblina e quando
ia passando em riba da família deu uma mijadinha no ar. Principiou peneirando uma
chuva-de-preguiça. Quando os pingos vieram caindo o gigante olhou pra um agarrado
na mão dele e teve paúra de tanta água.
– Vam´bora, gente!
E todos com muito medo foram correndo pra dentro. Então Chuvisco desapeou e
disse pra Macunaíma:
Está vendo?
E assim até hoje. A família do gigante tem medo de Chuvisco mas de palavra-feia não.
Capítulo 12
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Tequeteque, Chupinzão e a injustiça dos homens
Macunaíma descobre que Venceslau Pietro Pietra viajara para a Europa e
resolveu viajar também. Embora tivesse dinheiro, o herói decidiu se disfarçar de
pintor (Maanape havia lhe sugerido o disfarce de pianista) para conseguir, junto
ao governo, uma bolsa de estudos na Europa. O plano fracassa. Macunaíma não
consegue a bolsa e ainda perde o dinheiro de que dispunha, caindo num “conto
do vigário”: um mascate conseguiu enganá-lo, vendendo-lhe um micura (um
gambá), convencendo o herói de que o animal defecava moedas de prata.
Inconformado com a injustiça dos homens (sobretudo com o governo, que
não lhe dera a bolsa de estudos), o herói resolve viajar com seus irmãos pelo Brasil,
com o intuito de encontrar “alguma panela com dinheiro enterrado”. Durante
a viagem, avista um macaco comendo coquinhos e, julgando-se esperto, o herói
pretende ganhar alguns para matar a fome. O texto abaixo mostra como o herói
que se julga esperto é enganado pelo macaco.
Macunaíma seguiu caminho. Légua e meia adiante estava um macaco mono
comendo coquinho baguaçu. Pegava no coquinho, botava no vão das pernas junto com
uma pedra, apertava e juque! a fruta quebrava. Macunaíma veio e esgurejou com a boca
cheia d´água. Falou:
–Bom dia, meu tio, como lhe vai?
–Assim assim, sobrinho.
–Em casa todos bons?
–Na mesma.
E continuou mastigando. Macunaíma ali, sapeando. O outro enquilizou assanhado:
–Não me olhe de banda que não sou quitanda, não me olhe de lado que não sou
melado!
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Mário Raul de Morais Andrade
–Mas o que você está fazendo aí, tio?
O macaco mono soverteu o coquinho na mão fechada e secundou:
–Estou quebrando os meus toaliquiçus pra comer.
–Vá mentir na praia!
–Uai, sobrinho, si tu não dá crédito então pra que pergunta!
Macunaíma estava com vontade de acreditar e indagou:
–É gostoso é?
O mono estalou a língua:
–Chi! Prove só!
Quebrou de escondido outro coquinho, fingindo que era um dos toaliquiçus deu
pra Macunaíma comer. Macunaíma gostou bem.
–É bom mesmo, tio! Tem mais?
Agora se acabou mais si o meu era gostoso que fará os vossos! Come eles, sobrinho!
O herói teve medo:
–Não dói não?
–Qual, si até é agradável!...
O herói agarrou num paralelepípedo. O macaco mono rindo por dentro inda falou
pra ele:
– Você tem mesmo coragem, sobrinho?
– Boni-t-ó-tó macacheira mocotó! O herói exclamou empafioso. Firmou bem o
paralelepípedo e juque! nos toaliquiçus. Caiu morto. O macaco mono caçoou assim:
–Pois, meus cuidados não falei que tu morrias! Falei! Não me escutas! Estás vendo
o que sucede pros desobedientes? Agora: sic transit!
Então calçou as luvas de balata e foi-se. Daí a pouco veio uma chuvarada que
refrescou a carne verde do herói, impedindo a putrefação. Logo se formou um poder de
correições de formigas guajuguajus e murupetecas pro corpo morto. O advogado Fulano
atraído pelas correições topou com o defunto. Abaixou, tirou a carteira do cadáver porém só tinha cartão-de-visita. Então resolveu levar o defunto pra pensão, fez. Carregou
Macunaíma nas costas e foi andando. Porém o defunto pesava por demais e o advogado
viu que não podia com o peso. Então arreou o cadáver e deu uma coça de vara nele. O
defunto ficou levianinho e o advogado Fulano pôde levá-lo pra pensão.
Maanape chorou muito se atirando sobre o corpo do mano. Depois descobriu o
esmagamento. Maanape era feiticeiro. Logo pediu de emprestado pra patroa dois cocos da
Bahia, amarrou-os com nó-cego no lugar dos toaliquiçus amassados e assoprou fumaça
de cachimbo no defunto herói. Macunaíma foi se erguendo muito desmerecido. Deram
guaraná pra ele e daí a pouco matava sozinho as formigas que ainda o mordiam. Estava
tremendo muito por causa da chuvarada a friagem batera de repente. Macunaíma tirou
a garrafinha do bolso e bebeu o resto da pinga pra esquentar. Depois pediu uma centena
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Macunaíma
pra Maanape e foi até um chalé jogar no bicho. De-tarde quando viram, a centena tinha
dado mesmo. E assim eles viveram com os palpites do mano mais velho. Maanape era
feiticeiro.
Capítulo 13
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A Piolhenta de Jiguê
Jiguê, o irmão mais novo de Macunaíma, encontrou uma companheira,
Suzi, uma cunhatã de vasta cabeleira e infinitos piolhos. Ela, porém, passa a
maior parte do tempo “brincando” com o herói. Quando Jiguê descobre, dá uma
grande surra nos dois, e manda Suzi embora. Levada pelos seus piolhos, ela vai
para o céu e vira “estrela que pula”.
No outro dia Macunaíma estava outra vez com vontade de brincar com a companheira de Jiguê. Falou pros manos que ia numa caçada longe porém não foi não. Comprou duas garrafas de licor de butiá catarinense uma dúzia de sanduíches dois abacaxis
de Pernambuco e se amoitou no quartinho. Passado tempo saiu de lá e falou pra Jiguê,
mostrando o embrulho:
–Mano Jiguê, no fim de muitas ruas, você indo, tem uma fruteira trilhada. Vi um
poder de caça, vá ver!
O mano espiou desconfiado pra ele porém Macunaíma disfarçou bem:
–Olhe, tem paca tatu cotia...Minto, cotia não enxerguei nenhuma. Paca tatu,
cotia não.
Jiguê emprenhava pelas oiças mesmo, foi logo pegando na espingarda e falou:
–Então vou porém mano jura que não brinca com minha obrigação.
Macunaíma jurou pela memória da mãe que nem olhava pra Suzi. Então Jiguê
tornou a pegar a espingarda-pá e na faca ponta-tá-tátáta e partiu. Macunaíma nem
bem Jiguê virou a esquina ajudou Suzi abrindo os embrulhos e botando uma toalha
de renda famosa chamada “Ninho de Abelha” cujo papelão fora roubado em Muriú do
Ceará-Mirim pela danada Geracina da Ponta do Mangue. Quando tudo ficou pronto os
dois pularam na rede e brincaram. Agora estão se rindo um pro outro. Depois de rirem
bastante, Macunaíma falou:
–Desarolha uma garrafa pra gente beber.
–Sim, ela fez. E beberam a primeira garrafa de licor de butiá que era muito gostoso.
Os dois estalaram a língua e pularam na rede outra vez. Brincaram quanto quiseram.
Agora estão se rindo um pro outro.
Jiguê andou légua e meia, foi até o fim das ruas, campeou a fruteira uns pares de
vezes, muito tempo, jacaré achou? Nem ele! Não tinha fruteira nenhuma e Jiguê voltou
campeando sempre por todos os fins das ruas. Afinal chegou subiu no quarto e encontrou
mano Macunaíma com a Suzi já rindo. Jiguê teve raiva e deu uma coça na companheira.
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Mário Raul de Morais Andrade
Agora ela está chorando. Jiguê agarrou o herói e chegou o porrete com vontade nele. Deu
mais que deu até Manuel chegar. Manuel era um criado da pensão, um ilhéu. Agora o
herói estava fatigado. E Jiguê que vinha padecendo de fome, então comeu os sanduíches
os abacaxis e bebeu o licor de butiá.
Os dois sovados passaram a noite se lastimando. No outro dia Jiguê enfarado pegou
na sarabatana e saiu pra ver se encontrava a tal de fruteira. Jiguê era muito bobo. Suzi
viu ele sair, enxugou os olhos e falou pro namorado:
–Choremos não.
Então Macunaíma desamarrou a cara e se arranjou pra ir falar com o mano Maanape. Jiguê de volta na pensão perguntou pra Suzi:
–Onde anda o herói?
Porém ela estava zangadíssima e principiou assobiando. Então Jiguê agarrou no
porrete, se chegou pra companheira e disse muito triste:
–Vai embora, perdição!
–Daí ela sorriu feliz. Catou sem contar todos os piolhos que restavam e eram muito
piolhos, atrelou-os a uma cadeira-de-balanço, sentou nela, os piolhos pularam e Suzi foi
pro céu na estrela que pula. É uma zelação.
Capítulo 14
Muiraquitã
Maanape informa Macunaíma sobre o retorno de Venceslau Pietro Pietra ao
Brasil. O herói fica feliz e resolve matar o gigante. Após comer cobra, Macunaíma
consegue balançar o gigante sobre um imenso tacho de macarronada preparada
por Ceiuci. Depois de um forte arranque, Macunaíma faz com que o gigante caia
no buraco onde a velha caapora preparava a macarronada. Finalmente, o herói
consegue reaver sua muiraquitã.
No texto abaixo temos o momento da irônica e surrealista morte do gigante.
Deu um arranco. Os espinhos ferraram na carne do gigante e o sangue espirrou.
A caapora lá em baixo que aquela sangueira era do gigante dela e aparava a chuva na
macarronada. Molho engrossando:
–Para! Para! Piaimã gritava.
–Balança que vos digo! Secundava Macunaíma.
Balançou até o gigante ficar bem tonto e então deu um arranco fortíssimo na japecanga. Era porque tinha comido cobra e estava furibundo. Venceslau Pietro Pietra caiu
no buraco berrando cantando:
–Lem lem lem... si desta escapar, nunca mais como ninguém!
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Macunaíma
Enxergava a macarronada fumegando lá em baixo e berrou pra ela:
–Afasta que vos engulo!
Porém jacaré fastou? Nem tacho! O gigante caiu na macarronada fervendo e subiu
no ar um cheiro tão forte de couro cozido que matou todos os ticosticos da cidade e o herói
teve um sapituca. Piaimã se debateu muito e já estava morre-não-morre. Num esforço
gigantesco inda se ergueu no fundo do tacho. Afastou os macarrões que corriam na cara
dele, revirou os olhos pro alto, lambeu a bigodeira:
–Falta queijo! Exclamou...
E faleceu.
Este foi o fim de Venceslau Pietro Pietra que era o gigante Piaimã comedor de gente.
Macunaíma quando voltou da sapituca foi buscar a muiraquitã e partiu na máquina
bonde pra pensão. E chorava gemendo assim:
–Muiraquitã, muiraquitã de minha bela, vejo você mas não vejo ela!...
Capítulo 15
AOL-11
A Pacuera de Oibê
De posse de sua muiraquitã, Macunaíma e seus irmãos retornam para o
Uraricoera. A saudade de São Paulo, entretanto, aflige o herói, que decide levar
uma série de curiosas lembranças da cidade. Durante o retorno, novamente um
bando de aves faz sombra para acompanhar o imperador do mato. Macunaíma
realiza novos prodígios, transformando um pé de carambola em uma linda
princesa e o minhocão Oibê em um cachorro do mato. Reencontra Iriqui, uma
antiga companheira de Jiguê, que sobe ao céu depois de perceber que o herói só
queria “brincar” com a princesa.
No texto a seguir, temos o momento em que o herói deixa a cidade, transformando-a num imenso bicho-preguiça de pedra e leva consigo as curiosas
lembranças da civilização.
Então os três manos voltaram pra querência deles.
Estavam satisfeitos porém o herói inda mais contente que os outros porque tinha os
sentimentos que só um herói pode ter: uma satisfação imensa. Partiram. Quando atravessaram o pico do Jaraguá Macunaíma virou pra trás contemplando a cidade macota de São
Paulo. Maginou sorumbático muito tempo e no fim sacudiu a cabeça murmurando.
–Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são...
Enxugou a lágrima, consertou o beicinho tremendo. Então fez uma caborge: sacudiu
os braços no ar e virou a taba gigante num bicho preguiça todinho de pedra. Partiram.
Depois de muito refletir, Macunaíma gastara o arame derradeiro comprando o que
mais o entusiasmara na civilização paulista. Estavam ali com ele o revolver Smith-Wesson
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Mário Raul de Morais Andrade
o relógio Patek e o casal de galinha Legorne. Do revólver e do relógio Macunaíma fizera
os brincos das orelhas e trazia na mão uma gaiola com o galo e a galinha. Não possuía
nem mais um tostão do que ganhara no bicho porém lhe balangando no beiço furado
pendia a muiraquitã.
Capítulo 16
Uraricoera
O retorno ao Uraricoera entristece o herói. A escassez de caça e pesca
enfraquece sua gente; as doenças, sobretudo a lepra, devoram seus irmãos e
a princesa.
No outro dia Macunaíma amanheceu com muita tosse e uma febrinha sem parada.
Maanape desconfiou e foi fazer um cozimento de broto de abacate, imaginando que o herói
estava hético. Em vez era impaludismo, e a tosse viera só por causa da laringite que toda
gente carrega de São Paulo. Agora Macunaíma passava as horas deitado de borco na proa
da igarité e nunca mais que havia de sarar. Quando a princesa não podia mais e vinha
pra brincarem, o herói até uma vez recusou suspirando:
–Ara...que preguiça...
Capítulo 17
Ursa Maior
Macunaíma vive muito contrariado, sem compreender o silêncio que o
cercava. Os manos tinham ido-se embora transformados na cabeça esquerda do uruburuxama e nem siquer a gente encontrava cunhãs por ali. Até mesmo os passarinhos
que o acompanhavam acabaram por partir. O herói tinha por companhia apenas
um papagaio, a quem conta tudo o que havia acontecido.
Numa manhã de muito calor, o herói acorda sentindo cócegas pelo corpo.
Vei, a deusa Sol, prepara uma última vingança para ele. Tomado pela vontade
de “brincar”, Macunaíma resolve tomar um banho de água fria para fazer a
vontade passar. Avista, no fundo de uma lagoa, a imagem de uma linda cunhã,
ora loira, ora morena, que o convida para “brincar”. Meio receoso, mas tomado
pela vontade, o herói mergulha na lagoa. A cunhã é na verdade a Uiara, uma
criatura que lhe devora uma perna, os cocos-da-Bahia, as orelhas, dedões, nariz
e beiços . As piranhas devoraram também sua muiraquitã, o que fez o herói dar
“um grito que encurtou o tamanho do dia”.
O herói lançou plantas venenosas na lagoa, matando todos os peixes e
botos, e procurou pelos seus pertences. Encontrou dedões, orelhas e nariz, e os
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Macunaíma
colocou de volta usando sapé e cola de peixe. Mas não encontrou a perna e nem
a muiraquitã. O herói resolve, então, desistir desta vida, e, mutilado, sobe ao céu,
batendo na porta da casa do Pai do Mutum, que com dó do herói o transforma
na constelação de Ursa Maior.
Então Macunaíma não achou mais graça nesta terra. Capei bem nova relumeava lá
na gupiara do céu. Macunaíma cismou inda meio indeciso, sem saber se ia morar no céu
ou na ilha de Marajó. Um momento pensou mesmo em morar na cidade da Pedra com o
enérgico Delmiro Gouveia, porém lhe faltou ânimo. Pra viver lá, assim como tinha vivido
era impossível. Até era por causa disso mesmo que não achava mais graça na Terra...
Tudo o que fora a existência dele apesar de tantos casos tanta brincadeira tanta ilusão
tanto sofrimento tanto heroísmo, afinal não fora sinão um se deixar viver; e pra parar na
cidade do Delmiro ou na ilha de Marajó que são desta terra carecia de ter um sentido. E
ele não tinha coragem pra uma organização. Decidiu:
–Qual o que!... Quando urubu está de caipora o de baixo caga no de cima, este
mundo não tem jeito mais e vou pro céu.
Ia pro céu viver com a marvada. Ia ser o brilho bonito mas inútil porém de mais uma
constelação. Não fazia mal que fosse brilho inútil não, pelo menos era o mesmo de todos
esse parentes, de todos os pais dos vivos da sua terra, mães, pais manos cunhãs cunhadas
cunhatãs, todos esses conhecidos que vivem agora do brilho inútil das estrelas.
Plantou uma semente de cipó matamatá, filho-da-luna, e enquanto o cipó crescia agarrou numa itá pontuda escreveu na laje que já fora jaboti num tempo muito de dantes:
NÃO VIM NO MUNDO PARA SER PEDRA
A planta já tinha crescido e se agarrava numa ponta de Capei. O herói capenga
enfiou a gaiola dos legornes no braço e foi subindo pro céu. Cantava triste:
Vamos dar a despedida,
–Taperá,
Talequal o passarinho,
–Taperá
Bateu asa e foi-se embora,
–Taperá,
Deixou a pena no ninho.
–Taperá ...
Lá chegando bateu na maloca de Capei. A lua desceu no terreiro e perguntou:
–Que que quer, saci?
–A benção minha madrinha, me dá pão com farinha?
Então Capei reparou que não era saci não, era Macunaíma o herói. Mas não quis dar
pensão pra ele, lembrando do fedor antigo do herói. Macunaíma enfezou. Deu uma porção
de munhecaços na cara da Lua. Por isso ela tem aquelas manchas escuras na cara.
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Mário Raul de Morais Andrade
Então Macunaíma foi bater na casa de Caiuanogue, a estrela-da-manhã. Caiuanogue apareceu na janelinha pra ver quem era e confundida pelo negrume da noite e a
capenguice do herói, perguntou:
–Que é que quer, saci?
Mas logo pôs reparo que era Macunaíma o herói e nem esperou resposta se lembrando que ele cheirava muito fedido.
–Vá tomar banho! falou fechando a janelinha.
Macunaíma tornou a enfezar e gritou:
–Vem pra rua, cafajeste!
Caiuanogue raspou um susto enorme e ficou tremendo espiando pelo buraco da
fechadura. Por isso que a bonita da estrelinha é tão pecurrucha e tremelica tanto.
Então Macunaíma foi bater na casa de Pauí-Pódole, o Pai do Mutum. Pauí-Pódole
gostava muito dele porque Macunaíma o defendera daquele mulato da maior mulataria
na festa do Cruzeiro. Mas exclamou:
–Ah, herói, tarde piaste! Era uma honra grande pra mim receber no meu mosqueiro
um descendente de jaboti, raça primeira de todas...No principio era só o Jaboti Grande
que existia na vida...Foi ele que no silêncio da noite tirou da barriga um indivíduo e sua
cunhã. Estes foram os primeiros fulanos vivos e as primeiras gentes da vossa tribo... Depois, que os outros vieram. Chegaste tarde, herói! Já somos em doze e com você a gente
ficava com treze na mesa. Sinto muito mas chorar não posso!
– Que pena, sinh´Helena! que o herói exclamou.
Então Pauí-Pódole teve dó de Macunaíma. Fez uma feitiçaria. Agarrou três pauzinhos
jogou pro alto fez encruzilhada e virou Macunaíma com todo o estenderete dele, galo galinha
gaiola revólver relógio, numa constelação nova. É a constelação da Ursa Maior.
Dizem que um professor naturalmente alemão andou falando por aí por causa da
perna só da Ursa Maior que ela é o saci... Não é não! Saci inda para neste mundo espalhando fogueira e trançando crina de bagual... A Ursa Maior é Macunaíma. É mesmo o
herói capenga que de tanto penar na terra sem saúde e com muita saúva, se aborreceu de
tudo, e foi-se embora e banza solitário no campo vasto do céu.
Epílogo
No epílogo, o narrador confessa que a história de Macunaíma, o Imperador
do Mato, lhe foi contada por um papagaio. Papagaio este a quem Macunaíma
tinha contado sua história.
Tudo ele contou pro homem e depois abriu asa rumo de Lisboa. E o homem sou eu,
minha gente, e eu fiquei pra vos contar a história. Por isso que vim aqui. Me acocorei em riba
destas folhas, catei meus carrapatos, ponteei na violinha e em toque rasgado botei a boca no
mundo cantando na fala impura as frases e os casos de Macunaíma, herói de nossa gente.
Tem mais não.
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Macunaíma
5. Exercícios
1.
Romance do qual se disse que possui, em seu
protagonista, uma figura trabalhada, simbolicamente, como síntese de um presumido “modo
de ser brasileiro” descrito como luxurioso, ávido,
preguiçoso e sonhador, caracteres que lhe atribuía um teórico do Modernismo, Paulo Prado,
em Retrato do Brasil. Trata-se de:
a) Amar, verbo intransitivo. d) Macunaíma.
b) Angústia. e) Memórias sentimentais de João Miramar.
c) Menino de engenho.
2.
Por ser uma narrativa composta de lendas, mitos indígenas e sertanejos, considera-se
a obra uma rapsódia. A personagem central parece encarnar a figura do malandro. Desde o
nascimento, em plena floresta amazônica, o herói (ou anti-herói) revela-se sem nenhum caráter.
Acompanhado de seus dois irmãos, vem para S. Paulo. Procura o talismã que o gigante Piaimã
havia lhe furtado, conseguindo recuperá-lo. Volta, então, para a Amazônia, onde participa de
novas aventuras e morre, transformando-se na Constelação da Ursa Maior.
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Um dos excertos a seguir pertence à obra a que se referem as informações
acima. Assinale-a:
a) “– Mas que catingueiros esses. O herói nunca matou viado! Não tinha nenhum
viado na caçada não! Gato miador, pouco caçador, gente! Em vez foram dois
ratos chamuscados que ele pegou e comeu.”
b) “– És filho de uma pisadela e de um beliscão; mereces que um pontapé te
acabe a casta.”
c) “O Curupira não é de brincadeira. Não vem fazer ‘artes’ nos sítios e fazendas.
Mas ai de quem invade seus domínios, suas verdes florestas cheias de animais
felizes e cheias de pássaros que cantam nas ramadas!...”
d) “O dia todo ele chorava, percurava, percurava, não tava acreditando. Eh, arregalava os olhos. Chega que andava em roda, zuretando. Me percurou até em buraco
de formigueiro. Mas ele tava com medo de gritar e espantar a onça, então falava
baixinho meu nome...Pedro Bijibo tremia, que eu escutava dente estalando, que
escutava. Tremia: feito piririca de carne que a gente assa em espeto.”
e) “Travou-se a batalha (...) De um lado o Carão com mais de 400 anos, cinzento,
encorujado, de penas híspidas e sujas. Carranca e misoneísta, miolo mole e
intransigente. De outro lado o curupira; ágil, matinal, irônico, onímodo. O
Espírito Velho contra o Espírito Novo. Luta de morte e revolução.” 45
Mário Raul de Morais Andrade
3.
De vez em quando Macunaíma parava pensando na marvada. Que desejo batia
nele! Parava o tempo. Chorava muito tempo. As lágrimas escorrendo pelas faces
infantis do herói iam lhe batizar a peitaria cabeluda. Então ele suspirava sacudindo
a cabecinha:
(...)
a) Neste excerto, como se caracteriza fisicamente Macunaíma?
Tendo em vista a história do herói, diga qual é a origem dessas características.
b)Essas características físicas do herói têm alguma relação com suas características psicológicas? Justifique brevemente sua resposta.
Texto para a questão 4
Uma feita a Sol cobrira os três manos duma escaminha de suor e Macunaíma se lembrou
de tomar banho. Porém no rio era impossível por causa das piranhas tão vorazes que de
quando em quando na luta pra pegar um naco de irmã despedaçada, pulavam aos chopos
pra fora d’água metro e mais.
O fragmento acima pertence à obra Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, de
Mário de Andrade. Nele, encontramos uma pontuação condenada pela norma
culta. Responda:
a) Qual o erro que a sintaxe da norma culta condena?
b) Qual a finalidade, na obra Macunaíma, desse tipo de pontuação?
5.
As mui queridas súbditas nossas, Senhoras Amazonas.
Trinta de Maio de Mil Novecentos e Vinte e Seis.
São Paulo.
Senhoras:
Não pouco vos surpreenderá, por certo, o endereço e a literatura desta missiva. Cumpre-nos,
entretanto, iniciar essas linhas de saudade e muito amor, com desagradável nova. É bem
verdade que na boa cidade de São Paulo – a maior do universo, no dizer de seus prolixos
habitantes – não somos conhecidas por “icamiabas”, voz espúria, sinão que pelo apelativo
de Amazonas; e de vós, afirma, cavalgardes ginetes, ginetes belígeros da Hélade clássica;
e assim sois chamadas. Muito nos pesou a nós, Imperador vosso, tais dislates da erudição
porém heis de convir conosco que, assim ficais mais heroicas e mais conspícuas, tocadas por
essa plátina respeitável da tradição e da pureza antiga.
O fragmento anterior pertence ao capítulo 9 de Macunaíma, intitulado “Carta
pras Icamiabas”. Nele, encontramos um crítica irônica a certa tendência da lite46
Macunaíma
ratura de usar uma linguagem formal, com excessos de preciosismos. A escola
literária que predominantemente fez uso de preciosismos linguísticos e à qual o
fragmento anterior é dirigido vem a ser:
a) Arcadismo.
b)Romantismo.
c)Barroco.
d)Parnasianismo.
e) Futurismo.
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GABARITO
1. D
2. A
3.
a)Macunaíma tem corpo de adulto e cabeça de
criança. A origem dessas características está na
malícia do herói. No capítulo “Maioridade”,
após relatar à cotia o modo como havia enganado o curupira, ela acredita que Macunaíma
tem uma malícia de adulto e por isso atira
sobre ele um caldo de mandioca envenenada,
o que o faz crescer. Como o herói desviara a
cabeça, o caldo atingiu apenas o corpo. Daí o
corpo de homem e a cabeça de criança.
b)Sim. Macunaíma não tem nenhum controle
moral sobre seus desejos e emoções; age
sempre em conformidade com sua vontade.
Move-se sempre guiado pelo medo e pelo
desejo, não possuindo uma consciência
capaz de controlar seus instintos.
4.
a) A norma culta condena a separação do sujeito de seu predicado pelo uso da vírgula,
como acontece em “Porém no rio era impossível por causa das piranhas tão vorazes
que de quando em quando na luta pra pegar
um naco de irmã despedaçada, pulavam aos
chopos pra fora d’água metro e mais.”
b) A finalidade é aproximar a escrita da fala
popular, conferindo ao texto a marca da
oralidade. No decorrer da obra Macunaíma,
aliás como em toda a obra de Mário de
Andrade, ocorrem desvios da norma culta
nos planos ortográfico e sintático, sempre
visando a uma aproximação entre texto
escrito e fala popular.
5. D
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Mário Raul de Morais Andrade
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Análise de obrAs literáriAs