Aprendendo a brincar com parceiros mais experientes1
Suzana Marcolino/Programa de Pós Graduação em Educação–Unesp/Marília.
Suely Amaral Mello/Programa de Pós Graduação em Educação–Unesp/Marília.
Maria Assunção Folque/Professora Auxiliar do Departamento de Pedagogia e Educação–
Universidade de Évora, Portugal.
Financiamento: CAPES.
1 Introdução
Pesquisadores tem se interessado em investigar como determinadas condições e
circunstâncias criadas podem afetar a brincadeira. Verba (1993) e Mello (1994) pesquisaram
o uso que crianças fazem de objetos sem significação lúdica específica. Outros estudiosos
discutem como questões de gênero influem na brincadeira (KISHIMOTO e ONO, 2008) e
também os conflitos entre as crianças no momento em que brincam (SAGER, SPERB,
1998). Porém, pesquisas que analisem como com quem se brinca pode ser uma condição
que afeta a brincadeira, enriquecendo-a e potencializando processos em desenvolvimento,
ainda precisam ser desenvolvidas.
Para os autores da Teoria Histórico-cultural do desenvolvimento humano (VIGOTSKI,
2008; LEONTIEV, 2012; ELKONIN, 1987) a brincadeira é no período pré-escolar a atividade
guia, pois organiza e potencializa o desenvolvimento de processos psicológicos. Pesquisas
realizadas por Elkonin (2009) e colaboradores desvelaram o desenvolvimento ontogenético
da brincadeira infantil. Identificaram que na idade pré-escolar2 a brincadeira atinge o auge
de seu desenvolvimento, quando crianças criam uma situação imaginária para representar
as relações entre as pessoas. Por isso, o autor denominou esse tipo de brincadeira como de
papéis.
Segundo Záporózhets (1987), há em cada etapa do desenvolvimento aprendizagens
fundamentais que provocam “mudanças essenciais da atividade infantil em seu conjunto”
(ZAPORÓZHETS, 1987, p. 235/236). Chaiklin (2011), sobre o conceito vigotskiano de zona
de desenvolvimento próximo, considera que os processos psicológicos centrais de cada
idade apenas se desenvolvem se a criança se envolve nas ações e relações que os
movimentem, e tais ações e relações estão contidas na atividade-guia.
A partir dessas contribuições, concluímos que as ações e relações contidas na
atividade guia criam as possibilidades para que as aprendizagens fundamentais possam
1
O presente texto é um recorte de pesquisa de doutoramento que objetivou investigar qual a
natureza da mediação pedagógica propulsora do desenvolvimento da brincadeira de papéis
sociais.
2
Período dos três aos seis anos, segundo a Psicologia Histórico-Cultural.
acontecer e arrastar o desenvolvimento de processos psicológicos. Outrossim, pode-se
dizer que a própria atividade se desenvolve em virtude das transformações dos processos
psicológicos.
Para Elkonin (2009), um dos aspectos que torna a brincadeira na Escola de
Educação Infantil mais rica é acontecer no coletivo de crianças pelas possibilidades
inesgotáveis para constituir e reconstituir os mais diversos vínculos entre os personagens de
uma situação imaginária. Cabe conhecer, nos grupos de crianças com idades diferentes,
como crianças mais velhas podem afetar a brincadeira das mais novas.
Perguntamos: em uma circunstância em que crianças mais novas brincam com
crianças mais velhas, as primeiras adquirem as aprendizagens fundamentais da brincadeira
de papéis sociais que movimentam os processos psíquicos e da personalidade em
desenvolvimento?
2 Procedimentos Metodológicos
2.1 Local e participantes da pesquisa
A pesquisa foi realizada em uma sala de Educação Infantil na cidade de Évora,
Portugal3, que adota a heterogeneidade em relação à idade das crianças: uma mesma
turma recebe crianças entre dois e seis anos de idade. No momento em que coletamos os
dados - setembro de 2012 a janeiro de 2013 - a turma era composta de dezessete crianças
de ambos os sexos com idades entre dois a cinco anos.
A educadora da turma é membro do Movimento Pedagógico da Escola Moderna
Portuguesa (MEM). O MEM propõe as seguintes áreas, nas quais ocorrem as atividades do
cotidiano escolar: biblioteca e centro de documentação; atelier de artes plásticas; laboratório
das ciências e da matemática; oficina de escrita e reprodução; área da dramatização; área
das construções e carpintaria e, por fim, uma área polivalente utilizada para reuniões do
grupo e apoio a projetos diversos.
No início da manhã, as crianças, após planejaram o dia em conjunto com o
professor, optam por desenvolver atividades em uma daquelas áreas.
Na área da dramatização, há uma condição especial criada para que se desenvolva
a brincadeira de papéis. Na sala que realizamos a pesquisa, o aspecto geral da área de
dramatização é de uma “casa de brinquedo”, pois há brinquedos temáticos de “casa” em
tamanho aumentado: um armário de cozinha com microondas e pia; uma mesa com
banquetas; um carrinho de chá e uma cama. Brinquedos de outros temas, como relativos a
3
O trabalho de pesquisa em Portugal foi realizado graças concessão de Bolsa de Doutorado
Sanduíche CAPES/Processo bex 9265-12-0.
hospital e cabeleireiro, por exemplo, estão acessíveis em um gaveteiro no canto esquerdo
da área.
Como nas outras áreas, há um limite de quatro crianças por vez. Esse limite permite
que as crianças tenham condições adequadas no que diz respeito a se movimentarem no
espaço físico da área. Tal dinâmica faz com que o grupo de crianças mude seus integrantes
durante a brincadeira: ao sair uma criança, outra pode entrar.
2.2 Procedimento para a coleta de dados e análise
Realizamos dez sessões de observação da área de dramatização. As sessões
duravam o tempo em que as crianças permaneciam na área, sendo que nenhuma
ultrapassou a uma hora e vinte minutos. Todas as sessões foram filmadas e a pesquisadora
realizou notas em diário de campo como técnica de registro auxiliar.
Elkonin (2009) concluiu que a interpretação do papel é aspecto caracteristicamente
central dessa forma de brincadeira. O papel é a unidade de análise da brincadeira. Segundo
o autor, nele “(...) estão representados em união indissolúvel a motivação afetiva e o
aspecto técnico-operacional da atividade.” (ELKONIN, 2009, p.29).
A definição da unidade possui importância prática, pois direciona o olhar do
pesquisador para as transformações do objeto de pesquisa que devem ser descritas e
debatidas (NASCIMENTO, 2010). Adotamos o papel e suas ações como unidade de análise,
direcionando nosso olhar para as transformações ocorridas na interpretação dos papéis das
crianças mais novas quando brincam com crianças mais velhas.
A partir da transcrição das filmagens construímos quarenta cenas de brincadeiras
de papéis. Chamamos de cenas de brincadeira de papéis, a dramatização de papéis de
algum tema especifico. Assim, por exemplo, se um grupo de crianças, brinca de hospital
temos uma cena; se no decorrer da brincadeira decidem brincar de escola, interrompendo o
tema hospital, temos outra cena. Os critérios utilizados para definir uma cena foram: (i) a
definição de papéis pelas crianças; (ii) a execução de ações lúdicas com objetos
verdadeiros ou substitutos, como por exemplo, representar que lava um prato de brinquedo
ou fazer um tubo de shampoo como sanduíche e representar que come; (iii) interpretação
das relações sociais de um papel, como cuidar do filho, oferecendo o lanche e depois
levando-o para a escola. A existência de um dos critérios foi considerada suficiente para
construir uma cena. Isso porque observamos a brincadeira de papéis em fases diferentes de
desenvolvimento.
As crianças podem interpretar papéis através de ações lúdicas com brinquedos ou
objetos, sem definir papéis. A definição de papéis ocorre em um nível mais desenvolvido da
brincadeira, quando a criança já conhece as ações, as individualiza e depois as generaliza
para interpretar o papel. Dessa forma, definir papéis é um marco no desenvolvimento da
brincadeira, mesmo que depois não se siga de forma coerente a interpretação deles. Já nas
fases mais desenvolvidas da brincadeira, papéis são adotados conforme uma temática e
interpretados de acordo com as suas regras internas.
Com as cenas construídas, identificamos as que as crianças da mesma idade
brincam juntas e, aquelas que crianças de idades diferentes interagem com intuito de
contrastá-las para a análise.
Organizamos a discussão dos resultados em dois eixos temáticos: 1) como as
crianças assumem os papéis; 2) como representam (o conteúdo) do papel.
3 Resultados e discussão
3.1 Definição dos papéis
Segundo Elkonin (1987a), a criança assume papéis quando capaz de individualizar
traços característicos de uma pessoa. Ocorre que as crianças não representam uma pessoa
específica, mas fundamentalmente a função social de alguém. Então, se por um lado a
criança extrai traços individuais de conduta, também os generaliza: todo médico examina o
paciente, ouvindo o coração, dando injeção etc..
A cena abaixo apresenta crianças de dois anos brincando juntas. Elas não definem
papéis; entram na área de dramatização e realizam ações com os brinquedos.
Participantes: Rafael (2 anos), Inês (2 anos)
Inês faz que serve chá nas xícaras. Rafael joga objetos no chão. Inês vai até o
armário. Abre o forno. Rafael aproxima-se do forno. Inês aproxima-se da mesa.
Rafael mexe no forno. (...) Rafael põe pizzas de brinquedo no forno. Tira as pizzas
do forno. Pega um prato dentro do microondas. Põe na mesa. Inês começa a tirar
pratos do armário. (...) Os dois abrem e fecham as portas dos armários.
Crianças de 4 anos definem os papéis antes do início da brincadeira:
Participantes: João (4 anos) Raquel (4 anos)
João convida Raquel: “Vem brincar aos Power Rangers”. João pega as coroas de
princesa de tecido cor-de-rosa, coloca na cabeça de Raquel e diz: “Tu és o amarelo”
Raquel: “Não eu sou o cara rosa”. João põe uma coroa em sua cabeça. Olha-se no
espelho. Raquel aproxima-se de João. Os dois se olham no espelho.
Na cena acima, além das crianças definirem os papéis antes da brincadeira, buscam
elementos para caracterizar o personagem. Embora aparente que Raquel escolhe o
personagem “cara-rosa” em função da coroa dessa cor que João coloca em sua cabeça, na
brincadeira de papéis, a caracterização é auxiliar para interpretar o papel. A menina busca
congruência de gênero; o Power Ranger rosa é uma moça. Este é um traço importante, pois
as crianças em níveis mais desenvolvidos buscam a congruência de gênero na definição
dos papéis, segundo Elkonin (2009). Buscar a congruência de gênero parece estar
relacionado a caracterizar o papel o mais próximo possível do personagem que se deseja
interpretar. Importante destacar que esse elemento não deve levar educadores a reforçarem
estereótipos de gênero na adoção de papéis, pois também é comum que meninos queiram
interpretar papéis femininos e vice-versa quando notam que podem se caracterizar e atuar
como tal na situação imaginária, o que demonstra, inclusive, uma compreensão mais
profunda do que é representar um papel na brincadeira.
Observamos crianças de quatro anos que debatem os papéis, discutindo as
características pessoais deles. Vejamos o trecho da cena abaixo:
Participantes: Marcelo (4 anos) Clarice (4 anos)
Marcelo diz para Clarice: “Você tem vinte e um anos, era doutora” Clarice: “Vinte e
um anos?” Marcelo: “É, vinte e um anos”. Clarice: “Tá bem, eu era a doutora!” (...)
Clarice cuida de Marcelo.
Na cena seguinte participam crianças de idades diferentes.
Participantes: Clarice (4 anos), Raquel (4 anos), Rafael (2 anos)
Clarice veste o avental e diz: “Preciso lavar a louça”. Raquel calça sapatos de salto.
Raquel: “Eu sou a mãe!” Rafael está sentado ao redor da mesa, diz: “Eu sou a
mãe!”. Clarice diz para Rafael: “Você é o pai”. Clarice diz: “Eu tenho que fazer o
almoço”. Rafael bate com bule que está em cima da mesa na mesa. Clarice para
Rafael: “Não faz isso.” (...). Raquel arruma a mesa. Clarice: “Eu já não vou mais
cozinhar”. Raquel: “Você não vai mais brincar?”. Clarice: “Não, não vou mais
cozinhar. Você cozinha!”. Raquel: “Não!!”. Clarice tira o avental e tenta colocar em
Raquel. Clarice diz para Raquel: “Você é a mãe, você tem que cozinhar!”
Rafael assume o papel de mãe imitando Raquel. Clarice de quatro anos percebe a
incongruência de gênero e define o papel de pai para o menino. Percebe outra incoerência
relativa aos papéis: não se pode ter duas mães. Relaciona o papel com as ações; se Raquel
é mãe, ela deve cozinhar.
Parece estar claro que Rafael assume papel de mãe, imitando Raquel. Esses dados
exigem trazer para a análise o conceito vygotskiano de imitação. Para Vigotski (2012)
quando crianças atuam em colaboração com parceiros mais capazes, imitam suas
condutas.
Afastando-nos de conclusões imprecisas, em primeiro lugar é preciso compreender o
significado do conceito de imitação para Vigotski. Para o autor, a imitação não se trata de
uma cópia, mas do entendimento de relações de uma situação que possibilita fazer algo
como alguém faz (CHAIKLIN, 2011). Do ponto vista do desenvolvimento das funções
psicológicas, a imitação ocorre, pois funções psicológicas relevantes para a atividade não se
desenvolveram o suficiente para uma conduta independente, mas desenvolveram-se o
necessário para ser realizada em parceria com alguém mais experiente (CHAIKLIN, 2011).
A questão que fazemos é se quando as crianças mais novas imitam as mais velhas
estão aprendendo ações fundamentais da brincadeira, em resumo se estão adquirindo as
aprendizagens fundamentais da brincadeira de papéis.
Nos níveis iniciais do desenvolvimento da brincadeira de papéis ainda não existe
uma consciência clara sobre o papel e, portanto ainda não está ao alcance da criança uma
visão crítica na adoção dos papéis. Por isso, para crianças nos primeiros níveis de
desenvolvimento não interessa incongruência de gênero, não importa qual papel se assuma:
imita-se um companheiro ou se aceita passivamente o papel determinado por ele, como faz
Rafael.
Salientamos que o desenvolvimento da consciência do papel apenas se desenvolve
na atividade, daí a importância de brincar e brincar com outras crianças. No caso específico
que analisamos aqui, a heterogeneidade em relação à idade, cria a possibilidade de brincar
com crianças em outros níveis de desenvolvimento o que impacta no desenvolvimento da
brincadeira das crianças menores.
Quando Rafael, de dois anos, imita Raquel, de quatro, nomeando-se mãe, o aspecto
importante disso é que ele está aprendendo ações relacionadas ao papel de quem brinca
em um coletivo de crianças, o que possibilita colocar o papel como foco de sua
consciência.
3.2 Representação dos papéis
Ao longo do desenvolvimento da brincadeira de papéis há uma transformação na
forma que o conteúdo é representado. Para as crianças mais novas o sentido da brincadeira
é executar ações dos papéis, há ainda uma grande atração pelos objetos; para as crianças
de idade medianas é representar as relações pessoais do papel. Já no final da idade préescolar, as crianças captam os traços mais típicos do papel e os interpretam (ELKONIN,
2009).
Abaixo apresentamos cenas em que crianças de dois anos brincam juntas. Vejamos
como as pequeninas representam os papéis:
Participantes: Rogério (2 anos), Margarida (2 anos).
Rogério entra na área. Põe o avental. Coloca frutas na mesa. Tira o peixe da
geladeira e coloca em cima da mesa. Margarida entra na área. Pede o avental para o
Rogério, ele nega. Brigam. Rogério dá o avental para Margarida. Margarida veste o
avental. Rodrigo coloca o peixe em um prato. Margarida anda pela área.
Na cena, Rogério representa um papel por meio de ações com os brinquedos sem
estabelecer relações entre os papéis. Margarida entra na área e se sente atraída pelo
avental que Rodrigo veste. Após conseguir o avental, o veste, mas não representa nenhum
papel, apenas caminha pela área, enquanto Rogério continua atuando com os objetos.
Na cena a seguir, apresentamos crianças mais velhas brincando:
Participantes: Clarice (4 anos) Raquel (4 anos) e Lidia (4 anos)
(...) Clarice levanta a blusa de Raquel e faz que a examina e diz: “Deita, de
costas, deita de costas”. Raquel vira de costas. Clarice: “Ponho isto!” Sobe a
camisa de Raquel, põe um tecido (cirúrgico) na parte baixa da barriga diz:
“Espera um pouco” Vai até a gaveta. Raquel pega um objeto que esta no chão e
bate com ele no chão. Clarice diz: “Não, não faz isso!” Clarice pega uma
seringa. Faz que vai dar a injeção. Diz para Raquel: “Tu eras bebê, tu
choravas!”. Raquel chora: “Mãe, mãe”. Clarice abaixa-se, olha para falar com
Raquel que está deitada: “Calma, mãe está ali”. Clarice faz que dá a injeção.
Raquel: “Nãoooo! vai doer!” Clarice: “Tu não choravas, agora tu chora” Raquel,
chorando: “Não, não, não, na barriga não!”. Lidia chega na área. Clarice diz
para ela: “Tu eras a mãe, tá bem?” Clarice pega um termômetro e diz para
Raquel: “Vira de barriga para cima”. Lidia: “Vou me descalçar”. Raquel: “Mãe,
mãe”. Lidia: “A mãe está a ver. A mãe vai tomar café”. Raquel levanta o braço.
Clarice põe o termômetro. Tira. Clarice: “Trinta e sete, está com febre!” Clarice
faz que examina a barriga. Raquel diz: “Estou com frio” Lidia faz que toma café.
Clarice diz: “Ainda não estavas”. Raquel volta a deitar, diz: “Mãeee”. Lidia: “A
mãe está aqui”. Clarice: “A mãe está ali”. Clarice põe os óculos de cirurgia:
“Agora é isso!”. Depois pega uma mascara cirúrgica, volta para a gaveta. Lidia
pega uma boneca no colo. Faz que toma café. Raquel se levanta da cama.
Clarice: “Eu vou por outra coisa, vá se deitar, vá se deitar!” Raquel: “Estou a
procurar uma coisa!”. Raquel coloca a mascara de oxigênio. (...) Lidia: “A mãe
vai simbora”. Raquel deita na cama. Clarice: “Está a desarrumar a cama”. (...)
Vemos que Clarice vai organizando o argumento da brincadeira e para interpretá-lo é
preciso estabelecer relações entre papéis. Percebemos que a interpretação é rica de
conteúdo e as ações manifestam o que as crianças conhecem da relação médico-paciente,
sendo encadeadas umas com as outras.
Para discutir como crianças mais velhas podem afetar a interpretação do papel,
vejamos a sequência de cenas com Rafael e Ricardo. As cenas acontecem em dias
diferentes e na ordem cronológica que apresentamos:
Cena 01
Rafael joga o boneco no chão e chuta-o, como se fosse uma bola.
Participantes:
Rafael (2 anos)
Cena 02
(...) Rafael levanta-se. Vai até o carrinho de chá. Ricardo o
acompanha (...). Voltam para a mesa. Riem. Sentam-se. Ricardo
Participantes:
organiza a mesa para tomarem café. Ricardo faz que serve
Ricardo
(4 Rafael. Rafael levanta. Ricardo pergunta: “Rafael, já comeste
tudo?” Rafael: (não é possível compreender). Rafael senta-se
anos), Rafael (2
novamente. Faz que come o pão e toma o café. Ricardo pega
anos)
uma xícara e diz: “Esse é com chocolate é para o Rafael, isto é
café, o seu é com leite” (...).
Cena 03
Rafael entra na área. Está sozinho. Pega o bebê e o coloca na
pia faz que abre a torneira. Faz como se desse banho no bebê.
Rafael (2 anos)
Pega um pote plástico e bate com ele no armário, põe na cabeça,
coloca em cima do armário. Vai até a mesa. Pega uma xícara de
café vai até o bebê. Aproxima a xícara dos lábios do bebê (que
está em cima da pia). Faz como se estivesse dando para o bebê
beber.
Primeiramente, observando as cenas em que Rafael participa, notamos a diferença
da atuação quando brinca com Ricardo. Com o companheiro mais velho, realiza as ações
coerentes com a temática, mesmo porque o companheiro de brincadeira exige que Rafael
atue conforme o papel; se isso não ocorresse, a brincadeira provavelmente terminaria.
Podemos afirmar que Rafael, quando brinca com crianças mais velhas, atua como se
estivesse em uma fase mais desenvolvida da brincadeira, ou que sua conduta quando
brinca com outras crianças é reestruturada pelas regras do papel, mesmo que ainda seja
outra criança que faça o controle da regra do papel.
Rafael aprende ações da brincadeira de um determinado tema, tendo participado de
uma situação imaginária dirigida por uma criança mais velha. O menino brinca com crianças
mais velhas e estas vão entabulando relações com ele: relações entre papéis. Dessa forma,
vai tornando-se consciente que na brincadeira dramatizam-se relações entre pessoas e o
conteúdo dessas relações, torna-se foco de sua consciência. Reproduz com o boneco ações
de cuidado, dando banho e o alimentando. Embora ainda não se possa afirmar que para
Rafael os papéis de pai e filho estejam bem delineados, o importante é que o menino
estabelece com o boneco as ações características dessa relação vivenciada por ele na cena
02.
O que nos permite fazer essa afirmação, é que na cena 01 o menino chuta o boneco
como uma bola e na cena 03, cuida dele, dando leite na xícara como Ricardo fez com ele.
Talvez também seja possível dizer, que Rafael extraiu da brincadeira de pai e filho, o
cuidado existente nessa relação como elemento central, e busca articular dar leite ao bebê
com outras ações de cuidado.
Na mudança da primeira para a segunda fase da brincadeira de papéis há o aumento
das ações e junto com esse aumento, uma transformação qualitativa - as ações tornam-se
cada vez mais encadeadas e mais parecidas como se dão na vida. Percebe-se que Rafael
apresenta ações de cuidado (dar banho no bebê e depois dar-lhe leite) relacionadas. Ainda
não se pode afirmar que são articuladas como na vida, pois o menino entre as duas ações,
manipula o pote, batendo-o na mesa o que nos parece uma ação desarticulada com o
contexto de cuidar do bebê. O importante é que apresenta ações de cuidado no interior da
situação imaginária o que prepara para uma articulação mais consistente entre as ações.
Outro elemento importante a ser destacado é que uma ação aprendida em uma
situação imaginária é transferida para outra, em que o menino antes na situação filho, agora
atua como pai. Destaca-se também que Rafael, depois de brincar com Ricardo, muda
completamente sua conduta para com o boneco: de um objeto que pode ser chutado, agora
é o bebê, que precisa ser cuidado. Assim, uma transformação bastante importante, é que as
regras do papel de pai, vivenciadas pelo menino quando brinca com o companheiro mais
velho, passam a controlar a conduta do menino frente ao boneco.
4 Considerações Finais
A questão que nos detemos é: crianças mais novas quando brincam com as mais
velhas adquirem aprendizagens fundamentais da brincadeira de papéis?
Parece, que quando as crianças atingem certo nível de desenvolvimento da
brincadeira, em que definem os papéis e os representam de forma articulada podem afetar
de forma consistente a brincadeira das crianças mais novas, impactando assim, processos
ainda em formação, conforme sugere o núcleo central do conceito de zona de
desenvolvimento próximo.
Assim, o que a pesquisa sugere é que crianças de idades diferentes brincando juntas
é uma circunstância, dentre outras que podem ser criadas, que afeta de maneira
desenvolvente, a brincadeira.
A teoria de Elkonin, ainda pouco estudada e conhecida, traz contribuições
importantes para compreender a brincadeira. A descrição das fases do desenvolvimento da
brincadeira e o fato de conectar esse desenvolvimento as condições de vida e educação das
crianças, auxilia imensamente na discussão e análise de quais condições e circunstâncias
podem ser criadas nas escolas de Educação Infantil, a fim de que essa atividade possa se
desenvolver ricamente, ampliando as possibilidades de desenvolvimento dos processos
psíquicos e da personalidade conectados a ela.
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