UNIVERSIDADE
CATÓLICA DE
BRASÍLIA
PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO
TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO
Direito
REFLEXÕES SOBRE A ADOÇÃO DO MODELO DE JUSTIÇA
RESTAURATIVA NO DIREITO PENAL PÁTRIO
Autor (a): Gilmar dos Reis Silva
Orientador: Profº. Carlos André Bindá Praxedes
BRASÍLIA
2008
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA - UCB
GILMAR DOS REIS SILVA
REFLEXÕES SOBRE A ADOÇÃO DO MODELO DE JUSTIÇA
RESTAURATIVA NO DIREITO PENAL PÁTRIO
Brasília-DF
2008
GILMAR DOS REIS SILVA
REFLEXÕES SOBRE A ADOÇÃO DO MODELO DE JUSTIÇA
RESTAURATIVA NO DIREITO PENAL PÁTRIO
Trabalho monográfico apresentado ao curso de
graduação em Direito da Universidade
Católica de Brasília, como requisito parcial
para obtenção do Título de Bacharel em
Direito.
Orientador: Professor Carlos André Bindá
Praxedes
Brasília-DF
2008
Trabalho de autoria de Gilmar dos Reis Silva, intitulado “Reflexões sobre a adoção do modelo
de justiça restaurativa no Direito Penal pátrio”, requisito parcial para obtenção do grau de
Bacharel em Direito, defendida e aprovada em ____ de ______ de 2008, pela banca
examinadora constituída por:
______________________________
Prof. Carlos André Bindá Praxedes
Orientador
_________________________________________
(nome do componente da banca com titulação)
_________________________________________
(nome do componente da banca com titulação)
Brasília – DF
2008
A minha família, que com amor e dedicação, sempre
me acompanham na realização de meus ideais.
Ao professor Carlos André Bindá Praxedes, pela
importante orientação durante o desenvolvimento
desse trabalho monográfico.
A pena nunca pode servir apenas de meio para
fomentar outro bem, quer para o próprio
delinqüente, quer para a sociedade civil, pois, do
contrário, o homem estaria sendo manejado como
simples meio para os propósitos de outrem e
confundido entre os objetos do direito real. Para
proteção de sua personalidade inata, em nome de sua
dignidade como pessoa humana, a função da pena há
de ser individual, de resposta à ação punível
desejada, para afirmação de uma regra universal que
a razão prática do próprio infrator deveria ter
reconhecido e respeitado, ainda que apenas
exteriormente.
(Eduardo Rezende Melo. In: Justiça Restaurativa e seus
desafios histórico-culturais: um ensaio crítico sobre os
fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em
contraposição à justiça retributiva)
RESUMO
A sociedade brasileira vem se deparando, ao longo dos anos, com um quadro de exclusão e de
violência que, não raras vezes, parece não ter mais solução. O sistema prisional no país não
comporta os criminosos e a função ressocializadora da pena parece mais utópica a cada dia.
Ante esse quadro, pretende o presente trabalho abordar a adoção pelo Brasil da Justiça
Restaurativa, como forma de lidar com o crime e com a violência de maneira distinta da
justiça criminal convencional.
Palavras-chave: Penas. Pena privativa de liberdade. Funções. Sistema prisional. Justiça
Restaurativa.
ABSTRACT
The Brazilian society comes if coming across, throughout the years, with a violence and
exclusion picture that, not rare times, seems not to have more solution. The prisional system
in the country does not hold the criminals and the ressocializadora function of the penalty
seems more utopian to each day. Before this picture, it intends the present work to approach
the adoption for Brazil of Restorative Justice, as form to deal with the crime and the violence
in distinct way of conventional criminal justice.
Word-key: Penalty. Privative penalty of freedom. Functions. Prisional system. Restorative
justice.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO..................................................................................................................
10
1 PENAS E SISTEMA PRISIONAL NO BRASIL.........................................................
1.1 Pena: evolução história e abordagem conceitual...................................................
1.2 Funções da pena: ênfase na função ressocializadora.............................................
1.3 Princípios norteadores da pena no Brasil...............................................................
1.4 A pena privativa de liberdade no Brasil frente ao Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana..................................................................................................................
1.5 A falência do sistema prisional no Brasil................................................................
13
13
16
20
2 JUSTIÇA RESTAURATIVA.........................................................................................
2.1 Abordagem conceitual..............................................................................................
2.2 Os princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em
matéria criminal aprovado pela Organização das Nações Unidas................................
2.3 Justiça Restaurativa e Justiça Retributiva: distinção...........................................
2.4 A Justiça Restaurativa no Direito comparado.......................................................
2.4.1 Nova Zelândia...................................................................................................
2.4.2 Estados Unidos..................................................................................................
2.4.2 Argentina..........................................................................................................
3 A JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL..............................................................
3.1 A ausência de previsão na legislação brasileira.....................................................
3.2 O Projeto de Lei para a adoção da Justiça Restaurativa no Brasil......................
3.3 Os crimes que podem ser objeto da Justiça Restaurativa....................................
3.4 Diplomas legais que podem servir como portas de entrada para a implantação
da Justiça Restaurativa no Brasil.....................................................................................
3.4.1 Estatuto da Criança e do Adolescente..................................................................
3.4.2 Lei dos Juizados Especiais Criminais..................................................................
3.4.3 Código Penal........................................................................................................
3.4.4 Outros dispositivos penais...................................................................................
25
28
36
36
40
41
45
45
47
49
52
52
53
54
56
56
57
60
61
4 A JUSTIÇA RESTAURATIVA E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A
MELHORIA DO SISTEMA CARCERÁRIO................................................................ 64
4.1 O Projeto Pilotos existente em Brasília................................................................... 65
4.2 Como a Justiça Restaurativa pode ajudar o sistema carcerário brasileiro......... 67
CONCLUSÃO....................................................................................................................
71
REFERÊNCIAS.................................................................................................................
73
ANEXO I............................................................................................................................. 78
ANEXO II...........................................................................................................................
83
10
INTRODUÇÃO
Pena é a perda ou diminuição de bens jurídicos, imposta pelo órgão da Justiça a
quem cometeu um crime. Trata-se de uma sanção jurídica do Direito Penal, prevista em razão
da lesão ou do perigo de lesão dos bens jurídicos – valores considerados essenciais – em um
determinado momento histórico-social.
No Brasil a pena de prisão, ou pena privativa de liberdade, de origem remota, nos
últimos tempos vem cumprindo apenas sua finalidade retributiva, seja pelo endurecimento
não raras vezes desnecessário de penas, seja pelo precaríssimo sistema carcerário, deixando-se
de lado sua finalidade principal, a ressocialização do apenado.
Diuturnamente, a visão que se oferece à sociedade sobre o sistema carcerário no
Brasil permite-lhe antever a total ausência de condições para reabilitar o preso, tendo em vista
que meios degradantes e abjetos jamais servirão como instrumentos regenerativos, quiçá
ressocializadores.
É notório que a questão carcerária no Brasil vem merecendo especial atenção do
Estado, não apenas porque a pena de prisão não consegue cumprir sua função
ressocializadora, mas também em razão das graves violações a princípios constitucionais, em
especial o princípio da dignidade da pessoa humana.
A prisão fabrica delinqüentes1, e vige nos presídios, tão-somente, a pena de execução
e não a execução da pena, numa total inversão de papéis, inferindo-se que, por mais positivas
que possam ser as propostas de reforma do sistema prisional no Brasil, “o cotidiano do
cárcere parece rejeitar qualquer sugestão de mudança, porquanto ali imperam as leis do
silêncio e do mais forte”.2
Nos últimos tempos, o Direito Penal tem evoluindo, embora a passos lentos, a uma
posição que as novas necessidades sociais estão lhe impondo, voltando-se para uma visão
humanista da sua punibilidade, para que o Estado consiga transformar a personalidade
desajustada do criminoso em ser ressocializado e reeducado, apto a voltar ao convívio da
sociedade e sem grandes chances de voltar a delinqüir.
Nesse contexto, surge a defesa em prol da cognominada “Justiça Restaurativa”,
baseada num procedimento voluntário de consenso entre a vítima e o infrator e, se for o caso,
1
2
FOCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 1987, p. 47.
YURTSEVER, Leyla Viga. O patronato e a reintegração na sociedade do egresso penitenciário. In: Revista
Jurídica Consulex, ano XII, nº. 268, 15 Mar./2008, p. 63.
11
com outras pessoas ou membros da sociedade afetados pelo delito, buscando-se um resultado
restaurativo, um acordo que possa suprir as necessidades individuais e coletivas das partes e
se alcançar a reintegração social do infrator e, dependendo do caso, da própria vítima.
Assim, esse trabalho tem como objetivo realizar um estudo possibilidade de o Brasil
adotar a “Justiça Restaurativa”, principalmente em face da notória falência do seu sistema
prisional.
Não obstante as práticas restaurativas serem aplicáveis a qualquer tipo de conflito
(família, vizinhança, escola, ambiente de trabalho, comunidades etc.), o foco desse trabalho
será tão-somente o capo da justiça criminal e com infratores adultos.
A metodologia utilizada para o desenvolvimento deste trabalho será a observação
indireta primária e secundária, mediante pesquisa bibliográfica na forma de livros, periódicos,
revistas, publicações, imprensa escrita, artigos e textos obtidos de forma eletrônica, além de
análise das normas pertinentes ao tema, como a Constituição Federal brasileira, Código Penal,
Estatuto da Criança e do Adolescente e Lei dos Juizados Especiais.
Visando à uma melhor apresentação e didática, dividiu-se esse trabalho em quatro
capítulos.
O primeiro abordará a pena e o sistema prisional no Brasil, englobando a evolução
histórica e o conceito de pena, os tipos de pena existentes no sistema penal pátrio com ênfase
na pena privativa de liberdade, as funções da pena e seus princípios norteadores. Apresentará,
ainda, nesse capítulo, um espelho do sistema prisional no Brasil e os princípios violados, de
forma a demonstrar sua falência.
O segundo capítulo explanará sobre a Justiça Restaurativa, iniciando com a
apresentação de seu conceito e diferença da justiça convencional, bem como com a
investigação de como se opera esse tipo de justiça em outros países.
Apresentará, também, os princípios básicos para utilização de programas de justiça
restaurativa em matéria criminal aprovado pela Organização das Nações Unidas, visando
demonstrar que tais princípios são favoráveis à implementação da Justiça Restaurativa no
Brasil.
Por fim, esse capítulo levantará como se desenvolve a Justiça Restaurativa no Direito
Comparado, trazendo à baila a Nova Zelândia, em razão de ter sido o país pioneiro nessa
prática e, em seguida, os Estados Unidos, devido ao seu grau de desenvolvimento,
culminando com a Argentina, por localizar-se na América Latina.
No terceiro capítulo serão apresentados os impactos que esse tipo de justiça pode
provocar no sistema de justiça criminal pátrio, iniciando-se com uma explanação acerca da
12
ausência de previsão da Justiça Restaurativa na legislação brasileira, bem como o Projeto de
Lei em tramitação no Congresso Nacional que visa à adoção desse modelo de Justiça no país.
Explicará, ainda, quais são os crimes que podem ser objeto dessa Justiça e os
diplomas legais existentes e que podem servir como portas de entrada para sua implantação
no Brasil.
O quarto capítulo enfrentará a questão da Justiça Restaurativa face ao sistema
prisional no Brasil, objetivando mostrar como esse tipo de Justiça pode ajudar a minimizar o
grave problema carcerário existente. Para tanto, apresentará o Projeto Piloto existente em
Brasília.
13
1 PENAS E SISTEMA PRISIONAL NO BRASIL
Em pleno Século XXI não se pode conceber a aplicação de uma pena que não leve em
conta, de maneira séria e responsável, suas conseqüências e efeitos na vida do apenado.
Mesmo assim, ela não parece traduzir a justa punição buscada pelo legislador; ao revés,
parece ter voltado ao tempo em que era tratada como expiação, como castigo severíssimo para
crimes cometidos, independente de sua gravidade, mostrando-se, portanto, pouco ou nada útil,
violando dogmas éticos, humanos e em nada contribuindo para a ressocialização do preso.
Nesse contexto, ganha terreno aqueles que buscam uma mudança radical no sistema
penal vigente, considerado anacrônico, hermético e desastroso para a sociedade. Aqueles que,
com base na defesa social, difundem idéias prevencionistas e abolicionistas da pena e da
responsabilidade penal, buscando proteger não apenas a sociedade e as vítimas, mas também
os próprios delinqüentes que, segundo eles, precisam ser tratados conforme o caso individual.3
Percebe-se, pois, que a aplicação da pena não dispensa um estudo atencioso,
iniciando-se por um entendimento acerca do que vem a ser a pena.
1.1 Pena: abordagem conceitual e histórica
Pena é a perda ou diminuição de bens jurídicos, imposta pelo órgão da Justiça a quem
cometeu um crime. Trata-se de uma sanção jurídica do Direito Penal, prevista em razão da
lesão ou do perigo de lesão dos bens jurídicos – valores considerados essenciais – em um
determinado momento histórico-social. O Estado conta com a pena e dela recorre, sempre que
necessário, buscando assegurar a ordem jurídica violada e tornar possível a convivência
harmônica entre os homens.
Para Rogério Greco, a pena é a conseqüência natural imposta pelo Estado quando
alguém pratica uma infração pena, ou seja, “quando o agente comete um fato típico, ilícito e
culpável, abre-se a possibilidade para o Estado de fazer valer seu ius puniendi”.4
Segundo Fernando Capez:
3
4
FARIAS JÚNIOR, João. Manual de Criminologia. 3. ed. atual. Curitiba: Juruá, 2001, p. 14-20.
GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. 7. ed. Niterói, RJ: Impetus, 2006, p. 519.
14
Pena é a sanção penal de caráter aflitivo, imposta pelo Estado, em execução de uma
sentença, ao culpado pela prática de uma infração penal, consistente na restrição ou
privação de um bem jurídico, cuja finalidade é aplicar a retribuição punitiva ao
delinqüente, promover sua readaptação social e prevenir novas transgressões pela
intimidação dirigida à coletividade.5
Nos primórdios a pena era a vindita, o sentimento de vingança, um revide à agressão
sofrida, sem a devida proporção ou justiça. Admite-se que essa idéia de vingança tenha
surgido de forma privada, como uma forma de defesa, pois não havia um Estado constituído
que regulasse as relações em sociedade. Tal fase, marcada pela justiça feita com as próprias
mãos, foi paulatinamente abandonada e a autotutela deixada de lado, porquanto a ação
vingativa praticada motu próprio tornou-se crime.6
Com o surgimento do Estado e das religiões, a pena passou a ter conotação de
divindade. Nessa fase, o jus puniendi possuía um cunho religioso fundamentado na justiça
divina, ou seja, era a vontade dos deuses que houvesse a punição. Essa forma de punir foi
adotada por povos gregos, romanos, hindus, egípcios, persas e chineses.7
Nesse sentido, leciona Oswaldo Henrique Duek Marques:
As antigas civilizações orientais eram regidas pelo chamado “estado teológico”. Por
isso, a pena, via de regra, encontrava sua justificativa em fundamentos religiosos e
tinha por finalidade satisfazer a divindade ofendida pelo crime. Com a influência da
religião no desenvolvimento da civilização, a vingança, outrora privada,
transformou-se gradativamente em divina e passou a ser regulada pelos sacerdotes.8
Diversas atrocidades eram praticadas a título de punição, revelando tratamento
desumano, verdadeiramente desarrazoado aos infratores. As pessoas eram açoitadas e
acorrentadas, recebendo tratamento dispensado a animais, tanto que a expressão prender
surgiu das nascentes zoológicas. Houve também o castigo baseado na Lei de Talião, em que a
regra era “olho por olho, dente por dente”, ou seja, o ofensor iria passar pelo mesmo suplício
que fizesse o ofendido passar. Se desonrou uma outra pessoa, deveria sofrer a mesma
desonra.9
As penas tinham um caráter de desprezo e descaso para com o homem. Não havia
limites no rigor. Inúmeras formas punitivas eram postas em prática, causando dor e
humilhação. Muitas vezes aquele que estava sendo submetido à pena era exposto à população
em estádios, coliseus, praças públicas, onde sua reprimenda era tida e utilizada como
5
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal. Parte Geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 1, p.357.
MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Fundamentos da pena. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2000, p. 4.
7
CORDEIRO, Grecianny Carvalho. Privatização do sistema prisional brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas
Bastos Editora, 1998, p. 13
8
MARQUES, Oswaldo Henrique Duek. Op. Cit., p. 11.
9
OLIVEIRA, Edmundo. O futuro alternativo das prisões. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 5.
6
15
espetáculo.10 Eram utilizados os suplícios simbólicos, no qual a forma de execução fazia
lembrar a natureza do crime. Assim, blasfemadores tinham sua língua furada, os punhos dos
assassinos eram cortados e às vezes o instrumento do crime era ostentado pelo criminoso.11
Importa acentuar que na antiguidade não havia a privação de liberdade como sanção
penal, pois a prisão servia de contenção e guarda de réus a fim de preservar suas integridades
físicas até o momento do julgamento ou da execução12.
Na Idade Média surge a prisão de Estado e a prisão eclesiástica, sendo que naquela,
somente poderiam ser recolhidos os inimigos do poder, real ou senhorial, os quais houvessem
praticado delitos de traição, bem como aqueles que eram adversários políticos dos
governantes. Na prisão-custódia o réu esperava a execução da pena a ele imposta.13
Naquele período, a Igreja impunha aos seus clérigos penitência, daí o surgimento do
nome “penitenciária”, onde o pecador buscava se reconciliar com o Criador por meio de
isolamento e oração.14 A prisão eclesiástica era destinada aos rebeldes e aos clérigos e era tida
como uma resposta da igreja às idéias de caridade, redenção e fraternidade. Nela era dada ao
internamento um sentido de penitência e meditação.15
No século XVI surgiram as penas cumpridas nas galés ou galeras, conhecidas como
navios-presídios, onde os presos remavam, numa espécie de trabalho forçado e onde podiam
ser vendidos a outros países para trabalharem nas galés. Esse procedimento era adotado por
países da Europa, representando comércio de apreciável valor econômico.16
Houve, também, o surgimento de presídios militares, que deram origem aos presídios
de obras públicas, com a finalidade de submeter o condenado a trabalhos forçados em obras
públicas, mas que, devido à concorrência com a mão-de-obra livre essa modalidade de prisão
não perdurou por muito tempo.17
Ainda no século XVI iniciou-se o processo de prisão com escopo reeducador. Surgiu
na Europa e, inicialmente, a sua meta não era simplesmente o caráter de reeducação, mas sim
dar fim a um problema social. As prisões eram destinadas ao recolhimento de andarilhos,
mendigos, delinqüentes, dentre outros, os quais se amontoavam nas ruas em virtude de uma
10
BUBENECK, Celso. Sobre penas de morte. Revista Prática Jurídica, nº. 60, ano VI, p. 10.
FOUCALT, Michel. Vigiar e Punir. 33. ed. Petrópolis: Vozes, 2007, p. 39
12
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 4
13
Ibidem, p. 9
14
LEAL, César Barros. Prisão: crepúsculo de uma era. 2. ed. Belo Horizonte, Del Rey, 2001, p. 33.
15
BITENCOURT, Cezar Roberto. Op. Cit., p. 10
16
OLIVEIRA, Edmundo. O futuro alternativo das prisões. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 5.
17
Ibidem.
11
16
crise no campo da agricultura por que passava a Europa, fato este que ocasionou um grande
aumento nos índices de criminalidade.18
É importante ressaltar que nos séculos XVI e XVII houve na Europa um período no
qual a pobreza se expandiu, acompanhado também de um período de guerras religiosas na
França que aniquilaram as riquezas daquele país. Os pobres formavam quase a quarta parte da
população européia, sobrevivendo de esmolas, roubo e assassinatos19.
Com o crescimento desmesurado da pobreza e por razões de política criminal, a pena
de morte não era uma solução adequada frente à delinqüência, pois não se podia aplicá-la a
tanta gente. Dessa forma, surgiu na segunda metade do século XVI um movimento visando o
desenvolvimento das penas privativas de liberdade.20
Diante dessas novas perspectivas criadas em relação à pena, surgiram algumas teorias
visando explicar sua finalidade.
1.2 Funções da pena: ênfase na função ressocializadora
A teoria absoluta ou da retribuição entende que a finalidade da pena é punir o autor de
um ilícito penal: “a pena é a retribuição do mal injusto, praticado pelo criminoso, pelo mal
justo previsto no ordenamento jurídico”.21
A pena deve servir como retaliação e expiação, com exigência absoluta de justiça, com
fins aflitivos e retributivos, sem qualquer finalidade utilitária, como esclarece Cezar Roberto
Bitencourt:
Segundo o esquema retribucionista, é atribuída à pena, exclusivamente, a difícil
incumbência de realizar a justiça. A pena tem como fim fazer justiça, nada mais. A
culpa do autor deve ser compensada com a imposição de um mal, que é a pena, e o
fundamento da sanção estatal está no questionável livre arbítrio, entendido como a
capacidade de decisão do homem para distinguir entre o justo e o injusto.22
Claus Roxin aponta três inconvenientes que podem ser apresentados na análise da
teoria da retribuição. O primeiro deles decorre do fato de que a referida teoria pressupõe já a
necessidade da pena, que deveria fundamentar. E, nesse sentido, assevera:
18
OLIVEIRA, Edmundo. O futuro alternativo das prisões. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 5.
BITENCOURT, Cezar Roberto. Falência da pena de prisão. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 14-15
20
Ibidem, p. 16.
21
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v.1, p. 357.
22
BITENCOURT, Cezar Roberto. Manual de Direito Penal. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 99.
19
17
Se o seu significado assenta na compensação da culpa humana, não se pode com
isso pretender que o Estado tenha de retribuir com a pena toda a culpa. Cada um de
nós considera-se culpado perante o próximo de muitas maneiras, mas não somos por
isso puníveis. E, igualmente, a culpa jurídica acarreta conseqüências de tipos
diversos, como por exemplo, um dever de indenização por danos, mas apenas em
raras ocasiões a pena. A teoria da retribuição, portanto, não explica em absoluto
quando se tem de punir mas apenas refere “se impuserdes – sejam quais forem os
critérios – uma pena, com ela tereis de retribuir um crime”.23
O segundo inconveniente é tratado por Claus Roxin da seguinte forma: “A liberdade
humana pressupõe a liberdade de vontade (o livre-arbítrio), e a sua existência, como os
próprios partidários da idéia da retribuição concordam, é indemonstrável”.24
Quanto ao terceiro argumento, aduz o mencionado autor:
Mesmo que se considere que o alcance das penas estatais e a culpa humana se
encontram suficientemente fundamentadas com a teoria da expiação, colocar-se-ia
sempre uma terceira objeção, a saber: a própria idéia de retribuição compensadora só
pode ser plausível mediante um ato de fé. Pois, considerando-o racionalmente, não
se compreende como se pode pagar um mal cometido, acrescentando-lhe um
segundo mal: sofrer a pena. É claro que tal procedimento corresponde ao arraigado
impulso de vingança humana, do qual surgiu historicamente a pena; mas considerar
que a assunção da retribuição pelo Estado seja algo qualitativamente distinto da
vingança, e que a retribuição tome a seu cargo ‘a culpa de sangue do povo’, expie o
delinqüente, etc., tudo isso é concebível apenas por um ato de fé, que, segundo a
nossa Constituição, não pode ser imposto a ninguém, e não é válido para uma
fundamentação, vinculante para todos, da pena estatal.25
Claus Roxin conclui seu entendimento afirmando que “a teoria da retribuição não nos
serve”. Segundo ele, esta teoria deixa na obscuridade os pressupostos da punibilidade,
“porque não estão comprovados os seus fundamentos e porque, como profissão de fé
irracional e além do mais contestável, não é vinculante.”26
Para Eugenio Raúl Zaffaroni [et al.], a teoria da retribuição tem pretensão
praticamente inexplicável, como esclarece:
[...] não se pode compreender uma função retributiva fora do marco de uma
reparação, porque a retribuição não é um fim em si mesma – nem para Kant – mas
sim um meio que encontra sentido quando associado a uma finalidade diferente, tal
como a reparação ou a vingança. [...].A idéia retributiva é usada, com freqüência, em
um sentido formalmente obscuro, mas politicamente menos irracional do que os
outros: a retribuição é o limite da pena ou sua medida. [...] a retribuição não é uma
teoria da pena, mas sim um critério de limite ou de quantificação, que costuma
morigerar as conseqüências ilimitadas de qualquer uma das teorias da pena.27
Mencionados autores concluem sua argumentação afirmando que a constante
referência à retribuição indica que nela se procura alguma coisa semelhante a um princípio
regulador e, assim:
23
ROXIN, Claus. Problemas Fundamentais de Direito Penal. Lisboa: Veja, 1986, p. 19-20.
Ibidem.
25
Ibidem.
26
Ibidem.
27
ZAFFARONI, E. Raúl [et al.] Direito Penal Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 142-143.
24
18
Se com a criminalização primária o estado confisca um conflito, sua intervenção –
por excluir a vítima, bem como por ser de altíssima seletividade e de grande
violência – não pode ser apresentada como racional, mas sua irracionalidade
reconhece graus, e chegaria ao limite intolerável quando não houvesse equivalência
à magnitude da lesão (ou com esta mantivesse certa relação) que o conflito provoca,
pois, neste caso, o conflito seria apenas o pretexto para que o poder atuasse na
medida de sua vontade omnímoda.28
Por sua vez, a teoria relativa (finalista, utilitária ou da prevenção) defende que a pena
tem um fim prático e imediato de prevenção geral ou especial do crime. Especial por objetivar
a readaptação e a segregação sociais do criminoso visando impedi-lo de voltar a delinqüir. E
geral uma vez que representa a intimidação dirigida ao ambiente social.29
Seus defensores entendem que é através do Direito Penal que se pode chegar à solução
para o problema da criminalidade. Nesse sentido, entende Mezger que, “Como instrumento de
prevenção, a pena deve atuar social e pedagogicamente sobre a coletividade (prevenção geral)
e deve proteger a coletividade ante o condenado e corrigir a este (prevenção especial).”30
Segundo Nélson Hungria:
Ameaça que é, a pena constitui um poderoso meio profilático da fames peccati e um
freio contra o crime que, se de um lado, reafirma o princípio da autoridade, que o
criminoso afrontou, de outro representa um indireto contramotivo aos possíveis
criminosos de amanhã.31
Claus Roxin é contrário à prevenção geral porque entende que permanece em aberto a
questão de saber face a que comportamentos possui o Estado a faculdade de intimidar, como
esclarece:
A doutrina de prevenção geral partilha com as doutrinas da retribuição e da correção
esta debilidade, ou seja, permanece por esclarecer o âmbito do criminalmente
punível. A ela se acrescenta uma ulterior objeção: assim como na concepção da
prevenção especial não é delimitável a duração do tratamento terapêutico-social,
podendo no caso concreto ultrapassar a medida do defensável numa ordem jurídicoliberal, o ponto de partida da prevenção geral possui normalmente uma tendência
para o terror estatal. Quem pretender intimidar mediante a pena tenderá a reforçar
esse efeito, castigando tão duramente quanto possível.32
Em segundo lugar, segundo Claus Roxin, há o fato incontestável de que “em muitos
grupos de crimes e de delinqüentes, não se conseguiu provar até agora o efeito de prevenção
geral da pena.”33 Para ele é difícil aceitar que se possa justificar o castigo imposto a um
indivíduo, não em consideração a ele próprio, mas em consideração a outros. Assim, mesmo
28
ZAFFARONI, E. Raúl [et al.]. Direito Penal Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 143.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 1, p. 358.
30
MEZGER. Apud MARCÃO, Renato. Rediscutindo os Fins da Pena. In: Notáveis do Direito Penal, Brasília:
Consulex, 2006, p. 433.
31
HUNGRIA, Nélson. Novas questões jurídico-penais. Rio de Janeiro: Jacintho, 1940, p. 132.
32
ROXIN, Claus. Apud MARCÃO, Renato. Op. Cit., 432.
33
Idem. Ibidem.
29
19
que seja eficaz a intimidação, “é difícil compreender que possa ser justo que se imponha um
mal a alguém para que outros omitam cometer um mal.”34
A última teoria, mista (eclética, intermediária ou conciliatória), entende que a pena
tem dupla função: punir o delinqüente e prevenir a prática do crime pela reeducação e
intimidação coletiva. Trata-se de uma teoria que acolhe a retribuição e o princípio da
culpabilidade como critérios limitadores da intervenção da pena.35
Atualmente, como postulado da moderna política criminal, fala-se da prevenção
Especial, consistente na prevenção do delito por atuação sobre o autor, ou seja, aquela que é
dirigida exclusivamente ao delinqüente, no sentido de evitar que este volte a cometer crimes.
Diferentemente das teorias anteriormente apresentadas, esta não visa à intimidação do grupo
social e nem à retribuição do ilícito praticado. Ela visa apenas aquele indivíduo que já
praticou o ilícito penal, para fazer com que não volte a delinqüir.
Segundo Reinhart Maurach:
Em seu conjunto, a prevenção especial está orientada a desenvolver uma influência
inibitória do delito no autor. A sua vez, esta finalidade se subdivide em três fins da
pena: intimidação (preventivo individual), ressocialização (correção) e
asseguramento. Neste sentido, a intimidação e a ressocialização podem ser
concebidas como objetivos positivos, enquanto elas buscam reincorporar o autor à
comunidade jurídica, ou bem mantê-la nela; busca assegurar a recuperação do autor
para a comunidade.36 (negrito nosso)
Insta afirmar que a pena não pode deixar de buscar, a par de outras funções,
principalmente a função ressocializadora. No Brasil, a pena vem cumprindo tão-somente sua
finalidade retributiva, seja pelo endurecimento desnecessário de penas, seja pelo precaríssimo
sistema carcerário.
A finalidade ressocializadora da pena e a readaptação social do condenado não podem
ser esquecidas. Contudo, há que se aceitar ser este um assunto polêmico, tendo em vista falarse da ressocialização de indivíduos que passaram grande parte de suas vidas à margem da
sociedade, totalmente excluídos, sem nunca terem sido, verdadeiramente, socializados ou
educados. Indivíduos que não tiveram oportunidades, expectativas, vidas dignas, que se
enveredaram no caminho da marginalidade para tentar sobreviver e, não raras vezes, sem ter
consciência das conseqüências de seus atos, porque a necessidade falava mais alto.37
34
ROXIN, Claus. Apud MARCÃO, Renato. Rediscutindo os Fins da Pena. In: Notáveis do Direito Penal,
Brasília: Consulex, 2006, p. 433.
35
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral.10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v. 1, p. 358.
36
MAURACH, Reinhart. Derecho Penal. Buenos Aires: Astrea, 1995, p. 761. Apud MARCÃO, Renato. Op.
Cit., p. 433.
37
ARAÚJO, Cibele Fernandes Alves. Aplicação da Pena Abaixo do Mínimo Legal. 2003. 85f. Monografia
(Graduação em Direito). UniDF, p. 20.
20
Não que tais fatores justifiquem os atos contrários à lei, mas talvez os expliquem. Se
tais indivíduos sempre foram rejeitados em função de sua situação de penúria junto à
sociedade, esta rejeição se completa quando ele atinge essa mesma sociedade com seus atos
criminosos. Em conseqüência, a sociedade espera que esse indivíduo seja punido severamente
pelo mal causado, como forma de sentir-se mais segura.
Segundo Cibele Araújo:
O Estado deveria trabalhar no sentido de atender as peculiaridades de cada preso,
fazendo com que eles recuperem sua humanidade, possibilitando-lhes uma honesta
ressocialização, para com isso atingir uma outra finalidade da pena, que é
proporcionar tranqüilidade para a sociedade. Cabe a ele – Estado – a
responsabilidade de prevenir a prática de crimes e também de patrocinar a reinserção
social do apenado. Porém, a realidade mostra, de forma clara, que o Estado sozinho
não conseguirá resolver tais questões, pois há um consenso no sentido de que o
aumento da violência anda de mãos dadas com o aumento da exclusão social.38
A questão entre ressocializar e punir continua sendo um dos maiores enigmas para a
sociedade que vive cercada pelo medo, sentimento este que precisa ser rompido, no sentido de
se estabelecer a segurança social e propiciar uma discussão sobre as formas que possam
permitir à sociedade entender que a pena não pode ser utilizada no sentido de vingança e sim
como forma de recuperar seus semelhantes de forma humanizada.39
Encerrada essa fase, volta-se à atenção para os princípios norteadores da pena.
1.3 Princípios norteadores da pena no Brasil
A pena no Brasil não pode furtar-se a aspectos extremamente relevantes e que devem,
obrigatoriamente, ser observados quando de sua aplicação.
O primeiro deles diz respeito à legalidade. Significa dizer que a pena deve estar
prevista em lei vigente, conforme preceitua a Carta Magna brasileira, em seu artigo 5º, inciso
XXXIX, pelo qual “não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia
cominação legal”, tendo se inspirado, segundo Eugenio Raúl Zaffaroni [et al.], “na quase
idêntica redação do artigo 1º do nosso Código Penal” e que representa a característica de
anterioridade da pena.40
38
ARAÚJO, Cibele Fernandes Alves. Aplicação da Pena Abaixo do Mínimo Legal. 2003. 85f. Monografia
(Graduação em Direito). UniDF, p. 20.
39
Ibidem.
40
ZAFFARONI, E. Raúl [et al.]. Direito Penal Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 202.
21
A esse princípio vincula-se a proibição de lei ex-post facto, disposto no inciso XL do
art. 5º da Constituição Federal, segundo o qual a lei penal não pode retroagir, salvo para
beneficiar o réu, e, também, o dispositivo constitucional que veda a pena de morte (salvo em
caso de guerra declarada), as penas de caráter perpétuo, de trabalhos forçados, de banimento e
as penas cruéis.41
Outra característica da pena refere-se à personalidade, uma vez que a pena não pode
passar da pessoa do condenado, conforme disposto no artigo 5º, XLV, da Constituição
Federal. Quanto à pena de multa, “ainda que considerada dívida de valor para fins de
cobrança, não pode ser exigida dos herdeiros do falecido”.42
De grande importância é a característica da individualidade, segundo a qual a
imposição e cumprimento da pena deverão ser individualizados de acordo com a
culpabilidade e o mérito do sentenciado, conforme reza o inciso XLVI, do art. 5º, da
Constituição Federal. Está presente, também, como característica, a inderrogabilidade,
significando que, salvo as exceções legais, a pena não pode deixar de ser aplicada, sob
nenhum fundamento. A pena deve ser imposta, ainda, respeitando-se o princípio da
proporcionalidade, sendo sempre proporcionais aos crimes praticados, conforme comando do
artigo 5º, XLVI e XLVII, e o princípio da humanidade, preceituado no artigo 5º, XLVII,
ambos da Constituição pátria.43
Quando se fala em pena há que se discorrer acerca dos princípios da individualização,
humanidade e proporcionalidade da pena.
A liberdade, inquestionavelmente, é valor inalienável. E a pena não pode ser, como
outrora, uma vingança arbitrária da vítima. Nessa esteira, a Constituição Federal de 1988
trouxe em seu art. 5º, inciso XLVI, a individualização da pena, visando sua mensuração de
acordo com o caso específico. Ela deve ser aplicada de forma justa e compatível com o crime
cometido, deve ser adequada às condições pessoais do delinqüente, deve adequar-se, ainda, às
circunstâncias objetivas e subjetivas que envolveram o cometimento do crime, devendo seu
cumprimento cingir-se de zelo.44
O princípio em tela busca realizar a finalidade da pena, tal como definido no art. 59 do
Código Penal Brasileiro: “conforme seja necessário e suficiente para a reprovação e
prevenção do crime” e que, segundo Uadi Lamêgo Bulos:
41
ZAFFARONI, E. Raúl [et al.]. Direito Penal Brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 202.
CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: parte geral.10. ed. São Paulo: Saraiva, 2006, v.1, p. 358.
43
Ibidem, p. 358-359.
44
Ibidem, p. 359.
42
22
Ao aludir que а lei ‘regulará а individualização da pena’, o constituinte levou em
conta а dignidade da pessoa humana, considerada como valor supremo de uma
sociedade fraterna, pluralista, preocupada com o desenvolvimento, а igualdade, o
bem-estar e а justiça. Por isso, inadmite-se investidas contra o pórtico da dignidade
do homem. Trata-se do princípio humanitário, tão enfatizado pela Carta das Nações
Unidas, pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pelo Pacto Internacional
sobre Direitos Civis e Políticos, pela Carta da Organização dos Estados Americanos,
pela Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem, dentre outros que
erigiram а pessoa física à própria razão de ser da sociedade.45
O Princípio da Individualização da Pena divide-se em três etapas: a) individualização
legislativa (cominação penal); que é a previsão abstrata da sanção penal, dentro dos limites
penais escolhidos pelo legislador, presente o caráter preventivo geral, uma vez que a
cominação da pena cuida de prevenir o crime; b) individualização judicial (aplicação da
pena), que representa a realização do Direito pelo Judiciário, fixando o procedimento a ser
observado pelo Juiz a fim de fixar a pena dentre as cominadas, estabelecer a quantidade
aplicável, respeitando os limites previstos, estabelecer o regime inicial de seu cumprimento ou
promover a substituição da pena privativa de liberdade aplicada por outra espécie de pena, se
for o caso; e c) individualização executória (execução da pena aplicada), que trata do
cumprimento do disposto na sentença, operando-se no âmbito administrativo.46
A individualização da pena, portanto, serve como uma espécie de guia para que o Juiz
defina a sanção a ser aplicada, não podendo, contudo, conforme se depreende do exposto,
reduzir-se a simples cálculo. Segundo Jorge de Figueiredo Dias, a exigência legal de que a
medida da pena seja encontrada pelo juiz em função da culpa é da prevenção, o que, para ele,
é absolutamente compreensível e justificável.47
Leciona esse doutrinador:
Através do requisito de que sejam levadas em conta as exigências da prevenção dáse lugar à necessidade comunitária da punição do caso concreto e consequentemente
à realização in casu das finalidades da pena. Através do requisito de que seja tomada
em consideração a culpa do agente dá-se a tradução à exigência de que a vertente
pessoal do crime – ligada ao mandamento incondicional de respeito pelo eminente
dignidade da pessoa do delinqüente – limite de forma inultrapassável as
necessidades da prevenção.48
Diante do exposto, e frente à realidade dos presídios no Brasil, nota-se que o caráter
fundamental da pena tem sido o castigo do agente (reprovação), dando um exemplo à
sociedade (prevenção), não estando presente, mesmo com toda sua importância, a função
reeducadora e ressocializadora. Dessa forma, a pena pode, inclusive, ser considerada cruel,
45
BULOS, Uadi Lammêgo. Constituição Federal Anotada. 4 ed. São Paulo: Saraiva: 2002, p. 221.
ARAÚJO, Cibele Fernandes Alves. Aplicação da Pena Abaixo do Mínimo Legal. 2003. 85f. Monografia
(Graduação em Direito). UniDF., p. 24.
47
DIAS, Jorge de Figueiredo. Sobre o modelo de determinação da medida da pena. In: Notáveis do Direito
Penal. Brasília: Consulex, 2006, p. 217.
48
Ibidem.
46
23
violando o princípio da humanidade, que encontra previsão legal no art. 5º, incisos XLV,
XLVI, XLVII e L da Constituição Federal e pelo qual o réu deve ser tratado como pessoa
humana.49
Para Eugenio Raúl Zaffaroni [et al.], em que pese tal consagração implícita e expressa
na Constituição, trata-se do princípio mais ignorado pelo poder criminalizante.50 Por conta do
princípio da humanidade, qualquer pena que se torna brutal em suas conseqüências é cruel:
[...] como aquelas geradoras de um impedimento que comprometa totalmente a vida
do indivíduo (morte, castração, esterilização, marcas cutâneas, amputação,
intervenções neurológicas). Igualmente cruéis são as conseqüências jurídicas que se
pretendam manter até a morte da pessoa, porquanto impõem-lhe um sinete jurídico
que a converte em alguém inferior (capitis diminutio). Toda conseqüência de uma
punição tem de acabar em algum momento, por longo que seja o tempo a
transcorrer, mas não pode jamais ser perpétua no sentido próprio da expressão, pois
implicaria admitir a existência de uma pessoa descartável.51
Existem situações que podem tornar uma pena cruel. Uma delas é quando a pessoa
sofre um grave castigo natural, ou seja, sofre as conseqüências do fato em si mesma. Aplicase o princípio da humanidade quando o Juiz, na hipótese de homicídio culposo, deixa de
aplicar a pena quando as conseqüências da infração atingem o próprio agente, de forma tão
grave que a sanção penal se torne desnecessária. Na verdade, ainda que legal, seria uma pena
cruel. Outra situação é quando a perspectiva de vida da pessoa diminui pelo fato de ter
contraído uma doença ou porque a sobrevida torna-se reduzida em razão de estar preso. A
pena, nestes casos, aproxima-se da pena de morte e, por essa razão, aplica-se também o
princípio da humanidade.52
É forçoso admitir que a chance de ressocialização para o apenado seja praticamente
nula, tamanha é a crueldade que cerca o cumprimento da pena nas prisões brasileiras, estando
flagrante, portanto, a ausência do princípio da humanidade nessa área. Nesse sentido, João
Farias Júnior:
O critério retributivo e comutativo da pena impõe que o delinqüente permaneça um
tempo determinado de acordo com a gravidade do crime praticado. Isso denuncia
que o escopo da nossa sistemática penal não é a recuperação e sim o castigo, porque
se a recuperação fosse o escopo, o tempo de segregação deveria ser só o suficiente
para a sua recuperação. Mesmo porque a prisão é imprestável para a recuperação.
No dizer de Augusto Thompson, “a prisão não pode recuperar criminosos nem pode
ser recuperada para tal fim”.53
49
ZAFFARONI, E. Raúl et al. Direito Penal Brasileiro – I. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 233.
Ibidem.
51
Ibidem.
52
A criminologia positivista estuda os fatores crimonógenos, a relação causal, ou seja, o processo que leva o
indivíduo a ser criminoso, ela estuda a causa entendendo que a solução para a criminalidade está no combate à
essas causas. O direito penal entende que essa solução está no combate aos efeitos, que são os criminosos,
deixando as causas intocadas.
53
FARIAS JÚNIOR, João. Manual de Criminologia. 3. ed. atual. Curitiba: Juruá, 2001, p. 230.
50
24
Para esse autor, há a ilusão de que se pode corrigir castigando. Como os processos
levam anos para chegarem à sentença, não há como um indivíduo relacionar o castigo com o
crime depois de tanto tempo. Para ele, recuperar é imprimir um tratamento, uma terapia, e não
se pode imprimir terapia castigando. Não se pode imprimir terapia em meio às mazelas por
ele apontadas.54
Outro princípio importante é o da Proporcionalidade, tratado por Damásio de Jesus
como “princípio da proibição de excesso”, uma vez que ele determina que a pena não possa
ser superior ao grau de responsabilidade pela prática do fato, o que significa dizer que a pena
deve ser medida pela culpabilidade do autor, daí a razão de se dizer que “a culpabilidade é a
medida da pena”.55
Também conhecido como Princípio da Razoabilidade, ele pressupõe prudência,
sensatez, bom senso, equilíbrio, segundo o qual o intérprete deve analisar o grau de
proporcionalidade entre os meios, os motivos e os fins, devendo o meio empregado pelo
julgador ser adequado e exigível, para que seja atingido o fim almejado. Sobre a
proporcionalidade da pena, Eugenio Raúl Zaffaroni, ao lecionar sobre a criminalização,
afirmou: “[...] alcança um limite de irracionalidade intolerável quando o conflito sobre cuja
base opera é de lesividade ínfima ou quando, não o sendo, a afetação de direitos nele
envolvida é grosseiramente desproporcional à magnitude da lesividade do conflito”.56
Segundo mencionado autor:
Com esse princípio não se legitima a pena como retribuição, pois continua sendo
uma intervenção seletiva do poder que se limita a suspender o conflito sem resolvêlo e, por conseguinte, conserva intacta sua irracionalidade. Simplesmente se afirma
que o direito penal deve escolher entre irracionalidades, deixando passar as de
menor conteúdo; o que ele não pode é admitir que a essa natureza irracional do
exercício do poder punitivo se agregue um dado de máxima irracionalidade, por
meio do qual sejam afetados bens jurídicos de uma pessoa em desproporção
grosseira com a lesão que ela causou.57
É preciso hierarquizar as lesões e estabelecer um grau de coerência mínima quanto à
magnitude das penas vinculadas a cada conflito criminalizado. As teorias preventivas da pena
induzem ao desconhecimento desse princípio, dando ensejo a “falsa (ou não-comprovada)
idéia de bem jurídico tutelado ou protegido (baseada em qualquer teoria preventiva da pena) e
que neutraliza o efeito limitativo”.58
Segundo a visão criminológica de João Farias Júnior:
54
FARIAS JÚNIOR, João. Manual de Criminologia. 3. ed. atual. Curitiba: Juruá, 2001, p. 231.
JESUS, Damásio de. Direito Penal: parte geral. 23. ed. São Paulo: Saraiva. 1999, p. 11.
56
ZAFFARONI, E. Raúl [et al.]. Direito Penal Brasileiro. 2 ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003, p. 230.
57
Ibidem, p. 230-231.
58
Ibidem, p. 220.
55
25
Na prática, o juiz aprecia fria e abstratamente o fato em sua tipicidade e
antijuridicidade, valora os elementos subjetivos no que concerne à culpabilidade,
imputabilidade e responsabilidade penais e aplica a pena segundo os parâmetros
objetivos e subjetivos. Se o delinqüente é torto, torto não porque quis ser, mas em
razão dos fatores criminógenos, a policia quer desentortá-lo através da pancada: o
juiz exacerba na pena, achando que ela vai servir de instrumento ortopédico para
desentortá-lo; o gestor prisional o coloca num antro mafioso, sórdido, nefasto e
perverso, querendo, todos, que ele saia dessa sucursal do inferno, bom, dócil e que
por ortopedia espontânea, ele se modele e se torne um ser humano reto e obedecedor
das normas e padrões sociais. E qual é o resultado? Ele vai se tornar cada dia mais
deformado.59
Em suma, por qualquer ângulo que se estude a aplicação da pena, percebe-se a
violação de princípios essenciais pertinentes à função ressocializadora. Mas, não pode ficar
fora desse estudo, o princípio da dignidade da pessoa humana, o mais violados dos princípios
quando se impõe a pena privativa de liberdade no Brasil.
1.4 A pena privativa de liberdade no Brasil frente ao princípio da dignidade da pessoa
humana
O Direito Penal tem evoluindo, embora a passos lentos, a uma posição que as novas
necessidades sociais estão lhe impondo, voltando-se para uma visão humanista da sua
punibilidade, para que o Estado consiga transformar a personalidade desajustada do criminoso
em ser ressocializado e reeducado, apto a voltar ao convívio da sociedade e sem grandes
chances de voltar a delinqüir.
É notório que os princípios de ressocialização e reeducação até então aplicados não
conseguem atingir os objetivos humanísticos que asseguram o respeito aos direitos
fundamentais do indivíduo e o respeito à dignidade da pessoa humana.
É importante entender a dignidade humana, tanto sob o aspecto filosófico, quanto pelo
jurídico. No que tange ao filosófico, atualmente a dignidade da pessoa humana não é mais um
conceito transcendental, expressão de uma necessidade metafísica. É conceito que expressa
uma imprescindibilidade da condição humana e sua concretização é uma imposição dos
tempos atuais do grau de desenvolvimento da sociedade, do nível de aprofundamento da
investigação científica a que se propõe a nova dogmática dos direitos fundamentais.60
59
FARIAS JÚNIOR, João. Manual de Criminologia. 3. ed. atual. Curitiba: Juruá, 2001, p. 37.
JACINTHO, Jussara Maria Moreno. Dignidade Humana: princípio constitucional. Curitiba: Juruá, 2006, p.
25.
60
26
A dignidade da pessoa humana compreende duas concepções elementares, a de pessoa
humana e a de que, em relação a esta, foi feita uma escolha moral. Identifica-se na filosofia de
Immanuel Kant o delineamento de tais concepções, quando esse afirma que “o homem é
sempre o fim e não o meio para se alcançar qualquer outro fim que seja”.61
O homem é um valor absoluto, porque a razão humana o impõe como um fim em si
mesmo e, dessa forma, não há como não lhe preservar sua própria humanidade, o que
significa dizer que a escolha moral que comporta é inafastável, irreprimível: “apesar do
caráter profano de cada indivíduo, ele é sagrado, já que na sua pessoa pulsa a humanidade”.62
A dignidade é considerada, também, produto cultural, fruto da construção humana ao
longo da história, assim como os direitos fundamentais. Assim, em sua dimensão material, de
vetor a ser exigido na prática das relações humanas, a dignidade foi erigida a partir das
considerações que cercam o agir humano, concretamente observado. Assim, a qualidade
intrínseca e distintiva de cada ser humano o faz merecedor do mesmo respeito e consideração
por parte do Estado e da sociedade, implicando, nesse sentido, um complexo de direitos e
deveres fundamentais que possam garantir qualquer pessoa contra qualquer ato de cunho
degradante e desumano, bem como garantir-lhes as condições existenciais mínimas para uma
vida saudável.63
A dignidade humana vem sendo construída, não apenas como uma idéia abstrata que
deve direcionar o trabalho de interpretação do direito, ou de orientar a atividade legislativa.
Na verdade, “é um valor supremo, e como tal, adquire focos de obrigatoriedade, não apenas
pela sua carga axiológica, mas principalmente porque se consubstancia através de normas
jusfundamentais”.64
A dignidade humana adentrou no sistema jurídico brasileiro como um dos pilares do
Estado Democrático de Direito, assumindo uma função bidimensional: “é valor a indicar o
caminho a ser percorrido pela hermenêutica, é norma instituidora de direito material
consubstanciado em norma-princípio ou norma-regra”.65
Para Ingo Wolfgang Sarlet, a dignidade humana é:
[...] irrenunciável e inalienável, constituindo elemento que qualifica o ser humano
como tal e dele não pode ser destacado, de tal sorte que não se pode cogitar na
possibilidade de determinada pessoa ser titular de uma pretensão a que lhe seja
concedida a dignidade. Esta, portanto, como qualidade integrante e irrenunciável da
61
KANT, Immanuel. Apud JACINTHO, Jussara Maria Moreno. Dignidade Humana: princípio constitucional.
Curitiba: Juruá, 2006, p. 27.
62
Idem, Ibidem.
63
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais na Constituição
Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 60.
64
JACINTHO, Jussara Maria Moreno. Op. Cit., p. 31.
65
Ibidem, p. 33-34.
27
própria condição humana, pode (e deve) ser reconhecida, respeitada, promovida e
protegida, não podendo, contudo (no sentido ora empregado) ser criada, concedida
ou retirada, já que existe em cada ser humano como algo que lhe é inerente.66
Quanto mais se debate acerca do conceito e extensão de dignidade humana, mais se
percebe não apenas a profundidade do tema, como a infinita necessidade de discuti-lo67,
mormente quando, em determinada situação, ocorre violação de direitos fundamentais e da
dignidade humana, como ocorre com a pena de prisão no Brasil. Em suma, como comando de
dever, a dignidade da pessoa humana se apresenta em dimensão dupla, “ora como princípio de
hermenêutica, ora como direito material expresso seja por intermédio de um princípio seja
através de uma regra, cujo conteúdo está ainda em franco delineamento”.68
O princípio em tela assumiu na Constituição Federal brasileira de 1988, feição
axiológica, “eixo gravitacional sobre o qual transita não apenas o regime dos direitos
fundamentais, como também, a estruturação do Estado brasileiro”.69
Seu valor é exposto de forma acurada por Paulo Bonavides, no prefácio da obra de
Ingo Wolfgang Sarlet:
[...] nenhum princípio é mais valioso para compendiar a unidade material da
Constituição que o princípio da dignidade da pessoa humana. Quando hoje, a par
dos progressos hermenêuticos do direito e de sua ciência argumentativa, estamos a
falar, em se de positividade, acerca da unidade da Constituição, o princípio que urge
referir na ordem espiritual e material dos valores é o princípio da dignidade humana.
A unidade da Constituição, na melhor doutrina do constitucionalismo
contemporâneo, só se traduz compreensivelmente quando tomada em sua
imprescritível bidimensionalidade, que abrange o formal e o axiológico, a saber,
forma e matéria, razão e valor.70
É, portanto, Princípio que atua como “vetor não apenas da atividade hermenêutica dos
direitos fundamentais, mas também como norma cuja concretização a ciência jurídica deve se
propor a incessantemente buscar”71, obrigando, portanto, ao julgador, que a dignidade da
pessoa humana deva ser o valor máximo a ser preservado pela jurisdição, caso contrário,
pouco ou nenhum valor terá qualquer lei. Assim é porque a Carta Magna vigente,
expressamente, tornou esse princípio como macro valor embasador de toda a ordem legal, seja
ela constitucional ou infraconstitucional, como leciona Daniel Sarmento:
A proclamação solene do princípio da dignidade da pessoa humana no primeiro
artigo do texto constitucional é rica em simbolismo. A Carta de 1988 – Constituição
Cidadã, nas palavras do saudoso Ulisses Guimarães – representa um marco essencial
66
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na Constituição Federal
de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001, p. 41.
67
JACINTHO, Jussara Maria Moreno. Dignidade Humana: princípio constitucional. Curitiba: Juruá, 2006, p.
40.
68
Ibidem, p. 43.
69
Ibidem, p. 25.
70
BONAVIDES, Paulo. In: SARLET, Ingo Wolfgang. Op. Cit., p. 17.
71
JACINTHO, Jussara Maria Moreno. Op. Cit., p. 40.
28
na superação do autoritarismo e na restauração do Estado Democrático de Direito,
timbrado pela preocupação com a promoção dos direitos humanos e da justiça social
no país. Neste contexto, é natural que o constituinte tenha querido tingir com
colorido humanista a sua obra, consagrando a dignidade da pessoa humana como
valor nuclear da ordem constitucional que instaurou.72
A defesa e promoção da dignidade da pessoa humana, em todas as suas dimensões, é
tarefa primordial do Estado Democrático de Direito e, sem isso não se legitima a ordem
estatal e comunitária. Nesse sentido, importa lembrar o preâmbulo da Declaração Universal
dos Direitos do Homem: “[...] a dignidade inerente a todos os membros da família humana é
fundamento da liberdade, da justiça e da paz no mundo”.73
Infere-se, do afirmado, que a dignidade não deve ser reconhecida apenas às pessoas de
determinada classe, nacionalidade ou etnia, mas a todo e qualquer indivíduo, “pelo simples
fato de pertencer à espécie humana”, dela não se despindo “nenhuma pessoa, por mais graves
que tenham sido os atos que praticou”.74
1.5 A falência do sistema prisional no Brasil
Qualquer pena que se torna brutal em suas conseqüências é cruel. No Brasil, não se
consegue alcançar a ressocialização do apenado com a pena privativa de liberdade em grande
parte devido aos notórios e graves problemas ocorridos dentro do sistema carcerário.
Não é objeto desse trabalho, versar sobre os altos índices de criminalidade, nem
mesmo sobre serem, tais índices, conseqüência direta da enorme disparidade social existente
no país. No entanto, sabe-se que o aumento da criminalidade está ligado ao aumento da
miséria, situação em que não há dignidade. Roberto Delmanto, ao versar sobre o aumento da
criminalidade no Brasil, afirmou que há cinqüenta anos o Brasil era um país eminentemente
agrícola, com pouca industrialização, mas uma classe média forte, onde se tinha pobreza, mas
não miséria. E na pobreza pode haver dignidade, na miséria não. Para ele, o Estado brasileiro
“abandonou as favelas e os presídios, só neles entrando para repressões violentas e
72
SARMENTO, Daniel. A Ponderação de Interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro: Lumem Juris,
2003, p. 58.
73
Ibidem, p. 60.
74
Ibidem.
29
indiscriminadas. Nossas cadeias estão entre as mais vergonhosas do mundo e nossas favelas
aumentam vertiginosamente”.75
Para esse autor, as cadeias, sobretudo as medievais como as existentes no Brasil,
raramente recuperam alguém; ao contrário, humilham, aviltam e degradam. São verdadeiras
escolas do crime, tornam os condenados piores.76
Diuturnamente, a visão que se oferece à sociedade sobre o sistema carcerário no Brasil
permite perceber a total ausência de condições para reabilitar o preso, tendo em vista que
meios degradantes e abjetos jamais servirão como instrumentos regenerativos, quiçá
ressocializadores. Nesse sentido, de há muito lecionava Michel Focault:
A prisão fabrica delinqüentes ao impor aos detentos coações violentas; foi criada
para aplicar as leis e ensinar a respeitá-las; pois bem, todo seu funcionamento se
desenvolve sobre o modo de abuso de poder. A arbitrariedade que um preso
experimenta é uma das causas que mais podem fazer indomável seu caráter. Quando
se vê assim exposto a sofrimento que a lei não ordenou nem sequer previu, cai em
um estado de cólera contra tudo o que o rodeia; não vê senão verdugos em todos os
agentes da autoridade; não crê já ter sido culpado; acusa a própria justiça.77
Esse filósofo francês demonstrou que vige nos presídios tão-somente a pena de
execução e não a execução da pena, ocorrendo, portanto, total inversão de papéis, donde se
infere que por mais positivas que possam ser as propostas de reforma do sistema prisional no
Brasil, “o cotidiano do cárcere parece rejeitar qualquer sugestão de mudança, porquanto ali
imperam as leis do silêncio e do mais forte”.78
Em 1988, Human Rights Watch elaborou o primeiro estudo sobre as condições
prisionais no Brasil e, desde então, a população carcerária cresceu sobremaneira, exacerbando
a superlotação das prisões. Em seu estudo, mencionado autor afirmou que o rápido
crescimento da população carcerária coincidia com vários anos de grandes abusos nas
prisões.79
Em 1992, o relatório sobre a chacina na Casa de Detenção do Carandiru, em outubro
daquele ano, mostrou que Watch estava certo ao afirmar, em 1988, que os abusos cometidos
contra os presos eram as formas mais graves e crônicas de violações dos direitos humanos no
país.80
75
DELMANTO, Roberto. Crime e castigo na Realidade brasileira. In: Revista Consulex, ano XII, nº. 267, 29
Fev./2008, p. 7.
76
Ibidem.
77
FOCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: Vozes, 1987, p. 47.
78
YURTSEVER, Leyla Viga. O patronato e a reintegração na sociedade do egresso penitenciário. In: Revista
Jurídica Consulex, ano XII, nº. 268, 15 Mar./2008, p. 63.
79
FERNANDES, Newton. A falência do sistema prisional brasileiro. São Paulo: RG Editores, 2000, p. 128130.
80
Ibidem.
30
Em 1997, uma série dramática de rebeliões com reféns e mortes em estabelecimentos
prisionais por todo o país clamou pela necessidade de uma fiscalização internacional81
ininterrupta quanto ao tratamento dispensado aos presos no país.82
Com base no relatório de Human Rights Watch, afirmou Newton Fernandes, em 2000:
Os problemas nas prisões no Brasil representam uma conseqüência lógica de duas
décadas de elevadas taxas de criminalidade, aumento de pressão pública em favor do
“endurecimento” contra o crime e a contínua negligência dos políticos. A onda de
rebeliões em 1997, embora provocada por fenômenos recentes, tem suas raízes na
confluência de uma série de fatos históricos, tudo isso, por falta de uma sincera
vontade política para enfrentar o problema, tentando solucioná-lo ou ao menos
amenizá-lo.83
Luiz Flávio Borges D’Urso salienta que o sistema carcerário brasileiro tem feridas
crônicas, como a superlotação e as condições desumanas vigentes nas unidades prisionais para
as quais, segundo ele, não se divisa qualquer solução a curto prazo. Como exemplo, esse autor
cita o caso dos oito presos mortos em um incêndio na cadeia pública da cidade mineira de Rio
Piracicaba, porque o carcereiro de plantão não estava na delegacia no momento em que o fogo
começou; o dos presos acorrentados aos pilares do lado de fora da delegacia de Palhoça, na
Grande Florianópolis, em decorrência de superlotação; a da adolescente presa e seviciada na
precária cadeia da cidade paraense de Abaetetuba, no final de 2007. São casos que, segundo o
autor, revelam uma crise sem precedentes no sistema penitenciário e o descaso das
autoridades brasileiras frente “à Lei de Execuções Penais e à Constituição Federal,
especialmente quanto à observância da dignidade da pessoa humana, inclusive a que está sob
custódia do Estado”.84
A realidade da prisão no Brasil choca, como afirma Leyla Viga Yurtsever:
Fatores como superlotação das cadeias, ociosidade, falta de condições de higiene,
proliferação de doenças, ausência de infra-estrutura, agressões, torturas e tantas
outras deficiências tornam o atual sistema prisional ineficaz quanto ao objetivo
maior da pena, que é ressocializar o detento. Na prática, é contumaz a violação de
garantias fundamentais pelos agentes do Estado, num processo crescente de
degradação da pessoa humana.85
81
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, divisão da Organização dos Estados Unidos Americanos é
incumbida de promover e proteger os direitos humanos no Brasil e, para tanto, fiscaliza as condições carcerárias
no Brasil desde 1970, quando aceitou a primeira denúncia a respeito das prisões brasileiras e, desde então, vem
julgando casos proeminentes envolvendo abusos de presos, como, por exemplo, o ocorrido no Carandiru, em
1992.
82
FERNANDES, Newton. A falência do sistema prisional brasileiro. São Paulo: RG Editores, 2000, p. 128130.
83
Ibidem, p. 131.
84
D’URSO, Luiz Flávio Borges. O sistema prisional que não queremos. In: Revista Jurídica Consulex, ano
XII, nº. 267, 20 Fev./2008, p. 37.
85
YURTSEVER, Leyla Viga. O patronato e a reintegração na sociedade do egresso penitenciário. In: Revista
Jurídica Consulex, ano XII, nº. 268, 15 Mar./2008, p. 62.
31
Há dissonância entre a execução da pena privativa de liberdade e sua função
ressocializadora. Um dos mais importantes aspectos da ressocialização é a tomada de
consciência de que o processo inverso não pode acontecer. Significa dizer que, ingressando o
condenado no sistema penitenciário, para que se busque sua ressocialização, não pode haver a
dessocialização, ou seja, “sua condição de pessoa dessocializada – um dos fatores de ter sido
condenado – não pode piorar. A prisão deve ser instrumento de ressocialização – aspecto
positivo – e não do seu oposto – aspecto negativo”.86
Infelizmente, diante do pequeno quadro apresentado, o qual parece ser bem pior, fica
mais clara a dissonância entre a função ressocializadora da pena e a realidade dentro das
prisões no Brasil. Assim:
Diz-se que, quando o contributo empírico põe em evidência os efeitos
dessocializadores da prisão, o principal objectivo deve ser não tanto a socialização
quanto evitar a dessocialização do recluso. De facto, a criminologia tem revelado
que a prisão, a pena em torno do qual gira o sistema punitivo, não só produz efeitos
de dessocialização como também cria problemas e dificuldades ulteriores, quando se
perspectiva o regresso do recluso à comunidade.87
Acrescente-se a isso, a importância do socorro que se deve prestar ao apenado após o
cumprimento da pena, fator que está umbilicalmente ligado à sua ressocialização. É preciso,
segundo Leyla Viga Yurtsever, afastar a hipossuficiência socioeconômica do egresso
penitenciário, o que certamente produzirá efeitos superiores ao pretendido pelo legislador
constituinte.88
Assim, entende a citada autora que é preciso unir à função ressocializadora da pena, o
auxílio ao apenado em sua nova vida na sociedade:
Não há dúvida de que o sistema prisional tem como objetivo principal a reabilitação
social do condenado. Mas para que este não volte a delinqüir, é necessário que
durante a permanência no estabelecimento carcerário receba assistência adequada,
muito embora as condições políticas, econômicas, sociais e culturais do país
dificultem este processo e, por conseguinte, sua recuperação. A grande maioria não
consegue inserir-se novamente na sociedade, que o reconhece mais pelo crime que
cometeu do que pelo próprio nome.89
Não fica difícil perceber o descompasso apontado entre a função ressocializadora e a
realidade do sistema prisional brasileiro, donde se conclui que de nada adianta a finalidade
ressocializadora da pena se não se proporciona, aos apenados, condições mínimas de
dignidade humana que o façam entender que vale a pena deixar de lado o caminho da
criminalidade.
86
YURTSEVER, Leyla Viga. O patronato e a reintegração na sociedade do egresso penitenciário. In: Revista
Jurídica Consulex, ano XII, nº. 268, 15 Mar./2008, p. 62.
87
RODRIGUES, Anabela Miranda. Novo olhar sobre a questão penitenciária. São Paulo: RT, 2001, p. 45.
88
YURTSEVER, Leyla Viga. Op. Cit., p. 63.
89
Ibidem.
32
Segundo Lourival de Almeida Trindade, se fosse possível, hipoteticamente, dar a
palavra ao sistema punitivo, e se lhe desse voz para explicar a contradição entre os objetivos
declarados e latentes da pena, por certo ele diria:
Meu fracasso é a medida de meu sucesso. Declaro que meu objetivo é reduzir a
criminalidade e evitar a reincidência, através da ressocialização do condenado. Mas
o que quero, realmente, é reproduzir a delinqüência e a própria reincidência. Esse é
meu objetivo real e oculto.90
Para mencionado autor, ao discorrer sobre a natureza do processo de socialização a
que vive submetido o preso no país, aduz tratar-se de um processo negativo dos mais nefastos
que flagela o indivíduo aprisionado, podendo-se afirmar que, na verdade, a adaptação ao
mundo prisional equivale à desadaptação à vida em liberdade, tendo em vista que o apenado
precisa mesmo é adaptar-se a uma subcultura carcerária: “o bom preso, com efeito, não passa
de um adaptado aos costumes e hábitos da cultura penitenciária, cujos valores vão sendo por
ele internalizados, ao passar do tempo”.91
Odete Maria de Oliveira apresenta sua colaboração sobre o assunto:
O desejado sentido ressocializador da pena, na verdade, configura apenas um
fantástico discurso retórico para manter o sistema, o que, na realidade, traduz um
evidente malogro, um desperdício de tempo para o preso e um gasto inútil para o
Estado, que retira da sociedade um indivíduo por apresentar comportamento
desviante e o transforma num irrecuperável, pois a reincidência atinge o alarmante
índice de mais de setenta por cento no país. Daí dizer-se, que a prisão fabrica o
reincidente. O preso primário de hoje será o reincidente de amanhã, fechando-se o
círculo irreversível da prisão, que tem como conseqüência o custo do delinqüente
em si e da delinqüência que produz.92
O processo de recuperação do preso no Brasil resulta tão-somente na absurda
teorização do sistema. Na prática nada alcança, a não ser a geração de uma criminalidade cada
dia mais assustadora, como demonstra João Farias Júnior.
A prisão é o caldo de cultura de todos os vícios, baixezas e degenerescências.
Porque é prenhe de mazelas. Mais de uma centena de mazelas se asilam em suas
entranhas. Ela é visceralmente tomada só por fatores negativos, não se podendo
realçar um único fator positivo, pois mesmo que queira dizer que ela exerce a
prevenção especial porque se mantém um delinqüente perigoso por algum tempo
afastado da sociedade, isso não constitui benefício para a sociedade, pois quando
esse delinqüente voltar ao convívio social, por fuga, por progressão de regime, por
livramento condicional etc., ele volta mais capacitado, mais potencializado para o
crime, e, vai carrear indivíduos primários ou egressos das prisões para a sua seara
criminosa.93
Quando mencionado autor fala em “mazelas”, refere-se a vários fatores: ociosidade;
ausência de trabalho e de remuneração; superlotação carcerária; promiscuidade;
90
TRINDADE, Lourival Almeida. A ressocialização: uma (dis)função da pena de prisão. Porto Alegre: Sérgio
Antonio Fabris Editor, 2003, p. 18.
91
Ibidem, p. 43.
92
OLIVEIRA, Odete Maria de. Prisão: um paradoxo social. 2. ed. Florianópolis: UFSC, 1996, p. 233.
93
FARIAS JÚNIOR, João. Manual de Criminologia. 3. ed. atual. Curitiba: Juruá, 2001, p.225.
33
macrocomunidade (as prisões não limitam o número de presos em função da individualização
e tratamento); formação de grupos mafiosos com a existência de líderes e liderados; lei do
silêncio (a infração à essa lei é considerada delação, pela qual o infrator paga com a vida);
dominadores e dominados; consecução e confecção de armas (conseguidas através da
corrupção); problema sexual (a abstinência sexual força o preso a se tornar um pederasta ativo
ou passivo e a descambar para outras degradações sexuais); tráfico de “piás” ou de “maricas”
(presos currados e violentados transformam-se em “mulheres” de líderes ou dominadores que
fazem deles uso durante certo tempo e depois os traficam); uso de tóxicos; uso de bebidas
alcoólicas (muitas vezes fabricada na própria prisão); jogos de azar (com líderes e
dominadores exercendo o monopólio das bancas); fugas; motins; greves; falta de
confiabilidade nos presos (não há padrão comportamental); violência de presos contra presos
(ausência de solidariedade); ameaças; privilégios e discriminação dos presos; corrupção;
violência de gestores e guardas prisionais contra presos; falta de capacidade administrativa
para lidar com delinqüentes; temporariedade e instabilidade do cargo do administrador
penitenciário; falta de mentalidade uniforme dos dirigentes prisionais; ausência de quadros de
administradores em carreira; disparidade de verbas nas dotações orçamentárias; tempo
determinado de segregação; regime totalitário; correção pelo castigo.94
Os presos brasileiros são normalmente forçados a permanecer em terríveis condições
de vida nos presídios, cadeias e delegacias do país. Devido à superlotação, muitos
deles dormem no chão de suas celas, às vezes no banheiro, próximo ao buraco do
esgoto. Nos estabelecimentos mais lotados, onde não existe espaço livre nem no
chão, presos dormem amarrados às grades das celas ou pendurados em redes. A
maior parte dos estabelecimentos penais conta com uma estrutura física deteriorada,
alguns de forma bastante grave. Com relação a dormirem em redes, os presos em
algumas celas chegam a fazer fileiras de beliches de redes, colocadas deste 40 a 50
centímetros do chão aos mesmos 40 ou 50 centímetros do teto, quando a altura da
cela permite. Forçados a conseguir seus próprios colchões, roupas de cama,
vestimentas e produtos de higiene pessoal, muitos presos dependem do apoio de
suas famílias ou de outros fora dos presídios. A luta por espaço e a falta de provisão
básica por parte das autoridades leva à exploração dos presos por eles mesmos.
Assim, um preso sem dinheiro ou apoio familiar é vítima dos outros presos.95
Em alguns estabelecimentos, a superlotação carcerária impõe níveis desumanos:
presos amontoados aos grupos; presos amarrados às janelas para aliviar a demanda por espaço
no chão; presos forçados a dormir sobre buracos que servem de sanitário; convivência com
sujeira, odores fétidos, ratos e insetos, agravando a tensão entre os presos; estrutura em
avançado estado de destruição, com coberturas de plásticos e presos debaixo de goteiras e
infiltrações, fios descobertos, esgotos abertos, ausência de descarga; alguns não possuem
94
FARIAS JÚNIOR, João. Manual de Criminologia. 3. ed. atual. Curitiba: Juruá, 2001, p. 226-231.
FERNANDES, Newton. A falência do sistema prisional brasileiro. São Paulo: RG Editores, 2000, p. 128194.
95
34
entrada de ar e luz solar, enquanto outros têm apenas barras de metal que deixam entrar ar,
mas, em contrapartida, não os protege da chuva; temperaturas extremas que, combinadas com
celas superlotadas, ocasionam morte de detentos; rações mínimas e de baixa qualidade,
gerando corrupção e desvio de comida; banhos em água fria que descem de canos, quando
tem; ausência de artigos de higiene pessoal mínimos; níveis mínimos de atendimento
dentário, médico e jurídico; altos níveis de doenças infecto-contagiosas, ameaçando não
apenas a vida dos presos como dos que os visitam; ausência de equipamentos técnicos para
atendimentos médicos de urgência; presos paraplégicos sem tratamentos fisioterápicos ou
qualquer outro tratamento médico; ausência de assistência social; ausência de classificação;
ausência de supervisão adequada; homossexualidade; violência entre presos; abusos
cometidos por guardas e policiais; punições autorizadas; abusos físicos. Tudo isso dentro de
uma infinidade de situações que ainda poderiam ser citadas.96
Diante desse quadro, infere-se que o tratamento penal dado ao preso no Brasil é
inadequado e pernicioso; os métodos são inúteis; as conseqüências são altamente maléficas
para os infratores primários, mostrando, de forma cristalina, o quanto se viola princípio
constitucional da dignidade humana, podendo-se inclusive afirmar que sua importância está
sendo desprezada em toda sua plenitude: o apenado, além de perder sua liberdade para pagar
seu crime, ainda é condenado a uma degradação que não lhe permitirá, jamais, atingir a
ressocialização.
Segundo Humberto Rodrigues: “Devemos repudiar o crime, abominar o delito.
Todavia, não podemos esquecer que, sempre atrás desses eventos, haverá o ser humano, que,
como tal, deverá ser tratado e recuperado para o seu convívio com a sociedade”97, o que não
exclui, certamente, o íntegro respeito aos seres humanos dos apenados, sendo mesmo
indissociável a consideração. Sendo os presos sujeitos de direito, enquanto não forem tratados
como tal, incapazes serão os estabelecimentos prisionais para reinserí-los na sociedade. E, por
fim, traz-se a colação, para reflexão, o pensamento de Oscar Wilde: “o que mais espanta não
são os crimes praticados pelos maus, mas os castigos aplicados pelos chamados bons”.98
Todo o exposto deixa claro que é chegado o momento de se repensar o sistema penal
brasileiro. Restou evidenciado nesse primeiro capítulo que é premente a necessidade de
aprimoramento do sistema de justiça e, nesse contexto, a justiça restaurativa emerge como
96
FERNANDES, Newton. A falência do sistema prisional brasileiro. São Paulo: RG Editores, 2000, p.133270.
97
RODRIGUES, Humberto. Vidas do Carandiru: histórias reais. São Paulo: Geração Editorial, 2002, p. 260.
98
WILDE, Oscar. Apud JUNQUEIRA, Ivan de Carvalho. Dos Direitos Humanos dos presos. São Paulo:
Lemos e Cruz, 2005, p. 146.
35
uma esperança em meio ao crescimento do clima de insegurança que assola o mundo
contemporâneo. Há que se observar que no Brasil, além da falência da prisão, fracassou o
ideal das penas e medidas alternativas, como observa Leonardo Sica:
Nas últimas décadas muito se falou sobre penas alternativas: incontáveis projetos,
experiências e supostas inovações surgiram nesse campo. Curiosamente, as taxas
gerais de encarceramento subiram vertiginosamente, contrastando com o discurso
das alternativas e, mais do que tudo, indicando que algo está equivocado no enfoque
ou na transposição prática de todo esse arcabouço de idéias para diminuir a
utilização da pena de prisão.99
Em que pese a importância das penas alternativas, percebe-se que não houve a
preocupação em construir um discurso teórico próprio a essa espécie de pena. Para Leonardo
Sica, “toda sua elaboração restringiu-se na crítica à prisão e na constatação das mazelas do
cárcere”.100 A insuficiência é clara e, além disso, os problemas podem estar localizados em
outro aspecto:
[...] de nada adianta pensar em penas e medidas alternativas ao castigo prisional
dentro de um paradigma exclusivamente punitivo-retributivo, no qual, pela própria
natureza dos mecanismos existentes (basicamente a pena), acabará sempre
prevalecendo a resposta de força, impulsionada por fatores externos ao sistema.101
Esse quadro traz a tona inevitável dúvida: “[...] a finalidade das penas e medidas
alternativas é apenas impedir o encarceramento? Trata-se do “fracasso” das alternativas ou de
sua impossível convivência com uma política criminal reacionária e encarceradora?”102
Para Lola Aniyar de Castro: “[...] a realidade é que uma série de medidas alternativas
não costuma ser mais que um guia que, por pressões coletivas e oficiais, acaba em mera
aspiração programática [...] as medidas alternativas não reduzem a população carcerária”.103
Só mexer no aparato punitivo não é a solução, é preciso mexer na forma:
Desejamos algo mais que modificar, suprimir ou incluir muitos artigos nos Códigos,
que reformem e melhorem as normas substantivas e processuais do ius puniendi.
Buscamos outras metas diversas, avançamos em outro nível.104
Vários países ao redor do mundo estão adotando práticas restaurativas na busca por
um sistema de justiça que atenda os anseios da sociedade. A justiça restaurativa mostra-se
como um caminho para mudar a realidade brasileira, em que o sistema formal de justiça tende
a perpetuar mais do que eliminar as desigualdades sócio-econômicas já existentes.
99
SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo de justiça criminal e de gestão do
crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 8.
100
Ibidem, p. 9.
101
Ibidem.
102
Ibidem.
103
CASTRO, Lola Aniyar de. Apud SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal: o novo modelo
de justiça criminal e de gestão do crime. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, p. 9.
104
BERINSTAIN, Antonio. Nova criminologia à luz do direito penal e da vitimologia. Trad. Cândido Furtado
Maia Neto. Brasília: UNB, 2000, p. 172.
36
2 A JUSTIÇA RESTAURATIVA
A sociedade diuturnamente convive com a violência, não raras vezes passando a
entendê-la como natural ao ser humano, acreditando até mesmo que não exista nada que possa
ser feito para livrar-se dela, senão retribuir o mal causado. A sociedade aceita o castigo como
necessário e legitimo, até mesmo como única forma de exigir respeito à lei e à ordem,
perpetuando-se, dessa forma, a arcaica idéia de justiça como retaliação.
Parece cada vez mais distante a possibilidade de se acreditar que a natureza humana é
solidária e compassiva e que o ser humano consegue viver em paz com seus pares. É nesse
contexto que tem crescido no país um movimento em busca da construção de uma cultura de
paz, a qual pode ser atingida com a adoção pelo país da justiça restaurativa: uma forma de
lidar com o crime e com a violência baseada no diálogo e na concordância de opiniões.
2.1 Abordagem conceitual
Atribui-se a criação do termo “justiça restaurativa” a Albert Eglash, que em 1977
escreveu um artigo intitulado “Beyond Restitution: Creative Restitution”, publicado na obra
“Restitution in Criminal Justice”, de autoria de Joe Hudson e Burt Gallaway.105
Albert Eglash sustentou no mencionado artigo que havia três respostas ao crime:
retributiva (baseada na punição); distributiva (voltada à reeducação): e a restaurativa
(fundamentada na reparação). Apesar de parecer uma tradução imprópria de “restorative
justice” o que a levaria na tradução para o Português, ser denominada “Justiça restauradora”,
prevaleceu a denominação “Justiça Restaurativa”, também chamada por alguns autores como
“justiça
transformadora”,
“justiça
comunal”,
“justiça
recuperativa”
ou
“justiça
participativa”.106
Segundo Marcos Rolim, a justiça restaurativa, como prática comunitária, remota aos
Códigos de Hamurabi, Ur-Nammu e Lipit-Ishtar, há cerca de dois mil anos antes de Cristo. E
105
PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da justiça restaurativa no Brasil: o impacto no sistema de
justiça criminal. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1432, 3 jun. 2007. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9878>. Acesso em: 20 mar. 2008.
106
Ibidem.
37
as práticas pré-modernas de justiça nas comunidades européias eram tipicamente
restaurativas, conforme esclarece mencionado autor:
Antes da “Justiça Pública”, tal como a conhecemos, não teria existido tão-somente a
“Justiça privada”, mas, mais amplamente, práticas de justiça estabelecidas
consensualmente nas comunidades e que operavam através de processos de
mediação e negociação, ao invés da imposição pura e simples de regras abstratas.
Muitos autores têm chamado a atenção para o fato de que o movimento da Justiça
Comunitária em direção a um sistema público de justiça pôde ser observado na
Europa ocidental a partir dos séculos XI e XII, com a revalorização da Lei Romana e
com o estabelecimento, por parte da Igreja Católica, da Lei Canônica.107
Nos anos 70, as práticas restaurativas ressurgiram com as primeiras experiências
contemporâneas com mediação entre infrator e vítima, trazendo de volta o padrão restaurativo
antigo, “na medida em que, mediante encontros coordenados por um facilitador, a vítima
descrevia sua experiência e o impacto que o crime lhe trouxe e o infrator apresentava uma
explicação à vítima”.108
Segundo Neemias Moretti Prudente:
Nos anos 70, com a crise do ideal ressocializador e da idéia de tratamento através da
pena privativa de liberdade, viu-se o desenvolvimento de idéias de restituição penal
e reconciliação do infrator com a vítima e com a sociedade. Houve, então, um debate
sobre as alternativas para a Justiça, inspirada no abolicionismo e também fruto do
forte movimento vitimológico, surgindo aí o modelo restaurativo, como uma outra
forma de resolução de conflitos.109
Não obstante vários países já terem adotado a prática da justiça restaurativa, como será
mostrado no próximo capítulo, seu conceito é ainda algo inconcluso, e que, segundo Pedro
Scuro Neto, “só pode ser captado em seu movimento emergente”.110
A justiça restaurativa, como brevemente antecipado, baseia-se num procedimento de
consenso, em que a vítima e o infrator, e, se for o caso, outras pessoas ou membros da
comunidade prejudicados pelo ato ilícito, participam coletiva e ativamente na criação de uma
solução para resgatar a convivência pacífica alterada pelo crime.
No debate criminológico, segundo Renato Sócrates Gomes Pinto, o modelo
restaurativo pode ser visto como:
[...] uma síntese dialética, pelo potencial que tem para responder às demandas da
sociedade por eficácia do sistema, sem descurar dos direitos e garantias
constitucionais, da necessidade de ressocialização dos infratores, da reparação às
107
ROLIM, Marcos. Justiça Restaurativa: para além da punição. Porto Alegre: IAJ (Instituto de Acesso à
Justiça), 2004, p. 11.
108
PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da justiça restaurativa no Brasil: o impacto no sistema de
justiça criminal. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1432, 3 jun. 2007. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9878>. Acesso em: 20 mar. 2008.
109
PRUDENTE, Neemias Moretti. Justiça Restaurativa em debate. Revista IOB de Direito Penal e Processo
Penal. Porto Alegre, n. 47, dez. 2007/jan. 2008, v. 8, p. 204.
110
SCURO NETO, Pedro. Apud PINTO, Renato Sócrates Gomes. Op. Cit.
38
vítimas e comunidade e ainda revestir-se de um necessário abolicionismo
moderado.111
Para mencionado autor, essa modalidade de justiça é uma luz no fim do túnel da
angústia dos tempos atuais, ante a ineficiência do sistema de justiça criminal e à ameaça de
modelos de desconstrução dos direitos humanos, como o Programa “Tolerância Zero”, por
exemplo.112
A justiça restaurativa consiste na aplicação de métodos de negociação e mediação na
solução de conflitos penais, com inclusão da vítima e comunidade no processo penal, com
vias a conciliar os interesses e expectativas de todas as partes envolvidas no problema
criminal, por meio da pacificação da relação conflituosa que deu origem ao ato criminoso.
Consistente num processo colaborativo que envolve aqueles afetados mais diretamente
por um crime, chamados “partes interessadas principais” (vítimas e transgressores), para
delimitar qual a melhor maneira de reparar o dano causado pela violação.
Percebe-se que a essência da justiça restaurativa é a resolução de problemas de forma
colaborativa, como esclarece Vercil Rodrigues:
A abordagem restaurativa é reintegradora e permite que o transgressor repare danos
e não seja mais visto como tal. O engajamento cooperativo é elemento essencial da
justiça restaurativa. Trata-se, enfim, de suprir as necessidades emocionais e
materiais das vítimas e, ao mesmo tempo, fazer com que o infrator assuma
responsabilidade por seus atos, mediante compromissos concretos.113
Não se pode confundir a justiça restaurativa com a justiça alternativa. Ela é uma forma
de solução paralela, que deve conviver com a justiça tradicional, por ser aplicável em
circunstâncias peculiares e por depender da admissão pelo transgressor quanto à verdade dos
fatos, bem como da concordância de todos os interessados na solução do conflito.114
Também não se confunde com o abolicionismo da pena, haja vista que não prega a
impunidade; ao revés, combina elementos que num primeiro momento podem parecer
contraditórios, como a assistência e o controle, ou como o afeto e os limites, de forma a
assegurar maior intensidade na resposta pública à questão do crime e das transgressões.115
111
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil. In: SLAKMON, Catherine. In:
SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da
Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 20.
112
Ibidem, p. 21.
113
RODRIGUES, Vercil. Justiça Restaurativa no Brasil. Disponível em:
<http://www.periodicoedireito.com.br/index2.php?option=com_content&task=view&id>.Acesso em: 20 Mar.
2008.
114
BRANCHER, Leonardo Narciso. Justiça restaurativa: a cultura de paz na prática da justiça. Disponível em:
<http://jij.t.rs.gov.br/jij_site/docs/JUST_RESTAUR/VIS%C30+GERAL+JR_0.htm>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
115
Ibidem.
39
Não é objetivo da justiça restaurativa apenas a redução da criminalidade, mas também
o impacto dos crimes sobre os cidadãos. Como a justiça restaurativa atua para preencher as
necessidades emocionais e de relacionamento, é fundamental sua utilização no caminho da
manutenção de uma sociedade civil saudável e, nesse ponto, está presente, também, sua
preocupação com aquele que comete o crime.
Segundo Egberto Penido e Leoberto Brancher:
Essa é a via da justiça restaurativa, a qual propõe que a forma de lidar com o crime e
com a violência não deve mais se basear na busca da culpa e no castigo, com
imposição de penas violentas, mas em uma ética baseada no diálogo, na inclusão e
na responsabilidade social. Entende-se que o uso do castigo não é uma estratégia
eficaz para mudanças de condutas, ressarcimento do dano ou restauração de
relacionamentos. Ele se presta apenas a retroalimentar a violência e estigmatizar o
agressor sem que este reflita sobre sua conduta nem entre em contato com o valor
afetado pela atitude criminosa. Nada o leva a compreender as causas de seu ato, a se
conscientizar das conseqüências e, sobremaneira, a assumir a responsabilidade por
sua conduta.116
Não se pode entender a justiça restaurativa como uma justiça que tem como objetivo a
mera reparação pecuniária, ou submissão do infrator a constrangimento ou humilhação. Ela
busca intervir positivamente em todos os envolvidos no fenômeno criminal, “tocar a origem e
causa daquele conflito, e a partir daí, possibilitar o amadurecimento pessoal do infrator,
redução dos danos aproveitados pela vítima e comunidade, com notável ganho na segurança
social”.117
De todo o exposto, facilmente se apreende os objetivos da justiça restaurativa: oferecer
modo mais aberto e satisfatório para reparar danos e solucionar conflitos e reduzir os papéis
profissionais na justiça criminal, buscando menos intervenções do sistema e mais
intervenções da comunidade. Seu foco é a responsabilidade pessoal do infrator e, via de
conseqüência, sua inclusão no processo e a promoção de formas não coercitivas de tomadas
de decisão.118
São mais que objetivos, são valores que demonstram a importância da base da justiça
restaurativa. Dentre eles, enfatiza-se: maior autodeterminação da comunidade, inclusão em
lugar da exclusão, foco em um futuro melhor em lugar da culpa e retribuição, e na sensação
de que se obteve justiça. O diálogo com base em respeito, tomando o lugar da dominação, está
116
BRANCHER, Leonardo Narciso. Justiça restaurativa: a cultura de paz na prática da justiça. Disponível em:
<http://jij.t.rs.gov.br/jij_site/docs/JUST_RESTAUR/VIS%C30+GERAL+JR_0.htm>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
117
DE VITTO, Renato Campos Pinto. Justiça criminal, justiça restaurativa e direitos humanos. In: SLAKMON,
Catherine. In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília:
Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 49.
118
FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. Prática da Justiça: o modelo Zwelethemba de resolução de
conflitos. In: SLAKMON, Catherine. In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Op.
Cit., p. 79.
40
no centro da justiça restaurativa, onde valores como o perdão, clemência e remorso são
resultados que são obtidos de forma indireta.119
Conforme visto no primeiro capítulo, não é mais possível pensar no cárcere como
remédio para a criminalidade, mesmo porque a pena não está sendo executada de forma justa
e com respeito à dignidade da pessoa humana do condenado. Em comparação ao atual sistema
prisional brasileiro, notoriamente falido, as medidas alternativas, a exemplo da justiça
restaurativa, refletem muito mais justiça e eficácia como resposta para a maioria dos delitos.
A justiça restaurativa, no Brasil, é vista como “oportunidade de uma justiça criminal
participativa que opere real transformação, abrindo caminho para uma nova forma de
promoção dos direitos humanos e da cidadania, da inclusão e da paz social, com
dignidade”.120
A necessidade de se abandonar esse sistema alienante121 foi percebida pela
Organização das Nações Unidas, que passou a considerar a prática da justiça restaurativa
como solução para vários problemas na seara penal.
2.2 Os princípios básicos para utilização de programas de justiça restaurativa em
matéria criminal aprovado pela Organização das Nações Unidas
A Organização das Nações Unidas, verificando o êxito obtido com a justiça
restaurativa a mais de 30 (trinta) anos nos Estados Unidos e na Nova Zelândia, está
recomendando a aplicação dessa nova maneira de abordar a justiça penal, com enfoque na
reparação dos danos causados às pessoas e relacionamentos, em substituição à punição dos
transgressores. Para tanto, adotou como postulado fundamental: “o crime causa danos às
pessoas e a Justiça exige que o dano seja reduzido ao mínimo possível”.122
119
FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. Prática da Justiça: o modelo Zwelethemba de resolução de
conflitos. In: SLAKMON, Catherine. In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.).
Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 81.
120
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil. In: SLAKMON, Catherine. In:
SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Op. Cit., p. 35.
121
MELO, Eduardo Rezende. Justiça restaurativa e seus desafios histórico-culturais: um ensaio crítico sobre os
fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em contraposição à justiça retributiva. In: SLAKMON,
Catherine. In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Op. Cit., p. 59.
122
RODRIGUES, Vercil. Justiça Restaurativa no Brasil. Disponível em:
<http://www.periodicoedireito.com.br/index2.php?option=com_content&task=view&id>.Acesso em: 20 Mar.
2008.
41
Os conceitos enunciados nos Princípios básicos sobre justiça restaurativa aprovados na
Resolução do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, de 2002, são os seguintes:
1. Programa de Justiça Restaurativa significa qualquer programa que use
processos restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos
2. Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e,
quando apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade
afetados por um crime, participam ativamente na resolução das questões oriundas do
crime, geralmente com a ajuda de um facilitador. Os processos restaurativos podem
incluir a mediação, a conciliação, a reunião familiar ou comunitária (conferencing) e
círculos decisórios (sentencing circles).
3. Resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo.
Resultados restaurativos incluem respostas e programas tais como reparação,
restituição e serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e
coletivas e responsabilidades das partes, bem assim promover a reintegração da
vítima e do ofensor.
4. Partes significa a vítima, o ofensor e quaisquer outros indivíduos ou membros da
comunidade afetados por um crime que podem estar envolvidos em um processo
restaurativo.
5. Facilitador significa uma pessoa cuja papel é facilitar, de maneira justa e
imparcial, a participação das pessoas afetadas e envolvidas num processo
restaurativo.123
A Resolução nº. 2000/12 - Basic principles on the use of restorative justice
programmes in criminal matters – (ANEXO I), elaborada pelo mencionado Conselho
Econômico e Social da ONU, como dito linhas atrás, estimula os Estados-membros a
apoiarem o desenvolvimento e a implementação de pesquisa, capacitação e atividades para
implementação de projetos nessa seara. O documento se baseia na Declaração de Viena, em
que a Comissão de Justiça Criminal e Prevenção de Criminalidade da ONU define os
principais conceitos de justiça restaurativa e sugere a abertura de um debate mundial sobre o
tema.124
São muitas as diferenças entre a justiça restaurativa e a justiça retributiva. Com a
demonstração dessa distinção, fica fácil perceber as vantagens dessa prática.
2.3 Justiça Restaurativa e Justiça Retributiva: distinção
O referencial teórico da justiça restaurativa funda-se no reconhecimento de que o
sistema punitivo tradicional, altamente retributivo, concentra-se excessivamente nos papéis de
123
Cf. PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da justiça restaurativa no Brasil: o impacto no sistema de
justiça criminal. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1432, 3 jun. 2007. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9878>. Acesso em: 20 mar. 2008.
124
PRUDENTE, Neemias Moretti. Justiça Restaurativa em debate. Revista IOB de Direito Penal e Processo
Penal. Porto Alegre, n. 47, dez. 2007/jan. 2008, v. 8, p. 203-208.
42
atores estatais (polícia, promotor, juiz) e na figura do acusado e de seu advogado, ao mesmo
tempo em que remete a considerações abstratas acerca da transgressão ou não da norma pelos
fatos ocorridos no passado, ocupando-se de reconstituí-lo para então punir.
Dessa forma, a vítima fica à margem do processo e, não raras vezes, a justiça
retributiva também não proporciona a indenização dos danos sofridos, nem morais, nem
materiais (ou psicológicos) provocados à vítima, às pessoas de sua comunidade afetiva, bem
como da comunidade afetiva do próprio transgressor, que sem dúvida também sofrem reflexos
do ato ilícito por ele praticado.125
Como visto linhas atrás, no sistema retributivo não se leva em consideração a dor
suportada pela vítima, seus sentimentos e suas necessidades. A vítima é ouvida apenas como
elemento de prova num processo judicial. Também a comunidade (parentes e amigos da
vítima e do transgressor) atingida diretamente pelo crime é excluída e sequer são considerados
os efeitos da transgressão em seus integrantes, o que dificulta a recuperação do trauma social
causado.126
Renato Sócrates Gomes Pinto explica qual é a visão do crime para a justiça
restaurativa:
[...] não é apenas uma conduta típica e antijurídica que atenta contra bens e
interesses penalmente tutelados, mas, antes disso, é uma violação nas relações entre
o infrator, a vítima e a comunidade, cumprindo, por isso, à Justiça, identificar as
necessidades e obrigações oriundas dessa violação e do trauma causado e que deve
ser restaurado, oportunizar e encorajar as pessoas envolvidas a dialogarem e a
chegarem a um acordo, como sujeitos centrais do processo, sendo ela, a Justiça,
avaliada segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades pelo
cometimento do delito sejam assumidas, as necessidades oriundas da defesa sejam
satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja, um resultado individual e socialmente
terapêutico seja alcançado.127
De forma simplista, enquanto a justiça convencional (retributiva) concentra-se no
passado e na culpa, afirmando: “você fez isso e tem que ser castigado!”, a justiça restaurativa
vislumbra o futuro e a restauração dos relacionamentos, perguntando: “o que você pode fazer
agora para restaurar isso?”.128
Visando melhor didática, traz-se a colação a distinção entre a justiça restaurativa e a
justiça distributiva em quadros elaborados por Renato Sócrates Gomes Pinto, divididos de
125
BRANCHER, Leonardo Narciso. Justiça restaurativa: a cultura de paz na prática da justiça. Disponível em:
<http://jij.t.rs.gov.br/jij_site/docs/JUST_RESTAUR/VIS%C30+GERAL+JR_0.htm>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
126
Ibidem.
127
PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da justiça restaurativa no Brasil: o impacto no sistema de
justiça criminal. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1432, 3 jun. 2007. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9878>. Acesso em: 20 mar. 2008.
128
Ibidem.
43
acordo com as seguintes vertentes: valores, procedimentos, resultados, efeitos para a vítima, e
efeitos para o infrator.
VALORES
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
Conceito jurídico-normativo de Crime – ato contra a
sociedade
representada
pelo
Estado
Unidisciplinariedade
Primado do Interesse Público (Sociedade, representada
pelo Estado, o Centro) – Monopólio estatal da Justiça
Criminal
Culpabilidade Individual voltada para o passado Estigmatização
JUSTIÇA RESTAURATIVA
Conceito realístico de Crime – Ato que traumatiza a
vítima, causando-lhe danos. - Multidisciplinariedade
Primado do Interesse das Pessoas Envolvidas e
Comunidade – Justiça Criminal participativa
Responsabilidade, pela restauração, numa dimensão
social, compartilhada coletivamente e voltada para o
futuro
Uso Dogmático do Direito Penal Positivo
Uso Crítico e Alternativo do Direito
Indiferença do Estado quanto às necessidades do Comprometimento com a inclusão e Justiça Social
infrator, vítima e comunidade afetados - desconexão
gerando conexões
Mono-cultural e excludente
Culturalmente flexível (respeito à diferença,
tolerância)
Dissuasão
Persuasão
Fonte: PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, Catherine.
In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério
da Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 24.
PROCEDIMENTOS
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
Ritual Solene e Público
Indisponibilidade da Ação Penal
Contencioso e contraditório
Linguagem, normas e procedimentos formais e
complexos – garantias.
Atores principais - autoridades (representando o
Estado) e profissionais do Direito
Processo Decisório a cargo de autoridades (Policial,
Delegado, Promotor, Juiz e profissionais do Direito Unidimensionalidade
JUSTIÇA RESTAURATIVA
Comunitário, com as pessoas envolvidas
Princípio da Oportunidade
Voluntário e colaborativo
Procedimento informal com confidencialidade
Atores principais – vítimas, infratores, pessoas da
Comunidade, ONGs.
Processo Decisório compartilhado com as pessoas
envolvidas (vítima, infrator e comunidade) – Multidimensionalidade
Fonte: PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, Catherine.
In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério
da Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 25.
RESULTADOS
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
Prevenção Geral e Especial
-Foco no infrator para intimidar e punir
JUSTIÇA RESTAURATIVA
Abordagem do Crime e suas Conseqüências
- Foco nas relações entre as partes, para restaurar
Penalização
Penas privativas de liberdade, restritivas de direitos,
multa
Estigmatização e Discriminação
Tutela Penal de Bens e Interesses, com a Punição do
Infrator e Proteção da Sociedade
Pedido de Desculpas, Reparação, restituição, prestação
de serviços comunitários
Reparação do trauma moral e dos Prejuízos emocionais
– Restauração e Inclusão
Resulta responsabilização espontânea por parte do
infrator
44
RESULTADOS (Continuação)
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
Penas desarrazoadas e desproporcionais em regime
carcerário desumano, cruel, degradante e criminógeno
– ou – penas alternativas ineficazes (cestas básicas)
Vítima e Infrator isolados, desamparados e
desintegrados. Ressocialização Secundária
Paz Social com Tensão
JUSTIÇA RESTAURATIVA
Proporcionalidade e Razoabilidade das Obrigações
Assumidas no Acordo Restaurativo
Reintegração do Infrator e da Vítima Prioritárias
Paz Social com Dignidade
Fonte: PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, Catherine.
In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério
da Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 25-26.
EFEITOS PARA A VÍTIMA
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
Pouquíssima ou nenhuma consideração, ocupando
lugar periférico e alienado no processo. Não tem
participação, nem proteção, mal sabe o que se passa.
Praticamente nenhuma assistência psicológica, social,
econômica ou jurídica do Estado
Frustração e Ressentimento com o sistema
JUSTIÇA RESTAURATIVA
Ocupa o centro do processo, com um papel e com voz
ativa. Participa e tem controle sobre o que se passa.
Recebe assistência, afeto, restituição de perdas
materiais e reparação
Tem ganhos positivos. São supridas as necessidades
individuais e coletivas da vítima e comunidade
Fonte: PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, Catherine.
In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério
da Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 26.
EFEITOS PARA O INFRATOR
JUSTIÇA RETRIBUTIVA
Infrator considerado em suas faltas e sua má-formação
JUSTIÇA RESTAURATIVA
Infrator visto no seu potencial de responsabilizar-se
pelos danos e conseqüências do delito
Raramente tem participação
Participa ativa e diretamente
Comunica-se com o sistema por Advogado
Interage com a vítima e com a comunidade
É desestimulado e mesmo inibido a dialogar com a
Tem oportunidade de desculpar-se ao sensibilizar-se
vítima
com o trauma da vítima
É desinformado e alienado sobre os fatos processuais
É informado sobre os fatos do processo restaurativo e
contribui para a decisão
Não é efetivamente responsabilizado, mas punido pelo É inteirado das conseqüências do fato para a vítima e
fato
comunidade
Fica intocável
Fica acessível e se vê envolvido no processo
Não tem suas necessidades consideradas
Supre-se suas necessidades
Fonte: PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, Catherine.
In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério
da Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 26.
Exaurida essa fase, volta-se a atenção para a experiência com a prática da justiça
restaurativa no Direito Comparado, em especial na Nova Zelândia, Estados Unidos e
Argentina.
45
2.4 A Justiça Restaurativa no Direito comparado
Qualquer estudo na área do Direito requer a apresentação de aspectos do mesmo tema
no Direito estrangeiro, até como forma de se buscar subsídios para aquilo que se procura
defender. Dessa forma, entende-se como relevante trazer à colação a experiência desenvolvida
nessa seara por outros países, ressaltando que o marco inicial das práticas de mediação entre
réus condenados e as vítimas de seus crimes foi promovida por movimentos de assistência
religiosa em presídios norte-americanos, a partir dos anos 70129.
A partir de então, pela contribuição de alguns formuladores teóricos como o advogado
norte-americano Howard Zehr130, passou a ser elaborada uma completa reformulação do
conceito de crime e até mesmo do próprio conceito de justiça.131
O principal impulso do movimento restaurativo, contudo, ocorreu na Nova Zelândia,
primeiro país a ser estudado.
2.4.1 Nova Zelândia
A Nova Zelândia é o país pioneiro na implantação de práticas restaurativas, originadas
nas tradições de solução de conflitos entre os índios Maoris. Na segunda metade da década de
80, contra um pano de fundo de violência política Maori e a necessidade de uma resposta da
justiça criminal que fosse apropriada para os jovens índios, fizeram com que a reforma na
justiça desse país adotasse os encontros restaurativos com grupos de familiares como parte de
um programa nacional.132
129
BRANCHER, Leoberto Narciso. Justiça Restaurativa: a cultura de paz na prática da justiça. Disponível em:
<HTTP://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/just_restaur/vis%c30+geral+jr_0.htm>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
130
O Prof. Howard Zehr continua atuando dentro do sistema de justiça criminal dos Estados Unidos, dando
suporte ao trabalho com as vítimas. Hoje vem orientando seu trabalho de pesquisa para o estudo das vítimas na
justiça restaurativa e da sua aplicação nos casos de violência grave. In: BRASIL. Rede Brasil de Promotores
Culturais. Disponível em: < http://www.rede-brasil.org/modulos/noticias/descricao.php?cod=894>. Acesso em:
01 Ago. 2008.
131
BRANCHER, Leoberto Narciso. Op. Cit.
132
FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. Prática da Justiça: O modelo Zwelethemba de resolução de
conflitos: In: SLAKMON, Catherine. In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.).
Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 82.
46
O objetivo foi resgatar e utilizar as tradições dos índios Maoris de resolução de
problemas que incluíam as famílias estendidas. Tais reuniões foram introduzidas tanto como
uma alternativa aos tribunais, como na forma de um guia para as sentenças:
A elas geralmente comparecem os infratores, sua família, as vítimas, seus
partidários, a polícia, um assistente social e outras pessoas importantes da
comunidade. Aos jovens se proporciona um advogado. As vítimas comparecem a
cerca de metade das reuniões e os procedimentos foram modificados para encorajar
sua participação. As reuniões são informais e espera-se que a tomada de decisão seja
aberta e consensual.133
Desde 1989, a Nova Zelândia incluiu expressamente na legislação sobre Crianças,
Jovens e suas famílias, a previsão de que os crimes mais graves praticados por menores de
idade (com exceção de crimes de homicídio) passariam obrigatoriamente pelo “Family Group
Conferences”,
comunidades.
ou
seja,
por encontros
restaurativos
envolvendo
réus,
vítimas
e
134
Os encontros restaurativos nesse país são utilizados principalmente para infratores que
cometeram infrações mais graves e reincidentes. Os acordos, não raras vezes, incluem sanções
reparadoras como desculpas, restituição ou serviços comunitários. Importante no
procedimento na Nova Zelândia é o que eles denominam “tempo de planejamento privado”,
que é oferecido ao infrator e à sua família durante o processo, para considerar e sugerir um
plano de ação a ser assumido por ele no que tange à responsabilidade pelo crime e
indenização da vítima.135
Os encontros restaurativos na Nova Zelândia são, em regra, convocados e facilitados
por agentes públicos e as reuniões são facilitadas por coordenadores da Justiça de Jovens,
empregados pelo Departamento de Serviços da Criança, Jovens e Família. Foram introduzidos
como alternativa ao processo formal do tribunal.136
Em síntese, nesse país, a Justiça Restaurativa envolve: a) participação da comunidade,
representada pelo maior número de pessoas possível, desde que relacionados de alguma forma
às envolvidas ou aos fatos, além dos envolvidos diretamente no conflito; 2) o foco da
discussão deve ser o fato ocorrido, não as pessoas em conflito ou os envolvidos; e 3) a
133
FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. Prática da Justiça: O modelo Zwelethemba de resolução de
conflitos: In: SLAKMON, Catherine. In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.).
Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 83.
134
BRANCHER, Leoberto Narciso. Justiça Restaurativa: a cultura de paz na prática da justiça. Disponível em:
<HTTP://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/just_restaur/vis%c30+geral+jr_0.htm>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
135
FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. Op. Cit.
136
Ibidem.
47
reparação do dano nos seus aspectos simbólicos, ou psicológicos, é tão ou mais importante
que os aspectos materiais.137
No contexto da Nova Zelândia, os processos restaurativos, em regra, envolvem um
facilitador, uma reunião entre a vítima e o infrator com as pessoas envolvidas que lhe dão
apoio, além da presença de representantes da comunidade. E, embora existam vários pontos
paralelos entre a Justiça Restaurativa no contexto criminal e a mediação ou resolução de
disputas alternativas no contexto civil, “a vítima e o infrator não estão envolvidos na
resolução de uma disputa”.138
Percebe-se, claramente, que na Nova Zelândia, eles acreditam que o diálogo possa ser
uma arma eficaz contra a criminalidade.139
2.4.2 Estados Unidos
Nos Estados Unidos, os programas de mediação vítima-infrator em sua vasta maioria
baseiam-se na comunidade ou na Igreja, imparcialmente distribuídos com igualdade pelo
processo de justiça criminal para os casos de agressões, roubos e crimes juvenis de menor
gravidade.140
Lá, a compensação às vítimas tem prevalência sobre a reconciliação entre a vítima e o
ofensor. Tanto que os programas, antes denominados “Programas de Reconciliação VítimaInfrator” para “Programas de Mediação Vítima-Infrator”. O objetivo da restituição tornou-se
tão relevante que tais programas foram descritos como “agências de cobrança” para as
vítimas.141
A meta de conciliação vítima-infrator, portanto, fica em plano secundário:
137
BRANCHER, Leoberto Narciso. Justiça Restaurativa: a cultura de paz na prática da justiça. Disponível em:
<HTTP://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/just_restaur/vis%c30+geral+jr_0.htm>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
138
Extraído do Seminário “Sentenças - As novas dimensões”, organizado pela Sociedade Jurídica da Nova
Zelândia. Apresentação pelo Juiz FWM (Fred) McElrea. Tradução brasileira promovida pelo Ministério da
Justiça e PNUD, para uso interno nas capacitações do projeto Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de
Justiça Brasileiro. In: BRASIL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Disponível em: <
http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/JUST_RESTAUR/O+QUE+A+JUSTI%C7A+RESTAURATIVA+N%C3O+%
C9.HTM>. Acesso em: 05 Jul. 2008.
139
ZEHR,
Howard.
Justiça
Restaurativa:
justiça
para
todos.
Disponível
em:
<
http://stoa.usp.br/luciana/weblog/27203.html>. Acesso em 05 Ago. 2008.
140
FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. Prática da Justiça: O
modelo Zwelethemba de resolução de conflitos: In: SLAKMON, Catherine. In: SLAKMON, Catherine; PINTO,
Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações
Unidas – PNUD, 2005, p. 83.
141
FATTAH, E. (2004). Apud FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. Op. Cit., p. 87.
48
Nos Estados Unidos, à medida que a mediação foi da margem para o centro da
justiça juvenil, novas versões “fast food” de tais programas apareceram, demovendo
o processo de seus elementos restaurativos mais importantes. [...]. Em algumas
áreas, a mediação vítima-infrator está sendo cada vez mais usada para descrever
negociações arranjadas e executadas rapidamente entre as partes, nem sempre cara a
cara, realizadas com o propósito exclusivo de negociar um acordo de restituição.142
Na década de 90 houve significativo crescimento de iniciativas de encontros
restaurativos com grupos de familiares baseados na comunidade nos Estados Unidos. No
entanto, percebe-se que não há uma preocupação com os valores restaurativos, que envolve
pedido de desculpas e perdão.
Perguntando sobre quem toma a iniciativa de buscar a Justiça Restaurativa na
existência de um conflito nos Estados Unidos, Howard Zehr, sociólogo, defensor e estudioso
desse tipo de justiça, respondeu:
O caso pode ser encaminhado ao programa de justiça restaurativa pelo tribunal, pelo
promotor, pela polícia, pela comunidade. Normalmente, contatamos primeiro o
infrator, para ver se está disposto. De forma geral, os ofensores costumam topar. As
vítimas, nem sempre. Em alguns casos, trazemos outra vítima de um problema
semelhante. Ou outro infrator. São as vítimas ou ofensores substitutos. Os
facilitadores vêm de diferentes áreas e profissões. De donas-de-casa até policiais. O
objetivo é engajar a comunidade na solução. Acreditamos que nela existam pessoas
que, com treinamento, podem ser capacitadas para o trabalho. Para crimes muito
graves, envolvemos sociólogos, psicólogos e pessoas com treinamento
especializado. Em casos difíceis, usamos até dois facilitadores.143
No que tange ao papel do infrator, Howard afirma que o objetivo da Justiça
Restaurativa é fazê-lo entender o que fez, principalmente porque quem comete um erro tende
a usar de todos os mecanismos de negação para não assumir a responsabilidade por seus atos.
E acrescenta:
O sistema penal reforça isso porque visa o castigo. Embora o infrator nem saiba que
ele precisa reconhecer o erro, temos esperança de que, durante o processo, ele
compreenda as conseqüências de seu crime. E, quando encontra a vítima, ouve-a,
desenvolve empatia por ela. As taxas de reincidência caem.144
Howard acredita que esse sistema não facilita a vida do infrator, como algumas
pessoas podem pensar. Ao contrário, é muito difícil um ofensor enfrentar sua vítima face a
face e muitos acreditam que ir para a cadeia é bem mais fácil que fazer isso. Ele também
entende ser “ingênuo um juiz passar uma sentença, um sermão e acreditar que está
transformando a pessoa em alguém melhor”. Afirma, por derradeiro, que sua experiência
142
UMBREIT (1999) Apud FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford.
FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. Prática da Justiça: O modelo Zwelethemba de resolução de conflitos:
In: SLAKMON, Catherine. In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça
Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 83.
143
ZEHR,
Howard.
Justiça
Restaurativa:
justiça
para
todos.
Disponível
em:
<
http://stoa.usp.br/luciana/weblog/27203.html>. Acesso em 05 Ago. 2008.
144
Ibidem.
49
mostra repetidamente “que a punição não apenas não funciona como causa efeitos
colaterais”.145
2.4.3 Argentina
Em 1998 a Argentina inseriu os programas de Justiça Restaurativa em parceria com a
Faculdade de Direito de Buenos Aires e o Ministério Nacional de Justiça.146 A experiência
iniciou-se a partir de coletividades muito pobres, de pessoas que vivem em moradias
informais ou muito básicas. Um Projeto Piloto, denominado “Código de Boa Prática”, está
sendo usado nesse país desde 2000 e tem como características a abordagem de problemas
genéricos e estruturais nas comunidades, como é o caso do Projeto “Villa Banana” que
enfatiza a construção da paz:
Um foco na construção da paz conduz freqüentemente para longe das questões da
segurança para preocupações de desenvolvimento mais amplas, como saúde pública,
higiene, alimentação, abrigo, coleta de lixo, educação e oportunidades recreativas.
Assim, a construção da paz amplia o escopo para a realização de valores
restaurativos para além da segurança.147
Inicialmente, os processos foram desenvolvidos no sentido de reunir as pessoas para
abordar problemas locais de modo a realizar valores restaurativos. Buscaram construir a paz e
não a pacificação. Nas reuniões iniciais, buscou-se identificar os problemas mais urgentes de
segurança para a comunidade, ocasião em que o constante abuso por parte da polícia teve
grande destaque, como por exemplo, detenção arbitrária, roubos de posses e/ou agressões
físicas durante a custódia, em Delegacias próximas. De acordo com a capacidade do local,
foram convocadas outras reuniões com pessoas que, acreditava-se, possuíam conhecimento e
capacidade para contribuir com alguma solução, resultando no desenvolvimento de uma
iniciativa de construção de paz que perdurou por vários meses.148
145
ZEHR,
Howard.
Justiça
Restaurativa:
justiça
para
todos.
Disponível
em:
<
http://stoa.usp.br/luciana/weblog/27203.html>. Acesso em 05 Ago. 2008.
146
PARKERm L. Lynette. Justiça Restaurativa: um veículo para a reforma? In: SLAKMON, Catherine. In:
SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da
Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 247.
147
FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. Prática da Justiça: O
modelo Zwelethemba de resolução de conflitos: In: SLAKMON, Catherine. In: SLAKMON, Catherine; PINTO,
Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações
Unidas – PNUD, 2005, p. 111-112.
148
Ibidem, p. 112.
50
Formulou-se um plano de ação, facilitadas pelo “Foro”, o Comitê de Paz Argentino,
que mobilizou grupos afetados pelos citados incidentes, havendo concordância geral no que
tange a minimizar os riscos de posterior vitimização pela polícia. Foram criadas estratégias no
sentido de aumentar a capacidade dos participantes de mobilização coletiva, ao mesmo tempo
em que se formou um grupo com o objetivo de reunir-se toda vez que casos de prisão e
detenção arbitrárias chegassem a seu conhecimento. Uma vez reunidos, iam à Delegacia e lá
permaneceriam pacificamente até que lhes fossem dadas informações acerca da liberação da
pessoa detida.149
O próximo passo era contatar agências estatais, incluindo tribunais, funcionários de
alto escalão da polícia e autoridades políticas, para informar o ocorrido. Vários meses depois,
a Delegacia comprometeu-se a melhorar as relações entre a polícia e a comunidade. Desde
então, essa técnica de administração de conflito envolvendo a comunidade tem sido
solucionada na base do diálogo entre as partes, sempre em busca de uma solução pacífica.150
Como antecipado, o processo de Justiça Restaurativa iniciou-se na Argentina em 2000,
época em que os índices de delinqüência eram alarmantes, causando decréscimo da qualidade
de vida e baixa taxa de resolução judicial, instalando-se, naquele país, um sentimento de
impunidade muito forte: “[...] um universo de 135.852 causas penais que ingressaram na
justiça ordinária da capital federal da Argentina iniciadas no ano de 2000, o sistema resolveu
9%, arquivou 71% das causas e mantém em trâmite o restante151”.152
Era necessário, portanto, o restabelecimento da validade de uma regra fundamental de
respostas que pudessem gerar a consciência de que existia uma ordem no país, ainda que essa
resposta não fosse necessariamente a pena imposta pelo sistema penal.153
A experiência com os projetos pilotos na Argentina levou o governo argentino a apoiar
a criação de “Centros de Justiça de Comunidade” em todo o país. Hoje, estes centros154
149
FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. FROESTAD, Jan; SHEARING, Clifford. Prática da Justiça: O
modelo Zwelethemba de resolução de conflitos: In: SLAKMON, Catherine. In: SLAKMON, Catherine; PINTO,
Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações
Unidas – PNUD, 2005, p. 112-113.
150
Ibidem, p. 113.
151
Artigo datado de 2005.
152
PAZ, Silvana Sandra; PAZ, Silvina Marcela. Justiça Restaurativa: processos possíveis. In: SLAKMON,
Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e
Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 125.
153
Ibidem.
154
O primeiro centro foi inaugurado em Florêncio Varela, na província de Buenos Aires, em novembro de 2003.
Em março de 2004 já contava com 429 casos em que processos alternativos foram aplicados. Mais de 70%
destes casos ligava-se à casos de família, inclusive com uso de violência e mais de 80% dos casos foram
solucionados mediante um acordo entre as partes. In: PARKERm L. Lynette. Justiça Restaurativa: um veículo
para a reforma? In: SLAKMON, Catherine. In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes.
(Orgs.). Op. Cit., p. 260.
51
trabalham para promover o a restauração da paz nos casos de transgressões secundárias,
conflitos entre vizinhos, violência familiar, dentre outros.
São casos que, em situação normal, após o devido processo penal, poderiam levar o
infrator a condenações que poderiam chegar à pena privativa de liberdade. Assim, a
restauração da paz, mediante o método da Justiça Restaurativa, acena para o fato de se levar
menos pessoas aos presídios.
52
3 A JUSTIÇA RESTAURATIVA NO BRASIL
3.1 A ausência de previsão na legislação brasileira
No Brasil não há, até o momento, previsão de justiça restaurativa em sua legislação.
No entanto, apresenta-se indispensável que sejam revisitados certos dogmas do processo
penal, “e que os olhos sejam voltados para a solução dos problemas que afligem a sociedade
contemporânea e não para a sociedade do século XIX, quando surgiu, autonomamente, o
direito processual”.155
Vários autores sustentam que o modelo de justiça restaurativa no direito penal
brasileiro é perfeitamente compatível com o ordenamento jurídico existente, “em que pese
ainda vigorar, em nosso direito processual penal, o princípio da indisponibilidade e da
obrigatoriedade da ação penal pública”.156
Alerta Renato Sócrates Gomes Pinto:
Nos países do sistema common law, o sistema é mais receptivo à alternativa
restaurativa (restorative diversion), principalmente pela chamada discricionariedade
do promotor e da disponibilidade da ação penal (prosecutorial discretion), segundo
o princípio da oportunidade. Naquele sistema há, então, grande abertura para o
encaminhamento de casos a programas alternativos mais autônomos, ao contrário do
nosso, que é mais restritivo.157
Para esse autor, não se pode, de forma ingênua e alienada, copiar modelos
estrangeiros, mormente os que utilizam o sistema common La w, vez ser este incompatível
com o sistema jurídico brasileiro, que urge de modificações legislativas para acomodar
sistematicamente o paradigma restaurativo.158
No entanto, ainda segundo o mencionado autor, ainda que não haja uma mudança
legislativa, é possível adotar o modelo de justiça restaurativa: “Essa compatibilidade não é de
ser apenas com nossa Constituição, nossa legislação e nossas práticas judiciais, mas também
com o senso de justiça e cultura diversificada de nosso povo”.159
155
CALMON, Petrônio. Fundamentos da Mediação e da Conciliação. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 229.
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, Catherine. In:
SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da
Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 29.
157
Ibidem.
158
Ibidem, p. 30.
159
Ibidem, p. 3.
156
53
Segundo Damásio de Jesus, o debate acerca dessa possibilidade ainda se mostra em
estado embrionário, sendo poucas as iniciativas nesse sentido, com a maioria sendo
promovida por juristas.160
No Legislativo, o debate reside no Projeto de Lei nº. 7006/2006, de autoria da
Comissão de Legislação Participativa, apresentado a seguir.
3.2 O Projeto de Lei para a adoção da Justiça Restaurativa no Brasil
Encontra-se em discussão no Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº. 7006/2007
(ANEXO II), de autoria da Comissão de Legislação Participativa, apresentado em 10 de maio
de 2006 e atualmente sendo discutido na Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania,
para posterior apresentação de parecer. Em seguida, será votado em Plenário.161
Esse projeto tem a seguinte Ementa:
Ementa: Propõe alterações no Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940, do
Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941, e da Lei nº 9.099, de 26 de setembro
de 1995, para facultar o uso de procedimentos de Justiça Restaurativa no sistema de
justiça criminal, em casos de crimes e contravenções penais.162
Oriundo de uma sugestão do Instituto de Direito Comparado e Internacional de
Brasília, contempla em seu texto a criação de núcleos de justiça restaurativa compostos por
uma coordenação administrativa; uma coordenação técnica interdisciplinar e uma equipe de
facilitadores, com todos atuando de forma integrada.163
As principais características do Projeto são:
[...] 1) modifica o Código Penal, o Código de Processo Penal e a Lei 9.099/95 que
trata do Juizado Especial Criminal para introduzir os procedimentos de justiça
restaurativa; 2) o procedimento é opcional, depende da concordância de autor e
vítima; 3) o procedimento consistiria em encontros conduzidos por facilitadores
entre vítima e autor do fato delituoso e se apropriado outros membros da
comunidade, visando o encontro de solução adequada para compor os traumas e
conseqüências do crime, em locais adequados chamados núcleos de justiça
restaurativa; 3) das reuniões pode-se chegar aos acordos restaurativos, em que as
soluções deverão atender as necessidades dos envolvidos; 4) quando o juiz se
deparar com um caso que pode ser resolvido pelo sistema restaurativo depois de
ouvir o Promotor de Justiça pode remeter os autos para o núcleo; 5) o núcleo deverá
ter condições pessoais e materiais para funcionamento, contando com uma
160
JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 819, 30 set. 2005.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7359>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
161
BRASIL.
Câmara
dos
Deputados.
Disponível
em:
<
http://www2.camara.gov.br/internet/proposicoes/chamadaExterna.html?link=http://www.camara.gov.br/internet/
sileg/Prop_Detalhe.asp?id=323785>. Acesso em: 03 Set. 2008.
162
Idem.
163
Idem.
54
coordenação, equipe técnica interdisciplinar e facilitadores (preferencialmente
psicólogos e assistentes sociais); 6) os atos do procedimento: consulta às partes
(autor e vítima) quanto a concordância da instauração do procedimento; entrevistas
prévias com os facilitadores, separadamente para esclarecimentos; encontros
restaurativos para viabilizar a solução adequada; 7) deve ser observada a
confidencialidade (sigilo de justiça); 8) o cumprimento do acordo restaurativo leva à
extinção da punibilidade do autor do fato delituoso; 9) no período da homologação
do acordo restaurativo até o seu efetivo cumprimento não flui o prazo de prescrição
quanto ao delito; 10) no inquérito, no relatório, o Delegado de Polícia pode sugerir a
instauração do procedimento restaurativo; 11) se as partes (autor e vítima)
concordarem podem ser remetidos os autos de ação penal ou do inquérito para o
núcleo restaurativo; 12) o Ministério Público pode deixar de oferecer denúncia,
enquanto tramita o procedimento restaurativo, assim como o curso da ação penal já
iniciada pode ser suspenso para aquela finalidade; 13) se a personalidade do autor,
antecedentes, circunstâncias ou conseqüências do fato delituoso recomendarem, o
juiz poderá remeter os autos para núcleo restaurativo visando cientificar os
envolvidos sobre a possibilidade de opção pelo procedimento e para que façam a
escolha por sua adoção ou o rejeitem; 13) o acordo restaurativo é homologado pelo
juiz; 14) o projeto prevê a vacatio legis de 01 ano, visando a preparação dos núcleos
restaurativos; 15) enquanto não for homologado o ajuste restaurativo, pode ocorrer a
desistência do acordo.164
Por óbvio, como qualquer projeto sob trabalho parlamentar, também este tem seus
críticos, principalmente por seu ineditismo, o que pode conduzir a equívocos. Amaury Silva,
por exemplo, destaca como falhas mais visíveis a circunstância de não estar assegurada de
maneira explícita o acesso das partes (vítima e transgressor) à assistência jurídica através de
advogado ou defensor; a falta de situações elencadas para a inaptidão do procedimento e
ausência de limites para a sua aplicação. Segundo ele, a divulgação, discussão e abordagem a
esse encaminhamento legislativo são providências urgentes, que devem ser empreendidas pela
comunidade jurídica, Congresso Nacional e a sociedade como um todo. Ressalta, por fim, que
o aperfeiçoamento da proposta é típica produção do exercício democrático.165
Feitas estas breves considerações sobre o Projeto de Lei nº. 7006/2007, volta-se a
atenção para os crimes que podem ser objeto desse modelo de justiça.
3.3 Os crimes que podem ser objeto da Justiça Restaurativa
Nos primeiros capítulos buscou-se demonstrar que está ultrapassada a visão de que o
cárcere é o remédio para a criminalidade, bem como que as penas alternativas possam ser
consideradas mais justas e eficazes como resposta para a maioria dos delitos, não obstante tais
164
SILVA, Amaury. Justiça Restaurativa: um projeto para o Brasil. Disponível
http://www.abdir.com.br/doutrina/ver.asp?art_id=1197&categoria=TGD>. Acesso em: 05 Set. 2008.
165
Ibidem.
em:
<
55
penas enfocarem mais a perspectiva do infrator e encontrarem-se totalmente desacreditadas
com o pagamento de cestas básicas no Brasil, em franca desmoralização da justiça, que acaba
privilegiando acusados com poder aquisitivo alto.
Apesar de vigorar no sistema processual penal pátrio o princípio da indisponibilidade e
da obrigatoriedade da ação penal pública, muitos são os delitos que podem ser levados à
justiça restaurativa.
Como ficou claro no segundo capítulo, esse modelo de justiça situa a vítima na
resposta ao delito e o infrator na responsabilidade que deve ter por seus atos. No modelo
retributivo a agressão sofrida pela vítima causa-lhe dor, privação de direitos e, principalmente,
um ressentimento que pode passar a expressar o desejo de vingança.166
Por outro lado, para o agressor, a vítima é igualmente despersonalizada, tanto vista
como repositório de valores materiais dos quais se vê privado e que deseja ter, seja para ser
encarada como alvo de descarga de um ressentimento que igualmente o marca por não ter um
lugar na sociedade.167
Ficar frente a frente faz com que vítima e agressor avaliem o conflito e também suas
próprias condutas. Há um “pensar no outro” e a busca por uma responsabilidade individual.168
Nesse contexto, observa-se que o Projeto de Lei nº. 7006/2007, já comentado, em seu
art. 16, que introduz no Código Penal o capítulo VIII, dispõe no art. 566 que:
Art. 556 - Nos casos em que a personalidade e os antecedentes do agente, bem como
as circunstâncias e conseqüências do crime ou da contravenção penal,
recomendarem o uso de práticas restaurativas, poderá o juiz, com a anuência do
Ministério Público, encaminhar os autos a núcleos de justiça restaurativa, para
propiciar às partes a faculdade de optarem, voluntariamente, pelo procedimento
restaurativo.
O Projeto não elenca, portanto, crimes que possam ser levados à justiça restaurativa,
mas deixa a critério do julgador encaminhar para esse modelo, os casos que julgar passível de
solução sem a aplicação da lei penal.
Observou-se, também, no mesmo sentido, que o art. 18 do mencionado Projeto de Lei
acrescenta parágrafo ao art. 69 da Lei 9.099/1995 permitindo que a autoridade policial, no
termo circunstanciado, encaminhe os autos para o procedimento restaurativo.
166
MELO, Eduardo Rezende. Justiça restaurativa e seus desafios histórico-culturais: um ensaio crítico sobre os
fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em contraposição à justiça retributiva. In: SLAKMON,
Catherine. In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília:
Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 61.
167
Ibidem.
168
Ibidem, p. 64-65.
56
Há que se ressaltar mais uma vez, que para que haja o procedimento restaurativo, é
imprescindível a concordância das partes – vítima e infrator – e sem ela não há o que se falar
em justiça restaurativa.
3.4 Diplomas legais que podem servir como portas de entrada para a implantação da
Justiça Restaurativa no Brasil
Como dito linhas atrás, não há na legislação pátria dispositivos com práticas
totalmente restaurativas, mas existem diplomas legais que podem ser utilizados para sua
implementação, ainda que de forma parcial.
São portas de entrada apontadas pela doutrina: O Estatuto da Criança e do
Adolescente, a Lei dos Juizados Especiais Criminais, o Código Penal. Além desses, outros
dispositivos penais serão apresentados.
3.4.1 Estatuto da Criança e do Adolescente
No Brasil, é o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº. 8.069, de 13 de julho de
1990), a legislação aplicável para menores de 18 anos que cometem fatos definidos como
infrações penais. Em seu art. 126169, está presente o instituto da remissão, “mecanismo de
exclusão, suspensão ou extinção do processo referente à aplicação de medidas sócioeducativas170 a adolescentes (menores entre 12 e 18 anos [...]”.171
169
Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do
Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às
circunstâncias e conseqüências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua
maior ou menor participação no ato infracional. Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da
remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo. In: BRASIL. Lei nº. 8.069,
de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Disponível em: <
http://www.planalto.gov.br/ccivil/LEIS/L8069.htm>. Acesso em: 01 Out. 2008.
170
A medida socioeducativa, regulada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, é espécie do gênero “medidas
de proteção” que, em lugar da pena aplicada ao maior de dezoito anos que comete crime ou contravenção, pode
ser aplicada ao adolescente que cometer qualquer espécie de ato infracional. In: QUEIROZ, Ari Ferreira de.
Direito da Criança e do Adolescente. 5. ed. Goiânia: Editora Jurídica IEPC, 2005, p. 114.
171
JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 819, 30 set. 2005.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7359>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
57
Percebe-se que o caput desse artigo permite que a remissão seja proposta pelo
representante do Ministério Público, de forma a excluir o processo, e, pelo Juiz de Direito,
como meio de suspensão ou extinção do procedimento (art. 126, parágrafo único, e art. 186, §
1º172). Quando elaborada pelo Ministério Público, dependerá de homologação judicial e, se o
juiz de Direito não concordar com a proposta, remeterá o caso ao Procurador-Geral da
Justiça.173
A remissão não importa reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, sequer
prevalece para efeito de antecedentes, mas permite a lei que seja ela cumulada com a
aplicação de medidas sócio-educativas ou protetivas.
Percebe-se que a possibilidade de remissão, da forma como contemplada nesse
Diploma legal, “enseja e recomenda implicitamente o uso do modelo restaurativo [...]”174,
desde que as autoridades dela encarregadas (membro do Ministério Público, antes do
processo, e o Juiz de Direito, durante o procedimento) promovam a participação do
adolescente, de seus familiares e, inclusive, da vítima, “na busca de uma efetiva reparação dos
danos e de uma responsabilização consciente do menor infrator”.175
3.4.2 Lei dos Juizados Especiais Criminais
A Lei nº. 9.099/1995 abriu uma pequena janela no sistema jurídico do Brasil ao
princípio da oportunidade, “permitindo certa acomodação sistemática do modelo restaurativo
em nosso País, mesmo sem mudança legislativa”.176
Essa lei, com as alterações promovidas pela Lei nº. 10.259/2001, trata dois Juizados
Especiais Criminais, responsável pelas infrações penais de menor potencial ofensivo
(contravenções penais e crimes cuja pena máxima não exceda 2 anos, ou multa).
172
Art. 186. Comparecendo o adolescente, seus pais ou responsável, a autoridade judiciária procederá à oitiva
dos mesmos, podendo solicitar opinião de profissional qualificado. § 1º Se a autoridade judiciária entender
adequada a remissão, ouvirá o representante do Ministério Público, proferindo decisão. In: BRASIL. Lei nº.
8.069, de 13 de julho de 1990. Estatuto da Criança e do Adolescente. Idem.
173
JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 819, 30 set. 2005.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7359>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
174
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, Catherine. In:
SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da
Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 32.
175
JESUS, Damásio E. de. Op. Cit.
176
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Op.Cit., p. 29.
58
Os Juizados Especiais, “filhos da Constituição cidadã de 1988”, foram pensados como
fórmula de proteção aos direitos fundamentais e garantias essenciais; vieram para garantir à
população seu amplo acesso à justiça, sem ônus e sem intermediários e, assim, tais direitos
poderiam sair do papel e ingressar no mundo da vida dos cidadãos.177
Para Mauro Capelletti:
O direito ao acesso efetivo à justiça tem sido progressivamente reconhecido como
sendo de importância capital entre os novos direitos individuais e sociais, uma vez
que a titularidade de direitos é destituída de sentido, na ausência de mecanismos
para sua efetiva reivindicação. O acesso à justiça pode, portanto, ser encarado como
requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um sistema
jurídico moderno e igualitário que pretenda garantir, e não apenas proclamar os
direitos de todos.178
Nos dizeres de Figueira Júnior e Lopes, “introduziu-se no mundo jurídico um novo
sistema ou ainda melhor, um micro sistema de natureza instrumental e obrigatório, destinado
à rápida e efetiva atuação do direito”, o qual tem a pretensão de prestar a tutela jurisdicional
de forma simples, desprovida de formalismos, atuando de modo célere e com baixíssimo
custo, buscando pacificar os conflitos jurídicos e sociológicos dos jurisdicionados, mormente
em benefício das camadas mais pobres da sociedade.179
Essa lei adotou como princípio fundamental a busca de aplicação de medidas
alternativas, mediante consenso entre os principais envolvidos, ou seja, vítima e autor do fato:
[...] ela estabelece que haverá uma audiência preliminar (art. 27 e SS.), na qual se
procurará a realização de um acordo civil, com vistas à composição financeira de
eventuais prejuízos experimentados com a prática do ilícito penal, e, em seguida, um
acordo penal, caso o primeiro seja frustrado, ou, independentemente do resultado da
composição civil, quando se tratar de crime de ação pública incondicionada.180
A própria Constituição de 1988, em seu art. 98, I, prevê a possibilidade de conciliação
em procedimento oral e sumaríssimo, de infrações penais de menor potencial ofensivo. A fase
preliminar, prevista no art. 70 e 72 a 74, da Lei em tela, “pode ter a forma restaurativa”.181
Senão vejamos:
Art. 70. Comparecendo o autor do fato e a vítima, e não sendo possível a realização
imediata da audiência preliminar, será designada data próxima, da qual ambos sairão
cientes.
177
GAULIA, Cristina Tereza. Juizados Especiais Cíveis, o Espaço do Cidadão no Poder Judiciário. Rio de
Janeiro: Renovar, 2005, p. 5.
178
CAPPELLETTI, Mauro. Acesso à Justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Sérgio Fabris
Editor, 1988, p. 11-12.
179
FIGUEIRA JÚNIOR, Joel Dias; LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Comentários à Lei dos Juizados
Especiais Cíveis e Criminais. São Paulo: RT, 1995, p. 13.
180
JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 819, 30 set. 2005.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7359>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
181
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, Catherine. In:
SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da
Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 32.
59
Art. 72. Na audiência preliminar, presente o representante do Ministério Público, o
autor do fato e a vítima e, se possível, o responsável civil, acompanhados por seus
advogados, o Juiz esclarecerá sobre a possibilidade da composição dos danos e da
aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade.
Art. 74. A composição dos danos civis será reduzida a escrito e, homologada pelo
Juiz mediante sentença irrecorrível, terá eficácia de título a ser executado no juízo
civil competente.
Parágrafo único. Tratando-se de ação penal de iniciativa privada ou de ação penal
pública condicionada à representação, o acordo homologado acarreta a renúncia ao
direito de queixa ou representação.
Tais dispositivos permitem ao juiz oportunizar a possibilidade de composição de
danos e da aceitação da proposta de aplicação imediata de pena não privativa de liberdade,
num procedimento que pode ser conduzido por um conciliador. Se interpretados
extensivamente, fundamentando-se na diretriz hermenêutica do art. 5º, da Lei de Introdução
ao Código Civil (LICC), “são normas permissivas e que legitimam a ilação de que esse
procedimento pode ser encaminhado ao Núcleo de Justiça Restaurativa”.182
Se presentes, num caso considerado, os pressupostos de admissibilidade do processo
restaurativo, sob o ponto de vista jurídico (requisitos objetivos e subjetivos a serem
definidos em consonância com a lei penal), seria o mesmo encaminhado ao Núcleo
de Justiça Restaurativa, para avaliação multidisciplinar e, convergindo-se sobre sua
viabilidade técnica, se avançaria nas ações preparatórias para o encontro
restaurativo.183
Acrescenta Damásio de Jesus que com a transação penal o representante do Ministério
Público poderá, se presentes a prova da materialidade e os indícios de autoria, formular
proposta de aplicação imediata de pena alternativa (restritiva de direito ou multa), a qual
depende de aceitação do autor do fato e de seu Advogado, além da necessidade de
homologação judicial.184
Para ele, na prática o instituto da transação penal vem sendo aplicando diuturnamente
no País de forma contrária ao que pretendeu o legislador: as audiências acontecem sem a
presença efetiva de um Juiz de Direito; as propostas de transação têm sido padronizadas e na
maioria das vezes consistem em pagamentos de cestas básicas a instituições carentes ou
assistenciais. Assim, conforme entende esse doutrinador, com vontade política e treinamento
de pessoa especializado, a par de uma conscientização dos agentes estatais envolvidos no
182
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, Catherine. In:
SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da
Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 30.
183
Ibidem, 30-31.
184
JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 819, 30 set. 2005.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7359>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
60
processo, “talvez seja possível a utilização dos Juizados Criminais Especiais como porta de
entrada para a Justiça Restaurativa no Brasil”.185
3.4.3 Código Penal
Relevante alteração realizada no Código Penal brasileiro foi a inserção, em 1984, das
penas restritivas de direito (prestação de serviços à comunidade, interdição temporária de
direitos e limitação de final de semana). Em 1988 tais penas foram ampliadas, passando a ser,
sua aplicação, admitidas a um número maior de infrações penais (crimes culposos e dolosos,
cuja pena não ultrapasse 4 anos, cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa), mas
também aumentando a quantidade de penas restritivas de direitos: prestação pecuniária,
prestação inominada, perda de bens e valores186, prestação de serviços à comunidade ou
entidades públicas187, interdições temporárias de direito (com acréscimo, dentre essas, da
proibição de freqüentar determinados lugares) e limitação de fim de semana (arts. 45 a 48, do
Código Penal)188.189
A prestação pecuniária, consistente no pagamento de quantia em dinheiro à vítima ou
a seus dependentes, ou, subsidiariamente, à entidade pública ou privada com destinação
social, no valor de 1 a 360 salários mínimos, o que demonstra ser um instituto que caracteriza
uma prática parcialmente restaurativa.190
Quanto à prestação inominada, quando cabível a prestação pecuniária, o Código Penal
permite, se houver concordância do beneficiário (vítima, dependente, entidade pública ou
privada com destinação social), que esta seja substituída por uma prestação de outra natureza,
como por exemplo, cesta básica, mão-de-obra, reposição de árvores etc.191
185
JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 819, 30 set. 2005.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7359>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
186
Refere-se a perda de bens e valores pertencentes ao condenado, em favor do Fundo Penitenciário Nacional
(Funpen), ressalvada a legislação especial. Trata-se de pena alternativa que não se coaduna com os princípios da
Justiça Restaurativa.
187
Como a prestação de serviços à comunidade ou a entidades públicas não se baseia em acordo, não se
enquadra com os princípios da Justiça Restaurativa.
188
Também a interdição temporária de direitos e a limitação de fim de semana, por serem medidas impostas sem
qualquer consenso e sim por imposição judicial, não se encaixa na proposta de Justiça Restaurativa.
189
JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 819, 30 set. 2005.
Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7359>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
190
Ibidem.
191
Ibidem.
61
3.4.4 Outros dispositivos penais
Outros institutos voltam-se à reparação de danos, utilizados tanto como requisito para
obtenção de benefícios legais, quanto como condição para a manutenção dessas vantagens.
São eles:
a) Arrependimento posterior, disposto no art. 16, do Código Penal, que apregoa “nos
crimes cometidos sem violência ou grave ameaça à pessoa, reparado o dano ou restituída a
coisa, até o recebimento da denúncia ou da queixa, por ato voluntário do agente, a pena será
reduzida de um a dois terços”.192
b) Progressão de regimes penitenciários nos crimes contra a Administração
Pública. O art.33, § 4º, do Código Penal, nos termos da Lei nº. 10.763/2003, dispõe que: “o
condenado por crime contra a Administração Pública terá a progressão de regime do
cumprimento da pena condicionada à reparação do dano que causou, ou à devolução do
produto ilícito praticado, com os acréscimos legais”.193
c) Atenuante genérica. Dispõe o art. 65, III, “b” do mencionado Diploma Legal, que
“[...] procurado, por sua espontânea vontade e com eficiência, logo após o crime, evitar-lhe ou
minorar-lhe as conseqüências, ou ter, antes do julgamento, reparado o dano”.194
d) Sursis especial. De acordo com o art. 78, § 2º, também do CP:
Art. 78 - Durante o prazo da suspensão, o condenado ficará sujeito à observação e ao
cumprimento das condições estabelecidas pelo juiz.
[...] § 2° Se o condenado houver reparado o dano, salvo impossibilidade de fazê-lo, e
se as circunstâncias do art. 59 deste Código lhe forem inteiramente favoráveis, o juiz
poderá substituir a exigência do parágrafo anterior pelas seguintes condições,
aplicadas cumulativamente:
a) proibição de freqüentar determinados lugares;
b) proibição de ausentar-se da comarca onde reside, sem autorização do juiz;
c) comparecimento pessoal e obrigatório a juízo, mensalmente, para informar e
justificar suas atividades.195
e) Causa de revogação do sursis. O art. 81, II, do CP, dispõe que “a suspensão será
revogada se, no curso do prazo, o beneficiário: [...] II – frustra, embora solvente, a execução
de pena de multa ou não efetua, sem motivo justificado, a reparação do dano”.196
f) Livramento condicional. Nos termos do art. 83, IV, também do CP, “o juiz poderá
conceder livramento condicional ao condenado a pena privativa de liberdade igual ou superior
192
BRASIL. Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 01 Out. 2008.
193
Ibidem.
194
Ibidem.
195
Ibidem.
196
Ibidem.
62
a 2 (dois) anos, desde que: [...] IV – tenha reparado, salvo efetiva impossibilidade de fazê-lo,
o dano causado pela infração”.197
g) Efeito genérico da condenação. Consta do art. 91, I, do Código Penal, que “são
efeitos da condenação: I – tornar certa a obrigação de indenizar o dano causado pelo
crime”.198
h) Reabilitação criminal. Segundo o art. 94, III, do CP:
Art. 94. A reabilitação poderá ser requerida, decorridos 2 (dois) anos do dia em que
for extinta, de qualquer modo, a pena ou terminar sua execução, computando-se o
período de prova da suspensão e do livramento condicional, se não sobrevier
revogação, desde que o condenado:
[...]
III – tenha ressarcido o dano causado, pelo crime ou demonstre a absoluta
impossibilidade de o fazer, até o dia do pedido, ou exiba documento que comprove a
renúncia da vítima ou novação da dívida.199
i) Extinção da punibilidade no crime de apropriação indébita previdenciária,
disposto no art. 168-A, § 2º, do CP: “[...] § 2o É extinta a punibilidade se o agente,
espontaneamente, declara, confessa e efetua o pagamento das contribuições, importâncias ou
valores e presta as informações devidas à previdência social, na forma definida em lei ou
regulamento, antes do início da ação fiscal”.200
j) Estelionato mediante emissão de cheque sem provisão de fundos, regulado pelo
art. 171, § 2º, do CP, e pela Súmula nº. 554, do Supremo Tribunal Federal, que apregoa: “o
pagamento de cheque emitido sem provisão de fundos, após o recebimento da denúncia, não
obsta ao prosseguimento da ação penal”.201
k) Extinção da punibilidade no peculato culposo. Segundo o art. 312, §§ 2º e 3º, do
CP: “[...] § 2º - Se o funcionário concorre culposamente para o crime de outrem: Pena detenção, de três meses a um ano. § 3º - No caso do parágrafo anterior, a reparação do dano,
se precede à sentença irrecorrível, extingue a punibilidade; se lhe é posterior, reduz de metade
a pena imposta”.202
l) Extinção da punibilidade nos crimes contra a ordem tributária, disposto no art.
34, da Lei nº. 9.245/1995. que dispõe “extingue-se a punibilidade dos crimes definidos na Lei
nº. 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e na Lei nº. 4.729, de 14 de julho de 1965, quando o
197
BRASIL. Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/CCIVIL/Decreto-Lei/Del2848.htm>. Acesso em: 01 Out. 2008.
198
Ibidem.
199
Ibidem.
200
Ibidem.
201
In: JESUS, Damásio E. de. Justiça Restaurativa no Brasil. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 819, 30 set.
2005. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7359>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
202
BRASIL. Decreto-Lei nº. 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Op. Cit.
63
agente promover o pagamento do tributo ou contribuição social, inclusive acessórios, antes do
recebimento da denúncia”.203
Ante todo o exposto, percebe-se que o modelo restaurativo é perfeitamente compatível
com o ordenamento jurídico brasileiro, “em que pese ainda vigorar, em nosso direito
processual penal, o princípio da indisponibilidade e da obrigatoriedade da ação penal
pública”.204
203
In: JESUS, Damásio E. de. Op. Cit.
PINTO, Renato Sócrates Gomes. Justiça Restaurativa é possível no Brasil? In: SLAKMON, Catherine. In:
SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília: Ministério da
Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 30.
204
64
4 A JUSTIÇA RESTAURATIVA E SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A MELHORIA DO
SISTEMA CARCERÁRIO
Após apresentados os capítulos anteriores, um explanando sobre a pena e o sistema
prisional no Brasil; outro apresentando a Justiça Restaurativa, com seus principais aspectos e
com ênfase para a diferença entre ela e a Justiça Punitiva, predominante no País, além de
exemplos de sucesso no Direito comparado; e, outro, abordando a ausência desse modelo na
legislação pátria, mas demonstrando que já existem algumas “portas de entrada” para esse
sistema no Brasil, é o momento de se demonstrar como a Justiça Restaurativa pode contribuir
para a melhoria do sistema prisional.
Num primeiro momento, pode-se pensar tratar-se de uma idéia absurda, tanto pela
complexidade da questão quanto pela grave e intensa violação de direitos que é “marca
registrada” do sistema carcerário no Brasil.
No entanto, percebe-se que o excesso de leis que regula o sistema penal não tem se
mostrado eficaz no combate à criminalidade e nem na minimização dos efeitos que ela
provoca à sociedade.
Como se demonstrou, o referencial da Justiça Restaurativa funda-se no
reconhecimento de que o sistema punitivo tradicional concentra-se de forma excessiva nos
papéis dos atores estatais (policial, promotor e juiz) e na figura do acusado e seu advogado.
Conforme Leoberto Narciso Brancher, Juiz de Direito:
Ao desviar a atenção do dano – ou do trauma social produzido pela infração – a
Justiça tradicional, denominada “retributiva”, tende a desresponsabilizar
emocionalmente o infrator, visto que não abre espaços para a sinceridade, para a
transparência afetiva e para o diálogo, ingredientes essenciais a qualquer processo de
pacificação. Conseqüentemente, tal sistema vem, ao longo dos séculos, produzindo
como principal efeito a amplificação dos conflitos e a reverberação da violência. Daí
a importância dos questionamentos introduzidos pela Justiça Restaurativa, que vão
ao âmago das relações de poder para apontar os vestígios da cultura de guerra a que
as relações se submetem, e, não se detendo nas críticas, propositivamente avança o
olhar para o futuro e sugere estratégias para qualificar a interação das partes
envolvidas num conflito de forma não só a pacificá-lo, mas também a proporcionar
que suja daí uma experiência emocional enriquecedora para todos.205
Para Renato Sócrates Gomes Pinto, o sistema penal brasileiro:
[...] em que pese as inúmeras reformas, “continua obsoleto, ineficaz e carcomido,
sendo certo que a criminalidade dobrou nos anos 80 e triplicou nos anos 90 – e
continua a expandir – e a aumentar a cada dia a descrença nas instituições
205
BRANCHER, Leoberto Narciso. Justiça Restaurativa: a cultura de paz na prática da justiça. Disponível em:
<http://jij.tj.rs.gov.br/jij_site/docs/JUST_RESTAUR/VIS%C3O+GERAL+JR_0.HTM>. Disponível em: 05 Out.
2008.
65
democráticas, inclusive com o complicador da influência da mídia sensacionalista
mobilizando a opinião pública rumo a uma atitude fundamentalista que agrava o
quadro e produz uma sensação geral de insegurança.206
Sem dúvida, a chegada efetiva do terceiro milênio, aliada ao aprofundamento dos
problemas sociais, mormente no que pertine ao notório abismo existente entre ricos e pobres,
o que, certamente, influencia na escalada da violência urbana e, via de conseqüência, no
aumento da criminalidade, levando à necessidade premente de se repensar os caminhos do
Direito Penal.
Segundo Ranieri Mazzilli Neto:
[..] o crime, enquanto fenômeno social, no contexto brasileiro, está ligado,
umbilicalmente, à desigualdade social que é marca da sociedade brasileira. Em um
mundo marcado pela abissal distância entre pobres e ricos, em que três das pessoas
físicas mais ricas do mundo concentraram suas riquezas equivalentes ao PIB dos 48
países mais pobres, o Brasil é um exemplo dessa má distribuição de renda.207
No Brasil, a aplicação e elaboração do Direito Penal, por intermédio dos órgãos que
compõem o chamado sistema pena, não raras vezes produz efeitos devastadores sobre os
indivíduos e, por conseguinte, sobre toda a sociedade, devendo, urgentemente ser
repensado.208
Nesse sentido, ainda que timidamente, a Justiça Restaurativa começa a fazer parte dos
estudos que buscam mudar essa realidade no País. É o caso, por exemplo, do Projeto Piloto de
Justiça Restaurativa implantado no Núcleo Bandeirante, Distrito Federal.
4.1 O Projeto Piloto existente em Brasília
Fruto de uma parceria entre o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) e o Ministério da Justiça, estudos foram iniciados no Brasil visando a implantação da
Justiça Restaurativa. Além de uma Conferência Internacional sobre esse assunto, o PNUD dá
apoio técnico e financia o programa de Justiça Restaurativa que engatinha no País.209
Em Brasília, o Projeto Piloto de Justiça Restaurativa foi implementado no Juizado
Especial Criminal do Núcleo Bandeirante, com os processos sendo encaminhados à
206
PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da Justiça Restaurativa no Brasil. O impacto no sistema de
Justiça criminal. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n. 1432, 3 jun. 2007. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=9878>. Acesso em: 05 Out. 2008.
207
MAZZILLI NETO, Ranieri. Os caminhos do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, p. 12.
208
Ibidem, p. 14.
209
BRASIL. Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Disponível em:
<http://www.pnud.org.br/noticias/impressao.php?id01=1065>. Acesso em: 20 Mar. 2008.
66
Coordenação de Justiça Restaurativa após avaliação dos Juízes e Promotores para
acompanhamento pelos facilitadores disponíveis.210
Tais processos são encaminhados após a audiência preliminar, em que as partes
envolvidas são informadas e concordam em participar do Projeto de Justiça Restaurativa,
“configurando-se numa anuência mínima para posterior esclarecimento detalhado pelos
facilitadores desta concordância”.211
Trata-se de processos que contemplam crimes de menor potencial ofensivo, como, por
exemplo: brigas de vizinhos, perturbação do sossego alheio, acidente de trânsito com ou sem
vítimas, atropelamento com ou sem vítimas, agressão corporal, ameaça etc. Tais crimes, como
visto linhas atrás, têm identificadas a existência de questões subjacentes a eles pelos Juízes e
Promotores.212
Uma questão da qual não se abre mão no andamento desse “processo” é a
essencialidade da anuência das partes, “iniciando-se pela consulta ao autor do fato e posterior
consulta a vítima, como forma de evitar a revitimização, caso o autor não concorde em
participar após a anuência da vítima”.213
Não passa despercebida a necessidade de disponibilidade psíquica e emocional das
partes para que possam participar das práticas restaurativas, por possibilitarem a expressão
dos sentimentos e emoções em torno dos danos provocados pela infração penal, ou seja,
“configurar num retorno ao fato ocorrido, às emoções e vivências desencadeadas”.214
A partir da anuência das partes, o procedimento segue a seguinte linha:
a) São propostos encontros preparatórios em separado com as partes. O objetivo é
construir um comum acordo restaurativo apto a suprir as necessidades da vítima e restaurar os
danos provocados;
b) Poderão ser realizados quantos encontros preparatórios sejam necessários,
principalmente quando se percebe a necessidade de maior espaço para que as partes deixem
fluir os sentimentos que lhes incomodam, como angústias, medos, sentimentos de culpa
pertinentes à história pessoal das partes, insegurança etc.;
210
SÓCRATES, Adriana Barbosa. Práticas restaurativas como diferentes formas de lidar com o que
comparece à Justiça. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/refrma/eventos.conferencia.htm>. Acesso em: 01
Out. 2008.
211
Ibidem.
212
Ibidem.
213
Ibidem.
214
Ibidem.
67
c) Proporciona-se um ambiente seguro e tranqüilo para que tais sentimentos e
pensamentos fluam de forma livre, no sentido de serem construídas formas de restaurar as
relações afetadas;
d) Garante-se total sigilo dos conteúdos trabalhados, exceto no que tange aos crimes
adversos do evidente, contra terceiros.215
A equipe que acompanha os processos que são encaminhados ao Núcleo de Justiça
Restaurativa do Núcleo Bandeirante é composto por 21 (vinte e um) facilitadores voluntários,
que disponibilizam tempo e aspectos profissionais ao que se propõem a fazer. Todos eles
foram selecionados de acordo com suas experiências, mas que sejam voltadas à área e
capacitação em Mediação Vítima Ofensor (MVO). O objetivo é utilizar a teoria e a técnica da
mediação nas práticas restaurativas.216
A equipe tem um Coordenador de Execução do Projeto Piloto, Consultor e
Coordenador de Capacitação, Grupo de Trabalho sobre Justiça Restaurativa composto por
Juiz Coordenador do Projeto, Juízes e Promotores, Supervisor e outros colaboradores, os
quais se reúnem a cada 15 (quinze) dias, para discutirem ao assuntos referentes à
implementação desse modelo de Justiça.217
A participação dos facilitadores deve, sempre, possibilitar a neutralidade, a
imparcialidade e a confiança, além de garantir o equilíbrio cultural, social e, em especial, o
respeito mútuo que instaura a confiança imprescindível às práticas restaurativas.
4.2 Como a Justiça Restaurativa pode ajudar o sistema carcerário brasileiro
A Justiça Restaurativa busca algo mais que a simples tipificação dos fatos ilícitos. O
que ela busca está além dos fatos contidos no Processo ou nas normas legais. Trata-se de um
trabalho realizado paralelamente ao da Justiça, pertinentes aos sentimentos e emoções
provenientes da infração penal e dos envolvidos e da sociedade a que pertencem.
As partes envolvidas num processo judicial possuem algo a dizer sobre o fato
ocorrido, o que muitas vezes não o fazem por não encontrar na Justiça tradicional
espaço para isso. A Justiça Restaurativa possibilita exatamente este espaço para fala,
para expressão dos sentimentos e emoções vivenciados que serão utilizados na
215
SÓCRATES, Adriana Barbosa. Práticas restaurativas como diferentes formas de lidar com o que
comparece à Justiça. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/refrma/eventos.conferencia.htm>. Acesso em: 01
Out. 2008.
216
Ibidem.
217
Ibidem.
68
construção de um acordo restaurativo que contemple a restauração das relações
sociais e dos danos causados.218
As práticas restaurativas, como demonstrado anteriormente, buscam a paz social
levando em consideração os possíveis elos que existem entre as partes. Elas possibilitam um
encontro da parte com seu interior, numa restauração de sentimentos afetados, e, sem dúvida,
também no plano real, a possibilidade de restauração dos danos concretamente causados.
Em curta síntese, pode-se afirmar que a Justiça Restaurativa busca reparar os danos e
evitar que o delito volte a acontecer. Oposto, portanto, ao sistema de justiça criminal que, na
teoria, aplica “corretivos justos e bem proporcionados que coíbem a criminalidade, mas que,
na prática, não coíbem nem previnem e, freqüentemente, deixam as coisas piores do que
estavam”.219
O sistema penitenciário, como demonstrado, é o exemplo claro dessa falha do sistema
criminal, “lugares abomináveis e degradantes em que as pessoas são desrespeitadas e
humilhadas”.220
Não há dúvida que as prisões no Brasil funcionam como se fossem lugares onde os
elementos desviantes da sociedade têm a sua identidade criminosa afirmada pelo
encarceramento. A saída não está em construções de mais prisões, o que já demonstrou que
em nada diminuem os riscos da criminalidade e, como demonstrado, também não conseguem
ressocializar ninguém, ao contrário, apenas estigmatiza o infrator.221
Movimentos como o conhecido “Movimento de Lei e Ordem”, que preconiza várias
medidas que, segundo seus defensores, poderão se traduzir em um aumento da segurança
pública, diretamente proporcional à diminuição da criminalidade de rua, concentrando-se no
aumento de penas, preferencialmente cumpridas em regime fechado, com diminuição de
garantias individuais, materiais e processuais dos acusados, só vê a criminalidade pela ótica
da “redução” desta, ou seja, associa a questão da violência unicamente à criminalidade.222
Ora, a violência abrange caminho mais vasto e a criminalidade é apenas uma de suas
facetas, a propósito, a mais divulgada:
218
SÓCRATES, Adriana Barbosa. Práticas restaurativas como diferentes formas de lidar com o que
comparece à Justiça. Disponível em: <http://www.mj.gov.br/refrma/eventos.conferencia.htm>. Acesso em: 01
Out. 2008.
219
SCURO NETO, Pedro. Chances e entraves para a justiça restaurativa na América Latina. In: SLAKMON,
Catherine. In: SLAKMON, Catherine; PINTO, Renato Sócrates Gomes. (Orgs.). Justiça Restaurativa. Brasília:
Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas – PNUD, 2005, p. 225.
220
Ibidem.
221
Ibidem.
222
MAZZILLI NETO, Ranieri. Os caminhos do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, passim.
69
Ao apontar o endurecimento das penas, preferindo sempre a privativa de liberdade, a
ser cumprida em regime fechado, o movimento de Lei e Ordem parece esquecer-se
da realidade em que se encontra o sistema penal no nível penitenciário, onde se
executam as penas preconizadas como solução para a questão da violência. Um
rápido balanço das mortes ocorridas nos últimos seis meses no interior dos
estabelecimentos prisionais demonstra o quão ilusória é a saída do
encarceramento.223 (negrito nosso)
Contrárias a movimentos como o citado, existem políticas criminais diversas que
adotam a minimalização do direito penal como componente de suas diretrizes, em maior ou
menor grau. A título de exemplo, cita-se o “direito penal mínimo”, assim entendido:
[...] o direito penal mínimo pode ser considerado uma escola, um movimento de
grande importância no estudo da ciência penal e nos seus rumos. Modernamente, há
uma quase unanimidade, entre os estudiosos, de que o Direito Penal só deve ser
acionado em última instância, em relação a fatos graves, geradores de danos
concretos ao indivíduo ou à coletividade. E, mais, a pena de prisão deve deixar de
ser aplicada, sempre que possível. Assim, o direito penal mínimo seria o movimento
pela descriminalização de condutas que não justificam a mobilização do instrumento
extremo de controle social – o próprio direito penal -, bem como um movimento que
busca alternativas à pena de prisão [...].224
Já está sendo sedimentada a idéia de que o sistema penal, em sua essência, sempre
afrontará direitos humanos. O atual sistema penal, por exemplo, tem como marca registrada a
violação de garantias.
A Justiça Restaurativa ocupa um lugar diferente de todo o exposto, mas, sem dúvida,
liga-se à idéia de que a prisão não deve ser o primeiro recurso, mas sim o último, e apenas
para crimes violentos.
Ela não se posiciona, portanto, ao lado dos que defendem a abolição da pena. Também
não abandona a idéia de que os ofensores da lei devem ser punidos, o que é inevitável, mas
deve-se evitar o predomínio do paradigma retributivo.
O processo penal, valendo-se da lente retributiva, “não consegue atender a muitas das
necessidades da vítima e do ofensor. O processo negligencia as vítimas enquanto fracassa no
intento declarado de responsabilizar os ofensores e coibir o crime”.225
Observa Howard Zehr:
Nesse caso, duas lentes bem diferentes poderiam ser descritas da seguinte forma:
Justiça Retributiva
O crime é uma violação contra o Estado, definida pela desobediência à lei e pela
culpa. A justiça determina a culpa e inflige dor no contexto de uma disputa entre
ofensor e Estado, regida por regras sistemáticas.
Justiça Restaurativa
223
MAZZILLI NETO, Ranieri. Os caminhos do sistema penal. Rio de Janeiro: Revan, 2007, 27.
Ibidem, p. 57.
225
ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Justiça Restaurativa. Trad, de
Tânia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2008, p. 168.
224
70
O crime é uma violação de pessoas e relacionamentos. Ele cria a obrigação de
corrigir os erros. A justiça envolve a vítima, o ofensor e a comunidade na busca de
soluções que promovam reparação, reconciliação e segurança.226 (negrito nosso)
Se as diversas tentativas de se conter a criminalidade só terminam por colocar mais e
mais pessoas nas cadeias, numa clara demonstração de que agravar penas e enclausurar seres
humanos não tem dado certo ao longo de toda a história da humanidade, mister se faz que
novos caminhos sejam trilhados.
Nesse sentido, a Justiça Restaurativa, ainda que a longo prazo, poderá ajudar a
solucionar o grave problema carcerário existente no País.
Esse modelo de Justiça não pretende substituir o atual modelo penal, ela é uma
proposta alternativa que tende a superar a pena privativa de liberdade como única solução
diante do ilícito. Restaurando a paz jurídica, reparando danos e conciliando ofensor-vítima,
pode-se diminuir o número de pessoas condenadas a esse tipo de pena, quebrando-se,
portanto, o paradigma punitivo que, repita-se, nunca se mostrou eficaz, mas sim, violador de
direitos de pessoas, principalmente do direito à dignidade.
226
ZEHR, Howard. Trocando as lentes: um novo foco sobre o crime e a justiça. Justiça Restaurativa. Trad, de
Tânia Van Acker. São Paulo: Palas Athenas, 2008, p. 170.
71
CONCLUSÃO
Esse trabalho teve como objetivo realizar um estudo do modelo de Justiça
Restaurativa, no sentido de verificar se a adoção desse modelo pode contribuir para minimizar
os problemas do sistema prisional brasileiro, notoriamente falido.
A conclusão que se propõe foge dos modelos tradicionais de trabalhos acadêmicos,
portanto, não se recuperará, nessas linhas, conteúdos amplamente debatidos no
desenvolvimento do trabalho. A preocupação cingir-se-á em apontar a necessidade premente
de se buscar novos caminhos para o sistema penal.
Inicia-se afirmando que a pena, cuja origem é voltada para a vingança, apesar de, ao
longo do tempo, ter sofrido inúmeras alterações legais, não se desprendeu do aspecto
punitivo. E, mesmo que na teoria baseie-se em princípios constitucionais importantíssimos,
não se respeita o principal deles, o princípio da dignidade da pessoa humana.
As incontáveis situações em que a pena, da forma como executada, não se mostra apta
a ressocializar o infrator, menos ainda para diminuir a escalada da violência e a injustiça
social. Indo mais além, mostra que o direito penal não tem sido suficiente para fornecer a
necessária proteção aos bens jurídicos que tutela.
A pena privativa de liberdade não pode mais ser talhada sob as bases da punição, da
retribuição, da intimidação, do “mal necessário”. Não obstante a necessidade de se punir o
infrator da lei penal, a pena precisa ser transformada positivamente em garantia dos direitos
humanos para as partes envolvidas, sem deixar de lado aspectos primordiais para se garantir a
dignidade do apenado, como a educação, a assistência e o respeito.
O direito penal tradicional (ou clássico) precisa ser reformulado. Não só os penalistas
como a própria sociedade já vem se dando conta de que outros caminhos precisam ser
experimentados. Afinal, como demonstrado nesse trabalho, além da falência da prisão,
também fracassaram as penas alternativas.
Confinar pessoas ao cárcere e suas mazelas só aumenta a população carcerária,
deixando claro que não mais é possível conviver com uma política criminal reacionária e
encarceradora.
Nesse contexto é que se apresentou a Justiça Restaurativa, baseada fundamentalmente
no consenso dos protagonistas do conflito em chegarem a uma solução, mediante iniciativas
de solidariedade, de diálogo e de reconciliação.
72
Quando se fala em Justiça Restaurativa, não se fala em pena, mas em se obter a justiça
pela reparação do dano causado pelo crime. Esse modelo de justiça apóia-se no princípio de
redefinição do crime, que deixa de ser entendido apenas como uma violação contra o Estado
ou uma transgressão da norma jurídica, para ser entendido como um ato que acarreta
conseqüências e danos às pessoas e às relações (vítima e infrator).
As necessidades da vítima, portanto, tornam-se prioritárias e, no que tange, ao infrator,
a responsabilidade pelo ato ilícito cometido é buscada de maneira positiva. Para tanto, como
visto, envolve-se a família, a comunidade e outras pessoas relacionadas ao fato.
Muda-se, portanto, a linguagem. Cria-se a oportunidade de fortalecer a discussão num
ambiente político que esteja verdadeiramente buscando pôr em foco as causas do crime e não
apenas buscar respostas de como conter a criminalidade mediante a severidade ou
endurecimento de punições. Busca-se, portanto, as causas do crime.
Essa inversão de objetos – visto que o objeto da Justiça Restaurativa não é o crime em
si, nem a reação social e nem a pessoa do criminoso, focos tradicionais da intervenção penal –
leva à busca das conseqüências do crime e das relações sociais por ele afetadas. Significa
dizer que, para a Justiça Restaurativa, o crime é um ato que causa um dano a alguém ou à
comunidade e esse dano não precisa ser necessariamente patrimonial. Se o crime exige a
pena, espera-se, com a Justiça Restaurativa, que essa pena seja a justiça e essa justiça não
precisa ser, obrigatoriamente, o aprisionamento do infrator.
Por certo, espera-se que esse modelo seja implementado no Brasil. Por certo, sabe-se
que não será fácil a transposição de idéias, vez que, deixa-se claro, a Justiça Restaurativa não
busca ocupar o lugar do sistema penal atual, mas sim conviver com ele, ou seja, existem
crimes que a Justiça Restaurativa não poderá atuar, mas em todos que puder, o resultado que
se espera é que o infrator não seja “mais um” na população carcerária, mais um que não se
ressocializará e nem se responsabilizará pelos danos cometidos.
Assim entendido, esse modelo poderá, ainda que a longo prazo, contribuir para que se
diminuam as mazelas do cárcere, minimizando esse problema que não é apenas do Estado,
mas de toda a sociedade, porque envolve a vida de seres humanos, vidas estas que precisam
ter preservadas sua dignidade, o que não ocorre com o sistema prisional existente.
73
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79
ANEXO I
37ª Sessão Plenária
24 de Julho de 2002
Resolução 2002/12
O Conselho Econômico e Social,
Reportando-se à sua Resolução 1999/26, de 28 de julho de 1999, intitulada
“Desenvolvimento e Implementação de Medidas de Mediação e Justiça Restaurativa na
Justiça Criminal”, na qual o Conselho requisitou à Comissão de Prevenção do Crime e de
Justiça Criminal que considere a desejável formulação de padrões das Nações Unidas no
campo da mediação e da justiça restaurativa,
Reportando-se, também, à sua resolução 2000/14, de 27 de julho de 2000, intitulada
“Princípios Básicos para utilização de Programas Restaurativos em Matérias Criminais”no
qual se requisitou ao Secretário-Geral que buscasse pronunciamentos dos Estados-Membros e
organizações intergovernamentais e não-governamentais competentes, assim como de
institutos da rede das Nações Unidas de Prevenção do Crime e de Programa de Justiça
Criminal, sobre a desejabilidade e os meios para se estabelecer princípios comuns na
utilização de programas de justiça restaurativa em matéria criminal, incluindo-se a
oportunidade de se desenvolver um novo instrumento com essa finalidade,
Levando em conta a existência de compromissos internacionais a respeito das vítimas,
particularmente a Declaração sobre Princípios Básicos de Justiça para Vítimas de Crimes e
Abuso de Poder,
Considerando as notas das discussões sobre justiça restaurativa durante o Décimo Congresso
sobre Prevenção do Crime e do Tratamento de Ofensores, na agenda intitulada “Ofensores e
Vítimas – Responsabilidade e Justiça no Processo Judicial,
Tomando nota da Resolução da Resolução da Assembléia-Geral n. 56/261, de 31 de janeiro
de 2002, intitulada “Planejamento das Ações para a Implementação da Declaração de Viena
sobre Crime e Justiça – Respondendo aos Desafios do Século Vinte e um”, particularmente as
ações referentes à justiça restaurativa, de modo a se cumprir os compromissos assumidos no
parágrafo 28, da Declaração de Viena,
Anotando, com louvor, o trabalho do Grupo de Especialistas em Justiça Restaurativa no
encontro ocorrido em Ottawa, de 29 de outubro a 1º de novembro de 2001, Registrando o
relatório do Secretário-Geral sobre justiça restaurativa e o relatório do Grupo de Especialistas
em Justiça Restaurativa,
1. Toma nota dos princípios básicos para a utilização de programas de justiça restaurativas em
matéria criminal anexados à presente resolução;
2. Encoraja os Estados Membros a inspirar-se nos princípios básicos para programas de
justiça restaurativa em matéria criminal no desenvolvimento e implementação de programas
de justiça restaurativa na área criminal;
80
3. Solicita ao Secretário-Geral que assegure a mais ampla disseminação dos princípios básicos
para programas de justiça restaurativa em matéria criminal entre os Estados Membros, a rede
de institutos das Nações Unidas para a prevenção do crime e programas de justiça criminal e
outras organizações internacionais regionais e organizações não-governamentais;
4. Concita os Estados Membros que tenham adotado práticas de justiça restaurativa que
difundam informações e sobre tais práticas e as disponibilizem aos outros Estados que o
requeiram;
5. Concita também os Estados Membros que se apóiem mutuamente no desenvolvimento e
implementação de pesquisa, capacitação e outros programas, assim como em atividades para
estimular a discussão e o intercâmbio de experiências;
6. Concita, ainda, os Estados Membros a se disporem a prover, em caráter voluntário,
assistência técnica aos países em desenvolvimento e com economias em transição, se o
solicitarem, para os apoiarem no desenvolvimento de programas de justiça restaurativa.
Anexo
Princípios Básicos para a utilização de Programas de Justiça Restaurativa em Matéria
Criminal
PREÂMBULO
Considerando que tem havido um significativo aumento de iniciativas com justiça
restaurativa em todo o mundo.
Reconhecendo que tais iniciativas geralmente se inspiram em formas tradicionais e indígenas
de justiça que vêem, fundamentalmente, o crime como danoso às pessoas,
Enfatizando que a justiça restaurativa evolui como uma resposta ao crime que respeita a
dignidade e a igualdade das pessoas, constrói o entendimento e promove harmonia social
mediante a restauração das vítimas, ofensores e comunidades,
Focando o fato de que essa abordagem permite que as pessoas afetadas pelo crime possam
compartilhar abertamente seus sentimentos e experiências, bem assim seus desejos sobre
como atender suas necessidades,
Percebendo que essa abordagem propicia uma oportunidade para as vítimas obterem
reparação, se sentirem mais seguras e poderem superar o problema, permite os ofensores
compreenderem as causas e conseqüências de seu comportamento e assumir responsabilidade
de forma efetiva, bem assim possibilita à comunidade a compreensão das causas subjacentes
do crime, para se promover o bem estar comunitário e a prevenção da criminalidade,
Observando que a justiça restaurativa enseja uma variedade de medidas flexíveis e que se
adaptam aos sistemas de justiça criminal e que complementam esses sistemas, tendo em vista
os contextos jurídicos, sociais e culturais respectivos,
81
Reconhecendo que a utilização da justiça restaurativa não prejudica o direito público
subjetivo dos Estados de processar presumíveis ofensores
I – Terminologia
1. Programa de Justiça Restaurativa significa qualquer programa que use processos
restaurativos e objetive atingir resultados restaurativos;
2. Processo restaurativo significa qualquer processo no qual a vítima e o ofensor, e, quando
apropriado, quaisquer outros indivíduos ou membros da comunidade afetados por um crime,
participam ativamente na resolução das questões oriundas do crime, geralmente com a ajuda
de um facilitador. Os processos restaurativos podem incluir a mediação, a conciliação, a
reunião familiar ou comunitária (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles);
3. Resultado restaurativo significa um acordo construído no processo restaurativo.
Resultados restaurativos incluem respostas e programas tais como reparação, restituição e
serviço comunitário, objetivando atender as necessidades individuais e coletivas e
responsabilidades das partes, bem assim promover a reintegração da vítima e do ofensor.
4. Partes significa a vítima, o ofensor e quaisquer outros indivíduos ou membros da
comunidade afetados por um crime que podem estar envolvidos em um processo restaurativo.
5. Facilitador significa uma pessoa cujo papel é facilitar, de maneira justa e imparcial, a
participação das pessoas afetadas e envolvidas num processo restaurativo.
II. Utilização de Programas de Justiça Restaurativa
6. Os programas de justiça restaurativa podem ser usados em qualquer estágio do sistema de
justiça criminal, de acordo com a legislação nacional.
7. Processos restaurativos devem ser utilizados somente quando houver prova suficiente de
autoria para denunciar o ofensor e com o consentimento livre e voluntário da vítima e do
ofensor. A vítima e o ofensor devem poder revogar esse consentimento a qualquer momento,
durante o processo. Os acordos só poderão ser pactuados voluntariamente e devem conter
somente obrigações razoáveis e proporcionais.
8. A vítima e o ofensor devem normalmente concordar sobre os fatos essenciais do caso sendo
isso um dos fundamentos do processo restaurativo. A participação do ofensor não deverá ser
usada como prova de admissão de culpa em processo judicial ulterior.
9. As disparidades que impliquem em desequilíbrios, assim como as diferenças culturais entre
as partes, devem ser levadas em consideração ao se derivar e conduzir um caso no processo
restaurativo.
10. A segurança das partes deverá ser considerada ao se derivar qualquer caso ao processo
restaurativo e durante sua condução.
11. Quando não for indicado ou possível o processo restaurativo, o caso deve ser
encaminhado às autoridades do sistema de justiça criminal para a prestação jurisdicional sem
delonga. Em tais casos, deverão ainda assim as autoridades estimular o ofensor a
responsabilizar-se frente à vítima e à comunidade e apoiar a reintegração da vítima e do
ofensor à comunidade.
III - Operação dos Programas Restaurativos
12. Os Estados membros devem estudar o estabelecimento de diretrizes e padrões, na
legislação, quando necessário, que regulem a adoção de programas de justiça restaurativa.
Tais diretrizes e padrões devem observar os princípios básicos estabelecidos no presente
instrumento e devem incluir, entre outros:
82
a) As condições para encaminhamento de casos para os programas de justiça
restaurativos;
b) O procedimento posterior ao processo restaurativo;
c) A qualificação, o treinamento e a avaliação dos facilitadores;
d) O gerenciamento dos programas de justiça restaurativa;
e) Padrões de competência e códigos de conduta regulamentando a operação dos
programas de justiça restaurativa.
13. As garantias processuais fundamentais que assegurem tratamento justo ao ofensor e à
vítima devem ser aplicadas aos programas de justiça restaurativa e particularmente aos
processos restaurativos;
a) Em conformidade com o Direito nacional, a vítima e o ofensor devem ter o direito à
assistência jurídica sobre o processo restaurativo e, quando necessário, tradução e/ou
interpretação. Menores deverão, além disso, ter a assistência dos pais ou responsáveis legais.
b) Antes de concordarem em participar do processo restaurativo, as partes deverão ser
plenamente informadas sobre seus direitos, a natureza do processo e as possíveis
conseqüências de sua decisão;
c) Nem a vítima nem o ofensor deverão ser coagidos ou induzidos por meios ilícitos a
participar do processo restaurativo ou a aceitar os resultados do processo.
14. As discussões no procedimento restaurativo não conduzidas publicamente devem ser
confidenciais, e não devem ser divulgadas, exceto se consentirem as partes ou se determinado
pela legislação nacional.
15. Os resultados dos acordos oriundos de programas de justiça restaurativa deverão, quando
apropriado, ser judicialmente supervisionados ou incorporados às decisões ou julgamentos, de
modo a que tenham o mesmo status de qualquer decisão ou julgamento judicial, precluindo
ulterior ação penal em relação aos mesmos fatos.
16. Quando não houver acordo entre as partes, o caso deverá retornar ao procedimento
convencional da justiça criminal e ser decidido sem delonga. O insucesso do processo
restaurativo não poderá, por si, usado no processo criminal subseqüente.
17. A não implementação do acordo feito no processo restaurativo deve ensejar o retorno do
caso ao programa restaurativo, ou, se assim dispuser a lei nacional, ao sistema formal de
justiça criminal para que se decida, sem demora, a respeito. A não implementação de um
acordo extrajudicial não deverá ser usado como justificativa para uma pena mais severa no
processo criminal subseqüente.
18. Os facilitadores devem atuar de forma imparcial, com o devido respeito à dignidade das
partes. Nessa função, os facilitadores devem assegurar o respeito mútuo entre as partes e
capacita-las a encontrar a solução cabível entre elas.
19. Os facilitadores devem ter uma boa compreensão das culturas regionais e das
comunidades e, sempre que possível, serem capacitados antes de assumir a função.
IV. Desenvolvimento Contínuo de Programas de Justiça Restaurativa
20. Os Estados Membros devem buscar a formulação de estratégias e políticas nacionais
objetivando o desenvolvimento da justiça restaurativa e a promoção de uma cultura favorável
ao uso da justiça restaurativa pelas autoridades de segurança e das autoridades judiciais e
sociais, bem assim em nível das comunidades locais.
21. Deve haver consulta regular entre as autoridades do sistema de justiça criminal e
administradores dos programas de justiça restaurativa para se desenvolver um entendimento
comum e para ampliar a efetividade dos procedimentos e resultados restaurativos, de modo a
aumentar a utilização dos programas restaurativos, bem assim para explorar os caminhos para
a incorporação das práticas restaurativas na atuação da justiça criminal.
83
22. Os Estados Membros, em adequada cooperação com a sociedade civil, deve promover a
pesquisa e a monitoração dos programas restaurativos para avaliar o alcance que eles tem em
termos de resultados restaurativos, de como eles servem como um complemento ou uma
alternativa ao processo criminal convencional, e se proporcionam resultados positivos para
todas as partes. Os procedimentos restaurativos podem ser modificados na sua forma concreta
periodicamente. Os Estados Membros devem por isso estimular avaliações e modificações de
tais programas. Os resultados das pesquisas e avaliações devem orientar o aperfeiçoamento do
gerenciamento e desenvolvimento dos programas.
V. Cláusula de Ressalva
23. Nada que conste desses princípios básicos deverá afetar quaisquer direitos de um ofensor
ou uma vítima que tenham sido estabelecidos no Direito Nacional e Internacional.
Tradução Livre por Renato Sócrates Gomes Pinto
84
ANEXO II
CÂMARA DOS DEPUTADOS
PROJETO DE LEI
Nº , DE 2006
(Da Comissão de Legislação Participativa)
SUG nº 099/2005
Propõe alterações no Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, do Decreto-Lei nº
3.689, de 3 de outubro de 1941, e da Lei nº 9.099, de 26 de setembro de 1995, para facultar o
uso de procedimentos de Justiça Restaurativa no sistema de justiça criminal, em casos de
crimes e contravenções penais.
Art. 1° - Esta lei regula o uso facultativo e complementar de procedimentos de justiça
restaurativa no sistema de justiça criminal, em casos de crimes e contravenções penais.
Art. 2° - Considera-se procedimento de justiça restaurativa o conjunto de práticas e atos
conduzidos por facilitadores, compreendendo encontros entre a vítima e o autor do fato
delituoso e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados, que
participarão coletiva e ativamente na resolução dos problemas causados pelo crime ou pela
contravenção, num ambiente estruturado denominado núcleo de justiça restaurativa.
Art. 3° - O acordo restaurativo estabelecerá as obrigações assumidas pelas partes, objetivando
suprir as necessidades individuais e coletivas das pessoas desenvolvidas e afetadas pelo crime
ou pela contravenção.
Art. 4° - Quando presentes os requisitos do procedimento restaurativo, o juiz, com a anuência
do Ministério Público, poderá enviar peças de informação, termos circunstanciados, inquéritos
policiais ou autos de ação penal ao núcleo de justiça restaurativa.
Art. 5° - O núcleo de justiça restaurativa funcionará em local apropriado e com estrutura
adequada, contando com recursos materiais e humanos para funcionamento eficiente.
Art. 6° - O núcleo de justiça restaurativa será composto por uma coordenação administrativa,
uma coordenação técnica interdisciplinar e uma equipe de facilitadores, que deverão atuar de
forma cooperativa e integrada.
§ 1º. À coordenação administrativa compete o gerenciamento do núcleo, apoiando as
atividades da coordenação técnica interdisciplinar.
§ 2º. - À coordenação técnica interdisciplinar, que será integrada por profissionais da área de
psicologia e serviço social, compete promover a seleção, a capacitação e a avaliação dos
facilitadores, bem como a supervisão dos procedimentos restaurativos.
§ 3º – Aos facilitadores, preferencialmente profissionais das áreas de psicologia e serviço
social, especialmente capacitados para essa função, cumpre preparar e conduzir o
procedimento restaurativo.
Art. 7º – Os atos do procedimento restaurativo compreendem:
a)consultas às partes sobre se querem, voluntariamente, participar do procedimento;
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b)entrevistas preparatórias com as partes, separadamente;
c)encontros restaurativos objetivando a resolução dos conflitos que cercam o delito.
Art. 8º – O procedimento restaurativo abrange técnicas de mediação pautadas nos princípios
restaurativos.
Art. 9º – Nos procedimentos restaurativos deverão ser observados os princípios da
voluntariedade, da dignidade humana, da imparcialidade, da razoabilidade, da
proporcionalidade, da cooperação, da informalidade, da confidencialidade, da
interdisciplinariedade, da responsabilidade, do mútuo respeito e da boa-fé.
Parágrafo Ùnico - O princípio da confidencialidade visa proteger a intimidade e a vida
privada das partes.
Art. 10 – Os programas e os procedimentos restaurativos deverão constituir-se com o apoio de
rede social de assistência para encaminhamento das partes,sempre que for necessário, para
viabilizar a reintegração social de todos os envolvidos.
Art. 11 - É acrescentado ao artigo 107, do Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, o
inciso X, com a seguinte redação:
X – pelo cumprimento efetivo de acordo restaurativo.
Art. 12 – É acrescentado ao artigo 117, do Decreto-Lei nº 2848, de 7 de dezembro de 1940, o
inciso VII, com a seguinte redação:
VII – pela homologação do acordo restaurativo até o seu efetivo cumprimento.
Art. 13 - É acrescentado ao artigo 10, do Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, o
parágrafo quarto, com a seguinte redação:
§ 4º - A autoridade policial poderá sugerir, no relatório do inquérito, o encaminhamento das
partes ao procedimento restaurativo.
Art. 14 - São acrescentados ao artigo 24, do Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, os
parágrafos terceiro e quarto, com a seguinte redação:
§ 3º - Poderá o juiz, com a anuência do Ministério Público, encaminhar os autos de inquérito
policial a núcleos de justiça restaurativa, quando vitima e infrator manifestarem,
voluntariamente, a intenção de se submeterem ao procedimento restaurativo.
§ 4º – Poderá o Ministério Público deixar de propor ação penal enquanto estiver em curso
procedimento restaurativo.
Art. 15 - Fica introduzido o artigo 93 A no Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, com
a seguinte redação:
Art. 93 A - O curso da ação penal poderá ser também suspenso quando recomendável o uso
de práticas restaurativas.
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Art. 16 - Fica introduzido o Capítulo VIII, com os artigos 556, 557, 558, 559, 560, 561 e 562,
no Decreto-lei n. 3.689, de 3 de outubro de 1941, com a seguinte redação:
CAPÍTULO VIII
DOPROCESSO
RESTAURATIVO
Art. 556 - Nos casos em que a personalidade e os antecedentes do agente, bem como as
circunstâncias e conseqüências do crime ou da contravenção penal, recomendarem o uso de
práticas restaurativas, poderá o juiz, com a anuência do Ministério Público, encaminhar os
autos a núcleos de justiça restaurativa, para propiciar às partes a faculdade de optarem,
voluntariamente, pelo procedimento restaurativo.
Art. 557 – Os núcleos de justiça restaurativa serão integrados por facilitadores, incumbindoIhes avaliar os casos, informar as partes de forma clara e precisa sobre o procedimento e
utilizar as técnicas de mediação que forem necessárias para a resolução do conflito.
Art. 558 - O procedimento restaurativo consiste no encontro entre a vítima e o autor do fato e,
quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados, que participarão
coletiva e ativamente na resolução dos problemas causados pelo crime ou contravenção, com
auxílio de facilitadores.
Art. 559 - Havendo acordo e deliberação sobre um plano restaurativo, incumbe aos
facilitadores, juntamente com os participantes, reduzi-lo a termo, fazendo dele constar as
responsabilidades assumidas e os programas restaurativos, tais como reparação, restituição e
prestação de serviços comunitários, objetivando suprir as necessidades individuais e coletivas
das partes, especialmente a reintegração da vítima e do autor do fato.
Art. 560 – Enquanto não for homologado pelo juiz o acordo restaurativo, as partes poderão
desistir do processo restaurativo. Em caso de desistência ou descumprimento do acordo, o juiz
julgará insubsistente o procedimento restaurativo e o acordo dele resultante, retornando o
processo ao seu curso original, na forma da lei processual.
Art. 561 - O facilitador poderá determinar a imediata suspensão do procedimento restaurativo
quando verificada a impossibilidade de prosseguimento.
Art. 562 -O acordo restaurativo deverá necessariamente servir de base para a decisão judicial
final.
Parágrafo Único – Poderá o Juiz deixar de homologar acordo restaurativo firmado sem a
observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade ou que deixe de atender às
necessidades individuais ou coletivas dos envolvidos.
Art. 17 - Fica alterado o artigo 62 , da Lei 9.099, de 26 de setembro de 1995, que passa a
vigorar com a seguinte redação:
Art. 62 - O processo orientar-se-á pelos critérios da oralidade, simplicidade, informalidade,
economia processual e celeridade, buscando-se, sempre que possível, a conciliação, a
transação e o uso de práticas restaurativas.
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Art. 18 – É acrescentado o parágrafo segundo ao artigo 69, da Lei 9.099, de 26 de setembro
de 1995, com a seguinte redação:
§ 2º – A autoridade policial poderá sugerir, no termo circunstanciado, o encaminhamento dos
autos para procedimento restaurativo.
Art. 19 – É acrescentado o parágrafo sétimo ao artigo 76, da Lei 9.099, de 26 de setembro de
1995, com o seguinte teor:
§ 7º – Em qualquer fase do procedimento de que trata esta Lei o Ministério Público poderá
oficiar pelo encaminhamento das partes ao núcleo de justiça restaurativa.
Art. 20 – Esta lei entrará em vigor um ano após a sua publicação.
Sala das Sessões, em
de
Deputado GERALDO THADEU
Presidente
de 2006.
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Gilmar dos Reis Silva - Universidade Católica de Brasília