Aprendendo a brincar com parceiros mais experientes1 Suzana Marcolino/Programa de Pós Graduação em Educação–Unesp/Marília. Suely Amaral Mello/Programa de Pós Graduação em Educação–Unesp/Marília. Maria Assunção Folque/Professora Auxiliar do Departamento de Pedagogia e Educação– Universidade de Évora, Portugal. Financiamento: CAPES. 1 Introdução Pesquisadores tem se interessado em investigar como determinadas condições e circunstâncias criadas podem afetar a brincadeira. Verba (1993) e Mello (1994) pesquisaram o uso que crianças fazem de objetos sem significação lúdica específica. Outros estudiosos discutem como questões de gênero influem na brincadeira (KISHIMOTO e ONO, 2008) e também os conflitos entre as crianças no momento em que brincam (SAGER, SPERB, 1998). Porém, pesquisas que analisem como com quem se brinca pode ser uma condição que afeta a brincadeira, enriquecendo-a e potencializando processos em desenvolvimento, ainda precisam ser desenvolvidas. Para os autores da Teoria Histórico-cultural do desenvolvimento humano (VIGOTSKI, 2008; LEONTIEV, 2012; ELKONIN, 1987) a brincadeira é no período pré-escolar a atividade guia, pois organiza e potencializa o desenvolvimento de processos psicológicos. Pesquisas realizadas por Elkonin (2009) e colaboradores desvelaram o desenvolvimento ontogenético da brincadeira infantil. Identificaram que na idade pré-escolar2 a brincadeira atinge o auge de seu desenvolvimento, quando crianças criam uma situação imaginária para representar as relações entre as pessoas. Por isso, o autor denominou esse tipo de brincadeira como de papéis. Segundo Záporózhets (1987), há em cada etapa do desenvolvimento aprendizagens fundamentais que provocam “mudanças essenciais da atividade infantil em seu conjunto” (ZAPORÓZHETS, 1987, p. 235/236). Chaiklin (2011), sobre o conceito vigotskiano de zona de desenvolvimento próximo, considera que os processos psicológicos centrais de cada idade apenas se desenvolvem se a criança se envolve nas ações e relações que os movimentem, e tais ações e relações estão contidas na atividade-guia. A partir dessas contribuições, concluímos que as ações e relações contidas na atividade guia criam as possibilidades para que as aprendizagens fundamentais possam 1 O presente texto é um recorte de pesquisa de doutoramento que objetivou investigar qual a natureza da mediação pedagógica propulsora do desenvolvimento da brincadeira de papéis sociais. 2 Período dos três aos seis anos, segundo a Psicologia Histórico-Cultural. acontecer e arrastar o desenvolvimento de processos psicológicos. Outrossim, pode-se dizer que a própria atividade se desenvolve em virtude das transformações dos processos psicológicos. Para Elkonin (2009), um dos aspectos que torna a brincadeira na Escola de Educação Infantil mais rica é acontecer no coletivo de crianças pelas possibilidades inesgotáveis para constituir e reconstituir os mais diversos vínculos entre os personagens de uma situação imaginária. Cabe conhecer, nos grupos de crianças com idades diferentes, como crianças mais velhas podem afetar a brincadeira das mais novas. Perguntamos: em uma circunstância em que crianças mais novas brincam com crianças mais velhas, as primeiras adquirem as aprendizagens fundamentais da brincadeira de papéis sociais que movimentam os processos psíquicos e da personalidade em desenvolvimento? 2 Procedimentos Metodológicos 2.1 Local e participantes da pesquisa A pesquisa foi realizada em uma sala de Educação Infantil na cidade de Évora, Portugal3, que adota a heterogeneidade em relação à idade das crianças: uma mesma turma recebe crianças entre dois e seis anos de idade. No momento em que coletamos os dados - setembro de 2012 a janeiro de 2013 - a turma era composta de dezessete crianças de ambos os sexos com idades entre dois a cinco anos. A educadora da turma é membro do Movimento Pedagógico da Escola Moderna Portuguesa (MEM). O MEM propõe as seguintes áreas, nas quais ocorrem as atividades do cotidiano escolar: biblioteca e centro de documentação; atelier de artes plásticas; laboratório das ciências e da matemática; oficina de escrita e reprodução; área da dramatização; área das construções e carpintaria e, por fim, uma área polivalente utilizada para reuniões do grupo e apoio a projetos diversos. No início da manhã, as crianças, após planejaram o dia em conjunto com o professor, optam por desenvolver atividades em uma daquelas áreas. Na área da dramatização, há uma condição especial criada para que se desenvolva a brincadeira de papéis. Na sala que realizamos a pesquisa, o aspecto geral da área de dramatização é de uma “casa de brinquedo”, pois há brinquedos temáticos de “casa” em tamanho aumentado: um armário de cozinha com microondas e pia; uma mesa com banquetas; um carrinho de chá e uma cama. Brinquedos de outros temas, como relativos a 3 O trabalho de pesquisa em Portugal foi realizado graças concessão de Bolsa de Doutorado Sanduíche CAPES/Processo bex 9265-12-0. hospital e cabeleireiro, por exemplo, estão acessíveis em um gaveteiro no canto esquerdo da área. Como nas outras áreas, há um limite de quatro crianças por vez. Esse limite permite que as crianças tenham condições adequadas no que diz respeito a se movimentarem no espaço físico da área. Tal dinâmica faz com que o grupo de crianças mude seus integrantes durante a brincadeira: ao sair uma criança, outra pode entrar. 2.2 Procedimento para a coleta de dados e análise Realizamos dez sessões de observação da área de dramatização. As sessões duravam o tempo em que as crianças permaneciam na área, sendo que nenhuma ultrapassou a uma hora e vinte minutos. Todas as sessões foram filmadas e a pesquisadora realizou notas em diário de campo como técnica de registro auxiliar. Elkonin (2009) concluiu que a interpretação do papel é aspecto caracteristicamente central dessa forma de brincadeira. O papel é a unidade de análise da brincadeira. Segundo o autor, nele “(...) estão representados em união indissolúvel a motivação afetiva e o aspecto técnico-operacional da atividade.” (ELKONIN, 2009, p.29). A definição da unidade possui importância prática, pois direciona o olhar do pesquisador para as transformações do objeto de pesquisa que devem ser descritas e debatidas (NASCIMENTO, 2010). Adotamos o papel e suas ações como unidade de análise, direcionando nosso olhar para as transformações ocorridas na interpretação dos papéis das crianças mais novas quando brincam com crianças mais velhas. A partir da transcrição das filmagens construímos quarenta cenas de brincadeiras de papéis. Chamamos de cenas de brincadeira de papéis, a dramatização de papéis de algum tema especifico. Assim, por exemplo, se um grupo de crianças, brinca de hospital temos uma cena; se no decorrer da brincadeira decidem brincar de escola, interrompendo o tema hospital, temos outra cena. Os critérios utilizados para definir uma cena foram: (i) a definição de papéis pelas crianças; (ii) a execução de ações lúdicas com objetos verdadeiros ou substitutos, como por exemplo, representar que lava um prato de brinquedo ou fazer um tubo de shampoo como sanduíche e representar que come; (iii) interpretação das relações sociais de um papel, como cuidar do filho, oferecendo o lanche e depois levando-o para a escola. A existência de um dos critérios foi considerada suficiente para construir uma cena. Isso porque observamos a brincadeira de papéis em fases diferentes de desenvolvimento. As crianças podem interpretar papéis através de ações lúdicas com brinquedos ou objetos, sem definir papéis. A definição de papéis ocorre em um nível mais desenvolvido da brincadeira, quando a criança já conhece as ações, as individualiza e depois as generaliza para interpretar o papel. Dessa forma, definir papéis é um marco no desenvolvimento da brincadeira, mesmo que depois não se siga de forma coerente a interpretação deles. Já nas fases mais desenvolvidas da brincadeira, papéis são adotados conforme uma temática e interpretados de acordo com as suas regras internas. Com as cenas construídas, identificamos as que as crianças da mesma idade brincam juntas e, aquelas que crianças de idades diferentes interagem com intuito de contrastá-las para a análise. Organizamos a discussão dos resultados em dois eixos temáticos: 1) como as crianças assumem os papéis; 2) como representam (o conteúdo) do papel. 3 Resultados e discussão 3.1 Definição dos papéis Segundo Elkonin (1987a), a criança assume papéis quando capaz de individualizar traços característicos de uma pessoa. Ocorre que as crianças não representam uma pessoa específica, mas fundamentalmente a função social de alguém. Então, se por um lado a criança extrai traços individuais de conduta, também os generaliza: todo médico examina o paciente, ouvindo o coração, dando injeção etc.. A cena abaixo apresenta crianças de dois anos brincando juntas. Elas não definem papéis; entram na área de dramatização e realizam ações com os brinquedos. Participantes: Rafael (2 anos), Inês (2 anos) Inês faz que serve chá nas xícaras. Rafael joga objetos no chão. Inês vai até o armário. Abre o forno. Rafael aproxima-se do forno. Inês aproxima-se da mesa. Rafael mexe no forno. (...) Rafael põe pizzas de brinquedo no forno. Tira as pizzas do forno. Pega um prato dentro do microondas. Põe na mesa. Inês começa a tirar pratos do armário. (...) Os dois abrem e fecham as portas dos armários. Crianças de 4 anos definem os papéis antes do início da brincadeira: Participantes: João (4 anos) Raquel (4 anos) João convida Raquel: “Vem brincar aos Power Rangers”. João pega as coroas de princesa de tecido cor-de-rosa, coloca na cabeça de Raquel e diz: “Tu és o amarelo” Raquel: “Não eu sou o cara rosa”. João põe uma coroa em sua cabeça. Olha-se no espelho. Raquel aproxima-se de João. Os dois se olham no espelho. Na cena acima, além das crianças definirem os papéis antes da brincadeira, buscam elementos para caracterizar o personagem. Embora aparente que Raquel escolhe o personagem “cara-rosa” em função da coroa dessa cor que João coloca em sua cabeça, na brincadeira de papéis, a caracterização é auxiliar para interpretar o papel. A menina busca congruência de gênero; o Power Ranger rosa é uma moça. Este é um traço importante, pois as crianças em níveis mais desenvolvidos buscam a congruência de gênero na definição dos papéis, segundo Elkonin (2009). Buscar a congruência de gênero parece estar relacionado a caracterizar o papel o mais próximo possível do personagem que se deseja interpretar. Importante destacar que esse elemento não deve levar educadores a reforçarem estereótipos de gênero na adoção de papéis, pois também é comum que meninos queiram interpretar papéis femininos e vice-versa quando notam que podem se caracterizar e atuar como tal na situação imaginária, o que demonstra, inclusive, uma compreensão mais profunda do que é representar um papel na brincadeira. Observamos crianças de quatro anos que debatem os papéis, discutindo as características pessoais deles. Vejamos o trecho da cena abaixo: Participantes: Marcelo (4 anos) Clarice (4 anos) Marcelo diz para Clarice: “Você tem vinte e um anos, era doutora” Clarice: “Vinte e um anos?” Marcelo: “É, vinte e um anos”. Clarice: “Tá bem, eu era a doutora!” (...) Clarice cuida de Marcelo. Na cena seguinte participam crianças de idades diferentes. Participantes: Clarice (4 anos), Raquel (4 anos), Rafael (2 anos) Clarice veste o avental e diz: “Preciso lavar a louça”. Raquel calça sapatos de salto. Raquel: “Eu sou a mãe!” Rafael está sentado ao redor da mesa, diz: “Eu sou a mãe!”. Clarice diz para Rafael: “Você é o pai”. Clarice diz: “Eu tenho que fazer o almoço”. Rafael bate com bule que está em cima da mesa na mesa. Clarice para Rafael: “Não faz isso.” (...). Raquel arruma a mesa. Clarice: “Eu já não vou mais cozinhar”. Raquel: “Você não vai mais brincar?”. Clarice: “Não, não vou mais cozinhar. Você cozinha!”. Raquel: “Não!!”. Clarice tira o avental e tenta colocar em Raquel. Clarice diz para Raquel: “Você é a mãe, você tem que cozinhar!” Rafael assume o papel de mãe imitando Raquel. Clarice de quatro anos percebe a incongruência de gênero e define o papel de pai para o menino. Percebe outra incoerência relativa aos papéis: não se pode ter duas mães. Relaciona o papel com as ações; se Raquel é mãe, ela deve cozinhar. Parece estar claro que Rafael assume papel de mãe, imitando Raquel. Esses dados exigem trazer para a análise o conceito vygotskiano de imitação. Para Vigotski (2012) quando crianças atuam em colaboração com parceiros mais capazes, imitam suas condutas. Afastando-nos de conclusões imprecisas, em primeiro lugar é preciso compreender o significado do conceito de imitação para Vigotski. Para o autor, a imitação não se trata de uma cópia, mas do entendimento de relações de uma situação que possibilita fazer algo como alguém faz (CHAIKLIN, 2011). Do ponto vista do desenvolvimento das funções psicológicas, a imitação ocorre, pois funções psicológicas relevantes para a atividade não se desenvolveram o suficiente para uma conduta independente, mas desenvolveram-se o necessário para ser realizada em parceria com alguém mais experiente (CHAIKLIN, 2011). A questão que fazemos é se quando as crianças mais novas imitam as mais velhas estão aprendendo ações fundamentais da brincadeira, em resumo se estão adquirindo as aprendizagens fundamentais da brincadeira de papéis. Nos níveis iniciais do desenvolvimento da brincadeira de papéis ainda não existe uma consciência clara sobre o papel e, portanto ainda não está ao alcance da criança uma visão crítica na adoção dos papéis. Por isso, para crianças nos primeiros níveis de desenvolvimento não interessa incongruência de gênero, não importa qual papel se assuma: imita-se um companheiro ou se aceita passivamente o papel determinado por ele, como faz Rafael. Salientamos que o desenvolvimento da consciência do papel apenas se desenvolve na atividade, daí a importância de brincar e brincar com outras crianças. No caso específico que analisamos aqui, a heterogeneidade em relação à idade, cria a possibilidade de brincar com crianças em outros níveis de desenvolvimento o que impacta no desenvolvimento da brincadeira das crianças menores. Quando Rafael, de dois anos, imita Raquel, de quatro, nomeando-se mãe, o aspecto importante disso é que ele está aprendendo ações relacionadas ao papel de quem brinca em um coletivo de crianças, o que possibilita colocar o papel como foco de sua consciência. 3.2 Representação dos papéis Ao longo do desenvolvimento da brincadeira de papéis há uma transformação na forma que o conteúdo é representado. Para as crianças mais novas o sentido da brincadeira é executar ações dos papéis, há ainda uma grande atração pelos objetos; para as crianças de idade medianas é representar as relações pessoais do papel. Já no final da idade préescolar, as crianças captam os traços mais típicos do papel e os interpretam (ELKONIN, 2009). Abaixo apresentamos cenas em que crianças de dois anos brincam juntas. Vejamos como as pequeninas representam os papéis: Participantes: Rogério (2 anos), Margarida (2 anos). Rogério entra na área. Põe o avental. Coloca frutas na mesa. Tira o peixe da geladeira e coloca em cima da mesa. Margarida entra na área. Pede o avental para o Rogério, ele nega. Brigam. Rogério dá o avental para Margarida. Margarida veste o avental. Rodrigo coloca o peixe em um prato. Margarida anda pela área. Na cena, Rogério representa um papel por meio de ações com os brinquedos sem estabelecer relações entre os papéis. Margarida entra na área e se sente atraída pelo avental que Rodrigo veste. Após conseguir o avental, o veste, mas não representa nenhum papel, apenas caminha pela área, enquanto Rogério continua atuando com os objetos. Na cena a seguir, apresentamos crianças mais velhas brincando: Participantes: Clarice (4 anos) Raquel (4 anos) e Lidia (4 anos) (...) Clarice levanta a blusa de Raquel e faz que a examina e diz: “Deita, de costas, deita de costas”. Raquel vira de costas. Clarice: “Ponho isto!” Sobe a camisa de Raquel, põe um tecido (cirúrgico) na parte baixa da barriga diz: “Espera um pouco” Vai até a gaveta. Raquel pega um objeto que esta no chão e bate com ele no chão. Clarice diz: “Não, não faz isso!” Clarice pega uma seringa. Faz que vai dar a injeção. Diz para Raquel: “Tu eras bebê, tu choravas!”. Raquel chora: “Mãe, mãe”. Clarice abaixa-se, olha para falar com Raquel que está deitada: “Calma, mãe está ali”. Clarice faz que dá a injeção. Raquel: “Nãoooo! vai doer!” Clarice: “Tu não choravas, agora tu chora” Raquel, chorando: “Não, não, não, na barriga não!”. Lidia chega na área. Clarice diz para ela: “Tu eras a mãe, tá bem?” Clarice pega um termômetro e diz para Raquel: “Vira de barriga para cima”. Lidia: “Vou me descalçar”. Raquel: “Mãe, mãe”. Lidia: “A mãe está a ver. A mãe vai tomar café”. Raquel levanta o braço. Clarice põe o termômetro. Tira. Clarice: “Trinta e sete, está com febre!” Clarice faz que examina a barriga. Raquel diz: “Estou com frio” Lidia faz que toma café. Clarice diz: “Ainda não estavas”. Raquel volta a deitar, diz: “Mãeee”. Lidia: “A mãe está aqui”. Clarice: “A mãe está ali”. Clarice põe os óculos de cirurgia: “Agora é isso!”. Depois pega uma mascara cirúrgica, volta para a gaveta. Lidia pega uma boneca no colo. Faz que toma café. Raquel se levanta da cama. Clarice: “Eu vou por outra coisa, vá se deitar, vá se deitar!” Raquel: “Estou a procurar uma coisa!”. Raquel coloca a mascara de oxigênio. (...) Lidia: “A mãe vai simbora”. Raquel deita na cama. Clarice: “Está a desarrumar a cama”. (...) Vemos que Clarice vai organizando o argumento da brincadeira e para interpretá-lo é preciso estabelecer relações entre papéis. Percebemos que a interpretação é rica de conteúdo e as ações manifestam o que as crianças conhecem da relação médico-paciente, sendo encadeadas umas com as outras. Para discutir como crianças mais velhas podem afetar a interpretação do papel, vejamos a sequência de cenas com Rafael e Ricardo. As cenas acontecem em dias diferentes e na ordem cronológica que apresentamos: Cena 01 Rafael joga o boneco no chão e chuta-o, como se fosse uma bola. Participantes: Rafael (2 anos) Cena 02 (...) Rafael levanta-se. Vai até o carrinho de chá. Ricardo o acompanha (...). Voltam para a mesa. Riem. Sentam-se. Ricardo Participantes: organiza a mesa para tomarem café. Ricardo faz que serve Ricardo (4 Rafael. Rafael levanta. Ricardo pergunta: “Rafael, já comeste tudo?” Rafael: (não é possível compreender). Rafael senta-se anos), Rafael (2 novamente. Faz que come o pão e toma o café. Ricardo pega anos) uma xícara e diz: “Esse é com chocolate é para o Rafael, isto é café, o seu é com leite” (...). Cena 03 Rafael entra na área. Está sozinho. Pega o bebê e o coloca na pia faz que abre a torneira. Faz como se desse banho no bebê. Rafael (2 anos) Pega um pote plástico e bate com ele no armário, põe na cabeça, coloca em cima do armário. Vai até a mesa. Pega uma xícara de café vai até o bebê. Aproxima a xícara dos lábios do bebê (que está em cima da pia). Faz como se estivesse dando para o bebê beber. Primeiramente, observando as cenas em que Rafael participa, notamos a diferença da atuação quando brinca com Ricardo. Com o companheiro mais velho, realiza as ações coerentes com a temática, mesmo porque o companheiro de brincadeira exige que Rafael atue conforme o papel; se isso não ocorresse, a brincadeira provavelmente terminaria. Podemos afirmar que Rafael, quando brinca com crianças mais velhas, atua como se estivesse em uma fase mais desenvolvida da brincadeira, ou que sua conduta quando brinca com outras crianças é reestruturada pelas regras do papel, mesmo que ainda seja outra criança que faça o controle da regra do papel. Rafael aprende ações da brincadeira de um determinado tema, tendo participado de uma situação imaginária dirigida por uma criança mais velha. O menino brinca com crianças mais velhas e estas vão entabulando relações com ele: relações entre papéis. Dessa forma, vai tornando-se consciente que na brincadeira dramatizam-se relações entre pessoas e o conteúdo dessas relações, torna-se foco de sua consciência. Reproduz com o boneco ações de cuidado, dando banho e o alimentando. Embora ainda não se possa afirmar que para Rafael os papéis de pai e filho estejam bem delineados, o importante é que o menino estabelece com o boneco as ações características dessa relação vivenciada por ele na cena 02. O que nos permite fazer essa afirmação, é que na cena 01 o menino chuta o boneco como uma bola e na cena 03, cuida dele, dando leite na xícara como Ricardo fez com ele. Talvez também seja possível dizer, que Rafael extraiu da brincadeira de pai e filho, o cuidado existente nessa relação como elemento central, e busca articular dar leite ao bebê com outras ações de cuidado. Na mudança da primeira para a segunda fase da brincadeira de papéis há o aumento das ações e junto com esse aumento, uma transformação qualitativa - as ações tornam-se cada vez mais encadeadas e mais parecidas como se dão na vida. Percebe-se que Rafael apresenta ações de cuidado (dar banho no bebê e depois dar-lhe leite) relacionadas. Ainda não se pode afirmar que são articuladas como na vida, pois o menino entre as duas ações, manipula o pote, batendo-o na mesa o que nos parece uma ação desarticulada com o contexto de cuidar do bebê. O importante é que apresenta ações de cuidado no interior da situação imaginária o que prepara para uma articulação mais consistente entre as ações. Outro elemento importante a ser destacado é que uma ação aprendida em uma situação imaginária é transferida para outra, em que o menino antes na situação filho, agora atua como pai. Destaca-se também que Rafael, depois de brincar com Ricardo, muda completamente sua conduta para com o boneco: de um objeto que pode ser chutado, agora é o bebê, que precisa ser cuidado. Assim, uma transformação bastante importante, é que as regras do papel de pai, vivenciadas pelo menino quando brinca com o companheiro mais velho, passam a controlar a conduta do menino frente ao boneco. 4 Considerações Finais A questão que nos detemos é: crianças mais novas quando brincam com as mais velhas adquirem aprendizagens fundamentais da brincadeira de papéis? Parece, que quando as crianças atingem certo nível de desenvolvimento da brincadeira, em que definem os papéis e os representam de forma articulada podem afetar de forma consistente a brincadeira das crianças mais novas, impactando assim, processos ainda em formação, conforme sugere o núcleo central do conceito de zona de desenvolvimento próximo. Assim, o que a pesquisa sugere é que crianças de idades diferentes brincando juntas é uma circunstância, dentre outras que podem ser criadas, que afeta de maneira desenvolvente, a brincadeira. A teoria de Elkonin, ainda pouco estudada e conhecida, traz contribuições importantes para compreender a brincadeira. A descrição das fases do desenvolvimento da brincadeira e o fato de conectar esse desenvolvimento as condições de vida e educação das crianças, auxilia imensamente na discussão e análise de quais condições e circunstâncias podem ser criadas nas escolas de Educação Infantil, a fim de que essa atividade possa se desenvolver ricamente, ampliando as possibilidades de desenvolvimento dos processos psíquicos e da personalidade conectados a ela. 5 Referências CHAIKLIN, S. A zona de desenvolvimento próximo na análise de Vigotski sobre aprendizagem e ensino. Psicol. estud., Maringá, v. 16, n. 4, Dec. 2011 . Available from<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413722011000400016&lng=en&nrm=iso>. access on 04 Aug. 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S1413-73722011000400016. ELKONIM, D. B. Psicologia do Jogo. São Paulo: Martins Fontes, 2009. ______. Sobre el problema de la periodização do desenvolvimento psiquico na infancia. In: SHUARE, M. (Org.) La psicologia evolutiva e pedagógica en la URSS ( Antologia). Moscou: Progresso. p. 104-124, 1987a. ______. Problemas psicológicos del juego en la edad escolar. In: SHUARE, M. (org). La psicologia evolutiva e pedagógica em la URSS ( Antologia). Moscou: Progresso. p. 104-124, 1987b. KISHIMOTO, Tizuko Morchida; ONO, Andréia Tiemi. Brinquedo, gênero e educação na brinquedoteca. Pro-Posições, Campinas , v. 19, n. 3, Dec. 2008 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010373072008000300011&lng=en&nrm=iso>. access on 27 Apr. 2014. http://dx.doi.org/10.1590/S0103-73072008000300011. LEONTIEV, A.N. Uma contribuição à teoria da psique infantil. In: Vigotskii, L. S, Luria, A.R, Leontiev, A.N. Linguagem, desenvolvimento, aprendizagem. São Paulo: Ícone, 2012a, p.5983. ______. Os princípios psicológicos da brincadeira pré-escolar. In: Vigotskii, L. S, Luria, A.R, Leontiev, A.N. Linguagem, desenvolvimento, aprendizagem. São Paulo: Ícone, 2012b, p.119-149. Mello, C. O., & Sperb, T.M. Para além dos objetos, sem perdê-los de vista. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 13, 135-160, 1997. NASCIMENTO, C. P. A organização do ensino e a formação do pensamento estéticoartístico na teoria histórico-cultural.2010b. Dissertação (Mestrado em Educação) Universidade de São Paulo, 2010. SAGER, F. et al . Avaliação da interação de crianças em pátios de escolas infantis: uma abordagem da psicologia ambiental. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 16, n. 1, 2003.Availablefrom http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S01029722003000100021&lng=en&nrm=iso>. access on 05 Aug. 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-79722003000100021. ______; SPERB, Tania M.. O brincar e os brinquedos nos conflitos entre crianças. Psicol. Reflex. Crit., Porto Alegre, v. 11, n. 2, 1998 . Available from <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S010279721998000200010&lng=en&nrm=iso>. access on 04 Aug. 2013. http://dx.doi.org/10.1590/S0102-79721998000200010 Verba, L. Construction and sharing of meanings in pretend play among young children. Em Stambak & H. Sinclair (Eds.), Pretend play among 3 year-olds (pp. 88-93). Hillsdale, N.J.:Erlbaum.1993. VIGOTSKI, L.S. A brincadeira e o seu papel no desenvolvimento psíquico da criança. In: Revista Virtual De Gestão de Iniciativas Sociais. Rio de Janeiro, n. 8, p. 23-36, jun, 2008. ZAPORÓZHETS, A. Importancia de los períodos iniciales de la vida en la formación de La personalidad infantil. In: DAVIDOV, V; SHUARE, M. (Org.). La psicología evolutiva y pedagógica en la URSS (antologia). Moscou: Progresso. 1987. p. 228-249.